Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
493/11.0T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
RECURSO
DEFEITO DA OBRA
CADUCIDADE DO DIREITO
Data do Acordão: 09/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ARTºS 508º, NºS 1 E 3 DO CPC; 5º – A, N.º 3 DO DECRETO-LEI N.º 67/2003
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTºS 508º, NºS 1 E 3 DO CPC; 5º – A, N.º 3 DO DECRETO-LEI N.º 67/2003
Sumário: I – As situações de convite referidas no n.º 3 do art.º 508º do C. P. Civil são configuradas, quase unanimemente, pela doutrina como despacho de aperfeiçoa­mento não vinculado.
II - Inserindo-se a prolação deste despacho num quadro de poderes discricionários do juiz, este usá-lo-á conforme considere justo e adequado às circunstâncias do caso, não sendo a sua inércia sindicável.
III – Não sendo vinculado o despacho a que alude o art.º 508º, n.º 3 do C. P. Civil, não é a sua omissão recorrível.
IV – Estando-se perante a invocação de defeitos num imóvel de longa duração que foi construído por quem o vendeu, numa primeira análise aparentam ser aplicáveis aos respectivos direitos dos compradores os prazos de caducidade previstos no art.º 1225º do C. Civil, atento o disposto no n.º 4 deste artigo.
V - Contudo, se as fracções que integram o edifício (em causa) tiverem por destino a habitação, é possível configurar nesta situação uma relação de consumo, o que determina a aplicação do regime da Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96) e do Decreto-Lei n.º 67/2003, que transpôs para o direito português a Directiva n.º 1999/44/CE, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 84/2008.
VI - Embora o prazo de caducidade estabelecido no art.º 5º – A, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 67/2003 apenas abranja o direito à reparação dos defeitos, estando este direito caducado nunca pode o Autor reclamar o pagamento duma quantia necessária para a efectivação dessa reparação, nem o pagamento duma indemnização pelos prejuízos que essa reparação viesse a causar, uma vez que tais direitos pressupõem a titularidade do primeiro.
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
O Autor intentou a presente acção declarativa de condenação com processo sumário, pedindo a condenação da Ré a:
a) proceder ou mandar proceder, à sua custa e por sua conta e risco, às obras necessárias e adequadas à eliminação dos defeitos e deficiências existentes no prédio do Autor, enunciados na p. i., dentro do prazo de um mês, após ser proferida sentença:
b) ou, em alternativa, a pagar-lhe a quantia de € 18.932,64, que deverá ser actualizada segundo a variação dos preços, desde a data do orçamento até à data da efectivação da obra;
c) pagar-lhe a indemnização que se liquidar em execução de sentença.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese:
Ø        A Ré construiu o edifício respeitante ao condomínio Autor, tendo, em seu nome, sido emitido em 2.6.2006 o respectivo alvará de utilização, para habitação de 24 fogos e 8 garagens autónomas com a área total de 1914,00 m2, constando desse documento que as partes comuns se encontravam em conformidade com o projecto aprovado e que o mesmo preenchia os requisitos legais para a constituição da proprie­dade horizontal.
Ø        Para a administração do condomínio foi nomeada, em assembleia-geral de condóminos, J….da.
Ø        Os condóminos, nas reuniões efectuadas nos anos de 2007 a 2010, foram demonstrando preocupação com deficiências quer nas partes comuns, quer nas respectivas fracções, tendo encarregado a administração de contactar a Ré com a finalidade de reclamar dos vários problemas existentes e, se necessário, agir em juízo.
Ø        Entre a Ré e a administração foi trocada correspondência, limitando-se a Ré a promessas que nunca foram concretizadas.
Ø        Os vícios e defeitos de construção, no edifício, são os seguintes:
a) O portão da garagem não tem eficiência na abertura e no fecho;
b) Colocação do piso no patamar da cave de acesso ao elevador;
c) O perímetro de toda cave encontra-se com humidade/infiltrações, sendo mais visíveis na parede nascente (lado do portão) e lado norte;
d) Existem infiltrações na garagem através do tecto da mesma;
e) Acumulação de humidade nas paredes nascente e norte, reflectindo-se no interior dos apartamentos;
f) Chapas dos respiradouros da parede norte enferrujadas;
g) Necessidade de impermeabilização do terraço.
 Ø       A reparação dos defeitos importa no valor de € 18.932,64, tendo os con­dóminos que deixar de habitar as respectivas fracções enquanto durar a reparação, que certamente lhes causará danos patrimoniais.

A Ré contestou, excepcionando com a caducidade do direito da Ré à elimina­ção dos defeitos, alegando, em síntese:
Ø        Os defeitos que a Autora alega existirem no edifício foram-lhe denuncia­dos por carta de 8.5.2007, pelo que a acção deveria ter sido intentada até 7.5.2008.
Ø        Mesmo a considerar-se a reunião havida em 27.2.2009, entre a Autora e a Ré, também se chegaria à mesma conclusão, uma vez que a acção foi proposta em data posterior a 27.2.2010.
E, impugnando os factos alegados pelo Autor, conclui pela sua absolvição.

