Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | FERNANDO MONTEIRO | ||
| Descritores: | NEGÓCIO JURÍDICO NULO BEM IMÓVEL TERCEIRO DE BOA FÉ CADEIA DE TRANSMISSÕES TITULAR DO DIREITO | ||
| Data do Acordão: | 11/20/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – VISEU – JUÍZO CENTRAL CÍVEL – JUIZ 1 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 289.º E 291.º DO CÓDIGO CIVIL | ||
| Sumário: | O juízo de proteção e tutela de terceiros de boa fé, equacionado no art. 291.º do Código Civil, opera quando é o verdadeiro titular do direito a dar origem à cadeia de negócios que vai culminar com a aquisição onerosa, por terceiro de boa fé. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
| Decisão Texto Integral: | *
Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra: AA veio propor ação contra BB, Banco 1..., S.A. e Banco 2..., S.A., peticionando a condenação do 1º réu a restituir ao autor a viatura automóvel, marca Audi, modelo A6, com a matrícula ..-PA-.. e condenados o 2º e 3º réus no pagamento da quantia de € 36,27 a título de danos patrimoniais, e no pagamento da quantia de € 5.000,00, a título de danos não patrimoniais, mais peticionando, a título subsidiário, que sejam os réus, solidariamente responsáveis a pagar ao autor uma indemnização no montante global de € 29.000,00. Para tanto, o Autor alegou, em síntese: Em outubro de 2014, comprou a identificada viatura a CC, pelo preço de € 29.000,00, para revenda pelo preço de €45.000,00; anunciada a venda, foi contactado por um indivíduo cuja identidade não se apurou, mas que se identificou como Sr. DD, que mostrou interesse no negócio, pelo preço anunciado; no dia 23 de fevereiro de 2015, o autor encontrou-se com um indivíduo que se apresentou como funcionário da empresa do Sr. DD; foi pedido ao autor para confirmar o depósito na Banco 1... de um cheque no valor do preço da viatura automóvel, o que este fez, tendo confirmado a realização da transferência bancária e, por essa razão, entregou ao referido individuo a viatura automóvel, as chaves e os documentos necessários ao registo da propriedade da viatura; o referido cheque foi devolvido com a menção de revogação por extravio; ao réu BB foi depois apresentada a proposta de compra da viatura pelo valor de € 20.000,00, que este aceitou e pagou, tendo registado a viatura em seu nome; pede que seja declarada a nulidade da venda, por ter sido vítima do crime de burla e de falsificação; que o banco Banco 2... não comunicou, como era seu dever, ao Banco de Portugal, o extravio do cheque e a Banco 1..., não procedeu como lhe era exigível, tendo aceite a pagamento um cheque que se encontrava extraviado por furto. Os Réus vieram pugnar pela improcedência da ação, tendo o réu BB deduzido pedido reconvencional, peticionando que seja determinado o suprimento da declaração do autor/reconvindo como vendedor, seja declarada válida e eficaz a compra e venda do veículo em nome do réu, ou, subsidiariamente, ser declarada a propriedade plena do identificado veículo em nome do réu, por usucapião, considerando válido e eficaz o registo a seu favor; a condenação do autor/reconvindo no pagamento ao réu da quantia de € 5.000,00 a título de indemnização por danos patrimoniais e no pagamento da quantia de € 900,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo Réu. O autor veio desistir do pedido relativamente aos 2º e 3º réus, Banco 1... e Banco 2..., desistência essa que foi admitida por decisão transitada em julgado. Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar a ação e o pedido reconvencional totalmente improcedentes, absolvendo Autor e Réu dos pedidos respetivos. * Inconformado, o Autor recorreu e apresenta as seguintes conclusões: A) O presente recurso vem interposto da sentença proferida na ação em referência, que julgou improcedente a ação por si intentada contra BB, com os fundamentos de facto e de Direito que a seguir se expõem, porquanto, como se demonstrará, a mesma enferma de erros no julgamento da matéria de facto e de Direito, os quais viciaram o julgamento realizado pela Senhora Juiz “a quo”. B) Tal decisão assenta, erradamente, na alegada boa-fé do Apelado e na presunção derivada do registo automóvel, apesar de estar provado que a assinatura constante da declaração de venda que serviu de base ao registo era falsificada. C) A falsidade do título de registo determina a nulidade do registo (artigo 16.