Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2464/20.7T8VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: INCAPACIDADE DA SOCIEDADE
FIM SOCIETÁRIO
ASSUNÇÃO DE DÍVIDA DE TERCEIRO
NULIDADE DO ATO
ÓNUS DA PROVA
EMBARGOS DE EXECUTADO
Data do Acordão: 06/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 6.º DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS, 342.º E 980.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – As sociedades têm capacidade para a prática de todos os atos, independentemente da sua natureza ou da sua categoria – exceto os que lhes são vedados por lei e os que são inseparáveis da personalidade singular –, mas apenas se forem necessários ou convenientes à prossecução do seu fim.

II – O fim da sociedade, relevante para aferição da respetiva capacidade (nos termos do n.º 1 do art. 6.º do CSCom.), não corresponde ao seu objeto social, mas ao seu escopo de obtenção do lucro.

III – Quem invoca a nulidade de ato praticado por uma sociedade, por força da sua incapacidade (art.º 6.º aludido), tem o ónus de provar os factos de que depende essa nulidade – os tendentes a demonstrar que está em causa uma liberalidade que deva ser considerada contrária ao fim da sociedade, por não ser usual, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade (n.º 2 daquele artigo), ou que está em causa a prestação de garantia a dívida de outra entidade que não seja uma sociedade em relação de domínio ou de grupo sem que existisse qualquer interesse próprio da sociedade nesse ato e que, como tal, se considere contrária ao fim societário (n.º 3), ou que, por qualquer outra razão, o ato/negócio em causa se situava fora do âmbito da capacidade da sociedade que é delimitada pelo n.º 1, por não ser necessário nem conveniente à prossecução do seu fim.

IV – Por isso, em embargos de executado, alegando a sociedade embargante, como facto impeditivo do direito exequendo, a sua incapacidade, a ela cabia o ónus de provar os factos tendentes a concluir pela decorrente nulidade do ato/negócio subjacente ao título executivo (livrança).

Decisão Texto Integral:

Apelação nº 2464/20.7T8VIS-A.C1

Tribunal recorrido: Comarca de Viseu - Viseu - Juízo Execução - Juiz 1

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: Maria João Areias

                               Paulo Correia

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

O T..., S.A. veio instaurar execução contra U..., S.A. e AA, melhor identificados nos autos, pedindo o pagamento da quantia de 469.583,75€ com fundamento numa livrança caução, vencida em 02/06/2020 e subscrita pela 1.ª Executada e avalizada pelo 2.º Executado, que foi emitida em garantia do cumprimento das responsabilidades emergentes de um contrato de mútuo celebrado com a 1.ª Executada – em 18/12/2015 – nos termos do qual esta se obrigou a amortizar o capital mutuado em 61 prestações trimestrais e sucessivas.

A 1.ª Executada veio deduzir embargos de executado, invocando a inexigibilidade e iliquidez da quantia exequenda na parte referente aos juros compensatórios (2.720,97€) e invocando a nulidade do contrato de mútuo invocado pela Apelante. Alega, no que toca à nulidade do contrato: que nunca retirou qualquer benefício das quantias em causa; que as quantias em causa se destinaram a amortizar um financiamento que havia sido concedido pelo B... a AA e mulher e a justificar o reforço das garantias já concedidas no âmbito daquele empréstimo, ampliando-as aos bens titulados pela U..., S.A; que o valor mutuado não foi utilizado no apoio à tesouraria da U..., S.A tendo sido integralmente utilizado na atividade em nome individual exercida pelo casal AA e em benefício destes e que, nessas circunstâncias e face ao disposto no art.º 6.º do CSC, tal contrato – bem como a prestação de garantias pela sociedade – é nulo.

A Exequente contestou, sustentando a improcedência dos embargos e pedindo que a Embargante seja condenada, por litigância de mé fé, em indemnização e multa a determinar pelo Tribunal.

Foi realizada a audiência prévia e proferido despacho saneador, tendo sido também fixado o objecto do litígio e delimitados os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou os embargos improcedentes e determinou o prosseguimento da execução.

Inconformada com essa decisão, a Executada/Embargante U..., S.A, veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. Relativamente à validade do negócio jurídico subjacente à emissão da livrança, o Tribunal a quo fez errada apreciação da prova carreada para os autos, assim como claudicou na sua subsunção ao Direito aplicável, como se deixará demonstrado.

2. A sentença recorrida enferma de error in judicando, resultante de uma distorção da realidade factual (error facti), de forma a que o decidido não corresponde à realidade ontológica dos factos alegados e tidos como provados, e incorrendo em desvio da realidade factual por errada representação da mesma.

3. Identificou a sentença recorrida, e bem, a tese da embargante, de que a invalidade do negócio descrito em 16. (por que contrário ao fim da sociedade), inquinaria o mútuo que foi contraído para regularizar as responsabilidades decorrentes desse primeiro negócio, ou seja, o mútuo dado à execução.

4. E, conclui o mesmo decisório que, para poder vingar exigia que a mesma alegasse e demonstrasse que esses negócios eram desnecessários e inconvenientes à prossecução do seu fim.

5. Ora, na nossa modesta mas segura opinião, não podemos deixar de entender que, ao contrário do consignado na sentença recorrida, resultou apurada e provada pela embargante a sua falta de interesse em solicitar o financiamento bancário que está em causa na execução.

6. A sentença recorrida fez errada apreciação da prova carreada para os autos e, consequentemente falhou na decisão sobre o juízo de prova que fez recair sobre os factos que integraram o art.º 5º da matéria assente, designadamente quanto às alegadas instruções da embargante para movimentar a sua conta de depósitos à ordem, e ao seu interesse nos mesmos movimentos, dando-o como provados.

7. Devia o tribunal a quo ter dado como não provado, o facto que teve como assente sob o n.º 5.

8. O alegado pela embargante e demais matéria tida como provada pela sentença recorrida, acarretam desfechar que “os movimentos efetuados na conta da executada, no qual foi depositado o capital mutuado, (…) com o seu conhecimento”, mas não foram feitos de acordo com as instruções da executada,” nem no seu interesse!

9. A este respeito suporta-se a sentença recorrida apenas no depoimento de BB, diretor comercial do banco embargado, de onde retira que “a aludida conta foi movimentada de acordo com as instruções que a cliente, ora embargante, deu ao Banco estando atestado documentalmente que a quantia de 385.519,60€ serviu para liquidação de responsabilidades e despesas relacionadas com o âmbito da reestruturação, tendo sido utilizada em proveito da própria embargante na medida em que serviu para regularizar a sua situação de incumprimento perante o Banco embargado.”

10. Antes de mais, importa realçar que a testemunha BB apenas teve contacto com a Embargante e com os contratos subscritos por esta e pelo Sr. AA após Abril ou Maio de 2019, na sequência da fusão do B... (entidade financiadora das quantias em causa) com o T..., S.A.

11. A testemunha nunca foi funcionário do B..., claudicando necessariamente a sua razão de ciência relativamente aos contratos discutidos nos autos, quer o mútuo inicial de 2006, quer as sucessivas reestruturações que o mesmo veio a sofrer.

12. E esta circunstância resulta assumida pelo próprio na sua resposta ao tribunal quanto aos costumes, tendo sido refletida na sentença recorrida,

13. Não podia pois a sentença recorrida ter alicerçado a sua convicção de que a conta de DO da embargante foi movimentada (desde 2015) de acordo com as instruções daquela, apenas no depoimento daquela testemunha.

14. Assim como não podia ter valorado a narração da mesma testemunha de que em 2015, quando foi feito o empréstimo em causa nesta execução, o dinheiro foi creditado na conta na conta DO da sociedade, tendo asseverado que quando é feito um contrato de crédito standard, para fins gerais, o cliente é livre de utilizar era livre de utilizar o dinheiro para os fins que entendesse.”

15. Reitera-se que a testemunha não tem qualquer conhecimento das motivações/negociações subjacentes aos contratos sem causa.

16. Tão pouco pode dar nota do que é normal ou comum em determinado tipo de contrato a que chama “standard” – já que á data de celebração dos mesmos não era sequer era funcionário da entidade financiadora, desconhecendo a sua forma de atuação ou políticas de contratação.

