Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
201/12.9T2ALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: DIVISÃO DE COISA COMUM
PROCESSO DE INVENTÁRIO
BENFEITORIA
UNIÃO DE FACTO
Data do Acordão: 01/28/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - TRIBUNAL DE GRANDE INST. CÍVEL DE ANADIA.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1412º DO C. CIVIL; LEI Nº 9/2010, DE 31/05.
Sumário: I. O princípio da economia processual pretende que cada processo resolva o máximo possível de litígios, comportando apenas os actos e formalidades indispensáveis ou úteis - Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 386 -, mas existem rituais processuais que até o julgador menos formalista não poderá deixar de aplicar.

II. Na acção de divisão de coisa comum a causa de pedir é a compropriedade, sendo o pedido a dissolução da mesma compropriedade.

III. Trata-se do processo que, na falta de acordo, permite a qualquer um dos comproprietários exercer o direito potestativo reconhecido pelo artº 1412º, nº 1, do Código Civil, segundo o qual nenhum deles é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa.

IV. É da essência desta acção que, não estando materializado o direito de cada um sobre determinados bens, o esteja, no entanto, o direito que, conjunta e simultaneamente, pertence a todos.

V. As benfeitorias, como o melhoramento ou aperfeiçoamento da coisa, feito por quem a ela está ligado em consequência de uma relação ou vínculo jurídico – artigo 216.º do Código Civil -, direitos de crédito quando em conflito, não podem ser apreciadas e decididas em sede da acção de divisão de coisa comum, mas sim, em sede de inventário resultante da cessação da vida conjugal ou em acção declarativa comum.

VI. Ou seja, parece-nos ser claro que o legislador pretendeu afastar desta acção todas as prestações - matéria do direito das obrigações - e outras realidades jurídicas, nomeadamente direitos de crédito, aí incluindo apenas as próprias coisas “stricto sensu”.

VII. Sendo o casamento e a união de facto situações materialmente diferentes - pese embora a legislação que recentemente vem sendo publicada, maxime a Lei nº 7/2001, de 11 de Maio; a Lei nº 9/2010, de 31 de Maio e a de Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, o facto é que o legislador mantém o regime da união de facto como realidade autónoma e distinta do casamento - não há qualquer base legal para estender à união de facto as disposições que ao casamento se referem - entre outros, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Curso de Direito da Família”, Vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora 2008, pág. 57.

VIII. A situação de uma pessoa haver adquirido bens com a colaboração de outra, no âmbito de uma relação de união de facto só é, eventualmente, susceptível de relevar para o efeito de se reconhecer a existência de uma situação de compropriedade ou no quadro do instituto do enriquecimento sem causa.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

M… demanda V…, alegando que viveu em união de facto com a Ré e que nesse período terão adquirido em comum diversos bens móveis e imóveis, pretendendo a divisão dos seguintes bens:

- "benfeitorias" realizadas em dois imóveis que melhor identifica, sendo um Urbano e outro Rústico e que, pese embora não seja alegado, nem dos autos conste a respectiva certidão de registo predial, de acordo com os contratos de mutuo juntos aos autos, serão propriedade do Autor;

- de dois veículos automóveis, um adquirido em 2006 (…-81) e outro adquirido em 2010 (…-20); e

- "passivo" que melhor identifica e descreve.

Invoca ainda créditos sobre a Ré resultantes do pagamento de mútuos bancários contraídos por ambos.

Decorridos os articulados, foi formulado um convite ao Autor no sentido de se pronunciar quanto à eventual excepção de erro na forma do processo relativamente ao pedido de divisão de "benfeitorias" e de "passivo" por se entender que, em face da disposição do art.º 1052.º do C.P.C., estes direitos não integram o conceito de "coisa" ali previsto, pelo que apenas os veículos poderão ser objecto dos presentes autos.

Relativamente aos veículos foi ainda o Autor convidado a concretizar factualmente a compropriedade que invoca sobre os mesmos, devendo esclarecer quando foram comprados (mostrando-se ilegíveis os respectivos registos de propriedade que juntou), e com que valores, bem como quando casou com a Ré e qual o regime de casamento, juntando a competente certidão de casamento, dado que resulta da contestação da Ré que Autor e Ré terão sido casados, tendo o seu casamento sido dissolvido por divórcio, decretado por sentença, em 23/02/2012.