º, al. a), do Código do Registo Predial, aplicável ex vi artigo 29.º do Código do Registo Automóvel). D) Ora, a sentença recorrida ignorou a relevância do facto provado de que a assinatura na declaração de venda que serviu de base ao registo em nome do Réu BB era falsificada (cfr. artigo 16.º, al. a), do Código do Registo Predial). E) Com efeito, o Alegante foi vítima de burla em fevereiro de 2015, quando entregou a viatura Audi A6, matrícula ..-PA-.., a um indivíduo que se fazia passar por representante de um comprador, após ter confirmado (enganosamente) a entrada do valor de €45.000,00 na sua conta bancária. – Cfr. Facto n.º 1.1 dos Factos Provados. F) O cheque foi posteriormente devolvido por extravio, sem que o veículo tivesse sido devolvido, tendo a viatura sido mais tarde adquirida por BB, pai de EE, através de um negócio com terceiros não identificados, mediante entrega de documentos, entre os quais a declaração de venda com assinatura falsificada do Alegante. G) O próprio Acórdão proferido no âmbito do processo 45/15...., que correu termos pelo Juízo Central Criminal de Faro – Juiz 6, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, reconhece expressamente que a assinatura do Alegante foi falsificada, estando esta realidade registada pela Conservatória – Cfr. Factos 1.1, 1.2, 1.3 e 1.4 dos Factos Provados. H) Ademais, o artigo 16.º, al. a), do Código do Registo Predial determina que o registo é nulo quando fundado em título falso, como sucedeu nos presentes autos. I) Ora, o título usado pelo Réu BB (declaração de venda) tem uma assinatura falsificada, o que está comprovado nos autos – Cfr. Factos 1.2, 1.3 e 1.4 dos Factos Provados. J) Logo, o registo não beneficia da presunção de validade nem pode ser oponível ao verdadeiro proprietário. K) O artigo 291.º do Código Civil protege terceiros de boa-fé apenas quando o primeiro negócio inválido tem como parte o verdadeiro titular do direito — o que não sucede no caso dos autos, onde o veículo foi entregue a um burlão. L) A jurisprudência dos Tribunais da Relação de Lisboa e Coimbra é pacífica em considerar inaplicável o regime de proteção da boa-fé previsto no artigo 291.º CC quando a cadeia de negócios não teve origem em ato praticado pelo verdadeiro titular (ex.: Ac. TRL, 28.01.2021, proc. 2846/11.5TBCSC.L1-2; Ac. TRC, 18.09.2018, proc. 965/15.8T8PTM.C1). M) O Apelado não adquiriu o veículo de quem legitimamente o detinha, mas sim de terceiro não legitimado, através de documento forjado, o que inquina a validade da aquisição. N) O Alegante tem, por isso, direito à restituição do bem ou, subsidiariamente, à indemnização correspondente ao valor de aquisição do veículo (€29.000,00), conforme os artigos 879.º, al. a), 1305.º e 483.º do Código Civil. O) A sentença, ao ignorar os efeitos da falsidade do título e ao aplicar indevidamente a presunção do registo e a boa-fé, incorreu em erro de julgamento de facto e de Direito. P) O Tribunal “a quo” considerou erradamente provados os factos descritos nos pontos 1.12, 1.13 e 1.18 dos Factos Provados. Q) Isto, apesar de ter dado como provado os factos n.º 1.1, 1.2, 1.3 e 1.4 dos Factos provados. R) Ou seja, a Senhora Juiz “a quo” só deu como provados os factos descritos nos pontos 1.12, 1.13 e 1.18 dos Factos Provados, porque não atentou, como devia, nos documentos juntos com a petição inicial, os quais constam da motivação da decisão a pág. 11, nem valorou, como devia, o depoimento das testemunhas FF e EE. S) Para além do errado julgamento da matéria de facto quanto aos factos indicados nos pontos 1.12, 1.13 (=1.18) dos Factos Provados, o Tribunal “a quo” errou, como supra se mencionou, no julgamento da matéria de Direito. T) Apesar do Tribunal “a quo” ter considerado válidos os documentos anexados à petição inicial como Doc. 1, 2, 3, 6 e 7, julgou contraditoriamente como provados que «1.12 o negócio de compra e venda em que interveio o réu não foi celebrado com o