Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2315/23.0T8CLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
PARCELA INTEGRADA NO DOMÍNIO PÚBLICO MARÍTIMO
DETENTOR DA LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
UTILIZAÇÃO PRIVADA
TRIBUNAIS COMUNS
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE PENICHE DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 113.º DA LEI DE ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO 91.º, N.º 1, 364.º, N.º 3, E 377.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário:
A competência material para um procedimento cautelar de restituição provisória da posse de um armazém de aprestos, parcela integrada no domínio público marítimo, instaurado pelo detentor do alvará/licença de utilização contra um terceiro particular, com fundamento na prática de actos de esbulho violento, cabe aos tribunais comuns e não aos tribunais marítimos, por não se integrar em qualquer das alíneas previstas no art.º 113.º da LOSJ.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

SUMÁRIO ELABORADO PELO RELATOR (artº 663, nº7 do C.P.C.)

(…).


***

Proc. Nº 2315/23.0T8CLD.C1- Apelação

Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Leiria-Juízo de Competência Genérica de ...

Recorrente: AA  

Recorridos: BB

Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: António Marques Silva

                                        Luís Manuel Carvalho Ricardo


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Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de COIMBRA:


RELATÓRIO

           

 AA, intentou procedimento cautelar para restituição provisória da posse contra BB, peticionando que seja ordenada a restituição provisória à sua posse do Armazém de Aprestos n.º...3, sito no Porto de Pesca de ..., nomeadamente ordenando à Requerida a entrega à Requerente da chave do cadeado do portão ou, se necessário for, com arrombamento do novo cadeado colocado no portão e sua substituição e da respetiva fechadura.

Alegou, para tanto que lhe foi concedida autorização e emitida Licença para a utilização privada do bem do domínio público marítimo, referente a uma infraestrutura portuária de apoio à atividade de pesca, constituída pelo Armazém de Aprestos n.º...3, com a área de 70 m2, sito no Porto de Pesca de ..., por si utilizado desde a data da autorização inicial de alteração da titularidade da Licença (01/10/2011) até 22/11/2023, data em que a requerida procedeu ao arrombamento das correntes e dos cadeados desse armazém, substituindo-os por outros e impedindo-a de entrar no referido armazém.


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Foi proferido despacho que ordenou a notificação da requerente para se pronunciar quanto à incompetência material do Juízo de Competência Genérica para conhecer deste procedimento cautelar, pronunciando-se a requerente no sentido de que o pedido e causa de pedir, tal como por si configuradas, não têm conexão com as matérias integradoras da competência dos tribunais marítimos.

Após, foi proferida decisão indeferiu “liminarmente a petição inicial, por verificação da exceção dilatória de incompetência absoluta deste tribunal, em razão da matéria, para a tramitação e julgamento dos presentes autos.”


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Não se conformando com a decisão, dela apelou a A. ora recorrente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

(…).


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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Nestes termos, a única questão a decidir consiste em saber

a) Se a competência para o pedido de restituição provisória da posse de um armazém de pesca sito na capitania de ..., cabe aos tribunais comuns, ou aos tribunais marítimos, conforme defendido pela decisão recorrida.


