Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
20/19.1T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
CADUCIDADE DO DIREITO A AÇÃO RESPEITANTE ÀS PRESTAÇÕES
Data do Acordão: 03/20/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO DO TRABALHO DA COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 179º, Nº 1 DA LAT (LEI 98/2009, DE 4/9).
Sumário: I – Estabelece o artº 179º, nº 1 da LAT (Lei 98/2009, de 4/9,) que “O direito de ação respeitante às prestações fixadas na presente lei caduca no prazo de um ano a contar da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado ou, se do evento resultar a morte, a contar desta”.

II - O prazo de um ano para a contagem do prazo de caducidade do direito de ação, em sede de acidente de trabalho, só se inicia quando o sinistrado se encontra real e efectivamente curado ou quando as lesões desapareceram completamente ou se apresentam como insusceptíveis de modificação mediante terapêutica adequada, contando-se o tempo decorrido entre a cura clínica e a data da entrada no Tribunal da participação do acidente, a qual corresponde para todos os efeitos ao momento em que a ação se encontra instaurada, independentemente da data posterior em que o processo venha a entrar na fase contenciosa.

III - No domínio da vigência de Lei nº 2127 entendia-se, de maneira uniforme, que esse prazo de caducidade de um ano, previsto na Base XXXVIII, se iniciava no momento em que era dado conhecimento ao sinistrado da data da sua cura clínica, através da entrega do boletim de alta. Para que ocorresse a caducidade do direito de ação às prestações não bastava a cura clínica do sinistrado, impunha-se ainda o conhecimento dessa cura pelo acidentado, o que só ocorreria quando lhe fosse entregue o boletim de alta. Era a partir desta entrega que o sinistrado ficava habilitado a exercer os seus direitos.

IV - Este entendimento ficou reforçado com a redacção dada ao artº 32º, nº 1, da Lei 100/97, ao exigir que a “data da alta clínica” seja “formalmente comunicada ao sinistrado”.

V - O mesmo acontecendo no domínio da LAT/2009 - não estando em causa uma situação de morte, o direito de ação caduca no prazo de um ano a contar da alta clínica “formalmente comunicada ao sinistrado”- artº 179º, nº 1, citado.

VI - O prazo de caducidade do direito de acção só começa a correr depois da efectiva entrega ao sinistrado do boletim da alta elaborado na forma legal, não bastando o mero conhecimento por parte deste de que lhe foi conferida a alta.

Decisão Texto Integral:                      

                                   Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:                                                                   J... veio instaurar contra “SEGURADORA G..., S.A.”, Segurado à data de 2010, desconhecendo-se o nome da mesma, porquanto a entidade patronal (F...) jamais facultou a sua identificação”, e F.., SA, a presente acção especial de acidente de trabalho, formulando o seguinte pedido:

                              “Nestes termos e nos melhores de direito deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, devendo, em consequência, serem os réus condenados a pagar ao autor, no mínimo e sem prejuízos de demais regalias previstas na lei, o seguinte:

                        A) – Pensão anual vitalícia;

                        B) – Responsável por eventual agravamento das incapacidades permanentes de pensão anual vitalícia;

                        C) – Ajuste de indemnização por ITP;

                        D) – Todas as ajudas que o autor venha a necessitar emergentes do acidente;

                        E) – A título de danos não patrimoniais 2.500 euros;

                        F) – A título de incapacidade permanente absoluta para trabalho habitual, 2500 euros;

                        G) – A nível da incapacidade sofrida pelo trabalhador, requer-se o montante no mínimo de 45.000 euros;

                        H) – A título de danos patrimoniais, de mil euros e 25 euros, que protesta juntar o valor.

                        I) – A título de indemnização por represálias do patrão o valor de

                        J) – Bem como o pagamento de todas as deslocações ao Tribunal, pretéritas e futuras”.

                              Alegou, para tanto e tal como consta da sentença recorrida, que foi vítima de acidente de trabalho em 2009, que consistiu lhe ter salpicado ácido da caldeira para os olhos, e que, desde então, jamais teve saúde ocular.

                              A G..., SA, em sede de contestação veio alegar que, tendo o Autor participado o dito alegado acidente ao tribunal de trabalho apenas em 20/12/2018, caducou o seu direito de acção, face ao previsto no artº 179º, nº 1 da LAT.