autor, mas com terceiro, que adquiriu o mesmo bem de forma perfeita, mas que não registou esse negócio a seu favor.» U) Mas que terceiro? Quem é esse terceiro a que o Tribunal “a quo” faz referência que terá adquirido de forma perfeita o veículo ?!... V) A testemunha FF, cujo depoimento se encontra gravado em suporte digital com o seu nome e da audiência de 02/06/2022, entre as 17:06 e 17:31, não conseguiu identificar com clareza e credibilidade, entre os minutos 03:22 a 22:30 desse seu depoimento, quem era esse terceiro. W) O mesmo aconteceu com a testemunha EE, cujo depoimento se encontra gravado em suporte digital com o seu nome e da audiência de 02/06/2022, entre as 16:29 e 17:05, minutos 03:10 a 36:00. X) Dos depoimentos destas testemunhas resulta evidente que o negócio foi todo menos claro, e muito menos realizado com terceiro de forma perfeita! Y) Razão, pela qual, atento os documentos anexados aos autos – Doc. 1, 2, 6 e 7 juntos com a P.I., os factos provados sob os pontos 1.1, 1.2, 1.3 e 1.4 – e os depoimentos das testemunhas GG e EE, o Tribunal errou ao dar como provado que: 1.12, 1.13 e 1.18 (…) Z) Pois que o negócio foi tudo menos claro e o Réu, até porque trabalha na trabalha na Volkswagen e a Volkswagen está ligada à Audi, como foi referido pela Senhora Juiz “a quo”, não podia desconhecer que o automóvel estava a ser vendido por um preço muito abaixo do normal, por pessoa que não era o titular dos documentos, exigindo que preço fosse pago em dinheiro, AA) Razão, pela qual, o Réu, para além de não ter adquirido de terceiro de forma perfeita, devia, pelo menos, ter desconfiado do negócio. BB) Atento o atrás exposto, os factos indicados devem passar a ter a seguinte redação: «1.12 O negócio de compra e venda em que interveio o réu não foi celebrado com o autor.» ; «1.13 e 1.18 O réu devia ter desconfiado do negócio da compra do veículo em causa nos autos.» CC) Quando entregou a viatura o Alegante entregou a declaração de venda devidamente assinada por HH e por si, bem como, uma outra totalmente preenchida por si na qual constava o seu nome e assinatura, como vendedor, e o nome e dados do cartão de cidadão de II como comprador – Cfr. Doc. 2, 6 e 7 juntos com a p.i. e considerados pelo Tribunal “a quo”. DD) A declaração que serviu de base ao registo da viatura em nome de BB não foi preenchida pelo Autor e continha a assinatura do mesmo falsificada – Cfr. Factos 1.1 a 1.2, 1.3 e 1.4 dos Factos Provados. EE) O próprio Acórdão proferido no processo 45/15.... reconhece expressamente que a assinatura do Alegante foi falsificada, estando esta realidade registada pela Conservatória – Cfr. Factos 1., 1.1, 1.2, 1.3 e 1.4 dos Factos Provados – o que também foi aceite pelo Tribunal “a quo”. FF) Atento o disposto no artigo 16º, al. a) do C. R. Predial, a inscrição da propriedade, mediante a AP n.º ...71, de 18/03/2015, a favor de BB, deverá ser declarada nula a inscrição do registo feita com base na referida apresentação GG) E, em consequência, ordenado o cancelamento da respetiva inscrição a favor do Réu, BB. HH) É, aliás, o que resulta do disposto no n.º 1 do artigo 289º do C. Civil ao fixar que: «tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.» II) Parece-nos que tanto a jurisprudência como a legislação e bem assim alguma doutrina sustentam que o registo é nulo quando fundado em título falso - artigo 16.º, al. a), do Código do Registo Predial. JJ) Logo, o registo não beneficia da presunção de validade nem pode ser oponível ao verdadeiro proprietário, pois que, a boa-fé prevista no artigo 291.º do Código Civil visa proteger quem adquiriu de alguém que, embora sem legitimidade, foi aparentado como tal pelo verdadeiro titular. KK) Contudo, como pacificamente reconhecido na jurisprudência: “A cadeia de negócios inválidos só é protegida se tiver início no verdadeiro titular do direito” (Ac. TRC, 18.09.2018, proc. 965/15.8T8PTM.C1). LL) Neste caso, a cadeia foi iniciada por um burlão, sendo nula na origem e não sanável. Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, com a revogação da sentença recorrida e substituição por outra que dê provimento aos pedidos formulados pelo Alegante, designadamente, que seja declarada a nulidade do registo n.