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria de facto a considerar é a constante do relatório acima elaborado, a que acresce a seguinte factualidade, alegada no requerimento inicial:
“1º. A Requerente é armadora de pesca cuja atividade desenvolve junto do Porto de Pescas de ..., encontrando-se inscrita na Cat. B - Rendimentos Empresariais, CAE: 03111 - Pesca Marítima, com início de atividade junto do Serviço de Finanças de ... desde 07-01-2008 (…).
2º. Nessa qualidade, a Requerente é proprietária da embarcação de pesca-local denominada “...”, Registada na Capitania do Porto de Pesca de ... sob o n.º PTPEN-...2-l, com o Registo Comunitário n.º PRT00...21.
3º. No desenvolvimento desta atividade piscatória, a Requerente é diretamente coadjuvada pelo seu filho, CC, atualmente na qualidade de trabalhador em Terra / “Velho Terra”, por a mesma ser pessoa de avançada idade (86 anos) e estar confinada a uma cadeira de rodas para se poder deslocar.
4º. No âmbito da exploração da atividade económica privada da Requerente, foi-lhe em devido tempo concedida autorização e emitida a respetiva Licença para a utilização de uma infraestrutura portuária de apoio à atividade de pesca, constituída pelo Armazém de Aprestos n.º...3, com a área de 70 m2, sito no Porto de Pesca de ....
5º. Efetivamente, por Requerimento com entrada no IPTM - Delegação do Porto de ... sob o n.º 984 em 20-09-2011, a A..., C.R.L., com sede em ..., NIPC ...44, na qualidade de titular do Alvará de Licença n.º ...9-PE, relativo à ocupação do Armazém de Aprestos n.º...3, edificado em regime de autoconstrução, concedido para guarda de aprestos marítimos no Porto de Pesca de ..., veio requerer autorização para a alteração de titularidade do citado armazém, transmitindo-se o citado Alvará para a ora Requerente, com efeitos a partir de 01 de outubro de 2011.
6º. Pedido este que mereceu proposta de deferimento datada de 04-10-2011, emitida pela Delegação do Centro do Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos, I.P., com vista à autorização de alteração da titularidade com a emissão do Averbamento ao respetivo Alvará de Licença, com efeitos a partir de 01 de outubro de 2011, prorrogada no tempo, ficando a Requerente investida na qualidade de nova titular, sujeita ao cumprimento de todo o seu clausulado e sub-rogada em todos os direitos e deveres do cedente, proposta esta que mereceu despacho de autorização, nos termos e nas condições propostas, do Exm.º Sr. Presidente do Conselho Diretivo do IPTM.
(…)
11º. Mediante o pagamento de uma taxa cujo valor é a Requerente quem paga anualmente.
12º. O Armazém de Aprestos em causa constitui, desde 1 de outubro de 2011, um equipamento para apoio da atividade da Requerente, como armadora de pesca, destinado à guarda de aprestos e utensílios de pesca exclusivamente relacionados com a embarcação utente “...” e que visa dar apoio e melhorar as condições de trabalho em terra.
13º. É, pois, a Requerente quem ocupa, explora e utiliza, desde 1 de outubro de 2011, sem qualquer solução de continuidade, o Armazém de Aprestos n.º...3, situado no Porto de Pesca de ...,
(…)
15º. O que já sucede há mais de 12 (doze) anos,
16º. De forma continuada e ininterrupta, na convicção de estar a usar de direito próprio,
17º. De forma pacífica e sem qualquer oposição, de quem quer que seja,
18º. À vista de todas as pessoas, incluindo da Requerida,
19º. Circulando nele, livremente, fazendo dele coisa sua e certa de que não lesava interesses alheios.
20º. É, pois, neste Armazém de Aprestos que a Requerente, com conhecimento de todos, inclusive da própria Requerida e da própria Administração Portuária, e à vista de todos, ali guarda todas as artes de pesca,
21º. Tais como: anzóis, linhas, redes, joeiras, cabos, cordas, cintas, fios, ganchos, diferenciais, cadernais, moitões, boias, balões, coletes, esteiras, material de salvamento, sinalização e navegação, capas de oleado, tulhas, correntes, escadas, cortiça, fateixas e âncoras, instrumentos de precisão, cartas e mapas, meios de transmissão e comunicação, candeeiros, prateleiras, armários e cacifos para arrumação, cadeiras, mesas, entre outros,
22º. Transportando quotidianamente estas artes do Armazém n.º 73 para a embarcação “...”, aí a colocando a bordo para lançamento ao mar, e
23º. Trazendo-as de volta depois da faina e depositando-as novamente no Armazém de Aprestos,