O Autor veio responder referindo que contraiu casamento com a Ré em 2008; o veículo …-81 foi adquirido em 2006, e o veículo …-20 foi adquirido em 2010; as benfeitorias foram realizadas no prédio urbano que já era propriedade do Autor quando iniciou a sua relação com a Ré, tendo ali iniciado a construção da sua habitação, e depois ambos contraíram empréstimos para terminar tal habitação, pelo que as benfeitorias integram a divisão de bens, indicando jurisprudência e doutrina neste sentido.

A Ré respondeu impugnando que o imóvel urbano seja propriedade exclusiva do Autor, uma vez que foi comprado quando este já vivia em união de facto com a Ré, entendendo que o objecto da divisão deve ser todo o prédio.

Impugna também que o veículo …-20 tenha sido adquirido pelo casal, que à data de 2010 já estava desavindo e separado de facto, tendo sido tal aquisição exclusiva do Autor.

A Sr.ª Juiz do Juízo de Grande Instância Cível de Anadia proferiu a seguinte decisão:

Face ao exposto, absolvo a Ré da instância quanto aos pedidos de "divisão" do passivo relacionado pelo Autor, de benfeitorias relacionadas pelo Autor, de créditos relacionados pelo Autor e do veículo de matrícula …-20.

Prosseguem os autos apenas para divisão do veículo de matrícula …-81.

Como supra se referiu, os autos prosseguem para divisão do veículo de matrícula …-81.

Uma vez que a Ré não contestou a comunhão deste veículo e é manifesto que o mesmo é indivisível em substância, entendo não ser necessária a produção de quaisquer provas, e declaro a comunhão do veículo de matricula …-81 na proporção de 50% para cada um (autor e Ré), assim como declaro que o mesmo é indivisível - cfr. art.º 1053.º do C.P.C.”.

II.O Objecto da instância de recurso

O objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente M… que as apresenta assim:

...

III. Do direito

As questões a decidir são as seguintes:

Os pedidos de "divisão" do passivo, das benfeitorias, dos créditos relacionados pelo Autor e do veículo de matrícula …-20 cabem no processo de divisão de coisa comum?

A 1.ª instância entendeu que não.

Justifica assim:

“Com o devido respeito, quando o Autor pretende integrar na presente acção de "divisão de coisa comum", além do activo, o passivo, benfeitorias (que serão créditos) e outros créditos do Autor perante a Ré, confunde a acção especial de divisão de coisa comum com a acção de inventário para separação de bens em casos especiais, regulada nos artigos 1404.º e ss. do C.P.C., que segue os termos do processo de inventário geral no que não estiver especialmente regulado, como resulta até da jurisprudência e doutrina que indica, e que reportam a casos de inventário para partilha de bens do casal.

Do disposto no artigo 1345.º e ss. do C.P.C., especificamente dos seus n.s 1, 2 e 5, resulta que no inventário são relacionados os créditos (de algum dos cônjuges ou de terceiros); bens móveis e bens imóveis; as dívidas, como passivo; as benfeitorias que são relacionadas em separado quando possam separar-se do prédio em que foram realizadas ou como crédito, no caso contrário.

Porém, tal não sucede com a acção de divisão de coisa comum.

Nos termos do disposto no artigo 1052.º, n.º 1 do C.P.C., todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requererá, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respectivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respectivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas.

A acção de divisão de coisa comum tem como objectivo proceder à divisão em substância da coisa ou, quando esta for indivisível, à sua adjudicação a algum dos consortes ou venda a terceiros, com repartição do seu valor.

Face a esta previsão, entendemos que as "benfeitorias" realizadas em imóveis e o "passivo" a que o Autor alude, não integram o conceito de "coisa" para efeitos do disposto na norma supra transcrita.

