Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | FERNANDO CHAVES | ||
Descritores: | INTERNAMENTO COMPULSIVO TRATAMENTO COMPULSIVO REGIME AMBULATÓRIO | ||
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Data do Acordão: | 12/02/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COIMBRA | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 7.º, 12.º, 22.º, 33.º, 34.º E 35.º, DA LEI DE SAÚDE MENTAL (LEI N.º 36/98 DE 24-07) | ||
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Sumário: | I - Depois de confirmado judicialmente o internamento urgente, deve ser proferida decisão definitiva sobre a necessidade de tratamento compulsivo, nos termos do artigo 27.º da Lei de Saúde Mental, a qual depende da verificação dos pressupostos previstos no artigo 12.º. II - Quando a anomalia psíquica for grave e criar uma situação de perigo para bens jurídicos relevantes, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial, e o doente recuse submeter-se ao necessário tratamento médico ou não possuir o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento e a ausência de tratamento deteriore de forma acentuada o seu estado, pode o tribunal determinar o seu internamento compulsivo – artigos 7.º, alínea a) e 12.º. III - Não existe qualquer contradição, muito menos insanável, quando na decisão recorrida se diz que estão verificados os pressupostos para o internamento compulsivo e após se determina a manutenção de tratamento compulsivo do recorrente [em regime ambulatório, pois, como resulta do ponto 5 dos factos provados, é essa a actual situação do recorrente]. IV - A circunstância de o recorrente ter tido “alta clínica” e se encontrar em tratamento compulsivo ambulatório significa apenas que deixou de haver necessidade que o tratamento decorresse em regime de internamento e não que deixou de ser necessário o tratamento médico. V - Embora o tratamento em regime de ambulatório dependa de aceitação expressa do doente, o tratamento ministrado continua a ser compulsivo, ou seja, é determinado pelo psiquiatra assistente do doente, não podendo este opor-se-lhe. Por isso o incumprimento por parte do doente das condições estabelecidas determina que o internamento seja retomado – n.º 4 do transcrito artigo 33.º. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
I – Relatório 1. No processo de internamento compulsivo n.º 5712/15.1T8CBR, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Cantanhede – Instância Local – Secção Criminal – J1, de que os presentes autos constituem apenso, foi proferida decisão que julgando verificados os pressupostos do artigo 12.º da Lei de Saúde Mental (Lei n.º 36/98, de 24/07) determinou a manutenção de tratamento compulsivo de A... . 2. Inconformado com tal decisão, o internando interpôs o presente recurso, suscitando as seguintes questões: vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão; incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto; arquivamento dos autos. 3. O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência. 4. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, acompanhando a resposta à motivação de recurso apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento. 5. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão. * II – FUNDAMENTAÇÃO 1. A decisão recorrida configura a factualidade provada e não provada, assim como a respectiva motivação da forma seguinte: «Das diligências de prova, resultaram provados os seguintes factos: 1. A... apresenta défices cognitivos marcados consequentes a traumatismo crânio encefálico. 2. Apresenta também diagnóstico de alteração orgânica da personalidade e alcoolismo secundário. 3. O arguido, antes de ser internado, estava barricado em casa, agredindo física e verbalmente a mãe e à avó. 4. A sua doença é irreversível e provoca alterações comportamentais, nomeadamente desinibição sexual. 5. Atualmente encontra-se em tratamento compulsivo ambulatório, sem crítica para a sua situação clínica, não fazendo os tratamentos médicos voluntariamente. * Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa. * Motivação Os factos dados como provados assentam nos relatórios de avaliação clínico-psiquiátrica de juntos aos autos e depoimento da médica psiquiatra – B... - ouvida em sede de sessão conjunta de prova.» * 2. Apreciando Como resulta do disposto no artigo 412.º, n.º 1 do CPP, ex-vi artigo 9.º da Lei de Saúde Mental, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência: - vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão; - incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto; - arquivamento dos autos.
