Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
562/21.9T8VIS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: OBTENÇÃO DE PROVA
DOCUMENTOS EM PODER DA CONTRAPARTE
PRESSUPOSTOS LEGAIS
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGO 429.º DO CPCIV.
Sumário: O mecanismo legal de obtenção de prova previsto no art. 429.º CPCiv. – notificação da contraparte para apresentação de documento em seu poder – não é de aplicar quanto a documentos que, na tese do requerente, não existem (com vista, assim, à prova da sua inexistência), mas a documentos existentes e no âmbito probatório de factos desfavoráveis ao detentor do documento, sem que tal interpretação constitua uma limitação ao direito de defesa ou uma violação do direito à prova.
Decisão Texto Integral: Processo nº 562/21.9T8VIS-B.C1 – Apelação

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Na presente ação declarativa sob a forma de processo comum que a C..., CRL, move contra:
a) AA,
b) M..., Compra e Venda, S.A.,
c) BB,
d) D..., Lda.,
e) CC

Alegando, em síntese:

no exercício da sua atividade, a autora foi contactada por diversas vezes pelo 1º Réu, na qualidade de gerente da T..., S.A., para concessão de crédito a favor desta sociedade, tendo-lhe concedido vários empréstimos que identifica, para cuja garantia de pagamento foram subscritas livranças em que o 1º Réu e a 3ª Ré figuram como avalistas;

declarada a insolvência da T..., Lda., foi aí apreendido o prédio urbano hipotecado para garantia dos créditos da autora, de cuja venda apenas receberá o montante de 130.000 €;

a autora é credora do 1ª réu no montante de 102.825,26 €;

apesar de o 1º réu não ter qualquer bem registado em seu nome, ele é o verdadeiro e legítimo proprietário das frações autónomas designadas pelas letras ... e ..., ambas integrantes do prédio urbano id. no art. 41º da P.I., e também dos móveis e equipamentos que apetrecham cada uma dessas frações autónomas;

após ter concluído a identificação de tal prédio urbano, em meados do ano de 2005, a 2ª Ré e o 1º Réu chegaram a um acordo, tendo o 1º aceitado a compra de tais frações autónomas, a 1ª pelo preço de 100.000,00 € e a 2ª pelo preço de 70.000,00 €, tendo o 1º réu procedido então ao pagamento da totalidade do preço;

acontece que tais aquisições não foram deliberadamente registadas em nome do 1º Réu, continuando a 2ª Ré a apresentar-se formalmente como proprietária das mesmas, pois que, à data, este se havia constituído avalista da T..., nos referidos empréstimos, o que foi feito para prejudicar os credores do 1ª Réu;

desde então que o 1º Réu usa ambas as frações, suporta os respetivos custos de manutenção, pagando o respetivo IMI, bem como as despesas de condomínio do prédio, assumindo-se, perante familiares e amigos como proprietário, frações que adquiriu por usucapião;

penhorado que foi o recheio da fração ... no âmbito de uma ação executiva, a mãe do 1º Réu, 3ª Ré, apresentou um termo de protesto, no qual alegou ser proprietária dos bens penhorados, com base num alegado contrato promessa de compra e venda que, com a 2ª Ré, terá formalizado tendo por objeto tal fração;

esse contrato-promessa nunca existiu ou se existiu é simulado, pois nunca a 3ª Ré pretendeu comprar tal fração à 2ª Ré, que também nunca lha quis vender;

a 3ª Ré vive de uma pensão de reforma de valor reduzido, nunca trabalhou ou obteve proventos de outra fonte;

no mês de abril de 2016, foi registada a aquisição da propriedade da fração ... a favor da 4ª Ré, sociedade que foi constituída pelo 1º Réu com o único fito de figurar como titular do direito de propriedade que o mesmo adquiriu sobre a fração em causa, de modo a ocultar de terceiros credores o seu património próprio e pessoal;

a 3ª e 5ª Rés desde a constituição da sociedade que se mantém formalmente como as suas únicas sócias, sendo que a 5ª Ré (amiga do 1º Réu) aceitou ficar gerente da 4ª Ré;

a única atividade que parece ser desenvolvida pela 4ª Ré é a exploração de um estabelecimento comercial, instalado na referida fração ..., exploração que é meramente formal, para criar a convicção de que a Ré dispõe de atividade própria;