º ...71 de 18.03.2015 e seja o Réu condenado a indemnizar o Autor no valor de €29.000,00 correspondente ao prejuízo patrimonial sofrido. * O Ré BB contra-alegou, defendendo a correção do decidido. * As questões a decidir são as seguintes: A reapreciação da matéria de facto impugnada; As consequências da referida reapreciação e, concretamente, a proteção ou não do Réu adquirente, no âmbito do art.291 do Código Civil (CC). * A reapreciação da matéria de facto impugnada. O Recorrente questiona os factos provados em 1.12, 1.13 e 1.18. O Recorrente invoca a documentação e parte dos testemunhos de FF e EE. A prova a reconsiderar está sujeita à livre apreciação do julgador. Na reapreciação dos factos, o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.662, nº1, do Código de Processo Civil). Este tribunal forma a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos impugnados. (Abrantes Geraldes, Recursos, 3ªedição, 2010, Almedina, pág.320.) Reapreciados os documentos e a prova pessoal concretizada, a nossa convicção manifesta-se no mesmo sentido (essencial) do decidido, não encontrando razões para alterar a decisão sobre a matéria de facto, salvo o assinalado. Vejamos: Como decorre do apurado no processo crime, dos factos 1.17 e 1.20, não impugnados, dos documentos juntos e dos testemunhos indicados, com exceção do indício relativo aos valores de transação (note-se que o próprio Autor quis fazer um “proveitoso negócio”), mas não suficiente ou decisivo, nada nos permite dizer que o Recorrido conheça as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que terá ocorrido a aposição de uma assinatura efetuada pelo punho de pessoa diversa do recorrente, na declaração de venda automóvel que lhe foi entregue pelo possuidor. Os elementos disponíveis apontam para o total desconhecimento do requerido, relativamente ao que se passou antes da compra que realizou e registou. Em particular: Facto 1.12: é certo que o Réu não negociou com o autor, mas com um terceiro. Não é, porém, correto concluir aqui que o fez “de forma perfeita”. Também é certo que o referido terceiro não registou qualquer negócio do veículo a seu favor. Facto 1.13: como analisado, prova-se o réu não conhecia (ou desconfiava) os crimes de burla e/ ou de falsificação de documento de que o autor foi vítima, sendo esta a redação escolhida. O facto 1.18 é repetido do anterior, a eliminar. Pelo exposto, julgando improcedente a impugnação feita pelo Recorrente, sem prejuízo dos pormenores detetados, decidimos manter a decisão sobre a matéria de facto, com exceção das ressalvas assinaladas, a mencionar nos lugares próprios, a seguir. * Os factos provados são então os seguintes: 1.1 No âmbito do Proc. 45/15...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central Criminal de Faro – Juiz 6, por sentença, foram julgados provados os seguintes factos: «Em outubro de 2014, o assistente AA comprou o veículo automóvel Audi A6, matrícula ..-PA-.., a CC, que havia ganho na “Factura da Sorte”, pelo preço de €29.000,00. Por tencionar revendê-lo, o assistente não registou o veículo a seu favor e anunciou-o para venda, num stand de automóveis e no sítio da internet OLX, pelo preço de 45.000,00. Tomando conhecimento do anúncio, pessoas cuja identidade não se logrou apurar, gizaram um plano para fazer o assistente entregar o mencionado veículo, sem pagarem o preço. Em execução desse plano, no dia 15 de fevereiro de 2015, um indivíduo, cuja identidade não se logrou apurar, contactou telefonicamente, através do n.