24º. É no Armazém de Aprestos que a Requerente, juntamente com os seus colaboradores de pesca, desenvolve a sua atividade diária e quotidiana,
25º. Mantendo sempre o portão aberto e à vista de todos,
26º. Ali faz reparar as redes danificadas, cozendo-as,
27º. É ali que os seus colaboradores desempatam os anzóis e desenrolam as linhas,
28º. É ali que armazenam o engodo,
29º. Ali fazem o manuseamento de cargas e de materiais,
30º. Assim como fazem a separação de resíduos e reciclagem,
31º. Este Armazém funciona também como oficina e escritório,
32º. Ali se contratando o pessoal necessário às lides,
33º. E ali se arquivam os documentos tanto do pessoal como da faina,
34º. Serve também de dormitório à tripulação que mora longe, que não tem onde ficar até à próxima faina e que dentro deste armazém satisfaz as suas necessidades básicas e essenciais, tais como,
35º. Ali dormem, nas camas e esteiras ali existentes para este efeito,
36º. Ali fazem as suas refeições, para o que existe uma cozinha para o uso de todos, mestres, tripulantes e demais colaboradores,
37º. Ali utilizam, para o efeito, o fogão, onde confecionam as suas refeições,
38º. Utilizam o frigorífico ali existente para guardar os seus alimentos,
39º. Ali se sentam para comer, para o que existe uma mesa e várias cadeiras,
40º. Lavam a loiça suja recorrendo ao lava-louças que ali existe,
41º. Ali guardam as panelas, os tachos, os pratos, os copos, os talheres, no armário
disponibilizado para esse efeito,
42º. Ali fazem a sua higiene pessoal e tomam duche,
43º. Servindo-se da casa de banho existente no interior do Armazém,
44º. Utilizando para o efeito a água quente proporcionada pelo uso do esquentador instalado nesse local,
45º. Circulando nele, livremente,
46º. Tanto a embarcação de pesca “...” como o Armazém de Aprestos n.º...3 situado no Porto de pesca de ..., constituem investimentos que representam bens inseparáveis, ambos imprescindíveis ao exercício da atividade privada da Requerente, constituindo este último um equipamento indispensável de suporte e de apoio à sua atividade, (…)
48º. Sem a disposição do qual (armazém de Aprestos) se torna praticamente impossível o exercício da atividade piscatória da Requerente, ou seja,
49º. Sem a disponibilidade do armazém em causa, a Requerente não pode armar a sua embarcação e, consequentemente, vê-se impossibilitada de a utilizar para a pesca,
(…)
51º. Para além do mais, é a Requerente quem suporta todos os custos associados quer à atividade piscatória, quer no que respeita à embarcação de pesca “...”, como também no que se refere ao Armazém de Aprestos n.º...3, designadamente, entre outros:
a) a tarifa de uso do porto (TUP), devida pela disponibilidade e uso dos sistemas relativos à entrada, estacionamento e saída da embarcação, à operação de cargas, à segurança e à conservação do ambiente;
b) a tarifa de uso de equipamento e utilização de infraestruturas, devida pelos serviços prestados à embarcação, pela utilização de equipamentos de manobra e transporte marítimo, manobra e transportes terrestres;
c) a tarifa de uso de equipamento de combate à poluição, a incêndios e de conservação do ambiente;
d) pela utilização da zona de reparação para exercício da atividade privada;
e) pelo ingresso e circulação de viaturas nos recintos portuários;
f) pelo fabrico de gelo para o pescado;
g) a tarifa de fornecimento de energia elétrica;
h) a tarifa de fornecimento de água potável e salgada dentro da área portuária;
i) a tarifa de recolha, tratamento de resíduos e de drenagem de águas residuais e
j) a tarifa de utilização do domínio público marítimo/Armazém de Aprestos.
52º. Custos estes que são liquidados e cobrados pela DOCAPESCA - Portos e Lotas, S.A., investida na qualidade de Administração Portuária, em conformidade com os Mapas de Tesouraria emitidos em 29-11-2023, 30-11-2023 e 04-12-2023 pelo Grupo de Administração de Tesouraria da DOCAPESCA, S.A..
53º. A posse da Requerente dura há mais de 12 anos;
54º. A Requerida nunca teve a posse do Armazém de Aprestos n.º...3 em questão, nunca o utilizou em seu proveito próprio, nem exerce qualquer atividade que lhe permita a utilização do referido armazém.
55º. A Requerente sempre utilizou o Armazém de Aprestos n.º...3, com conhecimento e sob autorização da entidade administrativa portuária competente e sempre pagou os respetivos custos pela sua utilização, de há 12 (doze) anos a esta parte.