Para prova de tais factos, pede:

d) a notificação da 2.ª ré para que junte ao processo:

- os comprovativos do efetivo pagamento do IMI relativamente às frações ... e ..., durante os anos em que formalmente estiveram registadas a seu favor;

- os comprovativos do recebimento de rendas da fração ... pelo 1.ª ou 3.ª ré e da fração ... pelo 1.º ou 4.ª ré;

- os comprovativos do recebimento de sinal entregue pela 3.ª ré para aquisição da fração ...;

- os comprovativos do pagamento dos consumos de água, luz, gás, telefone, internet e quotas condomínio das frações ... e ...;

e) a notificação da 3.ª ré para que junte ao processo:

- os comprovativo do pagamento de sinal para aquisição da fração ... à 2.ª ré;

- as declarações de IRS dos rendimentos obtidos entre 2003 e 2020;

- as faturas/recibos de compra da mobília e eletrodomésticos que se encontram na fração ... e demais pertences na respetiva garagem;

- os comprovativos de pagamento da renda devida pela ocupação dessa mesma fração a favor da 2.ª ré;

- os comprovativos do pagamento dos consumos de água, luz, gás, telefone, internet e quotas condomínio da mesma fração ...

- os comprovativos pagamentos despesas de conservação e manutenção dessa fração

F. a notificação da 4.ª ré para que junte ao processo:

- os comprovativo do efetivo pagamento do IMI relativo à fração ... desde 2016;

- as declarações de IRC relativas aos rendimentos auferidos desde 2014 a 2019;

- os extrato das suas contas bancárias relativos aos anos de 2014 a 2019;

- os contratos de trabalho celebrados com os seus trabalhadores, comprovativos de pagamento de salários e contribuições à Segurança Social;

- os comprovativos de pagamento da renda devida pela ocupação dessa mesma fração a favor da 2.ª ré até fevereiro de 2016;

g. a notificação da 5.ª ré para que junte ao processo:

- as declarações de IRS dos rendimentos obtidos entre 2013 e 2016.

Em consequência, pede:

a) que se declare que a autora é titular dos créditos sobre o 1.º réu, nos valores indicados nos pontos 33.º a 36.º desta petição, acrescidos de juros de mora e acessórios desde a data em que foram calculados

b) relativamente à fração ... descrita no registo predial sob o n.º ...15, freguesia ..., identificada no ponto 12.º desta petição

- declarar-se que é o 1.º réu o único possuidor e legítimo proprietário desta fração, desde o ano de 2005, por aquisição derivada;

- subsidiariamente, declarar-se que é o 1.º réu o único possuidor e legítimo proprietário desta fração desde o ano de 2005, por aquisição originária;

- declarar-se nulo, por simulação, qualquer contrato celebrado entre a 2.ª e a 3.ª ré que tivesse por objeto esta fração;

- consequentemente, determinar-se a inscrição no registo predial e na matriz

predial do direito de propriedade dessa fração a favor do 1.º réu

c) relativamente ao recheio dessa fração ... identificado nos pontos 100.º a 103.º desta petição

- declarar-se que é o 1.º réu o único possuidor e legítimo proprietário do recheio desta fração e dos demais pertences que se encontram na respetiva garagem, por aquisição derivada;

- subsidiariamente declarar-se que é o 1.º réu o único possuidor e legítimo proprietário do recheio desta fração e dos demais pertences que se encontram na respetiva garagem, por aquisição originária;

d), relativamente à fração ... descrita no registo predial sob o n.º ...15, freguesia ..., identificada no ponto 12.º desta petição;