º ...69, o assistente AA, em resposta ao anúncio de venda. Apresentou-se como “Sr. DD” e, após ter questionado o assistente acerca das características do veículo e da quilometragem, logo mostrou interesse no negócio, pelo preço anunciado de €45.000,00, acordando com este que um funcionário da sua empresa viria encontrar-se com o mesmo em .... Nos dias seguintes, o mencionado indivíduo, identificando-se sempre como “Sr. DD”, contactou várias vezes o assistente e mostrou disponibilidade para efectuar o pagamento do modo que este melhor entendesse, acrescentando que o veículo se destinava à empresa que não identificou. No dia 23 de fevereiro de 2015, pelas 15h15, um indivíduo, cuja identidade não se logrou apurar, encontrou-se com o assistente, no posto de abastecimento da ..., junto do restaurante A..., em ..., apresentando-se como funcionário da empresa do “Sr. DD”. Dali, após terem entrado em contacto telefónico com o individuo que se identificava ao telefone como “Sr. DD”, foram até à garagem, ali próxima, onde se encontrava aparcado o veículo automóvel. Após esse indivíduo ter estabelecido contacto telefónico, com o indivíduo que se identificava ao telefone como “Sr. DD”, com informação que o veículo automóvel estava em bom estado, este, pelo mesmo meio, disse ao assistente que, de imediato, iria dar ordens à sua funcionária para que procedesse à transferência e que a poderia confirmar, logo de seguida, no multibanco. Após esse telefonema, o indivíduo entregou ao assistente uma cópia do cartão de cidadão de JJ, que identificou como sócio do “Sr. DD”, dizendo que o veículo iria ser registado no nome deste afirmando que tal indivíduo era sócio do “Sr. DD”. Enquanto o assistente se encontrava com o mencionado indivíduo no posto de combustível, pelas 15h18, uma outra pessoa, cuja identidade não se logrou apurar, dirigiu-se ao balcão de faro da Banco 1... e procedeu ao depósito do cheque n.º ...70, pertencente à conta n.º ...59 do Banco 3..., titulada por B..., Unipessoal, Ld.ª, no montante de €45.000,00, na conta bancária n.º ...00, titulada pelo assistente. Alguns minutos depois, através de contacto telefónico, uma pessoa, cuja identidade não se logrou apurar, disse ao assistente que confirmasse a transferência numa caixa Multibanco, o que este fez, verificando um crédito de €45 000,00 na sua conta bancária. Na convicção de que o pagamento havia sido realizado, o assistente entregou ao mencionado indivíduo o veículo automóvel, bem como os documentos necessários à inscrição no registo de propriedade, designadamente o requerimento de registo de automóvel relativo ao negócio celebrado entre si e KK e o requerimento de registo automóvel com os dados de identificação de ambos os contraentes preenchidos e que assinou. Na posse dos mesmos, o mencionado indivíduo levou o veículo automóvel e os documentos. O cheque depositado na Banco 1... foi devolvido, em razão da ordem de revogação, por extravio. Na posse do veículo e dos respectivos documentos, pessoas, cuja identidade não se logrou apurar, diligenciaram pela venda do mesmo. Para tanto, contactaram, através de indivíduo cuja identidade não foi possível apurar, FF, quem, por sua vez, apresentou a possibilidade de negócio aos arguidos BB e EE, pelo valor de €20 000,00. Estes arguidos, à data dos factos, exerciam a profissão de mecânico automóvel, e dedicavam-se à compra e venda de veículos. Os arguidos BB e EE aceitaram a compra do veículo, pelo preço proposto de €20 000,00. No dia 18 de março de 2015, o arguido EE deslocou-se a ..., onde se encontrou com um outro individuo, cuja identidade não foi possível apurar, que estava na posse do veículo. Em ..., o arguido EE entregou a quantia de €20 000,00, em dinheiro, a esse indivíduo, quem, por sua vez, lhe entregou o veículo automóvel, as respectivas chaves e, bem assim, um requerimento de registo automóvel previamente preenchido com a identificação do assistente e com o nome deste aposto, no espaço destinado à assinatura do vendedor, mas não assinado pelo assistente. O arguido BB veio registar o veículo automóvel a seu favor, no dia 18 de março de 2015, data em que foi registada a aquisição da propriedade a favor do assistente. O veículo automóvel foi avaliado, à data dos factos, com o valor de mercado de €36.800,00. A gestora de conta do assistente na Banco 1..., balcão de ..., é LL, a quem o assistente no dia 23 de fevereiro de 2015 contactou telefonicamente. Em virtude do descrito, o assistente ficou noites sem conseguir dormir, diligenciou por saber de casos idênticos. Sentiu-se revoltado e culpado com a situação.» 1.2 Em 18 de março de 2015, o veículo automóvel Audi A6, matrícula ..-PA-.. foi registado a favor de BB, mediante a apresentação n.º 8271, na Conservatória do Registo Automóvel, existente na Loja de Cidadão de .... 