2.1. Da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. Alega o recorrente que existe uma contradição entre a fundamentação e a decisão porque o tribunal recorrido entendeu estarem preenchidos os pressupostos para o seu internamento compulsivo mas depois determinou a manutenção do tratamento compulsivo do recorrente, situação que de facto já existia à data em que foi proferida a decisão. O vício da contradição insanável entre a fundamentação e decisão – previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal – respeita à estrutura interna da decisão, exigindo a lei, por tal razão, que a sua demonstração resulte do respectivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum. Existe tal vício quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão. A este respeito importa distinguir entre os pressupostos legalmente exigidos para a compulsividade do tratamento médico, previstos no artigo 12.º da Lei de Saúde Mental, e a forma como este pode ser efectuado, a qual pode ser feita através de internamento ou em regime ambulatório. No caso em apreço, estamos perante uma situação de internamento compulsivo de urgência que ocorreu por decisão administrativa antes de qualquer intervenção do tribunal – artigo 22.º da Lei de Saúde Mental. Ora, depois de confirmado judicialmente o internamento urgente, deve ser proferida decisão definitiva sobre a necessidade de tratamento compulsivo, nos termos do artigo 27.º da Lei de Saúde Mental, a qual depende da verificação dos pressupostos previstos no artigo 12.º. Assim, não existe qualquer contradição, muito menos insanável, quando na decisão recorrida se diz que estão verificados os pressupostos para o internamento compulsivo e após se determina a manutenção de tratamento compulsivo do recorrente [em regime ambulatório, pois, como resulta do ponto 5 dos factos provados, é essa a actual situação do recorrente]. Improcede, pois, a invocação do referido vício.
2.2. Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto Alega o recorrente que os pontos 3, 4, 1ª parte e 5, 2ª parte, dos factos provados foram incorrectamente julgados porque, no seu entender, esta matéria não encontra suporte probatório na prova produzida nos autos. Os factos impugnados têm o seguinte teor: - [3] O arguido, antes de ser internado, estava barricado em casa, agredindo física e verbalmente a mãe e à avó. [4] A sua doença é irreversível e provoca alterações comportamentais, nomeadamente desinibição sexual. [5] Atualmente encontra-se em tratamento compulsivo ambulatório, sem crítica para a sua situação clínica, não fazendo os tratamentos médicos voluntariamente. Na motivação de facto da decisão lê-se que os factos dados como provados assentam nos relatórios de avaliação clínico-psiquiátrica juntos aos autos e depoimento da médica psiquiatra – B... - ouvida em sede de sessão conjunta de prova. A este respeito refira-se que o ponto 3 dos factos provados decorre do relatório de fls. 10 a 11, na parte em que se descreve o motivo da avaliação e a história clínica sumária, a 1ª parte do ponto 4 resulta dos relatórios de avaliação clínico-psiquiátrica juntos aos autos e a 2ª parte do ponto 5 resulta do teor do ofício de fls. 17 que refere a ausência de crítica do recorrente para a sua situação clínica e necessidade de tratamento. Deste modo, ao contrário do que alega o recorrente, a matéria dada como provada encontra o necessário suporte probatório na prova produzida nos autos. Diga-se ainda que a circunstância de o recorrente ter tido “alta clínica” e se encontrar em tratamento compulsivo ambulatório significa apenas que deixou de haver necessidade que o tratamento decorresse em regime de internamento e não que deixou de ser necessário o tratamento médico. Improcede, portanto, esta questão.