- declarar-se que é o 1.º réu o único possuidor e legítimo proprietário desta fração desde o ano de 2005, por aquisição derivada;

- subsidiariamente, declarar-se que é o 1.º réu o único possuidor e legítimo proprietário desta fração desde o ano de 2005, por aquisição originária;

- determinar-se o cancelamento do registos de aquisição a que se refere a Ap. ...93 de 2016.04.07

CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA:

- desconsiderar-se a personalidade jurídica da 4.ª ré;

- e, em consequência, ordenar-se o cancelamento do registo de aquisição a que se refere a Ap. ...93 de 2016.04.07, incidente sobre essa fração autónoma ..., descrita no registo predial sob o n.º ...15, freguesia ...

- e, por tal efeito, a inscrição como sujeito ativo, na qualidade de titular do direito de propriedade sobre esta fração, o 1.º réu.

A Ré M... apresentou Contestação, afirmando ser a proprietária de ambas as ..., e os demais réus apresentam Contestação, impugnando a generalidade dos factos alegados pela autora.

No despacho em que designou dia para audiência, o Juiz a quo proferiu a seguinte Decisão quanto ao referido requerimento:

“Pede a autora, na petição, a notificação de vários réus para a junção daquilo que se poderia traduzir em largas dezenas de documentos, quase todos, basicamente, como contraprova, ou para prova de factos que entende não terem ocorrido, ou com o propósito de ver concluído que eles não existem.

Está fora de causa que, por via do disposto no art.º 411º do código de processo civil, “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio (isto, obviamente,) quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”. Igualmente se não olvida que, agora por força do estatuído no nº 1 do art.º 417 do mesmo diploma, “todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, (nomeadamente) facultando o que for requisitado”. Já no tangente, especificamente, à prova por documentos, mormente documentos em poder de outra parte, e em harmonia com o disposto no art.º 429º do mesmo código de processo civil, “no requerimento a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar”. Não é o requerimento em apreço muito explícito a esse mister, pelo que, como referi, entendo tratar-se de factos que a autora e requerente pretende provar que não ocorreram.

Trata-se, em meu entender, de uma atividade que pode, facilmente, consumir meses de troca de notificações, de requerimentos e de despachos – em meu entender com pouco conteúdo útil, ou mesmo irrelevantes. Quando, como ocorre com a matéria a seguir apreciada, se verificar utilidade na junção de documentos, serão os mesmos solicitados; por agora, vai indeferida toda esta matéria.”


*

Inconformada com tal decisão, a Autora C..., CRL dela interpôs recurso de Apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

(…).


*

Não foram apresentadas contra-alegações.
Prescindidos que foram os vistos legais, dada a simplicidade do objeto do recurso, cumpre decidir do mesmo.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo –, a questão a decidir é uma só:
1. Se o requerimento de notificação dos vários réus para juntarem os documentos solicitados pela autora era de deferir.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

          1. Se o tribunal errou ao indeferir o pedido da autora de notificação das 2ª, 3ª, 4ª e 5ª Rés, para juntarem determinados documentos

 O tribunal a quo veio a indeferir, por ora, o pedido de notificação das 2ª, 3ª, 4ª e 5ª Rés, para juntarem aos autos determinados documentos, com base nas seguintes considerações:

- exigindo o art.º 429º do CPC, que “no requerimento a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar”, não é o requerimento em apreço muito explícito a esse mister, entendendo-se que, com o seu requerimento, pretende a autora demonstrar que determinados factos não ocorreram;

- trata-se de uma atividade que pode, facilmente, consumir meses de troca de notificações, de requerimentos e de despachos – em seu entender, com pouco conteúdo útil, ou mesmo irrelevantes.

Com base em tais considerações, decidiu, então o juiz a quo que, “Quando, como ocorre com a matéria a seguir apreciada, se verificar utilidade na junção de documentos, serão os mesmos solicitados; por agora, vai indeferida toda esta matéria.