Quanto ao passivo, só mediante uma acção declarativa comum, com intervenção da entidade bancária mutuária, poderá fazer-se a "divisão" do passivo, que terá que ser assumido por um dos mutuantes, ou eventualmente pelo dois, mas agora sem regras de solidariedade entre eles, uma vez que a acção de divisão de coisa comum, atentos os objectivos que visa, como supra referido, não contempla normas como as do inventário, a respeito do reconhecimento e pagamento de dívidas (cfr. artigos 1354.º e ss.), e em que o credor (no caso a entidade mutuária) intervém como interessado, tendo para tal sido citado.

Relativamente às benfeitorias, não podendo as mesmas separar-se do prédio em que foram realizadas, constituem, mesmo nos autos de inventário, direitos de crédito cujo pagamento, no caso dos autos, só através de acção declarativa comum pode ser exigido.

Não poderá proceder-se à divisão em substância, adjudicação ou venda de benfeitorias que não possam separar-se do prédio em que foram realizadas, o que só poderia ser possível através da constituição de direito de superfície (cfr. Artigos 1524.º e ss. do Código Civil) sobre o prédio em causa, e que não é objecto da acção especial de divisão de coisa comum.

O mesmo se dirá quanto aos direitos de crédito que o Autor invoca sobre a Ré, resultantes do pagamento de mútuos bancários contraídos por ambos.

Assim, com o devido respeito por diversa opinião, só em os veículos poderiam ser objecto destes autos.

Porém, resulta dos autos que Autor e Ré contraíram casamento em 6 de Novembro de 2008, sem convenção antenupcial (cfr. certidão de fls. 121) e por isso no regime de comunhão de adquiridos - cfr. art.º 1717.º do Código Civil - que foi dissolvido por divórcio em 23 de Fevereiro de 2012 - cfr. doc de fls. 76.

Assim, em relação ao veículo …-20 que o Autor alega ter sido adquirido pelo casal em 2010, o mesmo integrará o património comum do casal - cfr. art.º 1724.º, al. b) do Código Civil - pelo que só mediante acção de inventário para separação em caso especiais poderá proceder-se à divisão deste veículo.

No caso dos autos, verificando-se erro na forma do processo, nos termos supra melhor explicados, não poderão aproveitar-se os actos praticados em ordem a adequar o processo ao processualmente aplicável - cfr. art.º 199.º, n.º 1, parte final, do C.P.C..

Em relação à divisão do veículo de matrícula …-20, sendo o processo adequado o inventário, este juízo de grande instância cível é materialmente incompetente para a sua tramitação, sendo da competência do juízo de família e menores.

Relativamente aos pedidos de divisão do passivo, benfeitorias e outros créditos, o Autor limita-se a relacioná-los e a invocar a "compropriedade", sem concretizar factualmente em que constituem as benfeitorias que invoca, os valores despendidos nas mesmas, por quem e provenientes de que rendimento; em relação ao passivo, além de a entidade mutuária não ser parte nos autos, o Autor não concretiza os montantes das prestações pagas, respectivas datas, quais os rendimentos, e de quem, que contribuíram para esse pagamento..., pelo que mostra inviável adequar o processo ao processo comum de declaração, até porque no final o Autor não conclui por um pedido líquido, mas tão só por um pedido de "divisão".

O erro na forma do processo, de conhecimento oficioso, determina a anulação do processo e configura uma excepção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa, com consequente absolvição da Ré da instância – cfr. artigos 199.º, 202.º, 288.º, n.º 1, al. b); 493.º, n.s 1 e 2 e 494.º, al. b) todos do Código de Processo Civil...” – fim de citação.

Parece-nos que o fez acertadamente.

Senão vejamos:

É verdade que o princípio da economia processual pretende que cada processo resolva o máximo possível de litígios, comportando apenas os actos e formalidades indispensáveis ou úteis - Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 386 -, mas, existem rituais processuais que até o julgador menos formalista não poderá deixar de aplicar.

A vida traz-nos destas coisas.

Duas pessoas que viveram em união de facto, que celebram casamento na comunhão de adquiridos e que agora, uma delas, pretende “dividir” aquilo que arrecadaram durante essa vivência em comum.