17. E estas afirmações da testemunha são tão mais atacáveis na sua credibilidade quando, a mesma reconhece, como consigna a sentença recorrida, que “embora se a conta tivesse prestações de crédito vencidas, esse valor era cativo para as pagar, desconhecendo se, em concreto, isso aconteceu. – em clara contradição com a necessidade/liberdade da mutuária dar instruções sobre as quantias mutuadas para a reestruturação de empréstimos anteriores em incumprimento.

18. O desconhecimento da testemunha relativamente às condições e termos dos financiamentos em causa, à forma como ocorreram, quais as operações que lhe seguiram, por iniciativa e no interesse de quem, acaba mesmo por ser admitida pelo próprio funcionário da embargada.

19. Este acaba a mesma por reconhecer, como aliás é do conhecimento público comum, que, havendo valores em dívida, são os saldos mutuados imediatamente cativos pelos bancos e transferidos “oficiosamente” para as contas onde estão em falta.

20. Tratando-se o mútuo exequendo de reestruturação sucessiva de um contrato inicial titulado por AA e mulher, nos quais existiam, assumido por todas as partes em juízo, prestações e valores em dívida, não pode deixar de concluir-se que o mesmo foi afeto ao pagamento de tais responsabilidades, sem instruções da embargante, mas antes por iniciativa e imposição do próprio Banco..

21. E relativamente ao mesmo facto, se não pode constituir prova suficiente o depoimento da testemunha BB, há que ter em conta a prova feita em sentido contrário pelas testemunhas CC e DD.

22. CC, jurista da embargante foi perentório ao afirmar que em 2012 a ora Recorrente assumiu cerca de metade da dívida de AA (3,5 milhões) e prestou garantias reais ao Banco, explicando que foi uma operação bancária em que a conta da U..., S.A foi creditada no montante do financiamento e automaticamente utilizado para liquidar parte do financiamento inicial. – cfr resulta da sentença recorrida.

23. DD empregado de escritório da Recorrente e reconhecidamente conhecedor dos factos, pela sentença Recorrida, por ter realizado os movimentos contabilísticos da empresa, instado asseverou que o montante o montante financiado à U..., S.A, de 3,5 milhões de euros foi utilizado integralmente para amortizar o financiamento concedido a AA. – cfr considerado pela sentença recorrida.

24. E este ultimo ainda acrescentou: em 2015 os dois empréstimos (da própria embargante e de AA) tinham prestações em dívida, tendo sido contraído novo mútuo para regularizar essas prestações vencidas, com novas garantias reais prestadas. cfr considerado pela sentença recorrida.

25. Não é suscetível de negação que a sentença recorrida reconhece o conhecimento direto destas testemunhas sobre os factos em causa e a credibilidade dos seus depoimentos.

26. Assim como não pode afastar-se que a prova testemunhal revela que o empréstimo em causa na execução teve como objetivo regularizar prestações vencidas de contratos de crédito pendentes entre as partes. – como aliás aceite pela sentença recorrida.

27. Considerando os depoimentos prestados, concatenados com aquilo que é o conhecimento público geral da atuação das instituições bancárias, impunha-se ao tribunal recorrido dar como não provado que a conta de DO da embargante não foi movimentada, após o depósito na mesma da quantia mutuada, de acordo com as suas instruções e no seu interesse da aqui recorrente.

28. O tribunal a quo carecia o Tribunal de prova cabal que suportasse a sua decisão de considerar provadas as instruções da embargante e o seu interesse na movimentação da conta de DO onde foi creditada a quantia mutuada.

29. Pelo contrário a prova produzida, e até valorada pelo Tribunal “a quo” e referida na sentença recorrida, implicam decisão no sentido inverso da perfilhada, impondo fazer consignar que a conta de DO da embargante não foi movimentada de acordo com as suas instruções, bem no seu interesse.

30. Aliás, diga-se ainda que, da análise rigorosa da seleção da matéria de facto tida como provada e a considerada como não assente pela sentença ora em crise, decorre que é a mesma contraditória.

31. Melhor dizendo: tendo por ponto de partida os factos assentes sob os n.ºs 12 a 17, os factos elencados como não provados sob as alíneas a) a e) não podiam deixar de integrar a listagem da matéria provada, por serem estes, concretização e conclusão daqueles.

32. Na senda da errada apreciação da prova e da matéria de facto carreada para os autos que se deixou sindicada, a sentença recorrida incorreu em errada aplicação do Direito àquela matéria.

33. Resulta inequívoco da matéria dada como assente sob os números 12 a 17, que o mútuo celebrado entre embargante e embargado, no montante de 3.500.000,00€ com prestação de garantias reais por parte daquela, constituiu reestruturação dos financiamentos referidos em (15), por sua vez, reestruturação do financiamento referido em (12) destinado a amortizar parte do financiamento original de AA e mulher.

34. Aqueles factos tidos como assentes não podem conduzir a conclusão diversa da nulidade do mútuo celebrado com a embargante no valor de 3.500.000,00€.

35. Do facto elencado como número 12 da matéria assente resulta provado que o financiamento inicial de 2006 se destinou “ao apoio à construção de um empreendimento imobiliário de 123 frações denominado “...” que AA levava a cabo em ..., no âmbito da atividade de promoção imobiliária, como empresário em nome individual.” - Sublinhado nosso.

36. O mesmo fim, de apoio à atividade de promoção imobiliária desenvolvida por AA em nome individual, te de ter-se como comum a todos os financiamentos posteriores que constituíram restruturação daquele mútuo inicial.

37. O mesmo fim, de apoio à atividade de promoção imobiliária desenvolvida por AA em nome individual, te de ter-se como comum ao mútuo celebrado com a embargante no valor de 3.500.000,00€.

38. E, aqui chegados, não se vislumbra como se pode deixar de concluir que tal financiamento e prestação de garantias não foi feito com fim contrário ao da sociedade, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 6.º/3 do código das sociedades comercias.

39. O mútuo em causa constitui indubitavelmente prestação de garantias a dívidas de outras entidades, únicas beneficiárias dos mesmos, na qual não inexistiu qualquer justificado interesse próprio da sociedade garante, a embargante e ora recorrente.

40. O mútuo dado à execução, constitui ultima reestruturação do mútuo inicial concedido, em nome individual a AA e mulher, em 2006.

41. Com todo o respeito, parece-nos evidente que, sendo o financiamento sub júdice mera reestruturação de contrato anterior, já ele reestruturação de dívida alheia, e por isso nulo, só pode ter se como igualmente ferido de nulidade, o contrato exequendo, nos termos alegados nos embargos ora em recurso.

42. Do que se deixou exposto, impõe-se concluir que a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento uma vez que, da matéria que teve como assumida, se impunha tivesse decidido em sentido diverso.

43. Caso assim não se entenda, no que não se concede, sempre havia de considerar-se que a embargada não ilidiu a presunção estabelecida nº 3 do art.º 6.º do Código das Sociedades Comerciais.

44. Determina aquele normativo que se considera “contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.”

45. Não acompanha a embargante a tese acolhida pela sentença recorrida de que sobre esta impendia o ónus de provar que a garantia prestada perante terceiros, como a sub judice, fora prestada no interesse próprio da sociedade.

46. Considerando a presunção legal de que a garantia prestada a dívidas de outras entidades se considera contrária ao fim da sociedade, era sobre a exequente embargada que incumbia o ónus de provar o interesse da embargante relativamente ao mesmo.

47. Ora, não tendo a embargada feito aquela prova, haviam os embargos de proceder, o que se requer seja acolhido pelo tribunal “ad quem”.

48. Mais entendemos que mal andou o tribunal a quo na sua decisão sobre a liquidação das quantias exequendas (juros).

49. Sem prejuízo da boa conciliação feita pela sentença recorrida dos elementos constantes do contrato exequendo com as quantias peticionadas, para apuramento do valor alegadamente devido a título de juros remuneratórios ou compensatórios, mantemos que o referido montante carece da liquidação indispensável á sua exequibilidade.

50. Da simples análise do requerimento executivo, ressalta que a embargada não cumpre o disposto no art.º 716º, n.º 1 do CPC, que impõe que quando a liquidação dependa de simples cálculo aritmético, o exequente deve fixar o seu quantitativo no requerimento inicial da execução mediante especificação e cálculo dos respetivos valores.