Ou seja, não nos encontramos perante um indeferimento definitivo e total, por assim dizer: o que foi entendido pelo juiz a quo foi que, dada a profusão de documentos cuja junção é pedida pelo autor, importando uma atividade que pode levar meses de notificações, despachos, etc., indefere tal requerimento, por ora, sendo que, caso se venha a verificar a utilidade na junção de documentos, serão os mesmos solicitados pelo tribunal.

Tal decisão remete-nos para três questões: i) com a requerida junção a autora pretende demonstrar que determinados factos “não ocorreram” ii) a parte pede a junção de uma enormidade de documentos que, a deferir, prejudicaria o andamento normal do processo, ii) sem que a se mostre, por ora, justificada a utilidade da sua junção.

A Autora/Apelante insurge-se contra tal decisão com os seguintes fundamentos:

- a demonstração de que as frações autónomas ... e ... e respetivo recheio integram o património do 1.º réu, apesar de as mesmas não se encontrarem registadas a favor do mesmo, passa, além do mais, pela prova de não terem sido pagos quaisquer valores pela 3.ª ou 4.ª ré à 2.ª ré, a título de preço (ou sinal) para aquisição das mesmas, ou mesmo a título de rendas, assim como pela prova de nunca terem tais rés pago o IMI ou quaisquer consumos de água, luz, gás, telefone, internet e quotas de condomínio relativamente às frações ... e ...;

- os documentos requeridos pela autora permitirão obter um conjunto de informações (nomeadamente, as condições financeiras dos réus e quem, ao longo dos anos, procedeu ao pagamento do IMI das frações autónomas em causa, dos consumos de água, luz, gás, telefone, internet e quotas de condomínio das mesmas, quem suportou as despesas de conservação e manutenção dessas frações, quem adquiriu os móveis e eletrodomésticos, que se encontram na fração ..., se foram recebidas rendas pela ocupação dessas frações e por quem, se a 4.ª ré desempenhou qualquer atividade lucrativa), que constituem importantes indícios para a discussão em torno dos pontos 2, 3 e 4 dos temas de prova fixados.

Quanto aos motivos que estiveram na causa no indeferimento e nos termos em que tal indeferimento é decretado – i) junção de uma tal profusão de documentos, que iria “consumir meses de troca de notificações, de requerimentos e de despachos”; ii) muitos dos quais se viriam a julgar inúteis, pelo que a sua junção só virá a ser decretada se a mesma se vier a mostrar necessária –, relativamente ao primeiro fundamento a Apelante nada diz e, relativamente ao segundo, justifica a necessidade da pedida notificação  para junção, no contributo que tais documentos teriam para prova dos seguintes factos:

- de não terem sido pagos quaisquer valores pela 3ª ou 4ª Ré à 2ª Ré, a título de sinal ou de preço para aquisição das frações ... e ... e respetivo recheio, ou a título de rendas;

- de não terem estas rés procedido ao pagamento de qualquer IMI ou consumos de água, luz, gaz, telefone, internet e quotas de condomínio relativamente às frações ... e ...;

Vejamos, em concreto, que documentos, para cuja junção, está a autora a pedir a notificação das Rés:

a) quanto à 2ª Ré, a sua notificação para junção dos:

- os comprovativos do efetivo pagamento do IMI relativamente às frações ... e ..., durante os anos em que formalmente estiveram registadas a seu favor; - envolveriam a junção de documentos comprovativos do pagamento do IMI desde 2005 até 2021, relativamente à fração ... e relativamente à fração ..., desde 2005 a 2016, ou seja, respeitantes a 16 anos, no primeiro caso e a 11 anos, no segundo caso; (chamando-se a atenção de que o que se pretende não são os documentos emitidos para cobrança de pagamento do IMI – estes terão sido, necessariamente emitidos em nome daquele que consta como seu titular nas Finanças –, mas documentos comprovativos do seu pagamento, que se encontrariam na posse da 2ª;