De facto, resulta dos autos que o recorrente e a recorrida foram casados durante o período de 06 de Novembro de 2008 até 23 de Fevereiro de 2012, tendo vivido em união de facto desde 1996, dizendo o apelante que foi entre o período de 1996 e 2008 que as benfeitorias foram realizadas, e os empréstimos bancários que permitiram a realização das benfeitorias contraídos.

Para melhor compreensão, façamos um pequeno percurso pelos meandros jurídicos do inventário, do processo de divisão de coisa comum e do processo para partilha dos bens adquiridos por pessoas que viveram em união de facto.

A acção de divisão de coisa comum, que no Código de Processo Civil anterior ao Dec. Lei 329-A/95, de12/12, se incluía nas acções de arbitramento reguladas nos artºs 1052º e sgs, e após a reforma introduzida por este diploma legal, subsistiu como acção especial, manteve as duas fases características da extinta acção de arbitramento: uma essencialmente declarativa - artºs 1052º/1053º - e outra de natureza executiva - artºs 1054º/1056º.

Na acção de divisão de coisa comum a causa de pedir é a compropriedade, sendo o pedido a dissolução da mesma compropriedade.

Salvo se tiver sido validamente convencionado o contrário, qualquer dos comproprietários tem o direito de fazer cessar a indivisão da coisa sobre a qual recai a compropriedade - artigo 1412º do Código Civil – ou, de uma forma mais ampla, o direito de fazer cessar a compropriedade, porque a coisa pode ser indivisível.

Não sendo realizada amigavelmente, a cessação tem de ser requerida judicialmente, por meio da acção de divisão de coisa comum, regulada nos artigos 1052º e segs. -  n.º 1 do artigo 1413º do Código Civil.

Assim, se o pedido de divisão for contestado, apenas se seguirão os termos do processo declaratório comum quando o juiz, atenta a complexidade da questão, entenda que não a pode dirimir sumariamente.

Diz o legislador que “todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requererá, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respectivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respectivo valor, quando a considere indivisível…”.

Trata-se, por isso, do processo que, na falta de acordo, permite a qualquer um dos comproprietários exercer o direito potestativo reconhecido pelo artº 1412º, nº 1, do Código Civil, segundo o qual nenhum deles é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa.

Diz-nos esta norma que existe compropriedade quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa.

Mas o que é uma “coisa” para esta acção?

A resposta está nas normas dos artigos 203.º, 204.º e 209.º do Código Civil:

“As coisas são imóveis ou móveis, simples ou compostas, fungíveis ou não fungíveis, consumíveis ou não consumíveis, divisíveis ou indivisíveis, principais ou acessórias, presentes ou futuras”.

São coisas imóveis, os prédios rústicos e urbanos, as águas, as árvores e os frutos naturais, bem como os direitos inerentes aos imóveis.

Os móveis são todas as coisas não compreendidas na noção de coisa imóvel.

São divisíveis as coisas que podem ser fraccionadas sem alteração da sua substância, diminuição do valor ou prejuízo para o uso a que se destinam.

A lei, considerando os inconvenientes da indivisão, consagra, expressamente, o direito dos comproprietários a modificarem o estatuto real da compropriedade - Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código Civil”, Vol. V, 1997, pág. 183 em comentário ao art. 1412.º do Código Civil, onde se lê: “O nº 1 corresponde ao princípio fundamental, reconhecido pelo direito romano, segundo o qual “in communione nemo compellitur in vitus detineri” (…).

Como escreve o Desembargador António Carvalho Martins, no seu livro “Acção de Divisão de Coisa Comum, pág.40, “…a acção de divisão de coisa comum é o meio concedido aos interessados para, à falta de acordo, porem termo à compropriedade. E é da essência desta que, não estando materializado o direito de cada um sobre determinados bens, o esteja, no entanto, o direito que, conjunta e simultaneamente, pertence a todos”.

Mais, a lei estabelece critérios gerais e especiais a que deve obedecer a fixação do valor desta acção, prevendo o artigo 311.º, n.º 2, do Código do Processo Civil, que “nas acções para divisão de coisa comum, atende-se ao valor da coisa que se pretende dividir”.