51. A especificação e cálculos dos valores peticionados no requerimento executivo inexiste relativamente àqueles valores.

52. E foi exatamente essa omissão que conduziu à necessidade verificada pelo Tribunal a quo de fazer, ele próprio essa liquidação.

53. Com todo o respeito, esta é efetivamente uma obrigação da exequente aquando da elaboração e apresentação do requerimento executivo, que a embargada não cumpriu.

54. A embargada não faz sequer qualquer referência à taxa que teve como aplicável para o valor que apurou de 2.720,97€ a título de juros remuneratórios.

55. Evidencia-se que a embargante não pôs em causa o resultado dos cálculos (feitos mas não espelhados no requerimento executivo) para apuramento dos juros remuneratórios.

56. Pôs, antes em causa a sua falta de liquidez para efeitos da sua exequibilidade.

57. Por este motivo, não podia a sentença recorrida ter deixado de ter como ilíquida aquela quantia dada à execução, atenta a não verificação daquela condição para a sua exequibilidade, fazendo, também nesta parte, proceder os embargos deduzidos pela ora Recorrente.

58. Por fim, e porque na parte relativa a juros de mora, entendeu o Tribunal a quo ter a exequente incorrido em erro sobre a liquidação dos juros de mora peticionados na execução, não podia a mesma ter considerado os embargos deduzidos pela ora Recorrente como totalmente improcedentes com as legais consequências em termos de custas (totalmente a cargo da embargante.

59. Considerando esta parte da decisão proferida, havia o tribunal recorrido de ter considerado procedentes os embargos naquela parte, com repartição de custas entre embargante e embargada nessa medida

Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis pelo exposto, deve ser concedido provimento ao presente recurso, com todos os efeitos legais, corrigindo-se a sentença recorrida e alterando o seu decisório nos termos supra alegados, como é de Direito e de Justiça.

A Exequente respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).


/////

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

· Saber se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos propostos pela Apelante;

· Saber se o acto/negócio subjacente à livrança que constitui o título executivo está ferido de nulidade por se situar fora do âmbito da capacidade da Apelante à luz do disposto no art.º 6.º do CSC, analisando as questões colocadas relativamente ao ónus da prova sobre os factos relevantes para essa questão;

· Saber se, na parte referente aos juros compensatórios, a quantia exequenda é ilíquida ou inexigível;

· Saber se a decisão proferida referente ao indeferimento de uma parcela dos juros de mora que haviam sido peticionados implica a parcial procedência dos embargos e a repartição das custas entre a Embargante e a Embargada.


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III.

Matéria de facto

(…).

Em face de tudo o exposto, a matéria de facto provada – com a alteração efectuada ao ponto 5 e a rectificação do ponto 17 – é a seguinte:

1. Mediante outorga de Escritura Pública celebrada a 27/12/2017, o T..., S.A. integrou por fusão e incorporação o B...., com a transmissão da totalidade do património, nomeadamente, direitos e obrigações e posições para a sociedade incorporante, e determinada a transferência de um conjunto de direitos e obrigações que constituíam activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do B.... registados na contabilidade para o T..., S.A..

2. O Banco exequente é dono de uma Livrança caução com o n.º ...89, no valor de € 465.969,66 (quatrocentos e sessenta e cinco mil, novecentos e sessenta e nove euros e sessenta e seis cêntimos), emitida em 18.12.2015 e vencida em 02.06.2020, subscrita pela executada U..., S.A., e avalizada pelo executado, AA.

3. A identificada Livrança foi dada em garantia do bom cumprimento de todas e quaisquer responsabilidades emergentes do Contrato de Mútuo celebrado em 18 de Dezembro de 2015 com o n.º ...96, conforme documento particular autenticado com escritura de hipoteca, junto como DOC. 3 do requerimento executivo, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

4. A quantia mutuada foi creditada na conta de depósitos à ordem n.º ...8, da qual a executada é titular no T..., S.A..

5. Todos os movimentos efectuados na referida conta da Executada, na qual foi posto à disposição o capital mutuado, foram feitos de acordo com as instruções da Executada e com o seu conhecimento.

6. Nos termos da cláusula número um do contrato aludido em 3. a sociedade Executada, obrigou-se a amortizar o capital mutuado em 61 prestações trimestrais e sucessivas até à data de vencimento.

7. Para garantia do bom cumprimento e pagamento da quantia mutuada acima identificada, respectivos juros à taxa contratada, acrescida da sobretaxa de 3% em caso de mora e a título de cláusula penal, e ainda das despesas judiciais e extrajudiciais emergentes do contrato, fixadas para efeitos de registo em € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) e € 30.000,00 (trinta mil euros), respectivamente, a Executada mutuária constituiu a favor do Banco Exequente hipotecas sobre 4 (quatro) imóveis, identificados na Escritura do contrato de mútuo.

8. Na presente data mantêm-se em vigor as hipotecas sobre o Prédio Urbano composto por terreno para construção, sito em ... lote um, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...55, da freguesia ..., concelho ..., inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...17, com registo de hipoteca a favor da Exequente pela inscrição AP ...51, de 18/12/2015 e AP ...98 de 18/01/2019; Prédio urbano composto por terreno para construção, sito em ... lote dois, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...56, da freguesia ..., concelho ..., inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...18, com registo de hipoteca a favor da Exequente pela inscrição AP ...51, de 18/12/2015 e AP ...98 de 18/01/2019; Prédio urbano composto por terreno para construção, sito em ... lote três, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...57, da freguesia ..., concelho ..., inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...19, com registo de hipoteca a favor da Exequente pela inscrição AP ...51, de 18/12/2015 e AP ...98 de 18/01/2019; e Prédio urbano composto por terreno para construção, sito em ... lote quatro, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...58, da freguesia ..., concelho ..., inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...22, com registo de hipoteca a favor da Exequente pela inscrição AP AP ...51, de 18/12/2015 e AP ...98 de 18/01/2019;

9. O exequente através de carta datada de 18 de Fevereiro de 2020 enviada para a sociedade executada e para o avalista interpelou-os para, no prazo de 08 dias, procederem ao pagamento das prestações do aludido contrato, em dívida e devidas nos dias 30.09.2019 e 31.12.2019, no valor total de €17.398,68, com a advertência de que, na falta de pagamento, considerariam a totalidade do crédito vencido e o mútuo resolvido por incumprimento definitivo.

10. O exequente através de carta datada de 02.06.2020 enviada para a sociedade executada e para o avalista notificou-os que considerava a totalidade do crédito vencido e o mútuo resolvido por incumprimento definitivo, interpelando-os ao pagamento do capital de €446.427,08, juros de mora de € 16.069,97, juros de €2.720,97 e imposto de selo de €751,64 e informando-os para o preenchimento da aludida livrança com data de vencimento a 02.06.2020.

11. Até à data de vencimento da livrança a Embargante sempre aceitou as obrigações que decorriam da outorga do contrato que lhe está subjacente;

12. Sob a forma de conta-corrente, em 30.06.2006, o B... concedeu a AA e mulher EE, um financiamento pelo montante máximo de 9.000.000,00€, destinado ao apoio à construção de um empreendimento imobiliário de 123 frações denominado “...” que AA levava a cabo em ..., no âmbito da atividade de promoção imobiliária, como empresário em nome individual

13. Este financiamento importou a constituição de hipoteca por aqueles mutuários, sobre nove prédios propriedade de ambos.

14. Em 15.05.2009 o B..., denunciou o contrato de conta-corrente para o seu termo, em 30.06.2009 e as partes encetaram negociações para a regularização do remanescente em dívida no montante de 8.750.000,00€.

15. Na sequência das referidas negociações, em 29.12.2009, foram contratados dois mútuos: um no valor de 8.000.000,00€ e outro no valor de 750.000,00€, ambos titulados por AA e EE, que se destinaram a regularizar aquele remanescente e mantiveram-se, para garantia daquela quantia, as hipotecas sobre 9 prédios daqueles mutuários.

16. Os financiamentos aludidos em 15. vieram a ser reestruturados com redução do spred e alongamento do prazo de amortização e a divisão do financiamento por AA e mulher, com uma dívida de €3.631.117,79, tendo sido celebrado com a U..., S.A um mútuo no montante de €3.500.000,00, com prestação de garantias reais por parte desta última, destinado a amortizar parte do financiamento original de AA e mulher.