56º. Ora, no passado dia 22-11-2023, pelas 10:00 horas, no Armazém de Aprestos com o n.º 73, sito no Porto de Pesca de ..., quando a Requerente e o filho desta, CC, se preparavam para abrir o respetivo portão, a fim de aí realizar as suas tarefas diárias, necessárias à preparação da atividade piscatória da Requerente, depararam-se perante a impossibilidade de ali entrar.
57º. Na verdade, o único ponto de acesso e de entrada a este Armazém de Aprestos é constituído por dois grandes portões de ferro zincado, cobrindo de alto a baixo quase toda a fachada frontal do estabelecimento, os quais são fechados, diariamente, pela colocação de duas correntes e de dois cadeados e para os quais apenas a Requerente e o seu referido filho possuem as respetivas chaves.
58º. No dia e hora referidos em 56º, a Requerente deparou-se com a colocação de um novo e diferente cadeado, cuja chave nem a Requerente nem qualquer um dos seus colaboradores possui,
59º. O acesso, entrada e permanência no seu interior foi, desde então, e continua atualmente a ser-lhe totalmente vedado, impedindo, até à presente data, continuadamente, tanto a Requerente como qualquer um dos seus colaboradores de ao mesmo aceder, entrar e permanecer,
60º. Privando-a de trabalhar e impedindo-a de ganhar o pão de cada dia, no exercício da sua atividade piscatória,
61º. Pelo arrombamento das correntes e necessária destruição dos dois cadeados que serviam para fechar o portão deste Armazém, assim impedindo a entrada de terceiros alheios à atividade piscatória ali desenvolvida pela Requerente e demais colaboradores,
62º. Assustada perante este arrombamento e estando em crer haver sido perpetrado por desconhecidos,
63º. Logo o filho da Requerente se deslocou, pessoalmente, às instalações da Polícia Marítima ..., onde deu conta da ocorrência e para a qual, após deslocação ao local, esta Polícia Marítima lavrou o respetivo Auto de Diligência.
64º. Com o decurso das horas, apercebeu-se a Requerente de que o arrombamento poderia ter como autora, eventualmente, a sua própria filha, ora Requerida, na sequência de uma carta que esta lhe dirigiu, sem data, com o Registo RL144523057PT de 07-11- 2023, rececionada pela Requerente em 08-11-2023,
65º. Nessa carta, a ora Requerida notificou a Requerente de que pretende “o despejo do armazém situado na morada: Ocupação do Armazém de Aprestos n.º...3 Porto ... no prazo de 15(quinze) dias a contar com a receção desta carta. Pretendo o despejo com o motivo de VENDA. Caso não prossiga ao despejo dos seus pertences terei de ir por meios judiciais”.
66º. Porém, perante o silêncio da Requerida e na ausência de qualquer certeza sobre a autoria do arrombamento das correntes e dos cadeados, a Requerente enviou à Requerida a carta datada de 30-11-2023, com o Registo RD164587706PT de 30-11- 2023, rececionada em 04-12-2023,
67º. Através da qual a Requerente roga para que a ora Requerida informe se, efetivamente, o arrombamento em causa se deveu a atuação sua, havendo solicitado a sua resposta por escrito, no prazo máximo de 3 dias úteis, a contar do recebimento daquela comunicação, sob pena de – se nada disser – considerar-se que admite tal factualidade.
68º. Não obstante, apesar de a ora Requerida nada ter respondido por escrito, 69º. 3 (três) dias após o recebimento daquela carta, a Requerente recebeu um telefonema da ora Requerida, a qual, por essa via, lhe deu ordem expressa, intimando-a para que retirasse imediatamente do Armazém ...3 todos os seus pertences e apetrechos de pesca.
70º. Atualmente, a Requerente não estabelece com a sua filha, ora Requerida, quaisquer laços próprios da filiação, nem quaisquer outros de ordem empresarial nem económica, estando a decorrer junto ao DIAP ... o Proc.º n.º 347/23...., contra a ora Requerida, no qual a Requerente intervém na qualidade de Ofendida, havendo-lhe sido atribuído o Estatuto de Vítima, ao abrigo da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro
(…).
78º. Na verdade, a Requerente viu-se já obrigada a dispensar o Mestre da embarcação que havia contratado para as próximas fainas, sendo que,
79º. Mantendo-se a embarcação parada e atracada no Porto de Pesca de ..., tem sido necessário colocar o respetivo motor a trabalhar, uma ou duas vezes por dia, por forma a evitar danos irreparáveis na embarcação por permanecer todo este tempo parada.”

