Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
616/20.9T8ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
PEAP
APRECIAÇÃO LIMINAR
HOMOLOGAÇÃO DO PLANO
Data do Acordão: 10/06/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE ALCOBAÇA – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 215º E 222º-A DO CIRE.
Sumário: 1. A apreciação liminar do requerimento de apresentação ao PEAP incidirá essencialmente sobre a existência dos requisitos formais, reservando-se a possibilidade de recusa do procedimento por falta de algum pressuposto substantivo, como o é a situação económica difícil ou a situação de insolvência iminente, aos casos em que seja manifesta a insolvência do devedor.

2. De qualquer modo, a análise deste requisito material por parte do juiz não comporta qualquer juízo de valor próprio sobre a situação ou viabilidade económica do devedor, restringindo-se aos casos de manifesta inviabilidade do pedido (por ex., quando existam elementos nos autos que revelem a confissão do devedor de que se encontra em insolvência atual).

3. Atribuindo o PEAP o controlo efetivo do processo aos credores, em detrimento do controlo jurisdicional, em que se pretende promover e potenciar uma negociação inteiramente extrajudicial, aprovado um PEAP de acordo com os procedimentos legais aplicáveis, não incumbirá ao juiz proceder a uma indagação oficiosa acerca da situação de insolvência iminente/atual do devedor e muito menos da sua recuperabilidade, excecionados os casos de abuso manifesto do recurso a tal meio pré-insolvencial.

4. Na ausência de qualquer oposição prévia, à relação de créditos provisória e ao plano apresentado e aprovado, o recurso deduzido por algum credor contra a decisão de homologação do plano só poderá incidir sobre fundamentos de recusa de conhecimento oficioso por parte do tribunal, ao abrigo do artigo 215º CIRE.

5. O simples facto de nos encontrarmos perante distintas classes de créditos não justifica, por si só, todo e qualquer tratamento diferenciado, havendo que articular o princípio da igualdade com o princípio da proporcionalidade e da proibição de arbítrio.

Decisão Texto Integral:







Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

V... e M... vieram, ao abrigo do disposto no artigo 222.º-A do CIRE, intentar o presente processo especial para acordo de pagamento (PEAP).

Admitido liminarmente o requerimento e nomeado Administrador Judicial Provisório, por este foi junta aos autos a lista provisória de créditos prevista no art. 222.º-D, ns. 2 e 3, aplicável por força do art. 17º-I, nº 3, ambos do CIRE.

Apresentado acordo de pagamentos, e submetido a votação, recolheu o voto favorável de credores cujos créditos representam 52,9% da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto.

Pelo juiz a quo foi proferido o Despacho, de que agora se recorre, a reconhecer que o mesmo se mostra aprovado pela maioria legalmente necessária, homologando o acordo de pagamentos respeitante aos devedores.

Inconformado com tal decisão, o credor garantido C..., S.A., dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem por súmula[1]:

...

Os Requerentes/Devedores apresentaram contra-alegações no sentido da improcedência do recurso, alegando não ter o credor Apelante apresentado requerimento de não homologação do plano, que tal credor não alega factos concretos demonstrativos de que a situação dele ao abrigo do plano é mais desfavorável do que a que interviria na ausência de plano, sendo que, não tendo a lista de créditos sido objeto de qualquer impugnação, transitou em julgado.

Também o Ministério Publico apresentou contra-alegações, alegando, em síntese, que o credor Apelante não requereu, no prazo legalmente previsto, a não homologação do plano, tendo-se limitado a apresentar um “voto contra – não homologação do plano”, sem qualquer fundamentação, não existindo motivo para a não homologação oficiosa do plano, concluindo pela improcedência do recurso.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Se o plano deveria ter sido oficiosamente recusado:
a. Pelo facto de os insolventes se encontrarem em estado de insolvência;
b. Existência de concertação entre os três dos credores que votaram favoravelmente;
c. Nulidade do voto do credor R..., Lda., por falta de legitimidade.
d. Por violação do princípio da igualdade ínsito no artigo 194º, nº1 CIRE;
e. Por colocar o credor Apelante em situação menos favorável do que a em que se encontraria na ausência do plano.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Na apreciação das diversas questões suscitadas na presente apelação, teremos por relevantes os seguintes factos que emergem dos elementos constantes dos autos:
1. Por requerimento enviado a 09 de março de 2020, V... e M... vieram manifestar a sua vontade de encetar negociações conducentes à sua revitalização por meio da aprovação de um plano de recuperação, requerimento igualmente subscrito pelo credor T..., Lda.;
2. Apresentada lista provisória de créditos pelo Administrador Judicial provisório nomeado, a mesma não foi objeto de qualquer impugnação.