Quanto aos:

- comprovativos do recebimento de rendas da fração ... pela 1.ª ou 3.ª ré e da fração ... pelo 1.º ou 4.ª ré;

- comprovativos do pagamento dos consumos de água, luz, gás, telefone, internet e quotas condomínio das frações ... e ...;

– quanto a estes, por um lado, não especifica a autora se pretende a junção dos comprovativos relativamente a todo o período em que aquelas rés, alegadamente, terão ocupado as frações a título de locação, ou se, só a alguns períodos e, em caso afirmativo, quais; por outro lado, trata-se de documentos que, a existirem e a serem juntos, serviriam de prova a factos favoráveis aos réus;

Por outro lado, quanto aos já referidos documentos a juntar pela 2ª Ré, bem como ao comprovativo do recebimento de sinal entregue pela 3.ª ré para aquisição da fração ..., trata-se de documentos que, a existirem e a virem a ser juntos pela Ré, todos eles levariam à prova de factos favoráveis à tese dos Réus.

Quanto à notificação da 3.ª ré (mãe do 1º R.) para que junte ao processo:

- comprovativo do pagamento de sinal para aquisição da fração ... à 2.ª ré – também aqui nos encontramos de um documento para prova de um facto favorável à tese dos Réus.

Quanto às

- declarações de IRS dos rendimentos obtidos entre 2003 e 2020 – pedir as declarações de IRS da 3ª Ré desde 2003 até 2020, respeitantes a 17 anos, quando se pretende demonstrar que, em ano que nem sequer é identificado, tal Ré não disporia de condições económicas para comprar tal fração, afigura-se desproporcional e desnecessário.

Quanto às:

- faturas/recibos de compra da mobília e eletrodomésticos que se encontram na fração ... e demais pertences na respetiva garagem;

- comprovativos de pagamento da renda devida pela ocupação dessa mesma fração a favor da 2.ª ré, (quando ninguém alega que tal ré alguma vez tenha ocupado tal fração a título de arrendamento);

trata-se, mais uma vez de documentos de cuja apresentação resultaria a prova de factos favoráveis à versão dos Réus.

Quanto aos:

- comprovativos do pagamento dos consumos de água, luz, gás, telefone, internet e quotas condomínio da mesma fração ...,

- comprovativos pagamentos despesas de conservação e manutenção dessa fração, sem que delimite a que período pretende que seja reportada tal junção, sendo que, no caso de pretender tal junção relativamente a todo o período de 2005 a 2021, surgiria como uma exigência manifestamente desproporcional, e contrária aos usos (não é costume que se guardem os comprovativos do pagamento das faturas de luz, água, telefone, internet e quotas de condomínio por longos períodos e daí os curtos prazos de prescrição estabelecidos relativamente a tais créditos); por outro lado, também a junção de tais documentos, a ocorrer, serviria para prova de factos favoráveis à versão dos réus.

f) a notificação da 4.ª ré para que junte ao processo:

Quanto aos:

1. comprovativo do efetivo pagamento do IMI relativo à fração ... desde 2016,

2. contratos de trabalho celebrados com os seus trabalhadores, comprovativos de pagamento de salários e contribuições à Segurança Social;

3. comprovativos de pagamento da renda devida pela ocupação dessa mesma fração a favor da 2.ª ré até fevereiro de 2016;

trata-se de documentos que, a existir e a serem juntos, constituiriam prova de factos favoráveis à versão das Rés.