 


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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 Insurge-se a recorrente contra a decisão que indeferiu liminarmente o procedimento cautelar de restituição provisória da posse de um armazém de pesca por incompetência material dos tribunais comuns, alegando que, ao contrário do defendido pela decisão recorrida, o objecto desta providência não se integra em qualquer das alíneas do artº 113 da LOSJ, sendo de natureza privada e excluída da competência destes tribunais especiais.


a. Da competência em razão da matéria, para a decisão de um pedido de restituição provisória da posse de um armazém de pesca sito na capitania de ..., interposto pelo possuidor contra terceiro, alegado esbulhador;

Invoca a decisão recorrida que “analisados o pedido e causa de pedir formulados pela requerente, integra a jurisdição e competência dos Tribunais Marítimos.

Destarte, a jurisdição dos tribunais marítimos, além das águas do mar, bem como as águas interiores e respetivos leitos e margens, sujeitas à jurisdição das capitanias dos portos e delegações marítimas, abrange as zonas portuárias e de estaleiros de construção e de reparação naval, secas, tiradouros, tendais de artes de pesca, seus arraiais e instalações de natureza semelhante – cfr. artigo 3.º da Lei n.º 35/86, de 04 de setembro.

Acresce que compete aos tribunais marítimos conhecer, em matéria cível, das questões relativas a utilização, perda ou apropriação de aparelhos ou artes de pesca, mormente aprestos e demais objetos destinados à navegação ou à pesca, bem como os danos produzidos ou sofridos pelo mesmo material – cfr. artigo 113.º, n.º 1, al. o) da LOSJ e do artigo 4, al. p), da Lei n.º 35/86 de 04/09.

Ora, se em causa está a posse de um bem de domínio público marítimo sito no Porto de Pesca de ... que se destina exclusivamente à guarda de utensílios e objetos destinados a apoio da atividade piscatória de que cuja utilização a requerente afirma estar privada, visando a providência cautelar e ação principal a intentar necessariamente a reaver os mesmos (ainda que a requerente ora centre o enfoque da sua pretensão na posse do armazém), essa matéria compreende e contende inevitavelmente com a utilização e perda de aprestos e demais objetos destinados à navegação e à pesca, cuja competência é deferida aos Tribunais Marítimos nos termos dos sobreditos preceitos legais”, concluindo afinal pela incompetência absoluta dos tribunais comuns e pela competência dos tribunais marítimos.

Refira-se desde já que os critérios elencados na decisão objecto de recurso para concluir pela incompetência dos tribunais comuns, não são os definidos nas normas que regulam a competência material dos tribunais.