A redacção deste n.º 2 foi introduzida pelo DL n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, porquanto anteriormente o preceito apenas se referia especificamente às causas em que se pretendesse fazer valer o direito de propriedade ou outro direito real sobre uma coisa, ficando agora expressamente consagrado este critério especial de atribuição de valor à causa nas acções para divisão de coisa comum: o de que nas mesmas se deve atender ao valor total da coisa a dividir - note-se que este preceito corresponde, no essencial, ao que anteriormente prescrevia o artigo 6.º. n.º 1, alínea f), do Código das Custas Judiciais, que para efeito de custas também considerava que o valor da acção de divisão de coisa comum é o valor dos bens a dividir -.

Trata-se de evolução legislativa que veio clarificar as dúvidas que podiam surgir a este respeito da determinação do valor processual neste tipo de acções.

Ainda esta achega.

O principal efeito da divisão ou adjudicação da coisa comum é que, a partir daí esta coisa fica sendo propriedade exclusiva do comproprietário – que agora deixa de ser – a quem coube.

Por isso, as benfeitorias, como o melhoramento ou aperfeiçoamento da coisa, feito por quem a ela está ligado, em consequência de uma relação ou vínculo jurídico – artigo 216.º do Código Civil -, direitos de crédito quando em conflito, não podem ser apreciadas e decididas em sede da acção de divisão de coisa comum, mas sim, em sede de inventário resultante da cessação da vida conjugal ou em acção declarativa comum.

Ou seja, parece-nos ser claro que o legislador pretendeu afastar desta acção todas as prestações - matéria do direito das obrigações - e outras realidades jurídicas, nomeadamente direitos de crédito, aí incluindo, apenas as próprias coisas “stricto sensu”.

Assim sendo, teremos de concordar com a Sr.ª Juiz da 1.ª instância, quando escreve:

“Face a esta previsão, entendemos que as "benfeitorias" realizadas em imóveis e o "passivo" a que o Autor alude, não integram o conceito de "coisa" para efeitos do disposto na norma supra transcrita.

Quanto ao passivo, só mediante uma acção declarativa comum, com intervenção da entidade bancária mutuária, poderá fazer-se a "divisão" do passivo, que terá que ser assumido por um dos mutuantes, ou eventualmente pelo dois, mas agora sem regras de solidariedade entre eles, uma vez que a acção de divisão de coisa comum, atentos os objectivos que visa, como supra referido, não contempla normas como as do inventário, a respeito do reconhecimento e pagamento de dívidas (cfr. artigos 1354.º e ss.), e em que o credor (no caso a entidade mutuária) intervém como interessado, tendo para tal sido citado.

Relativamente às benfeitorias, não podendo as mesmas separar-se do prédio em que foram realizadas, constituem, mesmo nos autos de inventário, direitos de crédito cujo pagamento, no caso dos autos, só através de acção declarativa comum pode ser exigido.

Não poderá proceder-se à divisão em substância, adjudicação ou venda de benfeitorias que não possam separar-se do prédio em que foram realizadas, o que só poderia ser possível através da constituição de direito de superfície (cfr. Artigos 1524.º e ss. do Código Civil) sobre o prédio em causa, e que não é objecto da acção especial de divisão de coisa comum.

O mesmo se dirá quanto aos direitos de crédito que o Autor invoca sobre a Ré, resultantes do pagamento de mútuos bancários contraídos por ambos.

Assim, com o devido respeito por diversa opinião, só em os veículos poderiam ser objecto destes autos”.

Ou seja, apenas caberia a estes autos o formalismo da acção de divisão de coisa comum, se o autor pretendesse o fim da compropriedade dos imóveis ou outras coisas que deram origem às benfeitorias e ao passivo bancário, o que não é pedido.

De facto, a tutela dos interesses patrimoniais daqueles que viveram em união de facto, não estando regulada na Lei nº 7/2001 de 11 de Maio, com as alterações introduzidas pela Lei nº 23/2010 de 30 de Agosto, também não pode ser decalcada da que a lei prevê para a partilha subsequente à dissolução do casamento, isto é, do inventário com o processo dos art.ºs 1404 e seguintes.

Desde logo, não há um regime de bens a determinar a titularidade dos mesmos entre os unidos de facto, nem sequer uma situação que se possa dizer de comunhão traduzida em quotas ideais sobre a globalidade dos bens adquiridos - com bens ou trabalho - pelos dois membros da união.