3. Apresentado acordo de pagamentos e submetido a votação, foi votado por credores cujos créditos representam 97,17% da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, recolhendo o voto favorável de 52,9% da totalidade dos votos emitidos, e de credores cujos créditos representam 52,9% da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto.
4. O acordo de pagamento apresentado apenas obteve o voto favorável de três credores, ...
5. Os demais 9 credores votantes votaram contra, sendo que apenas o credor D... acompanhou a sua declaração de voto com a alegação dos motivos pelos quais votava contra, alegando que os devedores não apresentam carência económica que justifique um perdão de 90% dos créditos comuns reclamados, que o período de carência de 24 meses é demasiado longo, e que a proposta de pagamento em 27 prestações anuais implica que os credores comuns, no qual se inclui, apenas veriam o seu crédito integralmente ressarcido daqui a quase 30 anos.
6. O credor C..., S.A., tem créditos reconhecidos num total de 484.161,37 €, todos com garantia real sobre imóvel relacionado nos autos;
7. Na Relação provisória “retificada” apresentada nos autos, consta ainda como reconhecido um crédito comum `a C..., no valor de 3.500,00 €, respeitante a “todas as despesas judiciais e extrajudiciais, incluindo honorários de advogados e solicitadores que a C... haja de fazer para garantia e cobrança do seu crédito”.
6. Da lista provisória de créditos apresentada, constam como reconhecidos créditos no montante global de 1.379.575,39 €.
7. O Plano de pagamento aprovado apresenta o seguinte teor:
Autoridade tributária – pagamento imediato no prazo de 30 dias após aprovação do acordo;
Credor garantido – C..., S.A. – pagamento da totalidade do capital reclamado, acrescido de 10% do valor dos juros reclamados em 328 prestações mensais de 1.200,00 €
Credores comuns – perdão de 90% dos créditos reclamados e período de carência para inicio dos pagamentos de 24 meses após o trânsito da homologação do acordo. Pagamentos em 27 prestações anuais fixas de 972,00 €.
8. No Requerimento inicial os devedores alegam auferir, o V... um salário bruto de 2.096,65 € como farmacêutico hospitalar (um salário líquido de 938,69 €), e a M... um salário bruto de 635,00 € (um salário líquido de 600 €), trabalhando em exclusivo como sócia-gerente na Parafarmácia pertencente à sociedade M...;
9. No Plano Especial para Acordo de Pagamento apresentado nos autos e submetido a votação, fez-se constar que os devedores têm despesas mensais fixas no valor de 1.980 €, auferindo o devedor um salário líquido de 940 €, mais um resultado médio mensal de 924 € provenientes da Parafarmácia, e a devedora o salário líquido mensal de 635 € e um resultado médio mensal no valor de 762 € provenientes do Centro Médico (num total de 3.261 €)