17. Em 18.12.2015, encontrando-se a U..., S.A em mora por prestações de capital e juros relativamente ao financiamento referido em 16. foi contratado por esta última, o financiamento aludido em 3.


*

Não foram julgados provados os seguintes factos:

a) o financiamento subjacente à emissão da livrança se destinou a amortizar €3.500.000,00 que se encontravam em dívida, perante o Exequente, por AA e mulher;

b) o financiamento subjacente à emissão da livrança se destinou a ampliar as garantias já concedidas aos bens da Executada U..., S.A;

c) o valor de financiamento subjacente à emissão da livrança foi integralmente utilizado na atividade em nome individual exercida pelo Executado AA, nomeadamente na construção de 123 fogos;

d) o aludido financiamento tenha beneficiado apenas o casal composto pelo Executado AA e mulher;

e) por que se encontravam AA e a EE em mora por prestações de capital e juros relativamente aos financiamentos referidos em 15. e 16. foi contratado o financiamento aludido em 3..


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IV.

Fixada a matéria de facto, importa agora analisar essa matéria à luz das normas jurídicas aplicáveis, apreciando as questões que, a esse propósito, são suscitadas.

1. Questão referente à nulidade do contrato de mútuo que deu origem ao título executivo (livrança)

Sustenta a Apelante que o contrato de mútuo, no valor de 3.500.000,00€ (referido no ponto 16) é nulo, à luz do disposto no n.º 3 do art.º 6.º do CSC, por ter correspondido a prestação de garantias a dívidas de outras entidades (AA e mulher) que teriam sido as únicas beneficiárias, sem que tivesse existido qualquer justificado interesse próprio da sociedade garante (a Embargante/Apelante). Mais sustenta que, ainda que não se tenha como demonstrada a inexistência desse interesse, sempre havia de considerar-se que a Embargada não ilidiu a presunção estabelecida na norma citada, devendo entender-se – ao contrário do que se entendeu na decisão recorrida – que era a Embargada que tinha o ónus de provar o interesse da Embargante.

Consequentemente e por força da nulidade desse mútuo, nulo seria também o mútuo que está em causa na presente execução, tendo em conta que este foi celebrado para regularizar as responsabilidades decorrentes do mútuo inicial.

Analisemos, portanto, a questão.

O art.º 6.º do CSC – invocado pela Apelante para fundamentar a sua pretensão – dispõe nos seguintes termos:

1 - A capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular.

2 - As liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são havidas como contrárias ao fim desta.

3 - Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.

4 - As cláusulas contratuais e as deliberações sociais que fixem à sociedade determinado objecto ou proíbam a prática de certos actos não limitam a capacidade da sociedade, mas constituem os órgãos da sociedade no dever de não excederem esse objecto ou de não praticarem esses actos.

5 - A sociedade responde civilmente pelos actos ou omissões de quem legalmente a represente, nos termos em que os comitentes respondem pelos actos ou omissões dos comissários”.

Tendo em conta o disposto na norma citada, além das restrições específicas (impostas por lei ou pela circunstância de os direitos e/ou obrigações serem inseparáveis da personalidade singular), a capacidade das sociedades estará limitada pelo seu fim, abrangendo tudo o que seja necessário ou conveniente à prossecução desse fim e com exclusão de todos os actos que se afastem desse fim e que lhe sejam alheios (seja porque são contrários a tal fim, seja porque não são necessários ou sequer convenientes para a sua prossecução).

A verdade é que a interpretação da citada disposição legal – na parte em que se reporta às limitações estabelecidas em função do fim da sociedade – está longe de ser consensual, seja no que toca ao enquadramento dessas limitações na figura jurídica da “capacidade/incapacidade”, seja no que toca às consequências aplicáveis ao acto que se afasta do fim da sociedade.

Há, na verdade, quem entenda que o que ali se estabelece não é uma incapacidade da sociedade para a prática dos actos que se afastem ou não se conformem com o seu fim.

É esse o entendimento de Oliveira Ascensão, quando afirma[1] - a propósito do art.º 160.º do CC (cujo teor coincide com o disposto no n.º 1 do art.º 6.º do CSC) – que esta matéria “…não tem praticamente nada que ver com a capacidade de direito”; que, ressalvando situações extremas, a limitação pelo fim não significa uma limitação da capacidade e que a eventual anomalia reside no desvio em relação ao fim e não na incapacidade. Concretizando, diz: que a capacidade se situa perante categorias de actos e não perante um acto singular; que só a impossibilidade de prática de determinado tipo de acto reduz a incapacidade; que a pessoa colectiva pode praticamente realizar actos de todas as categorias e ser titular dos direitos deles derivados, apenas não podendo praticá-los de maneira a afastar-se dos seus fins e que a circunstância de estar vedado um acto por configurar um desvio em relação ao fim não tem que ver a capacidade. Nessas circunstâncias e considerando não estar em causa uma verdadeira incapacidade, conclui que o acto que se afasta dos fins da pessoa colectiva não é um acto nulo (seria apenas anulável) e o seu vício não poderia ser oposto a terceiros de boa fé.

Em sentido semelhante, pronuncia-se Pedro de Albuquerque[2], considerando: que o citado art.º 6.º se limita a afirmar positivamente a capacidade das sociedades para a prática de determinados actos, mas não contém qualquer regra delimitadora da sua esfera de incapacidade; que, para além do domínio dos direitos de personalidade ou de restrições normativas expressas caracterizadas pela sua generalidade, vigora a regra da capacidade genérica da pessoa colectiva e não a da capacidade especifica; que o problema colocado relativamente a actos que se desviem dos fins da sociedade é um problema de simples vinculação e não de capacidade e que tais actos (designadamente liberalidades ou prestação de garantia a dívida de terceiro) – praticados pelos respectivos órgãos – vinculam a sociedade a não ser que o terceiro saiba ou deva saber que o acto não respeita à sociedade.

Em sentido contrário, pronuncia-se Osório de Castro[3], dizendo que está em causa uma verdadeira incapacidade que origina a nulidade do acto. No mesmo sentido, poderá ver-se também Alexandre de Soveral Martins[4] que, colocando também a questão ao nível da capacidade, entende que o acto que se afasta dos fins da sociedade é um acto nulo, nos termos do art.º 294.º do CC, por violar preceito de carácter imperativo, ou seja, o preceito legal que estabelece os limites da capacidade da sociedade. Também Mota Pinto[5] –  reportando-se ao disposto no art.º 160.º do CC – trata a questão ao nível da capacidade/incapacidade, considerando que o acto que se desvie do fim da pessoa colectiva está fora da sua capacidade jurídica e, como tal, é nulo.

Ora bem.

Salvo o respeito devido aos subscritores dessa posição doutrinária, parece que não faria muito sentido que o legislador tivesse tido a preocupação de delimitar positivamente o âmbito da capacidade da sociedade se não fosse para o efeito de, simultaneamente e a contrario, delimitar a esfera da sua incapacidade; se o legislador diz que a capacidade da sociedade tem um determinado conteúdo, haverá de entender-se que tudo aquilo que não se inclui nesse conteúdo não cabe naquela capacidade. Tão pouco se encontraria qualquer utilidade na referida disposição legal (n.º 1 do art.º 6.º), caso se entendesse – como entendem os subscritores da referida posição – que a sociedade tem uma capacidade genérica e não limitada pelo seu fim.

Está em causa, naturalmente, uma capacidade/incapacidade que não é definida ou delimitada em função do tipo ou categoria dos actos, mas apenas em função da finalidade que com eles se pretende alcançar e da conformidade (ou desconformidade) dessa finalidade com a realização ou concretização de um interesse próprio da sociedade que é medido pela necessidade ou conveniência do acto à prossecução do seu fim; a sociedade tem, portanto, capacidade para a prática de todos os actos, independentemente da sua natureza ou da sua categoria – ressalvando, naturalmente, aqueles que lhe são vedados por lei e os que são inseparáveis da personalidade singular –, mas apenas se eles forem necessários ou convenientes à prossecução do seu fim. Trata-se, portanto, de uma incapacidade que, por força da natureza que é inerente a uma personalidade colectiva, não pode ser definida em abstracto tendo como referência determinada categoria de actos e que apenas pode ser definida em relação a cada acto especifico em função das concretas circunstâncias que o rodearam e da sua finalidade. Mas nem por isso deixará de ser uma incapacidade, conforme foi expressamente considerado pelo legislador no citado art.º 6.º.