A união de facto entre duas pessoas não é, por si só, susceptível de gerar direitos patrimoniais relativamente a bens contraídos na constância de tal união, não podendo falar-se de património comum - neste preciso sentido, entre outros, José António França Pitão, “Uniões de Facto e Economia Comum”, 3ª ed., Almedina 2011, pág. 156 -, muito embora a maior parte das vezes os bens tenham sido adquiridos com dinheiro de ambos ou, pelo menos, com o esforço de ambos.

A doutrina tem vindo a defender que, sendo o casamento e a união de facto situações materialmente diferentes - pese embora a legislação que recentemente vem sendo publicada, maxime a Lei nº 7/2001, de 11 de Maio; a Lei nº 9/2010, de 31de Maio e a de Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, o facto é que o legislador mantém o regime da união de facto como realidade autónoma e distinta do casamento - não há qualquer base legal para estender à união de facto as disposições que ao casamento se referem - entre outros, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Curso de Direito da Família”, Vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora 2008, pág. 57.

Mais, se a Lei n.º 7/2001, de 11.05, no seu art. 8.º, n.º1, determina os modos de dissolução da união de facto, não há nenhuma disposição nesse ou noutro diploma legal a regular as consequências dessa dissolução.

Assim, e na ausência de regulamentação específica, as relações patrimoniais geradas na constância da união de facto serão regidas com recurso às regras gerais, tendo a doutrina vindo a pronunciar-se no sentido de que, a entender-se haver lacuna susceptível de preenchimento por analogia, sempre deveria ser por recurso ao regime da separação de bens.

Com efeito, neste regime também não há bens comuns, mas tão só bens próprios ou bens em compropriedade, pelo que, em matéria de titularidade e partilha de bens a solução não diferirá da encontrada para o casamento celebrado sob o regime da separação - neste sentido, José A. França Pitão, obra citada, pág. 158.

Como a jurisprudência e a doutrina têm vindo a defender, a situação de uma pessoa haver adquirido bens com a colaboração de outra, no âmbito de uma relação de união de facto só é, eventualmente, susceptível de relevar para o efeito de se reconhecer a existência de uma situação de compropriedade ou no quadro do instituto do enriquecimento sem causa – neste preciso sentido, entre outros, entre outros, os Acórdão do TRL de 26.10.2010, do TRP de 19.02.2004 e Acórdãos do STJ de 27.09.2011, de 08.05.2003, e de 31.03.2009, todos disponíveis no site www.dgsi.pt.

Mas não é seguramente o caso dos autos, uma vez que não estão em causa, na divisão pedida, coisas na acepção supra referida.

Por outro lado, como é sabido, o inventário para partilha subsequente ao divórcio - art. 1404º do Código do Processo Civil, que será o diploma a citar sem menção da sua origem - destina-se a partilhar o património comum  do casal unido pelo casamento - n.º 1 do artigo 1689º do C. Civil.

Para Lopes Cardoso - Partilhas Judiciais, III vol. 3ª ed., p. 348 -, o objectivo deste inventário é o de partilhar os bens que fazem parte dum património comum nos precisos termos que a lei civil estabelece - art.º 1689.º do Código Civil.

O património comum dos cônjuges constitui uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede certo grau de autonomia - embora limitada e incompleta - mas que pertence aos dois cônjuges, em bloco, sendo ambos titulares de um único direito sobre ela  - sobre esta matéria aconselhamos a leitura do Curso de Direito da Família, pág. 397, do Prof.º Pereira Coelho.

Os bens comuns dos cônjuges constituem, assim, objecto, não de uma relação de compropriedade, mas de uma propriedade colectiva ou de mão comum - neste preciso sentido, Antunes Varela, Direito da Família, pág. 436.

Cada um dos cônjuges tem, assim, uma posição jurídica em face do património comum, no qual participam por metade, posição que a lei tutela - art.º 1730.º do Código Civil -.

Ou seja, cada um dos cônjuges tem um direito à meação, um verdadeiro direito de quota que exprime a medida de divisão e que virá a realizar-se no momento em que esta deva ter lugar.