*
 1. Recusa do plano motivada pelo estado de insolvência dos devedores.
O tribunal a quo veio a proferir despacho de homologação do plano aprovado pelos credores, nos seguintes termos, que aqui se reproduzem:
“ (…)
Contabilizados os votos apresentados por escrito pelos credores e remetidos ao Sr. Administrador Judicial provisório e seguindo a lista provisória de credores apresentada, verifica-se que foram expressos votos representativos de 96,17 % dos créditos reconhecidos com direito de voto.
O acordo recolheu o voto favorável de credores cujos créditos representam 52,9% da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto.
Conclui-se, pois, que o plano apresentado tem-se por aprovado, nos termos do disposto no artigo 222.ºF, n.º3, al. b), do CIRE.
***
Como tal, cumpre concluir que se encontra aprovado o acordo de pagamento dos devedores V... e M...
Considera-se inexistir fundamento para recusar oficiosamente a homologação do plano, conforme previsto no art. 215.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas aplicável ex vi artigo 222.º-F, n.º 5 do mesmo diploma. Nenhum dos credores, ou qualquer outra das pessoas legitimadas para o efeito, solicitou a recusa de homologação do plano com os fundamentos previstos no art. 216.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplicável ex vi artigo 222.º-F, n.º 5 do mesmo diploma.
DECISÃO
Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 222.º-F, n.º 5, 215.º e 216.º, todos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, homologo o acordo de pagamento dos devedores V... e M...”
Insurge-se o credor/Apelante C..., S.A., – único credor com garantia real sobre bens dos devedores – contra a decisão de homologação do plano, começando por alegar que o mesmo deveria ter sido oficiosamente não homologado atendendo à situação de insolvência dos devedores, situação que podia ter verificado quando admitiu liminarmente o PEAP, ou, posteriormente, em sede de homologação do plano apresentado e aprovado (conclusões A) a AA), das alegações de recurso).
Aceita-se que o juiz pode indeferir liminarmente o requerimento inicial de apresentação a um PEAP, quando, pela documentação inicialmente junta pelo devedor, dê conta da inexistência de qualquer uma das situações fundamentantes de tal processo, por falta de algum pressuposto processual insuprível, em especial da falta de algum dos documentos mencionados nos  artigos 222º-C, nº3 e 24º, do CIRE, assim como, proferido o despacho inicial de seguimento, deverá recusar oficiosamente a homologação do acordo que tenha sido alcançado, por “violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo” (art. 215º, ex vi, art. 222º-F, nº5, CIRE[2].
A questão que aqui se coloca é a de saber se, quer no despacho liminar de recebimento do PEAP, quer no despacho de homologação do plano aprovado, pode/deve o juiz rejeitar liminarmente o procedimento ou recusar a homologação do plano com fundamento na situação de insolvência atual do devedor e, nomeadamente, se o pode fazer oficiosamente.
O processo especial para acordo de pagamento destina-se a permitir que ao devedor que, não sendo uma empresa e se encontre “em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente”, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento.
E se o legislador esclareceu o que entende por “situação económica difícil” – encontra-se em tal situação o devedor que “enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito” (artigo 222º-A do CIRE) –, não adiantou qualquer definição do que seja “insolvência meramente iminente” ausência que a doutrina e a jurisprudência têm tentado colmatar[3].
E, mais difícil e complexa se torna a distinção, quando nº 4 do artigo 3º do CIRE equipara à situação de insolvência atual a que se seja meramente iminente, no caso de apresentação do devedor à insolvência.
As dificuldades, quer na definição conceptual de tais figuras jurídicas, quer na apreciação da situação do devedor para efeitos de a qualificar como integrando uma insolvência iminente ou atual, aliada à carência de elementos presentes aquando da prolação do despacho liminar de recebimento do procedimento, a desjudicialização crescente do processo de insolvência e dos procedimentos pré-insolvenciais, colocando na mão dos credores a decisão sobre a “recuperabilidade” do devedor, levar-nos-ão a concluir que a possibilidade do juiz, de avaliação da situação económica do devedor, para efeitos de terminar se o mesmo se encontra em situação económica difícil/insolvência eminente ou em estado de insolvência atual, nesta fase, se encontrará extremamente limitada.
Quer o PER, quer o PEAP, cujo regime surge decalcado do primeiro, estão configurados como processos pré-insolvenciais de natureza híbrida – negocial e judicial –, visando combater o desaparecimento económico de entidades financeiras ainda passiveis de recuperação ou a recuperação de pessoas jurídicas não titulares de empresas, através de mecanismos de negociação extrajudicial entre o devedor e os seus credores.
Iniciando-se tal procedimento pela manifestação de vontade do devedor e de, pelo menos, um dos seus credores, por meio de declaração escrita, de encetarem negociações conducentes à elaboração de acordo de pagamento, o nº 3 do artigo 222º-C exige, tão só, que o mesmo seja acompanhado dos seguintes elementos: i) a referida declaração escrita; ii) lista de todas as ações de cobrança de dívida pendentes contra o devedor, comprovativo da sua situação profissional ou, se aplicável, situação de desemprego, bem como cópias dos documentos elencados nas alíneas a), d) e e) do nº 1 do artigo 24º.
Considerando-se que a apresentação a tal procedimento tem como pressuposto substantivo que o devedor se encontre em “situação económica difícil” ou de insolvência, ainda que “iminente”, a apreciação a cargo do juiz neste momento processual – para o qual não se encontra prevista qualquer fase instrutória, ou sequer qualquer contraditório, devendo o juiz proferir despacho de recebimento, “de imediato”, com os elementos disponíveis nos autos (ressalvada a possibilidade de convite aos devedores para apresentarem alguns dos elementos previstos no nº3 do artigo 222º-C) que se possam encontram em falta) –, terá de versar essencialmente sobre a existência dos requisitos formais, reservando-se a possibilidade de recusa do procedimento por falta de algum pressuposto substantivo, como o é a situação económica difícil ou a insolvência iminente do devedor, para um momento posterior, restringindo-se a possibilidade de indeferimento liminar aos casos em que seja “manifesta” a situação de insolvência atual do devedor[4].
Refletindo sobre a questão de saber se o juiz se deve ou não assegurar de que estão reunidos os requisitos materiais e formais de que depende o recurso ao PER, reflexões que são transponíveis para o PEAP – entendendo como requisitos materiais que o devedor se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação (art. 17º-A, nº1), Nuno Gundar da Cruz[5] identifica duas correntes de opinião distintas:
a) uma minoritária, segundo a qual não há controlo pelo juiz dos requisitos materiais e formais de acesso ao PER, não se encontrando prevista a hipótese de indeferimento do requerimento inicial;
b) uma maioritária, que defende que, embora não haja um controlo pelo juiz do preenchimento dos requisitos materiais de que depende o uso do PER, em situações específicas, o tribunal não pode deixar de indeferir o pedido de acesso ao PER.
Dentro desta tese maioritária, Catarina Serra[6] sustenta que, embora a lei não preveja expressamente o indeferimento liminar, há três grupos de casos em que se torna inevitável o indeferimento liminar: i) um primeiro grupo de casos respeitante às situações em que não estão preenchidos os requisitos formais (falta de apresentação dos documentos mencionados no art. 17º-C, ns. 1 e 2 ou no art. 24º, não obstante o juiz o ter convidado para o efeito); ii) um segundo grupo de casos, em que o devedor foi já declarado insolvente, independentemente de a sentença ter transitado em julgado; iii) e um terceiro grupo, quando não estejam verificados os requisitos materiais do PER, isto é, quando o devedor não esteja manifestamente em situação de pré-insolvência ou não seja manifestamente suscetível de recuperação.