Refira-se, por outro lado, que o fim da sociedade – em função do qual é estabelecida a capacidade da sociedade, nos termos do n.º 1 do citado art.º 6.º – não corresponde ao seu objecto social, mas sim ao seu fim, ou seja, o lucro (cfr. art.º 980.º do CC). Com efeito, resultando claramente do n.º 4 do citado art.º 6.º do CSC que o objecto social não limita a capacidade da sociedade (ainda que os respectivos órgãos sociais tenham o dever de não o exceder), parece ser evidente a conclusão de que, ao delimitar, no n.º 1, a capacidade da sociedade em função do seu fim, o legislador terá pretendido reportar-se a realidade diferente do respectivo objecto social, tudo apontando para o facto de ter pretendido delimitar aquela capacidade em função do fim que, pelo menos em regra, corresponde ao lucro[6].

Entendemos, portanto, que o que está em causa no citado art.º 6.º é efectivamente a delimitação da capacidade da sociedade e, consequentemente, a delimitação da sua incapacidade.

Conforme se referiu, o n.º 1 da citada disposição legal delimita essa capacidade/incapacidade em função da necessidade ou conveniência do acto em causa – com os direitos e obrigações inerentes – para a prossecução do fim da sociedade (fim que, conforme também referimos, corresponde ao lucro); a sociedade terá capacidade para a prática do acto se ele for necessário ou conveniente à prossecução desse fim; caso contrário, não a terá.

No sentido de concretizar esse princípio ou norma de carácter mais geral, os n.ºs 2 e 3 aludem a dois tipos de actos – as liberalidades e a prestação de garantias (reais ou pessoais) –, aí se estabelecendo as circunstâncias em que tais actos se conformam (ou não) com o fim da sociedade. Determina-se, no que toca às liberalidades, que elas não serão havidas como contrárias ao fim da sociedade desde que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, e determina-se, no que toca à prestação de garantias (reais ou pessoais) que elas se consideram contrárias ao fim da sociedade a não ser que exista justificado interesse próprio da sociedade garante ou caso se trate de sociedade em relação de domínio ou de grupo.

Analisemos então, à luz dessas considerações, o caso dos autos.

Pensamos ser claro que o acto que está subjacente à livrança dada à execução – o mútuo celebrado em 18/12/2015 a que se reporta o ponto 3. da matéria de facto – não pode ser visto, quando encarado isolada e individualmente, como um acto estranho ao fim da sociedade (a Apelante) que, como tal, se deva considerar excluído da sua capacidade por não ser necessário ou conveniente à prossecução do seu fim. Na verdade, conforme se julgou provado (cfr. ponto 17), esse mútuo foi contratado para fazer face a responsabilidades que a própria Apelante havia assumido e relativamente às quais se encontrava em mora (as responsabilidades resultantes do mútuo, referido no ponto 16, que ela – a Apelante – havia contratado e que lhe havia sido concedido no valor de 3.500.000,00€) e, portanto, é certo que esse acto foi praticado no interesse da própria Apelante, configurando-se como acto necessário ou conveniente à prossecução do seu fim.

A conclusão já poderá ser outra se esse acto (o mútuo de 18/12/2015) for encarado conjuntamente com o mútuo anterior que lhe deu origem (o referido no ponto 16).

Conforme resulta da matéria de facto, AA e mulher tinham responsabilidades vencidas perante o B.... emergentes de um financiamento que lhes havia sido concedido em 2006 com vista à construção de um empreendimento imobiliário no âmbito da atividade de promoção imobiliária que o mesmo exercia como empresário em nome individual. Com vista à regularização do valor que estava em dívida com referência a esse mútuo, foram posteriormente celebrados dois mútuos pelos referidos AA e mulher e foram esses mútuos e o incumprimento das responsabilidades inerentes que vieram a ser objecto de reestrutuação com divisão do valor em dívida entre os devedores iniciais e a sociedade (a Apelante), contratando esta um mútuo no valor de 3.500.000,00€ que se destinou a amortizar parte do financiamento original de AA e mulher e cujo incumprimento veio a determinar a celebração do mútuo que está na origem da livrança dada à execução.

É certo, portanto, que o mútuo referido no ponto 16 foi celebrado – e as responsabilidades inerentes foram contraídas – para fazer face a uma dívida de AA e mulher e não para fazer face a necessidades da própria Apelante e, nessa medida, quer a prestação de garantias reais nesse mútuo, quer a celebração do mútuo posterior que deu causa à livrança dada à execução (e que se destinou a amortizar o mútuo anterior), podem ser vistos também como actos praticados em benefício de AA e mulher.

Poder-se-á, portanto, concluir que, por força dos actos em causa, a sociedade (Apelante) assumiu uma dívida (no valor de 3.500.000,00€) que era de AA e mulher (cfr. art.º 595.º do CC) e prestou garantias reais em garantia do cumprimento da obrigação que assumiu, situação que, conforme disposto no art.º 940.º, n.º 1, do CC, corresponderá a uma doação se for efectuada a título gratuito e por espírito da liberalidade.

 Tal situação remete-nos para o disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 6.º do CSC de onde resulta: i) que as liberalidades são havidas como contrárias ao fim da sociedade (e por isso excluídas da sua capacidade) a não ser que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade; ii) que a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades são consideradas como contrárias ao fim da sociedade (e por isso excluídas da sua capacidade), salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.

No caso em análise, nada resultou provado que permita considerar aqueles actos como verdadeiras liberalidades da sociedade Apelante (não sabemos se eles foram ou não efectuados de forma gratuita, sem qualquer contrapartida e por mero espírito de liberalidade) e nada resultou provado a propósito da existência ou inexistência de qualquer interesse justificado da sociedade nos actos que praticou em benefício de AA e mulher. Refira-se que a mera circunstância de o valor em questão (mutuado à Apelante) ter sido utilizado em benefício de AA e mulher (para amortização de uma dívida destes) não basta para afirmar que está em causa uma liberalidade e que a sociedade não tinha qualquer interesse no acto. Na verdade, ainda que aquele valor tivesse revertido para pagamento de uma dívida de terceiros, poderão ter sido acordadas contrapartidas para a sociedade (o que excluiria o seu carácter gratuito) e poderia ter existido qualquer outro interesse relevante da sociedade no acto em questão.

Coloca-se, portanto, a questão de saber a quem pertencia o ónus de prova desses factos e, nesta matéria, também não existe consenso na doutrina e jurisprudência.

Pedro de Albuquerque[7] – sustentando, como acima se referiu, que não está em causa uma incapacidade – entende que não recai sobre o terceiro titular do crédito garantido o ónus de provar a existência de um interesse social capaz de justificar a concessão da garantia concedida por uma sociedade comercial, sendo certo que isso colidiria frontalmente com o disposto nos artigos 342.º, n.º 2 e 343.º, n.º 1, do CC.

A nossa jurisprudência também vem entendendo, de forma largamente maioritária (ao que nos foi dado perceber), que é a sociedade garante ou quem pretenda prevalecer-se da nulidade que tem o ónus de provar a inexistência de interesse relevante para aqueles efeitos, seja porque está em causa um facto impeditivo do direito resultante do acto em questão, seja porque a pessoa garantida não teria, na prática, qualquer possibilidade real de provar a existência de um interesse próprio da sociedade garante na prestação da garantia[8]

Em sentido contrário – ou seja, no sentido de que é quem pretende prevalecer-se da validade do acto que tem o ónus de provar a existência daquele interesse – pronunciam-se Alexandre de Soveral Martins[9] e Osório de Castro, afirmando este[10] que “…por efeito dos n.ºs 2 e 3, a inexistência de um espírito de liberalidade, ou o facto de a sociedade agir por motivos não altruísticos, mas interessados – conseguir vantagens da contraparte ou de terceiros –, intervém como facto impeditivo da incapacidade cominada pelo n.º 1…” e que, como tal, é o interessado na validade do acto que tem que alegar e provar a existência de justificado interesse próprio enquanto causa impeditiva da nulidade, ou seja, “a sociedade que invoque a nulidade da prestação de garantias a dívidas de outras entidades só tem de provar o carácter gratuito do acto; é ao beneficiário da garantia que, para repelir essa arguição, incumbe o ónus de demonstrar a existência de um justificado interesse próprio da sociedade garante (o qual se presume, juris et de jure, havendo uma relação de domínio ou de grupo entre as sociedades garante e garantida)”.

