Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3397/20.2T9LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
NÃO ENUNCIAÇÃO DOS FACTOS INDICIADOS E NÃO INDICIADOS
IRREGULARIDADE
Data do Acordão: 11/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: REVOGAÇÃO DO DESPACHO RECORRIDO
Legislação Nacional: ARTIGOS 97.º, N.ºS 1, ALÍNEA B), E 5, 123.º, N.º 2, 283.º, N.º 3, 308.º, N.º 2, E 309.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário:
I – O despacho de não pronúncia, enquanto acto decisório, tem que ser fundamentado, devendo especificar os motivos de facto e de direito da decisão, de forma a permitir a sua impugnação e o reexame da causa pelo tribunal de recurso.

II – Quando a decisão de não pronúncia conhecer do mérito da causa a fundamentação deve conter, também, a enumeração dos factos suficientemente indiciados e não indiciados.

III – Ao contrário do que sucede com o despacho de pronúncia, em que a não enunciação dos factos indiciados e não indiciados determina a sua nulidade, a omissão desta enunciação no despacho de não pronúncia constitui mera irregularidade, que pode ser conhecida oficiosamente por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 123.º do C.P.P.

Decisão Texto Integral:
Relatora: Cândida Martinho
1.ª Adjunta: Maria Fátima Sanches Calvo
2.ª Adjunto: Capitolina Fernandes Rosa

I.Relatório

1.

… findo o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento por falta de indícios suficientes da prática pela arguida dos crimes de exposição ou abandono, maus-tratos, sequestro e devassa da vida privada, ao abrigo do disposto no artigo 227º, nº2, do Código de Processo Penal.

            …, a assistente veio requerer a abertura da instrução, visando a pronúncia da arguida pela prática dos crimes de sequestro, p. e p. pelo artigo 158º, nº1 e 2, c) e de maus tratos previsto e punido pelo artigo 152º-A nº1, a), do C.Penal.

            Finda a instrução, foi proferido despacho que decidiu não pronunciar a arguida.

            2.

            Não se conformando com a não pronúncia da arguida, veio a assistente interpor o presente recurso …

          …

II. Fundamentação


A) Delimitação do Objeto do Recurso

Definindo-se o objeto do recurso pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido, naturalmente sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso, no caso vertente, tendo em conta o teor das conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão a decidir passa apenas por saber se existe suficiente indiciação da prática pela arguida dos crimes mencionados no requerimento de instrução.

      Todavia, antes desta, o tribunal conhecerá de uma outa, do seu conhecimento oficioso, que se prende com a questão de saber se a decisão instrutória padece de invalidade por não conter a enumeração dos factos que considera indiciariamente provados e não provados.

B) Da Decisão Recorrida

C)Apreciação do Recurso

Definindo-se o objeto do recurso pelas conclusões que a recorrente extraiu da respetiva motivação, está em causa no presente recurso saber se existem indícios suficientes nos autos para submeter a arguida a julgamento pela prática dos crimes de sequestro, p. e p. pelo artigo 158º, nº1 e 2, alínea c) e de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152º-A nº1, a), do Código Penal.

E, tendo sido proferido despacho de não pronúncia, do que se trata é no fundo sindicar o juízo sobre as provas indiciárias produzidas em sede de inquérito e instrução feito pela Mma Juiz de Instrução.

Porém, previamente, como já referimos, importa conhecer oficiosamente uma outra questão, a qual se prende com o facto de o despacho recorrido não especificar quais dos factos constantes do requerimento de abertura da instrução se mostram suficientemente indiciados e não indiciados.

Tal questão foi, aliás, suscitada, e bem, pelo Exmo Procurador-Geral Adjunto.

De facto, encontrando-se a factualidade atinente à instrução vertida nos pontos 4 a 54 do requerimento de abertura da instrução … em momento algum da decisão recorrida se vislumbra que a Mma Juiz tenha tomado posição expressa a respeito dos mesmos, especificando os que considera indiciariamente provados e não provados.