                              O tribunal recorrido entendeu que por “não necessitar de produção de prova adicional, conhece-se imediatamente do mérito da ação”.

                              Foi proferido saneador-sentença, decidindo-se o seguinte:

                              “Pelo exposto, julgando procedente a exceção da caducidade do direito de ação, decide-se absolver as rés, G..., SA, e F..., dos pedidos deduzidos pelo autor J...

                        Em face do decidido inútil se torna apreciar as demais exceções suscitadas pelas rés.

                        Custas pelo autor, sem prejuízo de qualquer isenção ou apoio judiciário de que beneficie”.

                                                           x

                              Inconformado, veio o Autor interpor recurso de apelação, terminando com as seguintes conclusões:

                        ...

                        A seguradora contra-alegou, propugnando pela manutenção do julgado.

                              O Exmº PGA emitiu parecer.

                              Cumpre apreciar e decidir.

Sendo o objecto de recurso delimitado pelas conclusões do mesmo, temos, como única questão a apreciar, se se verifica a caducidade do direito de acção.

Para a apreciação do recurso releva a factualidade descrita no relatório do presente acórdão.

                              - o direito:

                              A sentença recorrida considerou que se verifica a caducidade do direito de acção, por o acidente ter sido apenas participado em 20/12/2018, ou seja já depois de decorrido muito mais de um ano desde a data da ocorrência do facto gerador da responsabilidade.

                              Entendimento não subscrito pelo apelante, por inexistência de entrega do boletim de alta.

                              Vejamos:

                              O Autor apenas efectuou a participação em 20 de Dezembro de 2018, relativamente ao acidente alegadamente ocorrido em 2009.

               Como se refere na decisão recorrida, a data da alta clínica, como resulta de fls. 26 verso e 27, ocorreu em 04/01/2009.

                              Estabelece o artº 179º, nº 1 da LAT (Lei 98/2009, de 4/9,) que “O direito de acção respeitante às prestações fixadas na presente lei caduca no prazo de um ano a contar da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado ou, se do evento resultar a morte, a contar desta”.

                              O prazo de um ano para a contagem do prazo de caducidade do direito de acção, em sede de acidente de trabalho, só se inicia quando o sinistrado se encontra real e efectivamente curado ou quando as lesões desapareceram completamente ou se apresentam como insusceptíveis de modificação mediante terapêutica adequada, contando-se o tempo decorrido entre a cura clínica e a data da entrada no Tribunal da participação do acidente, a qual corresponde para todos os efeitos ao momento em que a acção se encontra instaurada, independentemente da data posterior em que o processo venha a entrar na fase contenciosa.

                              No domínio da vigência de Lei nº 2127, entendia-se, de maneira uniforme, que esse prazo de caducidade de um ano, previsto na Base XXXVIII, se iniciava no momento em que era dado conhecimento ao sinistrado da data da sua cura clínica, através da entrega do boletim de alta. Para que ocorresse a caducidade do direito de acção às prestações não bastava a cura clínica do sinistrado, impunha-se ainda o conhecimento dessa cura pelo acidentado, o que só ocorreria quando lhe fosse entregue o boletim de alta. Era a partir desta entrega que o sinistrado ficava habilitado a exercer os seus direitos.

                              Este entendimento ficou reforçado com a redacção dada ao artº 32º, nº 1, da Lei 100/97, ao exigir que a “data da alta clínica” seja “formalmente comunicada ao sinistrado”.

                              O mesmo acontecendo no domínio da LAT/2009 -  não estando em causa uma situação de morte, o direito de acção caduca no prazo de um ano a contar da alta clínica “formalmente comunicada ao sinistrado”- artº 179º, nº 1, citado.

                              Sendo à seguradora, a quem aproveita a caducidade, que compete alegar e provar que entregou ao sinistrado o referido boletim de alta  há mais de um ano, por se tratar de facto impeditivo do direito alegado pelo sinistrado.