1.3 Pelo citado Acórdão, proferido em 19 de dezembro de 2018, foi decidido, além do mais: “f) Declarar que o requerimento de registo automóvel referente à viatura com a matrícula ..-PA-.., datado de 18 de Março de 2015, contém uma assinatura falsificada (a do vendedor), o que se declara nos termos do art. 170.º, n.º 1 do Código de Processo Penal” 1.4 Por essa razão, em 01 de março de 2019, o Autor requereu junto da Conservatória do Registo de Automóvel ... a anotação no registo automóvel de tal falsidade do registo de propriedade AP ...71, o que veio a suceder pela anotação n.º de ordem 9779 1.5 A 2ª Ré, Banco 1..., aceitou a pagamento um cheque que se encontrava extraviado por furto desde 1 de abril de 2014. 1.6 O Autor procedeu à entrega nessa mesma tarde do referido veículo ao funcionário desse Sr. DD, bem como as declarações de venda passadas pelo Senhor MM a si, a declaração de venda passada pelo Autor ao tal Senhor JJ, cópia do seu cartão de cidadão, passaporte e cartão de contribuinte do Senhor MM e Documento único do veículo. 1.7 O Autor ficou com a fotocópia do cartão de cidadão do referido Senhor JJ. 1.8 No dia 25 de fevereiro, o Autor foi confrontado com a devolução do cheque de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), ao consultar a sua conta online, razão, pela qual, apresentou a queixa criminal que deu origem aos autos n.º 45/15...., que correram termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central Criminal de Faro – Juiz 6. 1.9 Os factos que fundamentaram a apresentação de queixa criminal por parte do Autor, ocorreram em 23 de fevereiro de 2015, tendo sido deduzida Acusação Pública 27 de Novembro de 2017 e proferido Acórdão em 19 de Dezembro de 2018. 1.10 A páginas 25 do Acórdão proferido, decidiu-se que: «… porque não se provou que os arguidos praticaram factos que constituem crime, não há lugar ao conhecimento nesta sede dos pedidos formulados pelo assistente de declaração de nulidade da venda, de retificação do registo e de restituição do veículo. O que não põe em causa os direitos do assistente/demandante, que pode acionar a eventual responsabilidade do arguido BB na adequada acção civil». 1.11 Por sua vez, «o pedido não foi admitido contra Banco 1..., S.A. e Banco 2..., S.A., pelas razões aduzidas no despacho de fls. 1096 a 1097». 1.12 (Alterado) O Réu BB não negociou com o autor, mas com um terceiro. Este não registou qualquer negócio do veículo a seu favor. 1.13 (Alterado.) O Réu BB não conhecia (ou desconfiava) os crimes de burla e/ ou de falsificação de documento de que o autor foi vítima. 1.14 O réu, no âmbito de todo o processo crime que culminou com a prolação do acórdão, colaborou na investigação com as autoridades judiciárias, fornecendo todas as informações que lhe foram solicitadas, quanto ao preço efetivo pelo que adquiriu o veículo, por outro, em que foi absolvido na totalidade. 1.15 O réu não interveio no negócio que o autor pretende ver anulado; 1.16 Não foi ao réu que aquele entregou o veículo em causa nos autos nem as declarações de venda necessárias a efetuar o registo da aquisição do mesmo, mas a um terceiro. 1.17 O réu desconhece em que circunstância de tempo, modo e lugar terá ocorrido a aposição de uma assinatura efetuada pelo punho de pessoa diversa do autor na declaração de venda automóvel que lhe foi entregue pelo anterior comprador. 1.18 Eliminado porque repete o 1.13. 1.19 Não obstante a apreensão do veículo automóvel (e as inerentes limitações à utilização do mesmo), o réu suportou o pagamento de todos impostos únicos de circulação relativos ao mesmo, desde a sua aquisição, bem como à respetiva conservação, desde março de 2015. 1.20 De forma pública, contínua, ininterrupta, permanente e de boa fé, na convicção do exercício de um direito próprio e sem prejuízo de terceiros; 1.21 O autor adquiriu o veículo a KK, sem ter diligenciado pelo registo do mesmo a seu favor e colocou-o à venda no OLX, pois era sua intenção revendê-lo. 1.22 O autor entregou o veículo ao referido indivíduo, bem como a respetiva declaração de venda devidamente assinada por si. 1.23 O autor entregou o veículo a um indivíduo que não conhecia, sem cuidar de assegurar que o pagamento do preço da respetiva venda se encontrava assegurado. 