2.3. Do arquivamento dos autos Alega o recorrente que teve alta clínica em 17.7.2015 pelo que os autos devem ser arquivados, ao abrigo do artigo 34.º da Lei de Saúde Mental, acrescentando que, caso assim não se entenda, deverá ser sujeito à medida de tratamento em regime ambulatório, ainda que compulsivo. A Lei de Saúde Mental (Lei n.º 36/98, de 24/07) «estabelece os princípios gerais da política de saúde mental e regula o internamento compulsivo dos portadores de anomalia psíquica, designadamente das pessoas com doença mental». Quando a anomalia psíquica for grave e criar uma situação de perigo para bens jurídicos relevantes, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial, e o doente recuse submeter-se ao necessário tratamento médico ou não possuir o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento e a ausência de tratamento deteriore de forma acentuada o seu estado, pode o tribunal determinar o seu internamento compulsivo – artigos 7.º, alínea a) e 12º. No dia 30.6.2015 o recorrente foi observado de urgência pelos serviços de saúde e, por se ter entendido que a anomalia psíquica revelada criava perigo para si e para terceiros, procedeu-se ao seu internamento compulsivo – cfr. fls. 10 a 11, 13, 15, 16. Em 17.7.2015 teve “alta clínica” e foi colocado em regime de tratamento compulsivo ambulatório, nos termos do artigo 33.º da Lei de Saúde Mental – cfr. fls. 17, 19 e 24. Esta norma, que permite a substituição do internamento, diz: «1 - O internamento é substituído por tratamento compulsivo em regime ambulatório sempre que seja possível manter esse tratamento em liberdade, sem prejuízo do disposto nos artigos 34.º e 35.º. 2 - A substituição depende de expressa aceitação, por parte do internado, das condições fixadas pelo psiquiatra assistente para o tratamento em regime ambulatório. 3 - A substituição é comunicada ao tribunal competente. 4 - Sempre que o portador da anomalia psíquica deixe de cumprir as condições estabelecidas, o psiquiatra assistente comunica o incumprimento ao tribunal competente, retomando-se o internamento. 5 - Sempre que necessário, o estabelecimento solicita ao tribunal competente a emissão de mandados de condução a cumprir pelas forças policiais». Assim, como decorre da referida norma, a passagem do recorrente do regime de internamento compulsivo para o tratamento ambulatório, igualmente compulsivo, não significa a inutilidade posterior dos trâmites do internamento compulsivo, designadamente dos artigos 34.º e 35.º. Como resulta claramente da lei este regime substitutivo – em ambulatório – é, ainda, para tratamento e só é permitido se for possível manter o tratamento que vinha sendo ministrado em internamento ou que se entenda necessário em liberdade. Acresce que, embora o tratamento em regime de ambulatório dependa de aceitação expressa do doente, o tratamento ministrado continua a ser compulsivo, ou seja, é determinado pelo psiquiatra assistente do doente, não podendo este opor-se-lhe. Por isso o incumprimento por parte do doente das condições estabelecidas determina que o internamento seja retomado – n.º 4 do transcrito artigo 33.º. Sendo assim, torna-se óbvio que a situação tem que continuar a ser acompanhada não só pelo médico mas também pelo tribunal que, em face do incumprimento das condições estabelecidas, pode ter que determinar novo internamento. Assim, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 33.º, 34.º, n.º 1 e 35.º da Lei de Saúde Mental, o tratamento compulsivo ambulatório só finda quando cessarem os respectivos pressupostos, sejam eles o de retomar o internamento compulsivo, seja o de findar tal tratamento por atingidos os inerentes fins médicos de saúde do submetido a tratamento involuntário. Só então é chegado o momento, faz sentido e é legalmente possível o arquivamento dos autos por comprovada existência de causa justificativa da cessação do tratamento do obrigado([1]). Por conseguinte, resultando dos factos provados que o estado de saúde mental do recorrente tem criado situações de perigo concreto para bens jurídicos alheios de natureza pessoal e que o recorrente não tem crítica para a sua doença, não fazendo os tratamentos voluntariamente, verificada que foi a substituição do internamento por tratamento compulsivo ambulatório, nada há a censurar à decisão recorrida ao determinar a manutenção do tratamento compulsivo do recorrente.
* III – DISPOSITIVO Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida. * Sem custas (artigo 37.º da Lei de Saúde Mental). * (O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP) * Coimbra, 2 de Dezembro de 2015
(Fernando Chaves - relator) (Orlando Gonçalves - adjunto) |