Também Miguel Teixeira de Sousa[11] se pronuncia nesse sentido, sustentando, em linhas gerais: que o n.º 3 do citado art.º 6.º estabelece uma presunção (de direito) de que a prestação de garantias a dívidas alheias é contrária aos fins da sociedade; que, nos termos do art.º 350.º, n.º 2, do CC, tal presunção só pode ser ilidida através da prova do contrário, ou seja, de que a sociedade garante tem interesse na prestação da garantia ou de que se trata de uma sociedade em relação de domínio ou de grupo e que a sociedade garante, gozando da referida presunção, nada tem a provar, recaindo sobre o interessado que se queira prevalecer do acto o ónus de ilidir essa presunção, provando que a sociedade garante tem interesse na prestação da garantia ou de que se trata de uma sociedade em relação de domínio ou de grupo. A citada disposição legal estabeleceria, portanto, uma regra (a presunção) e uma excepção à regra que corresponderia ao facto que contraria e ilide aquela presunção e que, naturalmente, teria que ser provado por quem quer beneficiar dessa excepção.

No mesmo sentido, se pronunciaram também os Acórdãos do STJ de 16/11/2017 (proferido no processo n.º 1721/14.6T8VNG-E.P1.S1) e da Relação de Coimbra de 07/09/2020 (proferido no processo n.º 142/19.9T8FND-B.C1)[12].

A questão é, obviamente, controversa e discutível, como fica evidenciado pela divisão doutrinal e jurisprudencial que acabamos de retratar. Mas, em todo o caso, inclinamo-nos para a posição de quem entende que quem pretende prevalecer-se da invalidade/nulidade é que terá o ónus de demonstrar a inexistência de qualquer interesse relevante para os efeitos previstos na norma citada. É essa, aliás, conforme referimos, a posição que tem prevalecido na nossa jurisprudência e não encontramos razões para dela discordar.

Antes de mais, caberá dizer que as dificuldades de prova – a que, por vezes, se alude a propósito desta matéria – não integram qualquer critério relevante para efeitos de apuramento do ónus da prova. Refira-se que, quer se entenda que cabe a quem invoca a nulidade o ónus de provar a inexistência daquele interesse, quer se entenda que cabe a quem pretende prevalecer-se da validade do acto o ónus de provar a existência daquele interesse, estará sempre em causa uma prova difícil. No primeiro caso, porque está em causa um facto negativo (que será sempre mais difícil de provar do que um facto positivo) e, no segundo caso, porque se coloca o ónus de provar aquele interesse a cargo de pessoa (o credor) que dificilmente terá conhecimento aprofundado da vida da sociedade em termos de poder alegar e provar a existência de um interesse relevante da sociedade no acto em questão. De qualquer forma, como se disse, essas dificuldades de prova não relevam para efeitos de atribuição do ónus de prova; elas poderão ser atendidas e consideradas pelo julgador em termos de menor exigência probatória para fundar a sua convicção e com maior ponderação de factos indiciários, mas não relevam para determinar a quem pertence o ónus da prova. As regras de repartição do ónus da repartição do ónus da prova são as que se encontram previstas nos artigos 342.º a 344.º do CC e aí não se incluem aquelas dificuldades.

Resulta, no entanto, das normas referidas – mais concretamente do art.º 342.º – que, em regra e ressalvando as situações legalmente previstas, aquele que invoca um direito tem o ónus de provar os factos constitutivos desse direito, cabendo àquele contra quem o direito é invocado o ónus de provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito em questão.

  Ora, apresentando-se o credor – como acontece no presente caso – a reclamar o seu direito, no pressuposto (que, apesar de tudo, é o normal) da validade do acto que operou a constituição desse direito, será seguro afirmar que a invalidade/nulidade desse acto, invocada pelo devedor, corresponde a um facto impeditivo do direito que contra ele está a exercido, pelo que, à luz do disposto no citado art.º 342.º, será ele (devedor) que tem o ónus de provar esse facto, provando os factos dos quais depende a existência dessa nulidade, o que, no caso e à luz do disposto no art.º 6.º do CSC, equivale a demonstrar que não existe qualquer interesse justificado da sociedade na prestação da garantia e que não está em causa qualquer sociedade em relação de domínio ou de grupo pois são esses os factos que determinam a nulidade do acto por incapacidade da sociedade.

Uma das posições acima mencionada (a posição contrária àquela que aqui adoptamos) faz uma cisão/separação do n.º 3 do citado art.º 6.º em duas partes: a primeira consignaria a regra da nulidade do acto, estabelecendo uma presunção de que o acto de prestação de garantias pela sociedade é contrário ao fim da sociedade; a segunda consignaria a excepção, estabelecendo os factos que teriam aptidão para ilidir aquela presunção e afastar aquela nulidade. Quem invocasse a nulidade nada teria, portanto, a provar porque beneficiava da presunção e seria a parte que se pretende aproveitar do acto e da sua validade que teria o ónus de ilidir aquela presunção, provando que a sociedade garante tinha justificado interesse próprio na prestação da garantia ou que estava em causa uma sociedade em relação de domínio ou de grupo.

No entanto, ainda que tal interpretação possa ter algum apoio na letra da lei, pensamos não haver razões bastantes para a acolher.

Pensamos, na verdade, que o legislador não pretendeu ali estabelecer qualquer presunção legal e, por essa via, regular a repartição do ónus da prova; o que terá pretendido foi apenas deixar expressas as concretas circunstâncias que relevariam para o efeito de concluir se a prestação de garantias é ou não contrária ao fim da sociedade, determinando que tal acto não é contrário a esse fim quando exista justificado interesse próprio da sociedade garante ou quando se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo e que, consequentemente, o acto é contrário a esse fim quando esse interesse não exista e não esteja em causa sociedade em relação de domínio ou de grupo. Na verdade, se o legislador tivesse pretendido efectivamente estabelecer uma presunção (sabendo que tal circunstância tem importantes implicações ao nível de repartição do ónus da prova), teria, naturalmente, melhores formas para o fazer e não deixaria de o fazer de forma expressa e clara – como faz habitualmente – ao invés de o fazer de forma indirecta ou dúbia.

Veja-se que – no sentido de concretizar o n.º 1, porque, em bom rigor, é isso que está em causa –, também se poderia dizer que se considera contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades quando não exista justificado interesse próprio da sociedade garante e não se trate de sociedade em relação de domínio ou de grupo; o sentido seria o mesmo (pensamos nós) e nada nos faz pensar que a opção pela formulação que ficou vertida no texto legal tenha tido a intenção de estabelecer qualquer presunção (que ali não foi expressamente declarada) e de, por essa via, regular a repartição do ónus da prova, alterando a regra legal de que quem invoca a nulidade (seja como facto constitutivo de qualquer direito que venha invocar, seja como facto impeditivo de qualquer direito que contra ele seja invocado) é que tem o ónus de provar os factos respectivos, ou seja, os factos que produzem e determinam essa nulidade.

Pensamos, portanto, em face do exposto, que era a Embargante/Apelante quem tinha o ónus de provar a nulidade do acto que veio invocar como facto impeditivo do direito que contra ela estava a ser exercido pelo Exequente e, portanto, era ela que tinha o ónus de provar que não tinha qualquer interesse próprio no acto. E essa prova não foi feita.

Importa notar, além do mais, que quem defende a tese de que o ónus de prova da existência daquele interesse recai sobre aquele que pretende prevalecer-se da validade do acto também parece entender que a aplicação do disposto no n.º 3 do citado art.º 6.º pressupõe que esteja em causa uma prestação de garantia efectuada a título gratuito. Ou seja, a sociedade – ou quem pretenda prevalecer-se da nulidade – teria que fazer a prova de que a prestação da garantia havia sido efectuada a título gratuito (sem qualquer contrapartida) e só depois dessa prova se colocaria a questão do ónus de prova a propósito da existência (ou não) de interesse próprio da sociedade ou de estar (ou não) em causa uma sociedade em relação de domínio ou de grupo.