Salienta-se, ainda, que, segundo estes autores, a análise deste requisito material por parte do juiz não comporta qualquer juízo de valor próprio sobre a situação ou viabilidade económica do devedor – nomeadamente se se encontra em situação económica difícil ou de insolvência iminente –, restringindo-se o despacho de indeferimento liminar aos casos de manifesta inviabilidade do pedido: por ex., se o devedor se apresentou previamente à insolvência com fundamento no estado de insolvência atual ou uma situação de não oposição à insolvência apresentada por credor, quando houver recorrido ao PER nos dois anos anteriores, ou sempre que da alegação do requerimento inicial resulte uma situação de insolvência atual.
Como salienta Nuno Gundar da Cruz, “a natureza liminar da apreciação realizada pelo juiz é contrabalançada pelos poderes de controlo do processo negocial e da atuação do devedor, conferidos pelo legislador aos credores e ao administrador judicial provisório[7]”: “o controlo de mérito sobre a verificação dos requisitos de acesso ao PER tem lugar extrajudicialmente, sendo feito pelos credores, no âmbito das negociações prosseguidas no PER, sob a orientação do administrador judicial provisório (ns. 8 e 9 do art. 17º-D), os quais apreciarão a bondade da pretensão, a lisura da conduta do juiz e a sua conformidade aos princípios a que é devida obediência (ns. 6 e 10º do art. 17º-D)[8]”.
Damos, assim, por assente que a possibilidade de se indeferir liminarmente o PEAP (ou o PER), designadamente por falta dos seus pressupostos legais, como na hipótese de o devedor se encontrar em insolvência atual, deverá ficar reservada aos tais casos manifestos[9], tanto mais que relativamente ao recém criado PEAP, nem sequer se exige a “recuperabilidade” do devedor.
Analisemos, então, os termos em que se mostra alegada a situação sócio económica dos devedores no Requerimento que deu início à abertura do presente PEAP, e se dela resulta uma confissão da uma situação que configure uma situação de insolvência atual.
Alegam os devedores que, sendo ele farmacêutico hospitalar, aufere mensalmente um salário bruto de 2.096,65 €, auferindo ela como sócia gerente de uma para farmácia a quantia bruta de 635€, aos quais acrescerão os rendimentos obtidos pela exploração da farmácia e do espaço adjacente, tais rendimentos não são suficientes para satisfazer os créditos contraídos e as despesas mínimas para uma sobrevivência condigna do agregado familiar; mais alegam que o desequilíbrio e os resultados financeiros das duas sociedades de que são sócios gerentes não corresponderam ao expectável, porquanto, tendo-lhes sido atribuído um alvará de farmácia no local onde aquelas funcionam, a mesma veio a ser atribuída a um terceiro, decisão com a qual se não conformaram, encontrando-se a correr 19 processos judiciais, nos quais não há ainda decisões definitivas; mais alegam que os seus cinco maiores credores detêm créditos no valor global de 732.373,45 €.
Apesar do elevado valor do alegado passivo, do circunstancialismo vertido no requerimento inicial não resulta manifestamente uma situação de insolvência atual, tanto mais que, relativamente à composição do seu património, se limitam a invocar a existência de um imóvel urbano e a identificar os rendimentos mensais resultantes do seu trabalho, sem que quantifiquem, minimamente, quais os rendimentos que retiram da exploração das duas referidas sociedades de que são sócios gerentes; no requerimento inicial não há qualquer referência ao facto de já terem entrado, ou não, em incumprimento, relativamente a todos, ou a alguns, dos créditos que relacionam, sendo que, por outro lado, apontam as suas dificuldades económicas a uma circunstância que poderá ser ainda revertida: o facto de não lhes ter sido atribuído o alvará de farmácia necessário ao funcionamento da mesma no local onde agora funciona uma Parafarmácia.
Concluindo, não podemos acompanhar o apelante na sua afirmação de que o requerimento de apresentação ao PEAP deveria ter sido liminarmente indeferido por dele resultar inequivocamente a insolvência atual dos devedores.
Mas, poderia ou deveria o juiz, na posterior fase do processo, em que lhe é remetido um plano aprovado pelos credores para proferir despacho de homologação do mesmo, recusar a sua homologação com fundamento na insolvência atual dos devedores?
Sobre os termos da aprovação do plano, dispõe o nº 5 do artigo 222º-F que “O juiz decide se deve homologar o acordo de pagamento ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215º e 216º”.
É o seguinte o teor dos artigos 215º e 216º do CIRE, para os quais se remete:
Artigo 215º
Não homologação oficiosa
O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os atos ou executadas as medidas que devam proceder à homologação.
Artigo 216º
Não homologação a solicitação dos interessados
1. O juiz recusa a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contando que o requerente demonstre em termos plausíveis que:
a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante do acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas;
b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a influência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.
(…).
Tais normas preveem dois distintos grupos de situações que poderão levar à recusa, uma por via oficiosa (artigo 215º) e outra unicamente a requerimento do devedor ou credor que haja manifestado nos autos a sua oposição anteriormente à aprovação do plano de insolvência (artigo 216º), o que, no caso em apreço, excluirá, desde logo e à partida, o conhecimento de algumas das questões que constituem fundamento do presente recurso.
Se não, vejamos.
Ao remeter para o disposto nos artigos 215º e 216º do CIRE, respeitantes à aprovação do plano de recuperação no processo de insolvência, optou o legislador por submeter à análise judicial o plano aprovado pelos credores, no âmbito da qual deve o juiz, oficiosamente, sindicar o cumprimento das regras procedimentais e de conteúdo não negligenciáveis, bem como, avaliar o mérito da oposição que tenha sido apresentada por algum credor: o juiz assume um papel de garante da legalidade, no âmbito do qual lhe restará assegurar-se de que não se verifica nenhuma das situações fundamentadoras da rejeição do plano estabelecidas no artigo 215º e, por outro, analisar os pedidos de não homologação do plano, se os houver (artigo 216º).
Tendo-se em consideração que o PEAP atribuiu um controlo efetivo do processo aos credores, em detrimento do controlo jurisdicional, em que se pretende promover e potenciar uma negociação inteiramente extrajudicial, fora do tribunal e quase fora do próprio processo, entende-se que, aprovado um PEAP (ou um PER) de acordo com as regras procedimentais aplicáveis, não incumbirá ao juiz proceder oficiosamente a uma indagação oficiosa acerca da situação de insolvência iminente/atual do devedor e muito menos da sua recuperabilidade (que, como o já acima referido, não constitui requisito de apresentação ao PEAP), excecionados os casos de abuso manifesto do recurso a tal meio pré-insolvencial.
Regressando ao caso dos autos, analisado o teor dos votos contra emitidos pelos credores, nenhum deles apresenta qualquer requerimento a pedir expressa e fundadamente[10] a não homologação do plano, sendo que, apenas o credor D..., motiva o seu voto negativo, alegando integrar o mesmo uma proposta ofensiva para os credores comuns, nos quais ele se insere.
Quanto ao credor Apelante, do requerimento que envia ao tribunal, consta apenas o seguinte: “na sequência da junção aos autos do acordo de pagamento proposto, vem apresentar o seguinte sentido de voto: Voto Contra – Não homologação do plano proposto”.
Na ausência de qualquer requerimento por parte de qualquer dos credores a solicitar a não homologação do plano com fundamento na situação de insolvência atual, ou mesmo com o fundamento da existência nos autos indícios de que o plano foi aprovado por concertação entre os três únicos credores que votaram favoravelmente e os devedores – questões que foram trazidas aos autos pela primeira vez, única e exclusivamente, em sede de alegação de recurso –, a recusa com tais fundamentos só poderia ter lugar se se tratasse de questão que o juiz devesse conhecer oficiosamente e se tal insolvência atual ou se a existência de concertação entre esses três credores fossem “manifestas”.
Começando pela alegada concertação entre os devedores e os três credores que votaram favoravelmente o plano, alega o Apelante a existência dos seguintes indícios:
- os votos dos três credores que aprovaram o plano foram remetidos aos autos pelo mesmo advogado, dúvidas que se adensam quando só um deles é representado por esse mesmo advogado;
- estes são os credores comuns com os valores mais elevados e estranhamente preferiram aprovar um plano que prevê que, de um total reclamado de 730.460,67 €, lhes seja apenas pago o valor de 73.046,07 €;
- nenhum desses credores consta da relação de credores indicada pelos devedores aquando da petição inicial;
Quanto ao facto de tais votos favoráveis terem sido enviados aos autos pelo mesmo advogado, não se nos afigura, por si só, ser demonstrativo da tal “concertação”, não nos parecendo estranho que, tendo os devedores obtido a concordância de alguns dos credores tenham encarregado o advogado de um deles de os remeter ao processo. Quanto à alegação de que a estranheza de tal remessa conjunta ser  agravada pelo facto de cada um deles ter advogado próprio, diremos que tal “indício” poderá mesmo ser interpretada no sentido oposto ao pelo Apelante: a eventual concertação de credores e devedores seriam muito mais evidente se todos os credores que vieram a votar favoravelmente o plano se encontrassem todos representados pelo mesmo advogado, dando-lhes a constituição de advogado própria uma aparência de credibilidade, apontando no sentido de que são créditos efetivamente existentes e que assumiram posição individual nos autos.
Quanto ao facto de os devedores não os terem feito constar da lista que acompanha o requerimento de apresentação ao PEAP, e à circunstância de que, tratando-se dos credores comuns com valor mais elevado, se afigurar estranho que tenham aceitado uma redução de 90% dos seus créditos,  encontrar-se-á relacionada, com a posterior alegação  (constante das conclusões als. TT) a VV)) de circunstâncias que, no entender do Apelante, indiciarão que tais créditos não existem ou, a existirem, terão um valor muito inferior ao constante da lista.
Da análise dos autos resulta que, efetivamente, os devedores não fizeram constar tais créditos - de que são titulares os credores ... - a da lista de credores por si apresentada com o requerimento de apresentação ao PEAP, a 09 de março de 2020. Contudo, logo que notificados pelo tribunal para apresentarem nova relação de créditos da qual constasse o crédito da T..., os devedores vieram, logo a 13 de março de 2020, apresentar nova lista retificada de créditos da qual fizeram constar, não só o crédito da T... que, juntamente com os devedores havia subscrito o requerimento de apresentação ao PEAP, mas igualmente os dois outros créditos de que são titulares os outros dois credores que vieram a votar favoravelmente o plano de recuperação, L...
É certo que esta circunstância, juntamente com outras que pudessem ser interpretadas nesse sentido, podia indiciar uma eventual concertação entre tais credores e os devedores. Contudo, sem que algum dos intervenientes processuais – demais credores ou o administrador provisório, tenham alertado o tribunal para tais circunstâncias –, nem o credor apelante, nem qualquer um dos demais credores, tenha deduzido, ao longo do procedimento, qualquer impugnação a tais créditos, ou comunicado aos autos quaisquer suspeitas que pudessem ter relativamente à sua existência, respetivo montante, ou à existência de qualquer acordo entre os mesmos para prejudicar os restantes credores –, não se nos afigura que ao juiz caiba, oficiosamente, indagar e analisar o processo a tal pormenor, para descartar uma eventual concertação entre credores, quando os intervenientes, num processo de negociações extrajudiciais que decorre inteiramente fora do tribunal, se suspeitas a tal respeito tiveram, não as partilharam com o tribunal.
Tais créditos foram incluídos na lista provisória de créditos, elaborada ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 222º-D do CIRE – listagem que deverá ser precedida de uma análise de cada um dos créditos reclamados, bem como dos ou relacionados pelo devedor, bem como dos documentos que sustentam a existência de cada um deles e garantias invocadas[11] – sem que ao Administrador judicial provisório tenham sido suscitadas dúvidas relativamente à sua existência e montante, listagem esta que se converteu definitiva por falta de impugnação (artigo 222º-D, nº4 CIRE). Sendo remetida ao tribunal unicamente a tal lista provisória, desacompanhada de qualquer dos documentos que sustentaram a sua elaboração, o juiz a quo não disporá de elementos que possam criar uma convicção autónoma e minimamente fundamentada que lhe permita contrariar o reconhecimento de tais créditos por efeito automático da sua relacionação por parte do AJP e da ausência de impugnação por parte dos credores.
Não cabe a este tribunal de recurso apreciar, em primeira mão, todas estas questões, só nesta sede alegadas pelo Apelante, relacionadas com a eventual inexistência ou falsidade dos créditos de que são titulares os credores que votaram favoravelmente o plano – cujo reconhecimento ficou estabilizado nos autos com a ausência da sua atempada impugnação.
Assim sendo, tendo por indiscutível a existência de tais créditos para efeitos de participação na assembleia, e não sendo os restantes elementos alegados pelo apelante suficientes para sustentar a ocorrência de uma alegada concertação entre os tais credores e os devedores para lograram a aprovação do plano, não se pode afirmar que ao juiz fosse imposto o conhecimento oficioso de um eventual manifesto abuso a utilização do processo, assim como, não incumbirá a este tribunal, por se tratar de questão nova, apreciá-la, aqui, em primeira mão.
Improcedem, assim, as conclusões constantes das als. A) a AA), KK) a QQ), e TT) a VV).
Quanto à alegação de que, encontrando-se a credora R..., Lda., insolvente e encerrada a liquidação por insuficiência da massa, não teria a mesma legitimidade para conceder créditos, reclamar créditos e aprovar planos – sintetizada nas conclusões RR) a SS) –, questão só agora suscitada em sede de alegações de recurso, juntamente com os documentos que a suportam, e embora de conhecimento oficioso, também ela se mostra ultrapassada com a consolidação da lista provisória de créditos por falta de atempada impugnação.
Nas conclusões BBB) a JJJ, insurge-se o Apelante contra a homologação do plano com fundamento em que o mesmo o coloca, de forma clara e evidente, numa situação menos favorável da que existiria na ausência de qualquer plano, fundamento este cujo conhecimento por parte do tribunal depende de prévia manifestação de oposição “anteriormente à aprovação do plano”, nos termos do nº 1 do art. 216º.
Na ausência de dedução de oposição, por parte do credor aqui apelante, com tal fundamento – a mera apresentação de um voto contra, como já atrás se referiu não pode ser entendida como dedução de oposição à homologação do plano para efeitos do art. 216º –, a invocação de tal questão em sede de recurso é manifestamente extemporânea, não podendo ser apreciada por este tribunal.
Passemos, agora e por fim, à análise das razões de discordância do Apelante face à sentença recorrida, atinentes a uma violação do principio da igualdade entre credores.
2. Recusa de homologação do plano com fundamento na violação do princípio da igualdade entre credores
 Alega o Apelante que o plano aprovado, ao consagrar um perdão de 90% dos créditos comuns, a par do pagamento de 100% dos créditos reclamados pela autoridade tributária e pagamento da totalidade do capital e 10% dos juros reclamados pelos credores garantidos, viola o princípio da igualdade entre os credores.
Antes de mais, chama-se a atenção para o facto de à C...  serem reconhecidos créditos no valor global de cerca de 485.000,00 €, garantidos por hipoteca sobre o único imóvel relacionado pelos devedores – tratando-se, assim, de um credor com garantia real –, sendo que, o único crédito comum de que é alegadamente detentora, no valor de 3.500€, respeita a “todas as despesas judiciais e extrajudiciais, incluindo honorários de advogado e solicitadores que a C... há de fazer para garantir a cobrança do seu crédito”. Ou seja, o único crédito relacionado da C..., alegadamente comum, nem sequer se poderá ter por constituído à data em que foi proferido o despacho de nomeação do administrador judicial provisório, pelo que o mesmo nunca viria a ser abrangido pelo plano aprovado e homologado (segundo nº 8 do art. 222º-F, CIRE, os efeitos do plano apenas abrangem os créditos constituídos até ao despacho de nomeação do administrador judicial provisório).