Vejamos:

A competência de um determinado tribunal afere-se pela medida da sua jurisdição, de acordo com o poder jurisdicional que lhe é atribuído permitindo-lhe a apreciação de uma determinada causa. Conforme nos ensinava MANUEL DE ANDRADE[3], a competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional, que tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais.

A determinação da competência do tribunal, em razão da matéria constitui assim um pressuposto processual essencial para que aquele tribunal se possa pronunciar sobre determinada questão, que deve ser apreciado em função da concreta pretensão deduzida, de acordo com a relação material controvertida tal como ela é configurada pelo requerente (artº 30 do C.P.C.).[4]

Nestes termos, a competência em razão da matéria, afere-se pelo quid disputatum, isto é, pelos termos em que o autor configura a relação jurídica controvertida. Deve ser assim considerada “toda a factualidade alegada como causa de pedir, sem necessidade de sobre a mesma ser produzida prova”[5], ou seja, sendo irrelevante para a atribuição da competência material, qualquer apreciação sobre a veracidade dos factos alegados ou sequer, sobre a sua qualificação jurídica.

Quer isto dizer, conforme se assinala no Ac. do STJ de 08/10/2015[6] que, na definição da competência do tribunal, se deve atender “à matéria em causa, quer dizer, ao seu objeto, encarado sob um ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada” ou ainda, nos dizeres de MANUEL DE ANDRADE[7], para decidir a competência de um tribunal “deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção — seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina REDENTI (1), afere-se pelo “quid disputatum” (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor.”

Em matéria de competência, decorre do disposto no artº 211 da nossa Constituição que “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, podendo estes ser divididos em “tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas.”, divisão e atribuição de competências a cargo do legislador ordinário, de acordo com a natureza das matérias em causa. Subjacente à criação destes tribunais especializados, está o reconhecimento da vantagem de reservar para “órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão, complexidade e especificidade das normas que os integram.”[8]

A existência de várias categorias de tribunais judiciais pressupõe que se estabeleça um critério de repartição de competências entre eles que assim determinará o âmbito e a medida do seu poder jurisdicional. Nestes termos, a atribuição da competência em razão da matéria será daquele tribunal que estiver melhor vocacionado para apreciar a pretensão do autor, projectando um critério de eficiência que só poderá ser aferido em função do pedido deduzido e da causa de pedir, donde, portanto, a necessidade de verificar se existe norma que atribua a competência a um tribunal especial e, só não havendo, caberá ela, subsidiária e residualmente, aos designados “tribunais comuns”.[9]  

Ora, entre os tribunais especializados, a nossa Constituição, na Revisão de 1982 (cfr. artº 160, nº2 da Lei Constitucional n.º 1/82 de 30 de Setembro), passou a prever a possibilidade de criação por via legislativa de tribunais marítimos (crf. artº 209, nº2), com competências próprias a serem definidas também pelo legislador ordinário.

Criada esta categoria de tribunais especiais, a Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), Lei 62/2013 de 26 de Agosto (com as alterações introduzidas pelas Leis nºs Lei n.º 40-A/2016, de 22/12 e Lei n.º 94/2017, de 23/08) veio estabelecer critérios de competência para cada categoria de tribunais, segundo a natureza das matérias suscitadas perante eles (cfr. art. 37 e 40, nº 2 do LOSJ).

Neste âmbito o artº 113 da LOSJ atribui competência aos tribunais marítimos, incluídos na categoria de tribunais judiciais especializados, nos seguintes casos:

a) Indemnizações devidas por danos causados ou sofridos por navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, ou resultantes da sua utilização marítima, nos termos gerais de direito;

b) Contratos de construção, reparação, compra e venda de navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, desde que destinados ao uso marítimo;

c) Contratos de transporte por via marítima ou contrato de transporte combinado ou multimodal;
d) Contratos de transporte por via fluvial ou por canais, nos limites do quadro n.º 1 anexo ao Regulamento Geral das Capitanias, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/72, de 31 de julho;