Atente-se, para o efeito, nas seguintes palavras de Osório de Castro[13]:  “…o art. 6.º, n.º 3, do C.S.C. só tem em vista a prestação de garantias a dívida de terceiros efectuada a título gratuito. Se a sociedade receber uma contrapartida e o negócio for, por conseguinte, oneroso, a conformidade com o fim social (com o escopo lucrativo) está ipso facto assegurada, pelo que a capacidade da sociedade decorrer logo do disposto no art. 6.º, n.º 1. Faltando a contrapartida é que será caso para indagar se não haverá porventura um interesse económico alheio ao conteúdo do acto – hipótese em que o acto reentrará, por força do n.º 3, na órbita da capacidade de que o n.º 1 o expulsara” e “a sociedade que invoque a nulidade da prestação de garantias a dívidas de outras entidades só tem assim de alegar e provar o carácter gratuito do acto; é ao beneficiário da garantia que, para repelir essa arguição, incumbe o ónus de demonstrar a existência de um justificado interesse próprio da sociedade garante (o qual se presume, juris et de jure, havendo uma relação de domínio ou de grupo entre as sociedades garante ou garantida” (sublinhados nossos).

Também o Acórdão da Relação de Coimbra de 07/09/2020 (acima citado) que segue a mesma posição doutrinal em matéria de ónus de prova da existência daquele interesse, pressupõe que esteja previamente provado que a prestação de garantias tenha sido efectuada a título gratuito, dizendo, designadamente: que “...a sociedade garante goza/beneficia da presunção de que a garantia gratuita (pessoal e real) prestada a uma dívida alheia é contrária aos seus fins, pelo que, para além da gratuitidade da garantia, nada tem a provar” e que “…provando-se que uma sociedade prestou garantia a uma dívida de outra entidade (…) e provando-se que essa garantia foi prestada gratuitamente (…), há que concluir, nada mais estando consignado como provado, pela nulidade do ato/garantia prestado; razão pela qual, para evitar tal desfecho, aquele que invoca e quer beneficiar de alguma das exceções previstas na 2.º parte do art. 6.º/3 do CSC, tem que alegar e provar os factos que consubstanciam o justificado interesse próprio da sociedade garante ou a relação de domínio ou de grupo, para que a conclusão inicial não perdure e a prestação da garantia não venha a ser considerada contrária ao fim da sociedade garante” (sublinhados nossos).

Ou seja, sustentam os defensores da referida tese que a sociedade – ou quem queira prevalecer-se da nulidade –, ainda que possa estar dispensada do ónus de provar a inexistência de interesse próprio da sociedade e o facto de não estar em causa uma sociedade em relação de domínio ou de grupo, sempre terá que provar que a prestação de garantia foi efectuada a título gratuito (sem qualquer contrapartida, portanto).

Ora, a Apelante não provou que estivesse em causa um acto gratuito por não ter existido qualquer contrapartida (designadamente uma contrapartida que tivesse sido acordada com AA e mulher em troca do acto que a Apelante praticou em seu benefício), sendo certo que nada se provou a propósito dos acordos celebrados – designadamente com os referidos AA – que estiveram subjacentes aos actos aqui em causa.

Assim, também por esta razão, não seria possível concluir pela nulidade do acto em causa.

Refira-se, por último, que, na nossa perspectiva, a situação dos autos nem sequer deverá ser resolvida à luz do n.º 3 do citado art.º 6.º, mas sim à luz do n.º 2, porque, em rigor, não está em causa uma prestação de garantia, mas sim uma eventual liberalidade.

As garantias reais prestadas pela sociedade Apelante – referidas no ponto 16 – não se inserem, pelo menos directamente, no âmbito de previsão daquele n.º 3 porque, em bom rigor, não foram prestadas para garantir dívidas de terceiro, mas sim para garantir uma dívida da própria Apelante emergente do contrato de mútuo por ela celebrado (cfr. ponto 16). O acto que releva – em termos directos e imediatos – para efeitos de eventual incapacidade da sociedade é o acto por via do qual contratou o referido mútuo com destino à amortização de dívida de terceiros (AA e mulher) e que corresponde, na prática, à assunção da dívida desses terceiros (cfr. art.º 595.º do CC). 

Ora, ainda que haja quem qualifique a assunção de dívida como garantia para os efeitos previstos no citado n.º 3 (como dá conta Alexandre de Soveral Martins[14]), a verdade é que, como sustenta o referido autor, a assunção de dívida não corresponde propriamente a uma garantia (real ou pessoal); a assunção de dívida poderá é corresponder a uma liberalidade ou doação se for efectuada a título gratuito e por espírito de liberalidade, conforme resulta do disposto no art.º 940.º, n.º 1, do CC e, nessa medida, a sua conformidade ou desconformidade com o fim da sociedade seria regulada pelo disposto no n.º 2 do citado art.º 6.º e não pelo n.º 3.

Mas, para que tal assunção de dívida pudesse ser qualificada como liberalidade ou doação – e, como tal, contrária ao fim social por não ser considerada usual nas circunstâncias definidas pelo referido n.º 2 – era necessário, antes de mais, que se provasse que ela havia sido efectuada a título gratuito e por espírito de liberalidade (sem qualquer contrapartida). E isso não resultou provado, sendo certo que – conforme já se referiu – nada se provou a propósito dos acordos celebrados – entre a Apelante e os referidos AA – que estiveram subjacentes à referida assunção de dívida e nada se provou a propósito da existência ou inexistência de obrigações que tivessem ficado a cargo de AA e mulher como contrapartida pela assunção da dívida em causa por parte da sociedade.

Em face de tudo o exposto, não podemos ter como verificada e demonstrada a nulidade do acto em causa.

Estando em causa um facto impeditivo do direito que contra ela era invocado, cabia à Embargante/Apelante o ónus de provar os factos em função dos quais era possível concluir pela nulidade do acto/negócio subjacente ao título (livrança), provando: que estava em causa uma liberalidade que devesse ser considerada contrária ao fim da sociedade nos termos previstos no n.º 2 do citado art.º 6.º; que estava em causa uma prestação de garantia em relação à qual não tinha qualquer justificado interesse próprio e que, como tal, devesse ser considerada contrária ao fim da sociedade nos termos previstos no n.º 3 do citado artigo ou que, por qualquer outra razão, o acto/negócio em causa se situava fora do âmbito da sua capacidade que é delimitada pelo n.º 1 do citado artigo por não ser necessário nem conveniente à prossecução do seu fim.

Nada disso resultou provado. Não resultou provado que esteja em causa uma verdadeira liberalidade (sendo certo que não se provou ter inexistido qualquer contrapartida pelo acto que praticou em benefício de AA e mulher); ainda que se entendesse que estava em causa uma prestação de garantia para os efeitos previstos no n.º 3 do citado art.º 6.º, não se provou que a Apelante não tivesse qualquer interesse próprio em prestar essa garantia e não resultou provado qualquer outro facto em função do qual fosse possível concluir que o acto/negócio em questão não era necessário nem conveniente à prossecução do seu fim e que, como tal, se situava fora do âmbito da sua capacidade nos termos previstos no n.º 1 do citado art.º 6.º.

Nessas circunstâncias e no que toca a esta questão, improcede o recurso e confirma-se a sentença recorrida.

2. Questão referente aos juros compensatórios

A Embargante (Apelante) havia invocado – no requerimento inicial de embargos – a inexigibilidade ou iliquidez da quantia exequenda no que diz respeito aos juros compensatórios (2.720,97€), alegando que essa liquidação não encontrava suporte no texto do contrato dado à execução, nem a Exequente indicava como havia chegado a esse valor.

Importa recordar que, segundo alegado no requerimento executivo, o valor inscrito na livrança (465.969,66€) incluía o capital em dívida (446.427,08€), juros de mora vencidos à taxa contratual acrescida da sobretaxa de 3% a título de cláusula penal (16.069,97€), juros compensatórios (2.720,97€) e imposto de selo (751,84€).