Assim sendo, a C... careceria de legitimidade para invocar a violação do princípio da igualdade relativamente aos termos previstos no plano de pagamentos para os credores comuns. Por outro lado, ainda que assim não fosse, que a C... tivesse atempadamente deduzido oposição à aprovação do plano – o que não fez -, e que tivesse legitimidade para invocar tal violação, a oposição a deduzir à aprovação do plano sempre se encontraria dependente da alegação em alternativa de uma das situações previstas nas als. a) ou n) do artigo 216º: i) que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas; ii) o plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.  Ou seja, só o credor que venha a ser concretamente prejudicado pelas medidas constantes do plano poderá deduzir oposição à sua homologação, mediante a alegação de que as medidas constantes do plano o prejudicam e em que concretos termos.
Como tal, restará a este tribunal, a apreciação sobre se o juiz, ao abrigo dos poderes que lhe são oficiosamente concedidos pelo artigo 215º, poderia/deveria ter recusado oficiosamente o plano aprovado pela ocorrência de “violação não negligenciável (…) das normas aplicáveis ao seu conteúdo”.
De entre as normas de conteúdo aplicáveis ao plano e a que o mesmo deve obedecer, encontra-se o artigo 194º CIRE, que consagra o princípio da igualdade cuja violação consubstancia, como norma imperativa que é, um vício não negligenciável[12].
 É o seguinte o teor do artigo 194º do CIRE, sob a epigrafe “Princípio da Igualdade”:
1. O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas.
2. O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afetado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto desfavorável.
3. É nulo qualquer acordo em que o administrador da insolvência, o devedor ou outrem confira vantagens a um credor não incluídas no plano de insolvência em contrapartida de determinado comportamento no âmbito do processo de insolvência, nomeadamente quanto ao exercício do direito de voto”.
É comum os planos de recuperação estabelecerem distintos regimes para os créditos comuns, para os credores com garantia real, e ainda para os créditos tributários, de acordo com o princípio da igualdade geral consagrado no artigo 194º e que se desdobra na necessidade de tratar igualmente o que é semelhante e de distinguir o que é distinto, sem prejuízo do acordo dos credores atingidos, em contrário[13].
Esta ideia material do princípio da igualdade – que pressupõe o tratamento por igual do que é igual e assegurando um tratamento desigual a situações de facto desiguais – vigora igualmente no direito civil, emanando do princípio par conditio creditorum estabelecido no artigo 604º do Código Civil, sob a epígrafe, “Concurso de credores”:
1. Não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos créditos.
2. São causas legítimas de preferência, além de outras admitida na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção.”
Significando tal regra que os credores devem estar à partida num plano de igualdade perante o devedor, salvo se existirem causas legítimas que contrariem a aplicação desta regra, uma das razões objetivas habitualmente invocadas, de tratamento diferenciador enquanto consagração ou concretização desse mesmo princípio da igualdade, reside na distinta classificação dos créditos.
A tal respeito, o artigo 47º, nº 4 do CIRE distingue as seguintes categorias de créditos: i) créditos garantidos; ii) créditos privilegiados; iii) créditos comuns; iv) e créditos subordinados. E, relativamente aos créditos garantidos (créditos que beneficiam de garantias reais não afetadas pela declaração de insolvência), o CIRE atribui-lhes tratamento preferencial em diversos campos, entre os quais se destaca a circunstância de serem pagos imediatamente após as dividas da massa insolvente, relativamente aos bens sobre os quais incide a sua garantia (artigo 174º, CIRE). Quanto aos créditos comuns (definidos por exclusão, correspondendo a todos os que se não enquadram em qualquer uma das restantes categorias previstas no art. 47º), o seu pagamento terá lugar na proporção dos seus créditos, se a massa for insuficiente para o seu pagamento integral (artigo 176º).
A “desigualdade” entre o regime estabelecido para os credores comuns e o regime estabelecido para os credores garantidos, encontra-se assim expressamente prevista na legislação civil e insolvencial, pelo que, em princípio, a consagração de um distinto tratamento, mais favorável, quanto aos créditos garantidos, quando em confronto com o acordado para os créditos comuns, não envolverá qualquer violação do princípio da igualdade.
No caso em apreço, as desigualdades ocorrem entre distintas classes de créditos, estabelecendo-se um regime para os créditos tributários, outro regime para os créditos garantidos (C...) e outro regime para os credores comuns, assentando tais distinções num critério objetivo que, à partida, se mostraria perfeitamente justificado por lei, sendo que o próprio regime insolvencial se baseia nessa mesma distinção de créditos sujeitando-os a distintos regimes.
Contudo, se a pertença a diferentes classes de créditos justificava um tratamento diferencial, no caso em apreço, constata-se que as diferenças de tratamento são abissais, desproporcionais, sem que do plano de pagamentos seja feita constar qualquer justificação a tal respeito:
- para os créditos garantidos da C..., SA., prevê-se o pagamento integral do capital e de 10% dos juros, a pagar em 328 meses, com uma mensalidade fixa de 1.200 €;
- para os créditos comuns prevê-se o pagamento de apenas 10% do capital, em 27 prestações anuais de 972,00 €;
- sendo os créditos garantidos no valor de 484.165,37 €, encontra-se previsto o seu pagamento integral, enquanto que, para os créditos comuns, no valor de 890.593,01 €, o plano prevê unicamente o pagamento de um montante global de 26.244,00 €.
Ora, como vem sendo entendimento maioritário nos nossos tribunais[14], o simples facto de nos encontrarmos perante distintas classes de créditos não justifica, por si só, todo e qualquer tratamento diferenciado, havendo que articular o princípio da igualdade com o princípio da proporcionalidade e da proibição do arbítrio, coenvolvidos na legalidade do exercício de direitos e deveres.
Assim, no sentido de que não se acha justificado – ofendendo o princípio da igualdade, por tratamento intoleravelmente desproporcionado entre o credor garantido e os credores comuns –, um plano de recuperação que salvaguarde integralmente o crédito do credor hipotecário e consagre um perdão de 90% do valor dos créditos comuns, com contornos semelhantes aos dos autos, se pronunciaram expressamente os Acórdãos do TRP de 09-12-2014 e de 08-07-2015[15].
E, no caso em apreço, os créditos comuns não só sofrem um perdão de 90% do seu capital, como se prevê um período de carência de 24 meses e que os pagamentos sejam feitos a 27 anos, com prestações anuais de 972 € cada uma, quando o crédito garantido será pago em prestações mensais de 1.200,00 € cada, sem que se encontre para ele previsto qualquer período de carência.
E o plano apresentado e aprovado não apresenta qualquer justificação para esta tão grande diferença de tratamento dos créditos comuns, sendo que, para além de manter a sua hipoteca, o credor garantido receberá o benefício de, libertando os devedores do pagamento da quase totalidade das restantes dívidas (para cujo pagamento prestacional apenas tem de reserva a quantia de 972 € por ano), assegura deste modo a canalização dos rendimentos dos devedores para cumprimento do crédito garantido pelo apelante. As medidas constantes do plano são de tal modo gravosas para os credores comuns, do qual saem altamente prejudicados, que nos leva a questionar quais as razões que terão aqueles três credores comuns para viabilizar um plano com condições tão desfavoráveis para eles próprios, partilhando as suspeitas expostas pelo credor Apelante de uma provável concertação dos mesmos com o devedor.
Concluímos, assim, que o plano de recuperação aprovado viola o princípio da igualdade, pela desproporcionalidade não minimamente justificada do tratamento a que sujeita os credores comuns relativamente aos créditos garantidos.
Assim sendo, deveria tal plano ter sido oficiosamente recusado ao abrigo do artigo 215º do CIRE,