Neste particular, a decisão recorrida é omissa.

Em casos como os dos autos, em que a instrução requerida pela assistente  se destina a reagir contra um despacho de arquivamento do Ministério Público, o requerimento de abertura da instrução tem de conter, além do mais, os requisitos exigidos para a acusação, tal como constam do artigo 283º, nº3, aplicável ao requerimento instrutório por força do artigo 287º, nomeadamente a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança (al.b)).

Nestes casos, é o requerimento de abertura da instrução que fixa o objeto do processo, estando o juiz de instrução substancial e formalmente limitado, na pronúncia, aos factos que nele tenham sido descritos e que o assistente considera que deveriam ser objeto da acusação por parte do Ministério Público, assim se percebendo a proibição da pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento instrutório (arts.303º,nº3 e 309º,nº1).

Ora, de acordo com o preceituado no artigo 308º, n.º 1, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificados os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos respetivos factos. Caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
No caso em apreço, foi proferido despacho de não pronúncia.
A jurisprudência tem sido pacífica quanto à necessidade de tal despacho, enquanto ato decisório do juiz, ter necessariamente de ser fundamentado, o que significa que nele devem ser especificados os motivos de facto e de direito da respetiva decisão (art. 97º, n.ºs 1, al. b), e 5), de forma a permitir a sua impugnação e o reexame da causa pelo tribunal de recurso.
Porém, para além desta imposição legal expressa, vem também a doutrina e jurisprudência entendendo que o cumprimento da exigência de fundamentação do despacho de não pronúncia que conheça do mérito da causa, deve passar pela enumeração dos factos suficientemente indiciados e não indiciados.

De facto, para que o tribunal de recurso possa fazer uma valoração lógica da relevância, intensidade e concordância dos indícios, impõe-se, claro está, que se entenda, fora de qualquer dúvida, quais os factos que o tribunal recorrido considerou suficientemente indiciados e não indiciados, só assim se garantindo, segura e responsavelmente, um efetivo direito ao recurso.

Como se referiu no Ac. da RG, de 27 de maio de 2019, proferido no processo 134/17.2T9TMC.G1 “I. A decisão instrutória, seja de pronúncia ou de não pronúncia, é um ato decisório do juiz, e como tal, tem necessariamente de ser fundamentada, com especificação dos motivos de facto e de direito da respetiva decisão. II. O despacho de não pronúncia que seja omisso quanto à enunciação dos factos que se consideram suficientemente indiciados e não indiciados padece de falta de fundamentação”.
E isto porque sobre tais factos forma-se caso julgado, em termos de ser inadmissível a reabertura do processo face à eventual descoberta de novos factos ou meios de prova, ao contrário do que acontece com o inquérito arquivado, que pode ser reaberto se forem descobertos factos novos (art. 279º, n.º 1) -  neste sentido, Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar e outros, 2014, Almedina, pág. 1024, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição atualizada, 2009, Universidade Católica Editora, pág. 778, anotação 10ª.
 Tal diferença de tratamento entre as decisões tem a sua razão de ser na sua diferente natureza: enquanto que o despacho de arquivamento constitui uma decisão do Ministério Público, que põe termo a uma fase processual caracterizada pela falta de contraditório, a decisão de não pronúncia é proferida após um debate público, contraditório e tematicamente vinculado, pelo que a tomada de posição sobre aqueles factos pelo juiz de instrução terá de beneficiar do princípio do caso julgado, como decisão jurisdicional que é.

Por conseguinte,  estando em causa uma decisão de mérito, que tem força vinculativa, não só dentro do processo em que foi proferida, mas também fora dele, constituindo caso julgado material, só mediante recurso de revisão podendo ser reaberta a discussão sobre tais factos, bem se percebe porque razão o despacho de não pronúncia tenha de especificar os factos em relação aos quais existe prova indiciária suficiente e aqueles em relação aos quais não existem indícios suficientes, fundamentando tal opção.

Em suma, decidindo-se por decisão transitada em julgado não estar indiciada a prática por um indivíduo dos factos imputados na acusação ou no requerimento para a abertura da instrução, ele não mais pode ser acusado/julgado da prática de tais factos.

Já quanto à consequência jurídico-processual da preterição dessa obrigação de fundamentação de um despacho de não pronúncia, a jurisprudência mostra-se dividida, havendo quem entenda tratar-se de uma nulidade, insanável e de conhecimento oficioso para uns e sanável para outros, e quem defenda ser uma mera irregularidade.

Propendemos no sentido de que a falta de fundamentação, traduzida na falta de enunciação dos factos que se consideram suficientemente indiciados e aqueles que se consideram não suficientemente indiciados, quando verificada no despacho de não pronúncia, reconduz-se a uma mera irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente, por aplicação do disposto no nº2 do artigo 123º do CPP, embora se ocorrer no despacho de pronúncia já consubstancie uma nulidade insanável (neste sentido, entre outros, os acórdãos do TRG de 09-07-2009 (processo n.º 504/07.4GBVVD-A.G1) de 27-09-2004 (processo n.º 1008/04-2), de 23/10/2017 (processo 781/14.4GBGMR), do TRP de 14-06-2017 (processo n.º 5726/14.9TDPRT.P1), de 12-10-2016 (processo n.º 276/11.8TAVLC.P2), de 10-12-2014 (processo n.º 281/12.7TAVLG.P1) e do TRL de 5/5/2022 (proc.2176/18.1T9FNC.L1-9, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt).

Com efeito, o nosso direito processual penal, em matéria de invalidades, consagra o princípio da legalidade das nulidades, dispondo o nº2 do artigo 118º que:  « Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato é irregular».

Ao contrário do que sucede com as sentenças e decisões instrutórias de pronúncia, em que a lei comina com a nulidade a não enunciação dos factos provados e não provados (nas sentenças) e a não enunciação dos factos indiciados e não indiciados (na pronúncia), conforme decorre dos artigos 379º, nº 1, al. a) e 283º, nº 3 ex vi o artigo 308º, nº 2 do C.P.P., respetivamente, já nos casos de omissão da enunciação dos factos indiciados e não indiciados no despacho de não pronúncia inexiste norma que determine a nulidade.

Posto isto, verificando-se a apontada irregularidade, pois, como já referimos, em momento algum da decisão recorrida se vislumbra que a Mma Juiz tenha tomado posição expressa a respeito dos factos vertidos no requerimento da abertura da instrução, especificando os que considera indiciariamente provados e não provados, deverá a decisão recorrida ser substituída por outra que supra a irregularidade assinalada.

Como se salientou no Ac. da Relação de Évora, de 1/3/2005, proc.1481/04-1, « Não compete ao Tribunal da Relação concatenar os factos apurados e substituir-se à Mma Juiz de Instrução na prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, mas tão somente por força do recurso, em vista de factos indiciários descritos, corroborados ou não por outros elementos de prova, decidir se todos eles são suficientes ou insuficientes para o proferimento de um despacho de pronúncia ou não pronúncia a levar a efeito sempre em primeira instância. A ausência de factos descritos impede a análise pelo Tribunal “ad quem” da bondade da solução encontrada em sede de instrução (…).

Com efeito, não faz sentido que o Tribunal de recurso deva apreciar um despacho de pronúncia ou não pronúncia se o mesmo for omisso quanto à narração dos factos indiciários.

E, se nenhum facto resulta provado o juiz deve dizê-lo expressamente».

            Em face de tudo o exposto, revoga-se a decisão recorrida, ficando prejudicada a apreciação da outra questão que supra enunciamos.   

III. Dispositivo

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra em revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que suprindo a irregularidade assinalada enumere os factos que considera indiciados e não indiciados, por referência ao requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente.

 

Sem custas.

(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos signatários – art.94º,nº2, do C.P.P.)