A sentença recorrida julgou improcedente essa questão, dizendo que, em face do contrato e dos elementos que resultam dos autos, aquela quantia estava devidamente justificada, fundamentando essa afirmação nos seguintes termos:

Relativamente aos juros remuneratórios (qualificados como compensatórios no RE), as condições particulares do contrato (II) estabelecem o seguinte:

Reembolso: 183 (cento e oitenta e três) meses; durante o qual se vencerão prestações trimestrais de capital e juros, tendo a primeira prestação deste segundo período de reembolso vencimento em 30/03/2016.

Por sua vez, nas Condições Gerais do contrato ficou acordado, na cláusula 2.ª, ponto 2, que os juros serão calculados sobre o capital em dívida e pagos postecipadamente, com a periodicidade definida nas Condições Particulares, a partir da data em que o montante do empréstimo for creditado na conta do/a(s) mutuário/a(s).

Confira-se também a este propósito o quadro de amortização, relativo ao primeiro período de contagem de juros, integrante do contrato de empréstimo em causa, onde se discriminam os valores de amortização e de juros relativos aos 4 primeiros trimestres (1.º ano).

As partes acordaram, pois, que os juros seriam pagos ao fim de cada período de três meses.

Sabemos, igualmente, que a embargante não pagou as prestações em dívida e devidas a 30.09.2019 e a 31.12.2019, e tendo o contrato sido resolvido em Junho de 2020, o Banco reportou o vencimento da totalidade da dívida à data do incumprimento, ou seja, Setembro de 2019.

No vertente caso, apura-se que os juros remuneratórios de €2.720,97€, incluídos no montante da livrança (e que não foram incluídos na parcela dos juros de mora) são aqueles que se encontravam em dívida em Setembro de 2019 mas que diziam respeito ao período trimestral anterior (vencidos em Junho), tendo sido calculados à taxa de juro contratual de 2,347%, ou seja, sem a sobretaxa, razão pela qual foram autonomizados. Já que os juros de mora foram calculados desde Setembro de 2019 até à data de preenchimento da livrança, à taxa contratual de 2,347% acrescidos da sobretaxa de 3%”.

Aparentemente – se bem percebemos – a Apelante não põe em causa a correcção dos cálculos efectuados na decisão recorrida com base nos quais concluiu que os juros compensatórios peticionados estavam justificados e eram devidos. A questão que a Apelante coloca – com fundamento na qual sustenta a procedência dos embargos no que toca a essa quantia – reduz-se apenas ao facto de a Exequente não ter, alegadamente, cumprido o disposto no art.º 716.º, n.º 1, do CPC por não ter especificado e calculado o valor devido, sendo certo que nem sequer fez referência à taxa aplicável para o valor que apurou. Ou seja, a Apelante não põe em causa que o valor em questão seja efectivamente devido, considerando apenas que, em virtude de a Exequente não ter especificado aqueles cálculos no requerimento executivo, dever-se-ia considerar que aquela quantia era ilíquida e que, como tal, não reunia condições de exequibilidade.

Salvo o devido respeito, não assiste razão à Apelante.

Em primeiro lugar, porque nem sequer estava em causa qualquer valor ilíquido que devesse ter sido liquidado no requerimento executivo, sendo certo que o valor dos juros em causa já estava incluído no valor inscrito no título executivo (a livrança) em conformidade com o que, previamente, havia sido comunicado pela Exequente à Executada (cfr. documento junto com o requerimento executivo). Nessas circunstâncias, a questão que a esse propósito poderia ser suscitada pela Executada/Embargante era a indevida inclusão desse valor (ou parte dele) no título (a livrança) por não ser devido e essa questão não foi suscitada.

Em segundo lugar, porque a Exequente indicou e especificou no requerimento executivo – como, aliás, já havia feito em comunicação que, previamente, havia enviado à Executada/Apelante – as várias parcelas (com indicação da origem e valor) que compunham o valor inscrito na livrança, anexando também o contrato celebrado.

Improcede, portanto, esta questão.

3. Questão referente aos juros de mora

Sustenta ainda a Apelante que, na parte relativa a juros de mora, entendeu o Tribunal a quo que a Exequente havia incorrido em erro na respectiva liquidação e que, nessa medida, não poderia ter considerado os embargos como totalmente improcedentes, devendo, ao invés, ter considerado procedentes os embargos naquela parte, com repartição de custas entre Embargante e Embargada nessa medida.

Ao contrário do que sustenta a Apelante, a decisão daquela questão não implicava que se considerassem parcialmente procedentes os embargos, uma vez que tal questão não havia sido suscitada nem era invocada como fundamento dos embargos. Os embargos, nos termos em que foram deduzidos, tinham que ser julgados – como foram – totalmente improcedentes. A redução da quantia exequenda (efectuada pela decisão recorrida), na parte referente aos juros de mora, não resultou da procedência (ainda que parcial) dos embargos, mas sim do indeferimento do requerimento executivo, nos termos do art.º 734.º, n.º 1, do CPC, como, aliás, se disse expressamente na sentença recorrida (cfr. respectiva fundamentação).

De qualquer forma, é certo que o indeferimento do requerimento executivo nessa parte tem que se reflectir na responsabilidade pelas custas, sendo certo que, em relação a esse valor, a custas terão que ser efectivamente suportadas pela Exequente.

Assim, altera-se a condenação em custas, condenando a Exequente a pagar as custas referentes à parte do pedido que foi indeferido, ou seja, na parte referente aos juros de mora vencidos que foram peticionados na medida em que excedam a taxa de 4%; na parte restante, as custas serão suportadas pela Embargante.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).


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V.
Pelo exposto, concedendo-se parcial provimento ao recurso, decide-se:

Ø Alterar o segmento da decisão referente à condenação em custas, nos seguintes termos:
- A Exequente suportará as custas referentes à parte do pedido que foi indeferido, ou seja, na parte referente aos juros de mora vencidos que foram peticionados na medida em que excedam a taxa de 4%;
- No mais, as custas serão suportadas pela Embargante.

Ø Em tudo o mais, confirma-se a sentença recorrida.

As custas do presente recurso serão suportadas pela Apelante e pela Apelada na proporção do respectivo decaimento.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                  (Maria João Areias)

                                                      (Paulo Correia)     

               



[1] Direito Civil, Teoria Geral, Vol. I, 2.ª edição, pág. 263 a 269.
[2] Da Prestação de Garantias por Sociedades Comerciais a Dívidas de Outras Entidades, Revista da Ordem dos Advogados, n.º 57, Vol. I.
[3] Da Prestação de Garantias por Sociedades a Dívidas de Outras Entidades, Revista da Ordem dos Advogados, n.º 56, Vol. II.
[4] Código das Sociedades Comercias em Comentário, Vol. I, 2.ª edição, págs. 120 e segs.
[5] Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição actualizada, págs. 317 a 319.
[6] Alexandre Soveral Martins, ob. cit., págs. 122 e segs.
[7] Da Prestação de Garantias por Sociedades Comerciais a Dívidas de Outras Entidades, Revista da Ordem dos Advogados, n.º 57, Vol. I, págs. 131 e segs.
[8] Neste sentido, os Acórdãos do STJ de 12/03/2019 (processo n.º 11197/14.2T2SNT-F.L1.S2), de 22/05/2018 (processo n.º 3524/12.3YYLSB-A.L1.S1), de 28/05/2013 (processo n.º 300/04.0TVPRT-A.P1.S1), de 07/10/2010 (processo n.º 291/04.8TBPRD – E.P1.S1) e de 17/06/2004 (processo n.º04B1773); o Acórdão da Relação do Porto de 30/05/2011 (processo n.º 1393/08.7TBMAI.P1); o Acórdão da Relação de Lisboa de 08/10/2019 (processo n.º 22173/17.5T8PRT.L1.L1-7) e os Acórdãos da Relação de Coimbra de 05/04/2022 (processo n.º 1820/20.5T8ANS-A.C1), de 08/03/2022 (processo n.º 1763/17.0T8ACB-A.C1) e de 04/05/2021 (processo n.º 142/19.9T8FND-B.C2), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[9] Ob. cit., págs. 128 e 129
[10] Ob. cit., págs. 579, 580 e 593
[11] No Blog do IPPC, post de 15/07/2019, disponível em https://drive.google.com/file/d/1Cw03c9GOcRfH8MSbcQL6QdvT4T-MMj71/view.
[12] Ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[13] Ob. cit., pág. 580 e 593.
[14] Ob. cit., pág. 127, nota 24.