                              Não esquecendo que a participação do acidente constitui a primeira manifestação destinada ao exercício do direito que assiste ao sinistrado ou aos seus beneficiários legais de receber as prestações devidas como reparação por um acidente de trabalho.
                        A propósito desta matéria escreveu-se, com aplicação ao caso dos autos, no Ac. desta Relação de Coimbra de 24/4/2014 (relator Azevedo Mendes), proc. 725/11.5TTCBR.C1:

               “Esta norma estabelece um prazo de caducidade do direito de acção, o qual – no caso do direito da autora - começa a correr a partir da data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado. Ou seja, não basta que a sinistrada tenha recebido alta, antes é necessária a sua comunicação formal, comunicação essa que deve ter lugar, a nosso ver, nos termos previstos no art. 32.º do DL n.º 143/99, de 30/4 (diploma legal que regulamentou a LAT de 1997) – neste sentido v., entre outros, o Ac. desta Relação de 4-6-2009, proc. 309/07.2TTTMR.C1, e o Ac. do STJ de 10-7-2013, proc. 941/08.7TTGMR.P1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt.

               É também exacto que, como resulta do artigo 26.º, n.º 2 do Código de Processo do Trabalho, nas acções emergentes de acidentes de trabalho a instância inicia-se com o recebimento da participação do acidente. Por isso, o momento a atender para efeito da caducidade do direito da acção não é o da data da propositura da acção respeitante à fase contenciosa do processo (117.º e segs. do C.P.T.), mas sim o da data da participação que marca o início do processo e da sua fase conciliatória (99.º nº 1 do C.P.T.) – neste sentido, entre outros v. Ac. da Rel. de Coimbra de 11-3-2003, in CJ, t. II, p. 56,  Ac. da Rel. de Lisboa de 14-12-2004, in CJ, t. V, p. 161 e Ac. do STJ de 11-10-2005, in www.stj.pt, proc. 05S1695. Os processos de acidente de trabalho correm oficiosamente, sem necessidade, por isso, do impulso das partes, como resulta do n.º 1 do art. 26.º n.º 2 do C.P.Trabalho. Daí que se a participação entrar no prazo de um ano a contar da alta clínica, esse facto impede a caducidade (331.º, n.º 1 do Código Civil). É que então a acção emergente do acidente de trabalho está proposta.

            No caso do acidente de trabalho referenciado nos autos, a participação do acidente em juízo foi feita no dia 8-06-2011.

            Para que o prazo de caducidade do direito de acção ocorresse seria necessário que a alta clínica tivesse sido formalmente comunicada à sinistrada um ano antes dessa data.

            Como decorre do que fica dito e tal como temos entendido nesta Relação, o prazo de caducidade do direito de acção só começa a correr depois da efectiva entrega ao sinistrado do boletim da alta elaborado na forma legal, não bastando o mero conhecimento por parte deste de que lhe foi conferida a alta (v. Acs. desta Relação, entre outros, de 20-10-2005 e de 4-6-2009 – já acima indicado -, in www.dgsi.pt).

               Neste sentido, e no âmbito de aplicação temporal da Lei nº 2127, vejam-se os acórdãos do S.T.J. de 8 de Junho de 1995,  in BMJ 448/243, e de 3 de Outubro de 2000, in C.J./S.T.J., Ano VIII, Tomo III, pg. 267.

            No domínio temporal da Lei 100/97, mantendo plena actualidade em face do disposto no citado artigo da LAT/2009, considerou-se no Ac. do STJ de 20/2/2017, disponível em www.dgsi.pt, que “a caducidade do direito de acção ocorre se a acção não for intentada observando a triplicidade cumulativa que se enuncia:

                              - não ter sido proposta no prazo de um ano;

                              - a contar da data da alta clínica;

                              - alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado.

                              Ou seja: o prazo de um ano só começa a contar a partir da alta clínica e desde que esta observe o último requisito assinalado – o da comunicação formal dessa alta clínica ao sinistrado.

                              A alta clínica, com a referida formalidade, assume aqui o elemento fulcral para que a contagem do prazo de um ano se inicie”.

          (...)

                              Da análise da referida norma ressalta, em nosso entender, que no âmbito do Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais apenas a alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado despoleta o início da contagem do prazo de caducidade estipulado no nº 1 do seu art. 32º (Lei nº 100/97, de 13 de Setembro)”.

                              “… Do texto dos aludidos preceitos legais não se extrai qualquer elemento interpretativo no sentido de que o prazo do direito de acção respeitante às prestações fixadas na lei se inicia com o mero conhecimento por parte do sinistrado de que lhe foi conferida a alta, antes resulta dos conjugados artigos 32.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, 32.º, nºs 2 a 4, e 63.º do Decreto-Lei n.º 143/99, que o direito de acção respeitante às prestações fixadas naquela lei caduca no prazo de um ano a contar da alta clínica comunicada formalmente ao sinistrado, mediante a entrega de duplicado do boletim de alta, de modelo aprovado oficialmente” - Ac. do STJ de 10/07/2013, nº 941/08.TTGMR.P1.S1, in www.dgsi.pt, no que constitui jurisprudência pacífica desse Supremo Tribunal – cfr. Ac., citado, de 20/2/2017.

                              Assim sendo, é completamente irrelevante que, tal como  acontece no caso que no ocupa, tenha mediado mais de um ano entre a data de ocorrência do alegado acidente e a sua participação a Tribunal. Nos casos em que não há participação do acidente à entidade seguradora e esta não prestou tratamentos médicos, e que a participação do acidente apenas tenha sido despoletado pelo sinistrado ao abrigo da faculdade prevista no artº 92º da LAT, e inexistindo esse tratamento ou submissão a perícia médica não pode ser emitido o respectivo boletim de alta nem ser declarada a cessação do tratamento e o grau de incapacidade permanente ou temporária, pelo que não se mostra verificado o requisito previsto na lei para o início da contagem do prazo de caducidade.

                              Foi o entendido no mencionado Ac. do STJ de 20/2/2017 (para cuja fundamentação exaustiva remetemos e que trata de um caso em que foi participado ao Tribunal, em 19 de Maio de 2015, um acidente alegadamente sofrido em 03/07/2009):

                              “Ora, a inexistência desse facto – da “alta clínica” – que a lei expressamente exige no nº 1 do citado art. 32º da LAT/97, para a contabilização e início do prazo de um ano e a consequente caducidade do direito de acção, impede que o decurso do prazo opere.

                              Valem para tanto, as razões assinaladas nos pontos anteriores.

                              Não podiam, por isso, as instâncias considerar que o direito de acção da Autora caducara, porquanto a lei apenas permite que tal ocorra um ano após a data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado.

                              Esse momento – o da alta clínica – porque não fixado, impede a produção de tais efeitos.

                              E a falta desse pressuposto inviabiliza a contagem de qualquer prazo.

          (...)

                              Não estando determinada a data da alta clínica, nem tendo esta sido formalmente comunicada ao sinistrado, não pode concluir-se no sentido de que “caducou o direito de acção”, porquanto a caducidade só começa a correr a partir desse momento, sendo a data da alta clínica o facto determinante a partir do qual pode ser exercido o direito, nos precisos termos estatuídos pela primeira parte do nº 1, do art. 32º, da LAT/97.

                              E sem essa determinação, pese embora o lapso de tempo decorrido entre a data do alegado acidente e a sua participação ao Tribunal, desconhece-se se a Autora ainda padece ou não de alguma lesão, se existe ou não cura clínica, resultante da assistência médica a que a Sinistrada foi submetida por sua iniciativa, ou quiçá se as queixas que apresenta são fruto do referido acidente de trabalho ou resultam antes de doença natural.

                              Só a alta clínica prevista na lei permite dar resposta a tais questões através da declaração médica correspondente.

                             Com efeito, só com os boletins de exame e de alta clínica da competente autoria médica poderão ser descritas as doenças ou lesões que forem encontradas à Sinistrada, a sintomatologia apresentada e a sua relação, ou não, com o acidente alegado, bem como emitida a respectiva declaração médica se as lesões desapareceram totalmente ou se apresentam como insusceptíveis de modificação com terapêutica adequada”.

            Sendo este o entendimento do nosso mais Alto Tribunal (que, aliás, merece a nossa total concordância), só nos resta julgar procedente a apelação.

            Impõe-se assim a revogação da decisão recorrida, com a consequente determinação de que os autos sigam os seus ulteriores termos.

Decisão:

                              Nos termos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se o saneador-sentença recorrido e considerando-se improcedente a excepção de caducidade do direito de acção, devendo os autos seguir os seus ulteriores termos, com a realização, se for caso disso, da audiência de julgamento.

                              Custas pela apelada / seguradora.

                                                                                                        Coimbra, 20/03/2020