Cada cônjuge receberá na partilha os bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo previamente o que dever a esse património.

Por outro lado, se no decurso da sociedade conjugal os cônjuges se tornam devedores entre si, designadamente, quando por bens próprios de um deles se dá pagamento a dívidas da exclusiva responsabilidade do outro, ou quando tratando-se de dívida da responsabilidade solidária de ambos um deles satisfaz voluntariamente maior quantia que o outro ou a sua totalidade, só na subsequente partilha poderão tais créditos ser exigidos.

Decorrendo tal partilha em processo de inventário, tais créditos, embora não sendo objecto de relacionação, devem ser levados à conferência de interessados, não se justificando a remessa dos interessados para o processo de prestação de contas.

O processo de inventário subsequente ao divórcio é, pois, o meio adequado para se conhecer dos chamados “créditos de compensação” entre os cônjuges, e não o processo especial de divisão de coisa comum ou de prestação de contas.

Mais, sendo a aquisição anterior ao casamento, não fazendo parte dos bens integrados na comunhão, não integra o património comum a ser partilhado no inventário subsequente ao divórcio.

Tem aqui aplicação a opinião de Lopes Cardoso, segundo a qual, “se subsistir compropriedade entre os cônjuges, o processo para a fazer cessar será o da divisão da coisa comum, jamais o inventário” - Partilhas Judiciais, III, 3ª ed. pág. 346.

Assim sendo, com todo o respeito pelos argumentos apresentados pelo apelante, decidiu bem a 1.ª instância, pelo que, julgamos improcedente a instância recursiva.

Passemos ao legal sumário:

 I. O princípio da economia processual pretende que cada processo resolva o máximo possível de litígios, comportando apenas os actos e formalidades indispensáveis ou úteis - Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 386 -, mas, existem rituais processuais que até o julgador menos formalista, não poderá deixar de aplicar.

II. Na acção de divisão de coisa comum a causa de pedir é a compropriedade, sendo o pedido a dissolução da mesma compropriedade.

III. Trata-se do processo que, na falta de acordo, permite a qualquer um dos comproprietários exercer o direito potestativo reconhecido pelo artº 1412º, nº 1, do Código Civil, segundo o qual nenhum deles é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa.

IV. É da essência desta que, não estando materializado o direito de cada um sobre determinados bens, o esteja, no entanto, o direito que, conjunta e simultaneamente, pertence a todos.

V. As benfeitorias, como o melhoramento ou aperfeiçoamento da coisa, feito por quem a ela está ligado, em consequência de uma relação ou vínculo jurídico – artigo 216.º do Código Civil -, direitos de crédito quando em conflito, não podem ser apreciadas e decididas em sede da acção de divisão de coisa comum, mas sim, em sede de inventário resultante da cessação da vida conjugal ou em acção declarativa comum.

VI. Ou seja, parece-nos ser claro que o legislador pretendeu afastar desta acção todas as prestações - matéria do direito das obrigações - e outras realidades jurídicas, nomeadamente direitos de crédito, aí incluindo, apenas as próprias coisas “stricto sensu”.

VII. Sendo o casamento e a união de facto situações materialmente diferentes - pese embora a legislação que recentemente vem sendo publicada, maxime a Lei nº 7/2001, de 11 de Maio; a Lei nº 9/2010, de 31de Maio e a de Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, o facto é que o legislador mantém o regime da união de facto como realidade autónoma e distinta do casamento - não há qualquer base legal para estender à união de facto as disposições que ao casamento se referem - entre outros, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Curso de Direito da Família”, Vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora 2008, pág. 57.

VIII.A situação de uma pessoa haver adquirido bens com a colaboração de outra, no âmbito de uma relação de união de facto só é, eventualmente, susceptível de relevar para o efeito de se reconhecer a existência de uma situação de compropriedade ou no quadro do instituto do enriquecimento sem causa.

IV. Decisão

Pelo exposto, na improcedência da instância recursiva, mantemos a decisão proferida pelo Tribunal de Anadia.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 28 de Janeiro de 2014

(José Avelino - Relator -)

(Regina Rosa)

(Artur Dias)