O Autor apresentou resposta, concluindo como na p. inicial.
Foi proferido despacho a convidar o Autor a apresentar nova petição concreti­zando:
 a) o defeito do portão da garagem;
b) a que se refere quando alega não ter sido colocado piso no patamar da cave de acesso ao elevador;
c) juntar certidão da descrição predial do prédio sito na Rua …

O Autor juntou nova p. inicial corrigida, tendo a Ré apresentado contestação em que reitera a anteriormente apresentada, vindo o Autor, por sua vez a reproduzir a resposta à mesma.

Veio a ser proferida decisão no despacho saneador que absolveu esta dos pedidos formulados.

Inconformada com a decisão a Autora interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
..
Conclui pela procedência do recurso.

A Ré apresentou resposta, defendendo a confirmação da decisão recorrida.
1. Do objecto do recurso
Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­ga­ções do recorrente cumpre apreciar as seguintes questões:
a) O tribunal deveria ter proferido novo despacho de convite ao aperfeiçoa­mento da p. inicial?
b) O direito à eliminação dos defeitos invocado pela Autora não caducou?

2. Dos factos
Encontram-se já provados, por documentos e acordo das partes nos articula­dos, os seguintes factos:

3. O direito aplicável
3.1. Do convite à correcção da petição inicial
O Recorrente admitindo que na petição inicial poderá não ter explicitado sufi­cientemente factos que impediriam a verificação da caducidade dos seus direitos, pede que lhe seja dada nova oportunidade de corrigir a petição inicial, de modo a permitir-lhe essa explicitação.
Dispõe o art.º 508º, n.º 1 do C. P. Civil:
Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho desti­nado a convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes.
O n.º 3 dispõe:
Pode ainda o juiz convidar as partes a suprir as insuficiências ou impre­ci­sões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada...
Assim, se o juiz entender que alguns dos factos alegados pelas partes são insuficientes ou imprecisos, poderá sugerir a apresentação de novo articulado onde se supram tais deficiências.
As situações de convite referidas no n.º 3 do art.º 508º do C. P. Civil são configuradas, quase unanimemente, pela doutrina como despacho de aperfeiçoa­mento não vinculado.[1]
Entendemos que, inserindo-se a prolação deste despacho, num quadro de poderes discricionários do juiz, este usá-lo-á conforme considere justo e adequado às circunstâncias do caso, não sendo a sua inércia sindicável.[2]
Pelo exposto não sendo vinculado o despacho a que alude o art.º 508º, n.º 3 do C. P. Civil, não é a sua omissão recorrível.

3.2. Da improcedência da acção
O condomínio de um edifício constituído em propriedade horizontal, repre­sentado pelo seu Administrador, propôs a presente acção, pedindo que a empresa construtora-vendedora desse imóvel fosse condenada a reparar vários defeitos existentes nas partes comuns e, em “alternativa”, que fosse condenada a pagar-lhe a quantia necessária para se proceder a essa reparação. Pediu ainda a condenação da Ré a pagar-lhe uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, relativa aos prejuízos que resultassem para os condóminos da realização das referidas obras de reparação.
Foram os seguintes os defeitos alegados
a) O portão da garagem não tem eficiência na abertura e no fecho;
b) O piso no patamar da cave de acesso ao elevador é em cimento quando devia ser cerâmico;
c) O perímetro de toda a cave encontra-se com humidade/infiltrações, sendo mais visíveis na parede nascente (lado do portão) e lado norte;
d) Existem infiltrações na garagem através do tecto da mesma;
e) Existe acumulação de humidade nas paredes nascente e norte, reflectindo-se no interior dos apartamentos;
f) As chapas dos respiradouros da parede norte estão enferrujadas;
g) Há necessidade de impermeabilizar o terraço.
A sentença recorrida, proferindo um saneador-sentença, julgou desde logo improcedente a acção, com os seguintes fundamentos:
- quanto aos pedidos na parte em que se reportam aos defeitos acima referidos sob as alíneas a) e b) a Ré não pode ser responsabilizada pela sua existência, por força do disposto no artigo 1219º, n.º 1 do C. Civil, uma vez que, sendo esses defeitos aparentes e tendo o edifício sido recebido sem reserva, a responsabilidade do construtor está excluída.
- quanto aos pedidos, na parte em que se reportam aos demais defeitos (alí­neas c) a g)), os direitos invocados pelo Autor caducaram, uma vez que se mostra ultrapassado o prazo de um ano para o seu exercício, após a denúncia dos defeitos, consagrado no art.º 1224º do C. Civil.
Nas suas alegações a Autora limitou-se a contestar este segundo fundamento, pelo que, não integrando o objecto do recurso o primeiro fundamento utilizado pela sentença recorrida para julgar improcedente a acção, deve a mesma considerar-se definitivamente julgada nessa parte.
Quanto à questão da caducidade, há que ter em consideração que nos encon­tramos perante a responsabilização por um condomínio da empresa que construiu o edifício em causa e procedeu à venda das suas fracções, por defeitos existentes nas partes comuns.
Dado estarmos perante a invocação de defeitos num imóvel de longa duração que foi construído por quem o vendeu, numa primeira análise, aparentam ser aplicáveis aos respectivos direitos dos compradores os prazos de caducidade previstos no art.º 1225º do C. Civil, atento o disposto no n.º 4 deste artigo.
Contudo, uma vez que as fracções que integram o edifício em causa têm por destino a habitação, é possível configurar nesta situação uma relação de consumo [3] que determina a aplicação do regime da Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96) e do Decreto-Lei n.º 67/2003, que transpôs para o direito português a Directiva n.º 1999/44/CE, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 84/2008.
O condomínio, representado pela sua administração, pode reclamar do cons­trutor-vendedor a eliminação dos defeitos que afectam as partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal, assim como o pagamento da quantia necessária a essa eliminação, quando se verifiquem os pressupostos da constituição deste direito, e o pagamento de uma indemnização pelos danos colaterais resultantes da realização dos trabalhos de eliminação desses defeitos [4].
Nesta acção, a Ré invocou a caducidade destes direitos, por já haver decorrido o prazo para o seu exercício, após a denúncia dos respectivos defeitos.
No regime estabelecido no Decreto-Lei n.º 67/2003 é estabelecido um prazo de três anos para o exercício do direito à reparação de defeitos em imóveis, pelo com­prador, a contar da sua denúncia ao vendedor (art.º 5º - A, n.º 3).
Está provado que em 8.5.2007, a Administração do Condomínio, ora Autor, enviou à ora Ré uma carta a denunciar os defeitos acima referidos nas alíneas a), b), c) e d).
Assim, relativamente aos defeitos referidos nas alíneas c) e d), únicos que daqueles quatro que estão em causa no presente recurso, o prazo para o exercício dos direitos atribuídos ao condomínio terminou em 8.5.2010.
Não tendo sido alegado que tenha ocorrido qualquer acto impeditivo do decurso deste prazo, nem sendo os escassos elementos existentes sobre a convocação de reuniões entre a Administração do Condomínio e a Ré suficientes para deles se extrair uma situação de abuso de direito na invocação da extinção desses direitos por caduci­dade, resta apenas confirmar a procedência desta excepção, limitada aos defeitos acima descritos sob as alíneas c) e d).
Embora o prazo de caducidade estabelecido no art.º 5º – A, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 67/2003, apenas abranja o direito à reparação dos defeitos, estando este direito caducado, nunca pode o Autor reclamar o pagamento duma quantia necessária para a efectivação dessa reparação, nem o pagamento duma indemnização pelos prejuízos que essa reparação viesse a causar, uma vez que tais direitos pressupõem a titularidade do primeiro.
Por este motivo, deve o recurso ser julgado improcedente no que respeita aos pedidos que tinham por objecto os defeitos referidos nas alíneas c) e d).
Quanto aos defeitos referidos nas alíneas e), f), g), não há conhecimento que tenham sido objecto de uma denúncia anteriormente à propositura da presente acção, sendo certo que nesta data ainda não havia decorrido o prazo de caducidade de 5 anos previsto no art.º 5º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 67/2003, pelo que não é possível concluir pela extinção dos direitos invocados pelo Autor, nesta parte.
Sendo controvertida a existência destes defeitos, deve a acção prosseguir para apuramento do mérito dos pedidos formulados no que a eles respeita.
Decisão
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida na parte em que julgou improcedente os pedidos formulados pelo Autor, relativamente aos defeitos alegados nas alíneas e), f) e g), do artigo 8º da petição inicial, devendo a acção prosseguir para apuramento do seu mérito, nessa parte.
Custas pelo Autor e pela Ré, em igual proporção.
Coimbra, 18 de Setembro de 2012.


[1] Neste sentido:
Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil – Vol. II, ed. 1997, pág. 79, Almedina,
Montalvão Machado, in O Dispositivo e os Poderes do Tribunal à Luz do Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., pág. 255, Almedina,
  Em sentido contrário:
Paulo Pimenta, in A Fase do Saneamento do Processo Antes e Após a Vigência do Novo Código de Processo Civil, ed. 2003, pág. 182, Almedina

[2] Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, ed. 2001, pág. 355, Coimbra Editora,
Ac. S.T.J. de:
 18.3.04, relatado por Ferreira de Almeida, acessível in www.dgsi.pt , proc. 04B572,
 21.11.06, relatado por Sebastião Povoas, acessível in www.dgsi.pt, proc. 06A3687,
 27.11.07, relatado por João Camilo, acessível in www.dgsi.pt, proc. n.º 07A3918,
 2.2.09, relatado por Nuno Cameira, acessível in www.dgsi.pt proc. n.º 08A3887.


[3] Neste sentido, João Cura Mariano, in Responsabilidade contratual do empreiteiro pelos defeitos da obra, pág. 211, 4.ª ed., Almedina, e o Acórdão da Relação do Porto de 26.6.2006, relatado por Ana Paula Lobo, acessível em www.dgsi.pt.

[4] Neste sentido, João Cura Mariano, na ob. cit., pág. 166-170.