1.24 A apreensão da viatura automóvel gerou, a esfera patrimonial do réu, prejuízos, correspondentes ao lucro que o réu deixou de auferir com a revenda do veículo, como pretendia aquando da respetiva aquisição, resultante da desvalorização que o mesmo sofreu nos últimos anos. 1.25 O Réu suportou os impostos únicos de circulação do veículo desde março de 2015, bem como as manutenções realizadas ao mesmo. 1.26 Em virtude da conduta do autor, o réu sentiu-se triste e revoltado pelo facto de estar a ser responsabilizado pela irregularidade de um negócio em que não interveio e para o qual não contribuiu. 1.27 Viu colocada a honestidade e lisura com que sempre pautou o seu comportamento, seja nos negócios em que intervém, seja no trato social com as pessoas com quem se relaciona no seu quotidiano, sendo pessoa conhecida no meio social onde se insere e no ramo em que labora (reparação e comércio de automóveis). * Seguindo de perto a jurisprudência dos acórdãos do STJ, de 14.1.2025, no proc. 1301/20 e da Relação de Lisboa, de 28.1.2021, no proc. 2846/11, em www.dgsi.pt, relativa à interpretação do art. 291 do Código Civil, podemos sintetizar o seguinte, para este caso: Ocorrendo anulação da venda feita pelo Autor a terceiros, o Réu, estando de boa fé, deve ser protegido. O juízo de protecção e tutela de terceiros de boa fé, equacionado naquele artigo, opera quando é o verdadeiro titular do direito a dar origem à cadeia de negócios que vai culminar com a aquisição onerosa, por terceiro de boa fé. Ora, o Autor adquiriu o veículo a CC, recebeu dele toda a documentação, mas não levou a declaração de venda ao registo, a seu favor. Depois, o Autor vendeu o veículo a terceiros, entregando-o, juntamente com todos os documentos necessários, incluindo os destinados ao registo, como sejam duas declarações de venda, uma de CC e outra de si próprio. No registo consta a aquisição de CC, com data de 7.10.2014. O veículo é depois vendido por um terceiro ao Réu, entregando a este o mesmo, com documentação a ele relativa, também destinada ao registo. O Réu regista a aquisição a seu favor em 18.3.2015. Nesta data, consta ainda o registo a favor do Autor, feito com base na declaração de venda que o terceiro entregou ao Réu, que se veio a julgar depois com assinatura falsificada (nota: embora existisse uma declaração de venda do Autor verdadeira que ele entregou a terceiros). Apesar da falsidade da assinatura na declaração de venda (declarada no processo criminal), considerando a natureza limitada desta, aquela não exclui a realidade e eficácia da compra e venda entre o terceiro e o Réu. Quer isto dizer que o Autor, titular que foi do veículo, foi quem deu origem à cadeia de negócios que vai culminar na aquisição onerosa do Réu, terceiro para com o Autor, e de boa fé. O Autor quis e declarou vender, perdendo o domínio da coisa e o controle sobre os sucessivos negócios. Até que seja anulado (a declaração do Autor pode ser anulada com base no dolo fraudulento da outra parte – 254 do CC), o negócio inicial de venda é válido e eficaz. Embora a anulação tenha efeito retroativo (289 do CC), o já referido art.291 torna esse efeito inoponível ao Réu. Também conforme o doc. 2, junto com a petição, a aquisição a favor do Réu é registada em 18.3.2015, a ação apenas entra em 14.6.2019 e não é registada; “a invocação da falsidade da assinatura” é anotada no registo em 1.3.2019. Qualquer destas datas ultrapassa os 3 anos referidos na norma. Assim, o engano a que foi sujeito o Autor, não recebendo o preço de terceiros, não pode ser oponível ao Réu, recebendo deste o veículo ou uma indemnização compensatória à não entrega ou a uma entrega daquele desvalorizada. Não se prova que tenha sido o Réu o responsável pelo facto ilícito em que assenta o pedido de indemnização do autor. * Decisão. Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida. Custas pelo Recorrente, vencido (art.527º, nº 2, do Código de Processo Civil). 2025-11-20 (Fernando Monteiro) (Vítor Amaral) (Alberto Ruço)
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