Quanto às:

- declarações de IRC relativas aos rendimentos auferidos desde 2014 a 2019, trata-se de documentos que, provavelmente existirão na posse da Ré, e de cuja junção a autora poderá, de facto, retirar indícios de prova favoráveis à sua versão de que tal Ré não possui qualquer atividade servindo de veículo para a aquisição de bens por parte do 1º Réu;

- extrato das suas contas bancárias relativos aos anos de 2014 a 2019 – abrangendo toda e qualquer conta bancária titulada por esta Ré, o extrato das respetivas contas relativos a cinco anos, afigura-se-nos igualmente como desproporcional e pouco adequado aos factos que se pretende provar.

g. a notificação da 5.ª ré para que junte ao processo:

- as declarações de IRS dos rendimentos obtidos entre 2013 e 2016.

Relativamente a esta Ré, cuja intervenção no alegado circunstancialismo de facto em causa se limita a, para além de amiga do 1º Réu, ser sócia gerente da 4ª Ré, não se nos afigura, que a junção das declarações de IRS desta ré entre os anos de 2013 e 2016, com vista a apurar “as suas condições financeiras”, contribua para provar que a 4ª Ré, da qual é sócia gerente, não procedeu ao pagamento de qualquer valor pela aquisição da fração ....

Relativamente a “Documentos em poder da parte contrária”, dispõe o artigo 429º do Código de Processo Civil:

1 – Quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento, a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar.

2 – Se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a decisão da causa, é ordenada a notificação.

Se o notificado não apresentar o documento, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado nº 2 do artigo 344º do Código Civil (nº2 do artigo 417º CPC, aqui aplicável, por força do artigo 430º, do CPC), o qual prevê a inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado.

Como referem Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto[1], tratando-se de uma manifestação do princípio geral da cooperação material no campo da instrução do processo, o preceito tem em vista a prova de factos desfavoráveis ao detentor do documento que, por isso, é notificado, a requerimento da parte contrária para o apresentar.

Do respetivo teor resulta que a disposição se encontra pensada primordialmente para a permitir à parte onerada com a prova de um facto a obtenção de determinado documento de que saiba encontrar-se em poder da parte contrária, para através do mesmo dar cumprimento ao ónus da prova que sobre ele incide. Daí a cominação de inversão do ónus da prova, no caso em que a falta de apresentação o documento venha a impossibilitando ao onerado a respetiva prova. Naturalmente, tal sanção só faz sentido se a junção de documentos for requerida para a prova de factos que a si incumba provar e não quando o ónus da respetiva prova incumba à parte contrária.

Contudo, ter o ónus da prova não significa que se tenha o exclusivo da prova[2]. Como estabelece o artigo 346º do Código Civil, à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos de modo a torná-los duvidosos.”

O âmbito do artigo 429º, tem assim de ser articulado com o conceito do direito à prova, significando este que, não só as partes conflituantes, por via de ação e da defesa, têm o direito a utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal[3], como, têm ainda o direito a contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal bem como o direito à contraprova.

Haverá que constatar que, na prática, as partes têm sempre interesse em produzir provas, seja em relação aos factos que lhe são favoráveis, seja quanto à inexistência dos factos que a podem prejudicar (contraprova ou prova contrária). E se é verdade que o ónus da contraprova só surge quando o onerado com a contraprova tenha feito prova bastante (prova livre ou não plena), cabendo então à parte contrária fazer prova que crie no espírito do juiz dúvida ou incerteza acerca do facto questionado, as restrições impostas ao momento até ao qual cada uma das partes pode apresentar a sua prova/contraprova, levam a que parte não onerada com a prova de um facto não possa ficar à espera que a contraparte faça, ou não, a prova de tal facto, para aí e só então, em caso afirmativo, apresentar a sua contraprova[4].

Concluímos, assim, que o mecanismo previsto no artigo 429º, do CPC, poderá ser utilizado, não só, por aquele sobre o qual recai o ónus da prova, mas, igualmente, para efeitos de contraprova.

Contudo, a notificação prevista no artigo 429º pressupõe, desde logo, a verificação dos seguintes pressupostos:

a) existência de documento em poder da parte contrária;

b) para prova/contraprova, de factos desfavoráveis ao detentor do documento[5].