e) Contratos de utilização marítima de navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, designadamente os de fretamento e os de locação financeira;

f) Contratos de seguro de navios, embarcações, outros engenhos flutuantes destinados ao uso marítimo e suas cargas;

g) Hipotecas e privilégios sobre navios e embarcações, bem como quaisquer garantias reais sobre engenhos flutuantes e suas cargas;

h) Processos especiais relativos a navios, embarcações, outros engenhos flutuantes e suas cargas;
i) Procedimentos cautelares sobre navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, respetiva carga e bancas e outros valores pertinentes aos navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, bem como solicitação preliminar à capitania para suster a saída das coisas que constituam objeto de tais procedimentos;

j) Avarias comuns ou avarias particulares, incluindo as que digam respeito a outros engenhos flutuantes destinados ao uso marítimo;

k) Assistência e salvação marítimas;

l) Contratos de reboque e contratos de pilotagem;

m) Remoção de destroços;

n) Responsabilidade civil emergente de poluição do mar e outras águas sob a sua jurisdição;
o) Utilização, perda, achado ou apropriação de aparelhos ou artes de pesca ou de apanhar mariscos, moluscos e plantas marinhas, ferros, aprestos, armas, provisões e mais objetos destinados à navegação ou à pesca, bem como danos produzidos ou sofridos pelo mesmo material;
p) Danos causados nos bens do domínio público marítimo;

q) Propriedade e posse de arrojos e de coisas provenientes ou resultantes das águas do mar ou restos existentes, que jazam nos respetivos solo ou subsolo ou que provenham ou existam nas águas interiores, se concorrer interesse marítimo;

r) Presas;

s) Todas as questões em geral sobre matérias de direito comercial marítimo;

t) Recursos das decisões do capitão do porto proferidas em processo de contraordenação marítima.
2 - A competência a que se refere o número anterior abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.”

A decisão recorrida enquadrou esta providência no âmbito da alínea o) deste preceito.

Ocorre que, fazendo apelo ao critério de definição ou atribuição de competência material a um dado tribunal, a pretensão deduzida pela requerente, de acordo com os termos em que este configura a relação jurídica controvertida, não se integra no âmbito desta alínea. Não visa o presente procedimento cautelar a discussão e decisão de qualquer questão relativa à “Utilização, perda, achado ou apropriação de aparelhos ou artes de pesca ou de apanhar mariscos, moluscos e plantas marinhas, ferros, aprestos, armas, provisões e mais objetos destinados à navegação ou à pesca, bem como danos produzidos ou sofridos pelo mesmo material;”, mas antes a decisão sobre uma pretensão de restituição provisória da posse, com fundamento na posse da requerente exercida sobre um armazém onde se encontram utensílios de pesca e no esbulho violento imputado à requerida, ao abrigo do disposto no artº 377 do C.P.C.

Não visa sequer este procedimento, embora este seja um pressuposto de legitimidade substantiva da requerente, a discussão quanto à utilização privativa desta parcela decorrente da titularidade da licença/alvará de utilização deste armazém, que, ainda assim, não determinaria, por si só, a incompetência do tribunal comum, face à regra prevista no artº 91 do C.P.C.

Está em causa um pedido de restituição provisória da posse de um armazém de aprestos cuja integração no domínio público marítimo, não determina a imediata competência dos tribunais marítimos, quando em causa litígios envolvendo particulares (elemento subjectivo de atribuição de competência) e no qual não se coloca qualquer questão integrada no elenco das matérias submetidas à competência destes tribunais especializados.