A apelação é de proceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revoga-se a decisão recorrida, recusando-se a homologação do plano aprovado.

Custas pelos Apelados/devedores.             

                                                                Coimbra, 6 de outubro de 2020

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

1. A apreciação liminar do requerimento de apresentação ao PEAP incidirá essencialmente sobre a existência dos requisitos formais, reservando-se a possibilidade de recusa do procedimento por falta de algum pressuposto substantivo, como o é a situação económica difícil ou a situação de insolvência iminente, aos casos em que seja manifesta a insolvência do devedor.

2. De qualquer modo, a análise deste requisito material por parte do juiz não comporta qualquer juízo de valor próprio sobre a situação ou viabilidade económica do devedor, restringindo-se aos casos de manifesta inviabilidade do pedido (por ex., quando existam elementos nos autos que revelem a confissão do devedor de que se encontra em insolvência atual).

3. Atribuindo o PEAP o controlo efetivo do processo aos credores, em detrimento do controlo jurisdicional, em que se pretende promover e potenciar uma negociação inteiramente extrajudicial, aprovado um PEAP de acordo com os procedimentos legais aplicáveis, não incumbirá ao juiz proceder a uma indagação oficiosa acerca da situação de insolvência iminente/atual do devedor e muito menos da sua recuperabilidade, excecionados os casos de abuso manifesto do recurso a tal meio pré-insolvencial.

4. Na ausência de qualquer oposição prévia, à relação de créditos provisória e ao plano apresentado e aprovado, o recurso deduzido por algum credor contra a decisão de homologação do plano só poderá incidir sobre fundamentos de recusa de conhecimento oficioso por parte do tribunal, ao abrigo do artigo 215º CIRE.

5. O simples facto de nos encontrarmos perante distintas classes de créditos não justifica, por si só, todo e qualquer tratamento diferenciado, havendo que articular o princípio da igualdade com o princípio da proporcionalidade e da proibição de arbítrio.

                             

                                                 ***


[1] Face ao nítido incumprimento do dever de sintetizar os fundamentos do recurso, em violação do disposto no artigo 639º, nº1, do CPC.
[2] Neste sentido, relativamente ao PER, na redação anterior ao DL nº 79/2017, que reservou e desenhou um PER dirigido às empresas, criando o PEAP para as pessoas singulares, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., Quid Juris, p.142.
[3] Segundo Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, “a iminência da insolvência caracteriza-se pela ocorrência de circunstâncias que, não tendo ainda conduzido a situação de insolvência já atual, com toda a probabilidade a vão determinar a curto prazo, exatamente por insuficiência do ativo líquido e disponível para satisfazer o passivo exigível” – Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., p.86. L. Miguel Pestana de Vasconcelos, socorre-se da definição constante da lei alemã, que tem por “iminente a insolvência do devedor quando ele, previsivelmente, não estará em posição de cumprir as suas obrigações no momento em que elas vierem a vencer-se”. Socorre-se ainda do pensamento de H. Hess, segundo o qual “quando da análise financeira resulta previsível que os meios de pagamento não serão suficientes para cumprir as obrigações vincendas, sem que seja possível obtê-los, recorrendo a uma outra fonte de financiamento – “Recuperação de Empresas: o processo especial de revitalização”, Almedina 2017, p.41 e nota 96. Segundo Catarina Serra, “a insolvência iminente é a situação em que o devedor antevê que estará impossibilitado de cumprir as suas obrigações quando elas se vencerem, no futuro próximo – “Revitalização – A designação e o misterioso objeto designado. O processo homónimo (PER) e as suas ligações com a insolvência (situação e processo) e com o SIREVE”, In I Congresso do Direito da Insolvência, Coordenação: Catarina Serra, 2013, Almedina, p.91.
[4] Em igual sentido se pronuncia Fátima Reis Silva, afirmando que “o juiz não tem a possibilidade de, no curto prazo que a lei lhe comete para proferir o despacho inicial, de aferir, pela consulta dos documentos previstos no artigo 24º, se a situação é efetivamente de insolvência iminente ou de situação económica difícil ou de insolvência atual, até porque se trata de um juízo técnico complexo  que o juiz faz em processo de insolvência, rodeado de contraditório, de meios de prova, alguns vinculados, de um sistema de presunções e de várias regras gerais; e, na verdade, serão os credores e o mercado a fazer esse juízo decisivo, aprovando o plano, caso em que, maioritariamente, estarão de acordo pela recuperabilidade ou rejeitando o mesmo, caso em que tal ónus passa para o administrador judicial provisório, a quem competirá avaliar e transmitir aos autos a situação – “Processo Especial de Revitalização, Notas Práticas e Jurisprudência Recente”, Porto Editora, 2014, pp.19-20.
[5] “Processo Especial de Revitalização, Estudo sobre os poderes do juiz”, Petrony, pp. 28 e ss.
[6] “O Processo Especial de Revitalização na Jurisprudência”, Almedina 2016, pp. 43-48.
[7] “Processo Especial de Revitalização (…), p.42.
[8] Nuno Gundar Cruz, citando o Acórdão do TRP de 15 de novembro de 2012, relatado por José Amaral, in www.dgsi.pt.
[9] Neste sentido, se acabam por pronunciar Luís Meneses Leitão, “A Recuperação Económica dos Devedores”, Almedina, p. 41-42 e 71-72.
[10] O credor C..., no requerimento em que manifesta a sua posição de voto – voto contra –, declara “solicitar a sua não homologação, porquanto o plano proposto não acautela o interesse dos ora credores”, invocando as cláusulas estabelecidas para os credores comuns.
[11] Listagem esta que, no caso do PER, deverá ser elaborada após análise da contabilidade da empresa e verificação das diferenças existentes entre os créditos reclamados e os registados na contabilidade, de forma a evitar impugnações – Cfr., Jorge Calvete, “O papel do Administrador Judicial Provisório no Processo Especial de Revitalização”, in I Colóquio de Direito da Insolvência de Santo Tirso, Coord. Catarina Serra, Almedina 2014, p.60.
[12] Neste sentido, entre outros, Acórdãos do TRC de 27-06-2017, relatado por Isaías Pádua, e de 18-02-2020, relatado por Arlindo de Oliveira, ambos disponíveis in www.dgsi.pt
[13] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., p. 753.
[14] Neste sentido, entre outros, Acórdãos do TRC de 09-05-2017, relatado por António Carvalho Martins, e de 18-05-2020, relatado por Barateiro Martins, e Acórdão do TRP de 09-12-2014, relatado por Rui Moreira, todos disponíveis in www.dgsi.pt. Levantando reservas à necessidade de aplicação de juízos de proporcionalidade, na medida em que o CIRE prevê já expressamente o best interest test (art. 216º, nº1, al. a)), ou seja, um mecanismo de salvaguarda do direito dos credores, não existiriam razões para recusar a homologação de planos de recuperação em que se preveja taxas de recuperação muito diferentes para credores garantidos e credores comuns, cfr., Nuno Ferreira Lousa, “Crónica da Jurisprudência do Tribunal da Relação (2015/2016)”, Revista de Direito da Insolvência, Nº1, 2017, Almedina, pp.198-199.
[15] Acórdãos relatados respetivamente por Rui Moreira e por Manuel Domingues Fernandes. Também o Acórdão do TRG de 27-04-2017, relatado por Ana Cristina Duarte, recusou a homologação, por violação do princípio da igualdade por desrespeito do princípio da proporcionalidade, de um plano de recuperação onde se previa que as instituições bancárias recebam integralmente os seus créditos, enquanto os restantes credores comuns (fornecedores) ficavam reduzidos a apenas 50% do capital, com perdão integral de juros e com levantamento de penhoras e extinção de execuções – acórdãos estes disponíveis em www.dgsi.pt.