O tribunal, desde que tenha conhecimento de que em poder de uma pessoa se encontram documentos, necessários ou uteis, para a decisão da causa, pode proferir despacho a ordenar a apresentação de tais documentos, a fim de serem juntos ao processo e tomados na consideração que merecerem[6].

Ora, relativamente a grande parte dos documentos cuja junção é requerida pela autora – comprovativos de pagamento de IMI pelas 2ª e 4ª Rés, comprovativos de pagamento e de recebimento do sinal, pelas 3ª e 2ª Rés, de pagamento e recebimento de rendas, pela 2ª, 3ª e 4ª Rés, faturas/recibos de compra de mobílias, por parte da 3ª Ré, comprovativos de pagamento de água, luz, gás, telefone, por parte da 3ª e 4ª Rés, contratos de trabalho celebrados entre a 4ª R. e os seus trabalhadores –, respeita a documentos que, na tese da autora, pura e simplesmente, não existem, porquanto o verdadeiro proprietário das frações ... e ..., e do respetivo mobiliário e recheio, é o primeiro réu.

Por outro lado, trata-se de documentos que, a existirem e a serem juntos, serão favoráveis à tese dos réus, pelo que, verdadeiramente, a existirem, a autora nenhum interesse teria na respetiva junção.

Ou seja, o que a autora pretende demonstrar com o pedido de notificação das Rés para a sua junção é a de que os mesmos não existem, sendo que, caso existissem e a rés procedessem à requerida junção, tal junção ser-lhes-ia favorável.

Ora, não é este o objetivo visado pela notificação prevista no artigo 429º, como resulta da expressão “quem pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária”, respeitando antes a documento que a parte saiba existir, ao qual não tenha acesso por se encontrar na detenção da parte contrária, e do qual necessite para prova/contraprova de facto desfavorável à contraparte.

Como tal, sempre o pedido de junção destes documentos seria de indeferir, por este motivo.

Por outro lado, como tem sido também sublinhado, o direito à prova não é um direito absoluto e incondicionado, não implicando a total postergação de determinadas limitações legais aos meios de prova utilizáveis ou a imposição de condições à sua utilização, desde que essas limitações se mostrem materialmente justificadas e respeitadoras do princípio da proporcionalidade. A emissão de uma norma restritiva da utilização dos meios de prova, não implica necessariamente um desrespeito do direito acesso à justiça na sua vertente do direito do interessado produzir a demonstração de factos que, na sua ótica, suportam o seu direito ou a sua defesa. Tal desrespeito só se verificará quando se possa concluir que a norma em causa determina para o interessado, na generalidade das situações, a impossibilidade de uma real defesa dos seus direitos ou interesses em conflito.

Ao juiz, enquanto “gestor” ou responsável pela direção do processo incumbe autorizar a realização das diligências que se afigurem necessárias e adequadas e indeferir as que afigurem inúteis ou meramente dilatórias.

“Ao juiz cabe controlar a pretensa idoneidade do documento para a prova de factos de que o requerente tem o ónus da prova ou que possam infirmar a prova de factos de que o detentor do documento tem o ónus, razão porque o requerente deve identificar, na medida do possível, o documento e especificar os factos que com ele quer provar[7].”

O facto de o juiz indeferir um requerimento de prova inútil ou com intenção de arrastar o andamento processo, não constituiu uma limitação ao direito de defesa. Podemos mesmo afirmar constituir para o juiz um dever, em nome da economia processual, a recusa de provas irrelevantes, inúteis ou meramente dilatórias.

Do teor do art. 429º, resulta que a previsão da notificação da parte contrária para apresentar documento que possua em seu poder, pressupõe:

- a identificação do concreto documento cuja junção se requer;

- a indicação de quais os factos que com o identificado documento se pretende provar;

- que se trate de documentos que se encontrem em poder da parte contrária e que a própria parte não consiga obter.

Quanto à finalidade de tais exigências, afirma Alberto dos Reis[8]:

“A 1ª exigência tem por fim dar a conhecer ao notificado qual o documento que dele se requisita. (…) Para que a parte contrária possa tomar conscientemente qualquer atitude perante o despacho que requisitar a apresentação, é indispensável que ela saiba, ao certo, qual a espécie de documento que se lhe exige – se uma carta, se uma letra, se um relatório, se um balanço, se um título de arrendamento, etc. E não basta que se se indique a espécie, em abstrato, é necessário que se caraterize a espécie, que se individualize o documento, dizendo-se por exemplo, de que data é a carta e quem a expediu, a que prédio se refere o arrendamento e em que data se celebrou, etc.

A 2ª exigência destina-se, em primeiro lugar, a habilitar o juiz a deferir ou a indeferir o requerimento e, em segundo lugar, a fazer funcionar a sanção”.

Daí que, a peticionada junção de documentos respeitantes a um período indefinido ou por diversos anos, sem que tal necessidade se mostre justificada, é também de indeferir.

Como tal, e por ora, da totalidade dos documentos em causa, apenas a notificação da 4ª Ré para junção das declarações de IRC relativas aos seus rendimentos auferidos desde 2014 a 2019, se mostrará justificada, enquanto adequada a demonstrar a ausência ou âmbito da atividade da 4ª Ré, para além de servir como alegado veículo de aquisição de bens por parte do 1º Réu.

A apelação será de proceder, apenas nesta pequena parte.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando-se a decisão recorrida unicamente na parte em que indefere a notificação da 4ª Ré para junção das declarações de IRC relativas aos seus rendimentos auferidos desde 2014 a 2019.

Custas a suportar pela Apelante e Apeladas, na proporção de 7/8 e 1/8, respetivamente.           

                                                               Coimbra, 05 de abril de 2022




[1] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 462.
[2] José Lebre de Freitas, “A Ação Declarativa Comum, à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, Coimbra Editora, pág. 210.
[3] Cfr., neste sentido, Rui de Freitas Rangel, “O Ónus da Prova no Processo Civil”, 2ª ed., Almedina, pág. 72.
[4] Como afirma Eduardo Cambi, “as partes devem, pois, ter a oportunidade de demonstrar os fatos que servem de fundamento para as respetivas pretensões e defesas, sob pena de não conseguirem influenciar o órgão julgador no julgamento da causa. A noção de direito à prova aumenta as possibilidades das partes influenciarem na formação do convencimento do juiz, ampliando as suas chaces de obter uma decisão favorável aos seus interesses. Assim, as partes têm liberdade para demonstrar quaisquer factos, mesmo que não possuam o respetivo ónus da prova, desde que entendam que a sua comprovação diminuirá os seus riscos processuais – “O direito à prova no Processo Civil”, in Revista da Faculdade de Direito UFRP, v34, 2000, disponível na net - http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/direito/article/viewFile/1836/1532.
[5] Neste sentido, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2, 3ª ed., Almedina, p.247., e ainda, Acórdão do TRP de 13.02.2022, relatado por Isoleta de Almeida Costa, in www.dgsi.pt.
[6] Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. IV, Coimbra Editora – 1981, p. 38. A tal respeito se afirma no Ac. TRL, de 14-10-2021, relatado por Fernando Bastos: “Considerando-se a tipificação do art.º 429.º como norma reveladora do princípio da cooperação dirigida à materialidade da instrução do processo, não temos dúvidas que resultou do pensamento legislativo, dirigido à parte onerada com a prova de um facto ou de um conjunto de factos entre si compatíveis, a obtenção de determinado documento ou informação, que saiba encontrar-se em poder da parte contrária, para através do assim obtido, dar cumprimento ao ónus da prova que sobre ela incide.”
[7] Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, pág. 463.
[8] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. IV, Coimbra Editora -1987, pág. 38.