Com efeito, a distribuição de competência jurisdicional por tribunais especializados, assenta no pressuposto da maior idoneidade de cada um deles para a apreciação das concretas matérias submetidas à sua apreciação, atentas as suas especificidades. Ora, conforme se refere no Ac. do STJ de 02/11/2023[10]foi intenção do legislador que o Tribunal Marítimo se ocupasse de todas as questões que são especificas dos navios e engenhos flutuantes seja quanto aos contratos que lhes são próprios e exclusivos seja quanto ao comércio marítimo naturalmente por demandar conhecimentos técnicos que um tribunal especializado mais facilmente conseguirá gerir, garantindo assim, tanto quanto possível, um tratamento uniforme de questões similares, pelo menos dentro da área de competência territorial do tribunal marítimo onde surgirão com mais frequência:”

A providência de restituição provisória de posse de um armazém de aprestos, envolvendo um litígio entre particulares, não se integra em qualquer das alíneas do artº 113 acima citado. Também nela não se debate qualquer matéria de direito comercial marítimo, que permita submeter este litígio a estes tribunais especializados.

Por outro lado, a acção declarativa a instaurar de que estas providências são preliminares, não se integra igualmente em nenhuma destas alíneas. Objecto dessa acção será a existência de uma posse titulada da autora e a pática de actos ilícitos que impedem essa posse, matéria que se insere uma vez mais na competência dos tribunais judiciais comuns.

Com efeito, a competência em razão da matéria para as providências cautelares, bem como a generalidade das questões processuais que lhes digam respeito, não assume autonomia porquanto o procedimento cautelar está na dependência da acção principal, pelo que por força do disposto no art.º 91º, nº 1 e 364º, nº 3, do CPC, o tribunal que for materialmente competente para conhecer da acção é também competente para conhecer dos seus incidentes, independentemente de serem processados por apenso ou nos próprios autos, bem como para os procedimentos cautelares que sejam preliminares à propositura da acção de que dependam[11].

Conclui-se, pois, pela competência material dos tribunais comuns e não do tribunal marítimo, por o quod disputatum não permitir estabelecer qualquer conexão com as matérias integradoras na competência dos tribunais marítimos.

Nesta medida, a apelação é integralmente procedente.


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DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e ordenando o prosseguimento dos autos.
Custas a determinar a final (artº 527 do C.P.C.).

                                                           Coimbra 06/02/2024






[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] ANDRADE, Manuel de, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, págs. 88 e 89.
[4] Neste sentido vide Jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente e entre outros os os Acs. de 22/10/2015, Revista nº 678/11.0TBABT.E1.S1, de que foi Relator o Sr. Conselheiro Tomé Gomes; de 12-01-2010, Revista nº 1337/07.3TBABT.E1.S1, relatado pelo Sr. Conselheiro Moreira Alves, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Na doutrina vide SOUSA, Miguel Teixeira, A Competência e a Incompetência dos Tribunais Comuns, 3ª Edição, AAFDL, 1990, pág. 13.
[5] Ac. do STJ de 02/06/21, relatado pela Srª Conselheira Maria do Rosário Morgado, proferido no proc. nº 449/18.2T8FAR.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[6] Proferido na Revista nº 1085/14.8TBCTB-A.C1., de que foi relatora a Srª Conselheira Maria Clara Sottomayor, disponível em www.dgsi.pt
[7] ANDRADE, Manuel de, ob. cit., página 90.
[8] Ac. do TRG de 24/09/2020, proferido no proc. nº 162/20.0T8MNC.G1, de que foi relatora a Sr. Desembargadora Maria João Matos, disponível em www.dgsi.pt.
[9] Neste sentido Acs. do STJ de 27.05.03, Revista n.° 03A1376, de que foi relator o Sr. Conselheiro Alves Velho e de 11.12.03, Revista n.° 03B3845, de que foi relator o Sr. Conselheiro Neves Ribeiro, disponíveis em http://www.dgsi.pt.

[10] Proferido na Revista 85/20.3TNLSB.L1.S1, de que foi Relatora a Srª Conselheira Ana Paula Lobo, disponível em www.dgsi.pt.

[11] Acs. da RL, de 30/05/2013, Proc. nº 1100/12.0TBSCR-A.L1-2, Ac. TRE 19/11/15, relator Bernardo Domingos, Proc. nº 1423/15.6T8STR.E1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt