Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1654/18.7T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA MARIA ROBERTO
Descritores: DEVER DE COLABORAÇÃO
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
NOTIFICAÇÃO DA PARTE
DESPEDIMENTO COM JUSTA CAUSA
OFENSA PRATICADA PELO TRABALHADOR
Data do Acordão: 03/20/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – JUIZO DO TRABALHO DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 417º, Nº 2 DO NCPC; 351º, Nº 1 DO CÓDIGO DO TRABALHO.
Sumário: 1. Se o trabalhador praticou uma ofensa punida por lei sobre uma formanda da Ré, ou seja, ato sexual de relevo com pessoa incapaz de resistência, é manifesta a gravidade do seu comportamento, em si mesmo, e nas suas consequências, desde logo, porque tipificado como crime e tendo em conta que a empregadora intervém junto de cidadãos com deficiências ou incapacidades e respetivas famílias, de forma a proporcionar a sua inclusão social e melhoria na sua qualidade de vida, respetivamente.

Não é exigível à empregadora que mantenha a relação laboral com um trabalhador que no exercício das suas funções de coordenador, atuou da forma descrita, o que originou uma absoluta quebra de confiança.

2. Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPC, impõe-se a notificação expressa da parte no sentido da possibilidade da inversão do ónus da prova. Se, finda a produção de prova, o tribunal nada ordenou e o trabalhador nada mais requereu ou arguiu perante o tribunal recorrido no sentido do cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPC, na sentença recorrida não se impunha o conhecimento de tal questão porque a Ré não foi notificada com a expressa advertência da possibilidade de inversão do ónus da prova. Na sentença impõe-se apenas a apreciação das consequências previstas na 2ª parte do n.º 2 do artigo 417.º do CPC, após notificação com expressa advertência das mesmas.

3. Se o contrato de trabalho cessou por despedimento regular e lícito, em setembro de 2018, estando a empregadora ainda em tempo de desenvolver a formação contínua (artigo 130.º, n.º 2, do CT), o que não fez por acto imputável ao trabalhador que inviabilizou a possibilidade de promoção daquela formação, inexiste qualquer crédito de formação respeitante a esse ano de 2018.

Decisão Texto Integral: Acordam[1] na Secção Social (6ª secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

F..., coordenador, residente na ...

intentou a presente ação especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento, contra

C... – Cooperativa de Educação e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados da ..., CRL, com sede na ...

Para tanto, apresentou o formulário de fls. 2, opondo-se ao despedimento de que foi alvo e requerendo que seja declarada a ilicitude ou a irregularidade do mesmo, com as legais consequências.

  Procedeu-se à realização de audiência de partes e a empregadora, notificada para apresentar articulado motivador do despedimento veio fazê-lo alegando, em síntese, que:

O trabalhador exerceu as funções de coordenador na C...; a aluna ... descolocou-se ao gabinete do trabalhador e no interior do mesmo, encontrando-se a sós, aproximou-se daquela e apalpou-lhe os seios; por existirem indícios suficientes da prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, foi apresentada proposta de suspensão provisória do processo por um ano mediante o cumprimento de injunções ao arguido, ora trabalhador que deu a sua concordância e da qual a C... foi notificada em 15/05/2018; o trabalhador violou os deveres de respeito e urbanidade e de realizar o trabalho com zelo e diligência, comportamento culposo e grave que tornou prática e imediatamente impossível a subsistência da relação de trabalho e constitui justa causa de despedimento.

Termina, dizendo que deve ser julgada improcedente a presente ação e, por via disso, ser declarada a regularidade e licitude do despedimento do A., com as demais e legais consequências.

                                                           *

O trabalhador apresentou contestação alegando, em síntese, que:

O processo disciplinar é nulo, ilegal, inexistente e ineficaz, por duplicação de processos disciplinares pelo mesmo facto; o processo disciplinar é nulo, inválido e sem qualquer efeito, por violação do disposto no artigo 329.º, n.º 2, do CT; o direito de exercer o poder disciplinar encontra-se prescrito; é inocente relativamente aos factos que lhe são imputados na nota de culpa, tendo aceitado a suspensão provisória como maneira de finalizar o processo, por estar exausto, emocionalmente debilitado e em profundo desespero por pairarem sobre si, há mais de dois anos, a suspeita de factos tão hediondos e por estar privado da sua atividade profissional; não se verificam quaisquer requisitos para justa causa de despedimento.

Termina dizendo que deverá ser declarado que:

                                                           A

O despedimento, agora em causa, é nulo e sem qualquer efeito, pois o processo disciplinar que lhe deu origem consiste numa verdadeira duplicação de processos disciplinares pelo mesmo fato em violação das normas supra referidas;

O processo disciplinar anterior, no âmbito do qual foi decretada a suspensão preventiva do Trabalhador, se encontra prescrito, no âmbito do nº 3 do art. 329º do Código do Trabalho;

Sem prescindir e subsidiariamente

B

Para o caso de entendimento diverso, com o qual não se consente, e à cautela de patrocínio, sempre deverá o presente processo disciplinar ser declarado nulo, inválido e sem qualquer efeito, por violação do disposto no art. 329º, nº 2 do C.T., sendo, por consequência, nulo o despedimento em causa nestes autos, devendo ser determinada a reintegração do Trabalhador e o pagamento de todas as compensações que deixou de auferir, desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da sentença – art. 389º, nº 1, al. b) do C.T.;

Sem prescindir e subsidiariamente,

C

O procedimento disciplinar em causa é nulo, inválido e juridicamente ineficaz, por estar prescrito o direito de exercer o poder disciplinar pelos fatos em causa, sendo, por consequência, nulo o despedimento em causa nestes autos, devendo ser determinada a reintegração do Trabalhador e o pagamento de todas as compensações que deixou de auferir, desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da sentença – art. 389º, nº 1, al. b) do C.T.;

Sem prescindir, subsidiariamente,

D

E à cautela de patrocínio, o despedimento deve ser decretado improcedente, por não provada a factualidade que o fundamenta, não tendo o Autor violado quaisquer normas e deveres impostos pela legislação laboral, designadamente os descritos na fundamentação do despedimento, não existindo qualquer comportamento por parte do Arguido que fundamente uma justa causa de despedimento, sendo, por consequência, nulo o despedimento em causa nestes autos, devendo ser determinada a reintegração do Trabalhador e o pagamento de todas as compensações que deixou de auferir, desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da sentença – art. 389º, nº 1, al. b) do C.T.;

Sem prescindir e subsidiariamente

E

Tendo em conta a alínea d) do nº 1 do art. 331º do C.T., a sanção de despedimento aplicada no âmbito do procedimento disciplinar em crise, por ter como verdadeiro motivo o mero exercício de direitos do Trabalhador, é abusiva, devendo a sua ilegalidade ser declarada por esse Douto Tribunal, sendo, por consequência, nulo o despedimento em causa nestes autos, devendo ser determinada a reintegração do Trabalhador e o pagamento de todas as compensações que deixou de auferir, desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da sentença – art. 389º, nº 1, al. b) do C.T.;

Cumulativamente,

- Deverá a Ré ser condenada no pagamento das férias não gozadas, num total de 117 dias de férias, que deverão ser indemnizados num valor de €7.654,03 se tivermos em conta a remuneração efetivamente paga, ou €9.312,03 se tivermos em conta o ordenado atualizado, bem como nas férias vincendas desde o despedimento até o transito em julgado da decisão (caso o despedimento venha a ser declarado nulo, conforme pugnado);

- Deverá a Ré ser condenada a reconhecer que de acordo com Contrato Coletivo entre a AEEP e a FENPROF – Alteração salarial, publicada no BTE 30 de 15/08/2011, aplicável pela portaria de extensão nº 43 de 21 Dezembro, tendo em conta a categoria profissional enquadrável (L3) e o tempo de serviço na área do Trabalhador, o seu ordenado base deveria ser de €1.723,89, desde o início do ano de 2012 (alteração salarial que não poderá ser posteriormente diminuída), e consequentemente condenar a Ré no pagamento da diferença entre o salário efetivamente pago e o devido, desde janeiro de 2012, incluindo nos respetivos subsídios de férias e de natal, que até o despedimento do Trabalhador posto em crise ascende a € 23.395,66;

- Deverá a Ré ser condenada a entregar ao Trabalhador o valor subsídio alimentação que foi declarado ter sido pago ao mesmo, no valor de €2.536,38;

- Deverá a Ré ser condenada a indemnizar o Trabalhador pela formação obrigatória não facultada, nos anos de 2016, 2017 e 2018, a saber, pelas 96,28 horas de formação em falta, deverá ser indemnizado no valor de € 902,14, se tivermos em conta o ordenado efetivamente pago ou € 1.094,70 se tivermos em conta o ordenado devido por CCT;

- Deverá a Ré ser condenada no pagamento de horas extraordinárias, desde a data da contratação, que deverão ser contabilizadas através dos registos diários de assiduidade da Ré, que serão requeridos abaixo;

- Deverá a Ré ser condenada no pagamento de todos os ordenados vincendos, até o trânsito em julgado da ação;

- Deverá a ré ser condenada no pagamento ao Autor de indeminização por danos não patrimoniais, causados pelo despedimento em causa nos autos (e seus comportamentos anteriores) a ser fixada pelo prudente arbítrio desse Tribunal, mas que se reputa não inferior a €5.000,00.

- deverá a Ré ser Condenada no pagamento de juros moratórios legais, sobre todas as quantias em que venha a ser condenada desde a citação, até o efetivo pagamento”.

                                                             *

A empregadora veio apresentar a sua resposta à contestação, concluindo que deve ser julgada improcedente a reconvenção deduzida pelo A., com as legais consequências.

                                                             *

Foi proferido o despacho saneador de fls. 717 e segs. e enunciados os temas da prova.

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento.

Posteriormente foi proferida a sentença de fls. 786 e segs., cujo dispositivo tem o seguinte teor:

Em face do exposto decide o Tribunal:

I.

Julgar regular e lícito o despedimento do Trabalhador F..., promovido pelo Empregador «C... – Cooperativa de Educação e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados da ..., CRL».

II.

Julgando parcialmente procedente a reconvenção, condenar o Empregador «C... – Cooperativa de Educação e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados da ..., CRL» a pagar ao Trabalhador F... as seguintes importâncias:

i. €4.425,00 (quatro mil quatrocentos vinte e cinco euros), pelas férias não gozadas nos anos de 2016 a 2018, acrescendo juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação do Empregador para a presente ação até efetivo e integral pagamento;

ii. O montante que se vier a liquidar em sede de incidente posterior, respeitante às férias não gozadas nos anos de 2012 a 2015, com o limite de 33 (trinta e três) dias, acrescendo juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da liquidação até efetivo e integral pagamento;

iii. €595,70 (quinhentos noventa e cinco euros setenta cêntimos), a título de crédito de horas de formação, acrescendo juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação do Empregador para a presente ação até efetivo e integral pagamento.

III.

Absolver o Empregador «C... – Cooperativa de Educação e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados da ..., CRL» do restante pedido formulado pelo Trabalhador F...

O trabalhador, notificado desta sentença, veio interpor o presente recurso que concluiu da forma seguinte:

...

                                                           *

A empregadora respondeu, concluindo, nos seguintes termos:

...

*

O Exm.º  Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer de fls. 877 e segs., no sentido de que a apelação deverá ser julgada improcedente.    

                                                             *

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

  II – Fundamentação

a) - Factos Provados constantes da sentença recorrida:

...

b) - Discussão

Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (art.º 639.º do C.P.C.), com exceção das questões de conhecimento oficioso.

Questão prévia:

Impugnação da matéria de facto

O trabalhador recorrente veio impugnar a decisão sobre a matéria de facto.

Antes de mais, cumpre dizer que, conforme resulta da ata de audiência de discussão e julgamento, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não foi gravada[2], pelo que não é possível proceder à reapreciação da matéria de facto.

Na verdade, o recorrente sustenta a sua impugnação em depoimentos de testemunhas e documentos juntos aos autos, no entanto, conforme se retira da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, o tribunal recorrido formou a sua convicção com base nos depoimentos das testemunhas conjugados com a prova documental junta aos autos (documentos sem força probatória plena) e relativamente a todos os factos impugnados, o que impossibilita este tribunal de proceder a uma reapreciação conjunta.

Como se decidiu nos acórdãos desta Relação de 12/07/2017, proferido no processo 21/14.6TTGRD.C1, retomado no acórdão de 11/10/2017, proferido na apelação 648/16.1T8CLD.C1: Como também já referimos, a audiência não foi objecto de gravação, já que em nenhuma das partes o requereu nem a Srª Juíza assim o determinou.

Importa ter sempre presente que um dos princípios basilares, em termos de apreciação de prova, é o da liberdade de julgamento, segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e decide apenas com base na sua prudente convicção acerca de cada facto, não se exigindo, portanto, a este Tribunal da Relação que, no âmbito de uma reapreciação da prova produzida na audiência de discussão e julgamento levada a cabo na 1ª instância, procure formar uma nova convicção em termos de matéria de facto, circunstância que, pela própria natureza das coisas, levaria a que se devesse proceder a uma sistemática e global apreciação de toda a prova produzida em audiência, mas apenas a detecção e correcção de eventuais mas concretos erros de julgamento.

Na verdade, o que este Tribunal da Relação é chamado a fazer é verificar se a convicção expressa pelo Tribunal de 1ª instância na prolação de decisão sobre matéria de facto, e em relação aos pontos concretos objecto de impugnação, tem suporte razoável nos elementos de prova apresentados nos autos e produzidos em audiência, e, consequentemente, se uma tal decisão não deriva de erro de julgamento.

O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deixar de respeitar a livre apreciação da prova obtida, na 1ª Instância, com base nos princípios da imediação e da oralidade.

A prova testemunhal é apreciada livremente pelo juiz (artºs 396º do C.C. e 607º, nº 5, do CPC) e que, como é sabido, a convicção do julgador forma-se em função da credibilidade que os depoimentos lhe merecem. Quem está em melhores condições para apreciar os depoimentos prestados em audiência é, atento o imediatismo impossível de obter na análise da matéria de facto na Relação, o julgador de 1ª instância, que, por ser quem presencialmente conduz a audiência de julgamento, se encontra numa posição privilegiada para avaliar o depoimento em concreto, captando pormenores, reacções, hesitações, expressões e gestos, impossíveis de transparecer pela simples audição das gravações dos depoimentos.

(…)

Infere-se, sem qualquer dificuldade, do exposto que, para que este Tribunal de recurso possa exercer tal análise crítica quando são invocados depoimentos, os mesmos têm que ser objecto de gravação.

O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tem, nestes casos, por base a audição da gravação dos depoimentos prestados em audiência.

Só assim se pode dar cumprimento ao disposto no nº 1 do artº 662º do C.P.C., que refere que a matéria de facto só pode ser alterada pela Relação nas situações aí contempladas.

Com o objectivo de assegurar o duplo grau de jurisdição no que concerne à decisão sobre a matéria de facto, torna-se necessário obter o integral registo da audiência, pois que só desse modo é possível que o processo contenha todos os elementos de prova que serviram de base àquela decisão.

Daí que o artº 155º do CPC estipule um conjunto de formalidades, indispensáveis à concretização daquele desiderato.

Uma regra a observar é a de que a gravação deve ser efectuada de modo a que facilmente se apure a autoria dos depoimentos gravados ou das intervenções e o momento em que os mesmos se iniciaram e cessaram - nº 1.

Outra regra é a de que a gravação deve ser integral, de modo que se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição, sempre que for essencial ao apuramento da verdade – nº 4.

O registo das provas produzidas ao longo da audiência de julgamento tem em vista ampliar as garantias das partes no processo, que, deste modo, podem, através do recurso, conseguir a correcção de erro de julgamento relativo à matéria de facto.

Só o registo magnético efectuado permite percepcionar ao tribunal de recurso tudo o que foi dito pelas testemunhas ou por outros intervenientes processuais, designadamente juiz e advogados.

Na hipótese de não se ter sido procedido à gravação dos depoimentos, é completamente impossível, ao tribunal de recurso, sindicar, com o rigor e precisão que se impõem, a convicção do juiz no que toca à matéria de facto, precisamente porque não tem à sua disposição, com a necessária certeza e clareza, a totalidade dos elementos ou depoimentos relevantes para esse efeito.

E as declarações das testemunhas, incluindo as respostas dadas ao juiz e aos advogados, não podem ser descontextualizadas das perguntas por aqueles feitas, porque só assim se adquire plena percepção da prova testemunhal produzida.

Como tal, a não gravação não pode ser suprida, em termos de alteração da matéria de facto fixada na 1ª instância, pelo apelo à fundamentação exarada pelo juiz no despacho de fixação da matéria de facto, incluindo a referência expressa ao que terá sido dito pelas testemunhas, e às eventuais incorrecções lógico-dedutivas do raciocínio do mesmo.

Sem entramos na análise desta temática, no caso concreto, porque a tal o impede todas as considerações expendidas, diremos que tal método acarretaria a completa subversão do regime legal de reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, admitindo-se um claramente não previsto na lei sistema de depoimentos escritos, substituindo-se por este as indispensáveis oralidade e imediação dos depoimentos.

Além de que - e não quer dizer que tenha sido este o caso, na hipótese dos autos – poderá dar-se a situação de, tendo o juiz apreciado correctamente os depoimentos e toda a outra prova, designadamente documental, produzida, tenha, por qualquer motivo, usada de incorrecção na transmissão, para a respetiva fundamentação, da sua convicção. Mas isso, repete-se, só é sindicável com a audição dos depoimentos gravados.

Nestes termos, … sendo certo que os documentos invocados, desacompanhados dos depoimentos das testemunhas, só por si não são decisivos, como, aliás, decorre das alegações de recurso, improcede a impugnação da matéria de facto.”.

Resta dizer que o recorrente a propósito dos pontos 26, 29 e 30 do elenco dos factos provados alega que, como se salienta na sentença recorrida, o ónus da prova do aval do trabalhador para ficar em casa sem perda de remuneração incumbia à Ré, que não logrou realizar tal prova, pelo que a decisão teria de ser contra a parte onerada com a prova, a Ré, no entanto, a sentença recorrida decidiu o facto a favor desta, em clara violação das regras e consequências da repartição do ónus da prova.

Não acompanhamos o recorrente.

Na verdade, ao contrário do alegado pelo trabalhador recorrente, na sentença recorrida decidiu-se não considerar demonstrado o acordo alegado pela Ré a respeito da permanência do trabalhador em casa.

Mais se refere na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto que “mas também o inverso não resulta da prova produzida em audiência de discussão e julgamento. (…)

Daí que se nos afigure que, embora a solução tenha sido decidida pelo Empregador, não havendo prova de um expresso acordo por parte do Trabalhador, todavia, este aceitou essa solução, acomodou-se à mesma.”

Face ao que ficou dito, não vislumbramos qualquer violação das normas respeitantes à repartição do ónus da prova.  

O recorrente alega, ainda, a propósito das alegadas férias não gozadas e do invocado trabalho suplementar que os mesmos deviam ter sido dados como provados nos precisos termos peticionados, face à não junção dos registos de controlo do tempo de trabalho por parte da Ré e por força do disposto nos artigos 414.º, 417.º, n.º 2 e 430.º, todos do CPC.

Vejamos:

Resulta dos autos que, por despacho de fls. 721, foi ordenada a notificação da empregadora para, em 10 dias, juntar aos autos, ou justificar a impossibilidade de cumprimento, o registo de tempos de trabalho do trabalhador, como requerido, sem mais.

A empregadora não procedeu à ordenada junção que justificou por requerimento junto a fls. 724 a 725.

O trabalhador veio requerer a inversão do ónus da prova , requerimento que não foi alvo de qualquer despacho autónomo.

Conforme resulta do artigo 417.º do CPC:

<<1 - Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.

2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.>>

Antes de mais, cumpre dizer que, para efeitos de aplicação do disposto no n.º 2 deste normativo, impõe-se a notificação expressa da parte no sentido da possibilidade da inversão do ónus da prova, notificação esta que não foi ordenada pelo tribunal de 1ª instância.

Na verdade, conforme se decidiu no acórdão do STJ de 12/04/2018, disponível em www.dgsi.pt:

<<IV - Tendo em conta as consequências decisivas da inversão do ónus da prova para a decisão da causa, impõe-se que a notificação efetuada à parte para proceder à junção de documentos seja acompanhada da advertência de que a sua recusa injustificada implica a inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344.º, n.º 2, do CC.>>

E no acórdão do mesmo Tribunal de 24/05/2018, disponível em www.dgsi.pt:

<<XII. De qualquer modo, deverão as partes ser advertidas previamente da eventualidade daquela inversão do ónus da prova, de forma a poderem gerir o esforço probatório que lhe é exigível e a evitar uma decisão-surpresa, como decorre do disposto no art.º 3.º, n.º 3, do CPC.>>

Acresce que, finda a produção de prova, o tribunal nada ordenou e o trabalhador nada mais requereu ou arguiu perante o tribunal recorrido no sentido do cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPC e, por isso mesmo, na sentença não se impunha o conhecimento de tal questão[3], pese embora o anteriormente requerido pelo trabalhador pois, como já referimos, a Ré não foi notificada com a expressa advertência da possibilidade de inversão do ónus da prova.

Por outro lado, não estando em causa qualquer nulidade da sentença recorrida e passível de ser suprida, este tribunal da Relação não pode determinar a inversão do ónus da prova como parece ser a pretensão do recorrente.

Face a tudo o que ficou dito, este Tribunal não pode proceder à reapreciação da matéria de facto que, em consequência, se mantém inalterada.

                                                             *

Posto isto, cumpre apreciar as restantes questões suscitadas pelo trabalhador recorrente, quais sejam:

1ª – Se ocorreu duplicação de processos disciplinares.

2ª – Se ocorreu a prescrição do procedimento disciplinar.

3ª – Se inexiste justa causa para o despedimento do trabalhador.

4ª – Se a Ré deve ser condenada a pagar ao trabalhador a quantia de €7.654,03 a título de férias não gozadas.

5ª – Se é devido ao trabalhador o subsídio de alimentação.

6ª – Se existe um crédito de horas de formação respeitantes ao ano de 2018.

7ª – Se a Ré deve ser condenada a pagar ao A. a quantia peticionada a título de trabalho suplementar.

8ª – Se a Ré deve ser condenada a pagar ao trabalhador uma indemnização por danos não patrimoniais no montante de€ 5.000,00.

1ª questão

Se ocorreu duplicação de processos disciplinares.

O trabalhador recorrente alega que na sequência da detenção do arguido em 10/12/2015, a empregadora Ré suspendeu preventivamente de funções o trabalhador, por causa dos factos em causa no processo crime, instaurando-lhe, por isso, um processo disciplinar; existindo já este processo disciplinar pelos mesmos factos em causa no processo disciplinar que deu origem ao despedimento agora impugnado e que existe uma verdadeira duplicação de processos, o que viola a legislação laboral e até a CRP.

Vejamos:

Resulta da matéria de facto provada que:

25. A divulgação pública da detenção do Trabalhador causou nos utentes e suas famílias, colaboradores e na sociedade em geral uma grande tensão e sentimento de desconfiança sobre o Empregador e sobre o próprio Trabalhador.

26. Na sequência, o Empregador transmitiu ao Trabalhador que deveria aguardar o decurso do processo em casa, recebendo a sua retribuição, o que o Trabalhador aceitou.

28. Em dezembro de 2015, os órgãos de comunicação social divulgaram a notícia da emissão de um comunicado do Empregador, em que este aludia à suspensão preventiva de funções do Trabalhador.

29. As comunicações feitas pelo Empregador à comunicação social foram-no com a intenção de “acalmar os ânimos”.

30. Quaisquer expressões usadas com a imprensa serviram apenas para acalmar utentes, pais e colaboradores.

Ora, desta matéria apurada não se pode retirar que a Ré suspendeu preventivamente o trabalhador nos termos previstos no artigo 354.º do CT nem que com a mesma foi instaurado um processo disciplinar ao trabalhador ou, ainda, que teve lugar um inquérito prévio (artigo 352.º do CT).

Na verdade, o empregador pode suspender preventivamente o trabalhador com a notificação da nota de culpa ou pode fazê-lo nos trinta dias anteriores a tal notificação, por escrito, e nas circunstâncias previstas no n.º 2 do citado artigo 354.º.

Não se apurou a comunicação de qualquer nota de culpa anterior à do processo disciplinar em causa nos presentes autos, pelo que facilmente se conclui que inexiste qualquer duplicação de processos disciplinares, tal como se decidiu na sentença recorrida.

Improcedem, assim, estas conclusões do recorrente.

2ª questão

Se ocorreu a prescrição procedimento disciplinar

Alega o recorrente que resulta da prova carreada para os autos que, pelo menos desde 26/12/2015, a Ré tinha conhecimento dos factos em causa nos autos e, assim, tendo o procedimento disciplinar em causa sido iniciado em 10/07/2018, está prescrito; que os factos em causa apenas poderão ter ocorrido entre 2006/2007 e finais de 2008, nunca em 2009 e, tendo em conta o disposto no artigo 118.º, n.º 1, b) do CP, o prazo de prescrição seria 01/01/2016, pelo que o procedimento disciplinar estaria também prescrito.

O desfecho desta questão estava naturalmente dependente da procedência da impugnação da matéria de facto.

Pois bem, uma vez que a matéria de facto se mantém inalterada, facilmente se conclui que não ocorreu a prescrição do procedimento disciplinar, posto que, como se refere na sentença recorrida:

“Ora, no processo laboral importa determinar se o trabalhador, alvo de decisão de aplicação de sanção disciplinar, praticou os factos que lhe são imputados. Porém, não compete à jurisdição laboral alterar a qualificação jurídica dos factos que a competente jurisdição penal já fixou.

O tipo legal de crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência é punido com pena de prisão de 6 meses a 8 anos.

De acordo com o artigo 118º, nº 1, alínea b), do Código Penal:

“1 – O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prá-tica do crime tiverem decorrido os seguintes prazos:

b) Dez anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máxi-mo for igual ou superior a cinco anos, mas que não exceda dez anos”.

Este prazo mantém-se inalterável nas sucessivas alterações de redação, sendo, por isso, o prazo aplicável.

Ora, não estando apurada a concreta data da prática dos factos, reportando-se unicamente ao ano de 2009, haverá que admitir a possibilidade de os factos terem ocorrido a 1 de janeiro de 2009.

Deste modo, o prazo de prescrição terminaria no dia 1 de janeiro de 2019.

Dado que o procedimento disciplinar, não só se iniciou no decurso do ano de 2018, como também findou nesse mesmo ano, verifica-se que o poder disciplinar foi exercido dentro do prazo de prescrição.

No que respeita ao prazo previsto no nº 2 do artigo 329º do Código do Trabalho, estando provado que o Empregador remeteu ao Trabalhador a nota de culpa, em 9 de julho de 2018, verifica-se ainda que o aviso de receção foi assinado no dia seguinte.

Provou-se ainda que o Empregador tomou conhecimento dos factos, conforme despacho de suspensão provisória do processo-crime, por notificação de 15 de maio de 2018.

Não tendo ainda decorrido o prazo de 60 dias, também nesta parte se impõe concluir pela tempestividade no exercício do poder disciplinar.”

Improcedem, por isso, mais estas conclusões da recorrente.

3ª questão

Se inexiste justa causa para o despedimento do trabalhador.

Alega o trabalhador recorrente que não está provado que o trabalhador tenha praticado os factos constantes da nota de culpa e, por essa razão, não poderá ser despedido por justa causa.

Apreciando:

O contrato de trabalho pode cessar, além de outras causas, por despedimento por iniciativa do empregador, por facto imputável ao trabalhador.

Na verdade, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 351.º do C.T. <<constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho>>, nomeadamente[4], prática, no âmbito da empresa de ofensas punidas por lei (alínea i)).

Por outro lado, o trabalhador deve: respeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos e os companheiros de trabalho com urbanidade e probidade e realizar o trabalho com zelo e diligência – artigo 128.º, n.º 1, a) e c), do C.T..

Acresce que a justa causa compreende três elementos: o comportamento culposo do trabalhador; comportamento grave em si mesmo e de consequências danosas e o nexo de causalidade entre este comportamento e a impossibilidade de subsistência da relação laboral face àquela gravidade, ou seja, o comportamento tem de ser imputado ao trabalhador a título de culpa (com dolo ou negligência) e a gravidade e impossibilidade devem ser apreciadas em termos objetivos e concretos relativamente à empresa - neste sentido Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22-09-2010 e 29-09-2010, disponíveis em www.dgsi.pt.

Por outro lado, <<para apreciação da justa causa deve atender-se, no quadro da gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes >> – n.º 3 do citado artigo 351.º, do C.T..

Cumpre, ainda, dizer que compete ao trabalhador fazer a prova da existência do contrato de trabalho e do despedimento e à entidade patronal incumbe provar os factos constitutivos da justa causa do despedimento que promoveu.

Após estas considerações jurídicas, cumpre verificar se a empregadora logrou provar, como lhe competia, os comportamentos que imputou ao trabalhador e se os mesmos integram aquele conceito de justa causa, ou seja, se este praticou factos culposos que pela sua gravidade e consequências tornem imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.

A este propósito consta da sentença recorrida o seguinte:

“Constitui matéria assente que o Empregador é uma instituição particular de solidariedade social de carácter social e sem fins lucrativos, que intervém junto de cidadãos com deficiências e/ou incapacidades e respetivas famílias, bem como junto de outros grupos vulneráveis, de forma a proporcionar a sua inclusão social e melhoria na sua qualidade de vida.

Está em causa uma relevante função social, até por incidir sobre cidadãos especialmente carenciados de acompanhamento e proteção.

Ora, provou-se que o Trabalhador praticou ato sexual de relevo, tendo por vítima uma cidadã, ..., especialmente vulnerável, que, por acréscimo, à data da prática dos factos, era menor de idade.

A decisão do Empregador, de pôr termo à relação laboral, é objetivamente passível de censura?

Entendemos, muito claramente, que não.

Na verdade, dada a função desempenhada pelo Empregador e os factos julgados provados não vemos como seria possível manter a relação laboral.

Importa notar que a persistência da relação laboral implicaria a reintegração do Trabalhador, que voltaria a estar em posição de manter contactos com cidadã(o)s em idênticas condições, o que inevitavelmente causaria alarme social, tanto mais que, por via da presente decisão, uma vez transitada em julgado, resulta para a comunidade a necessária imputação ao Trabalhador da prática de um ilícito criminal.

Ou seja, não estaremos situados no plano do debate da eventual confissão tácita, pelo Trabalhador, da prática de um crime, como consequência da aceitação da proposta de suspensão provisória do processo. Pelo contrário, ainda que sem a aplicação de uma pena criminal, estaremos situados no plano da afirmação da prática de um crime.

Não podemos, aliás, deixar de notar a possibilidade de um sentimento de frustração da comunidade, que vê ser reconhecida a prática de um crime de média gravidade7, sem que o reconhecido autor dessa prática seja sancionado em termos que essa comunidade reputa como minimamente ajustados8.

Se a comunidade em geral antecipa com alguma tensão o retorno ao seu seio de quem cumpriu a sua pena, maiores serão as dificuldades em compreender esse retorno por parte de quem foi alvo de uma sanção menos contundente, que, por essa razão, a comunidade vê como alguém que não foi devidamente censurado pelos seus atos.

Conclui-se assim pela justeza da sanção aplicada, afastando-se, pelo contrário, a qualificação da sanção como abusiva, uma vez que assentou em pressupostos que não os estabelecidos no artigo 331º, nos 1, e 2, do Código do Trabalho.”

                                                                             *

Vejamos:

Resulta da matéria de facto provada que:

18. Quando ... frequentou o Empregador não sabia ler, nem escrever e apresentava um quadro de perturbação do desenvolvimento intelectual.

19. Em data não concretamente apurada, durante o ano de 2009, ... deslocou-se ao gabinete que o Trabalhador ocupava nas instalações do Empregador, sitas nas ..., quando aí se deslocava, a fim de lhe dar um recado, tendo este a convidado a entrar, o que aconteceu.

20. No interior do gabinete, estando ambos a sós, o Trabalhador aproximou-se de ... e apalpou-lhe os seios por cima da roupa.

21. O Trabalhador atuou de forma livre, voluntária, consciente e dolosa, bem ciente da irregularidade e criminalidade da sua conduta.

Perante esta matéria de facto parece-nos evidente que o trabalhador praticou uma ofensa punida por lei sobre uma formanda da Ré ou, dito de outra forma, que praticou ato sexual de relevo com pessoa incapaz de resistência.

É também manifesta a gravidade do comportamento do trabalhador, em si mesmo, e nas suas consequências, desde logo porque tipificado como crime e tendo em conta que a empregadora intervém junto de cidadãos com deficiências ou incapacidades e respetivas famílias, de forma a proporcionar a sua inclusão social e melhoria na sua qualidade de vida, respetivamente.

O comportamento culposo e grave do trabalhador recorrente inviabilizou definitivamente a continuação da prestação do seu trabalho para a empregadora, na medida em que <<a continuidade da vinculação representaria (objectivamente) uma insuportável e injusta imposição ao empregador>> - Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 13ª ed., Almedina, pág. 561.

Não é exigível à empregadora que mantenha a relação laboral com um trabalhador que no exercício das suas funções de coordenador atuou da forma descrita, o que originou uma absoluta quebra de confiança.

Na verdade, assume especial gravidade a prática dos atos supra descritos por parte de um coordenador de uma instituição cuja finalidade é apoiar cidadãos com deficiências ou incapacidades e que, por isso, é suposto sentirem-se seguros no seio da mesma.

Estamos, assim, perante um comportamento culposo e grave do trabalhador recorrente e que tornou impossível a subsistência da relação laboral (artigo 351.º, n.ºs 1 e 2, i), do C.T.).

Tendo em conta o que ficou dito, e não olvidando que a sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infração e à culpabilidade do infrator (n.º 1, do artigo 330.º, do C.T.), também entendemos que a sanção de despedimento aplicada ao trabalhador recorrente se mostra proporcional à gravidade do seu comportamento.

Pelo exposto, existiu justa causa para o despedimento do trabalhador e, consequentemente, o seu despedimento é lícito e regular, tal como consta da sentença recorrida.

Assim sendo, facilmente se conclui que improcede mais esta conclusão do trabalhador recorrente.

4ª questão

Se a Ré deve ser condenada a pagar ao trabalhador a quantia de €7.654,03 a título de férias não gozadas.

Alega o recorrente que:

“Conforme melhor explicitado em VIII das alegações supra, estão provados os dias de férias não gozados pelo trabalhador desde aqueles de 2012 até o despedimento, nos quais deverá a Ré ser condenada, sem qualquer necessidade de liquidação posterior, no valor de €7.654,03, ao qual deverão acrescer juros desde a data da citação;

Por outro lado, sendo declarado ilícito o despedimento por esse Venerando Tribunal, nos termos peticionados, deverá a Ré também ser condenada a indemnizar o Trabalhador pelas férias não gozadas desde a data do despedimento até o trânsito em julgado da decisão.”

Vejamos:

Ao contrário do alegado pelo recorrente, apenas resulta da matéria de facto provada que:

33. Nos anos de 2012 a 2015 o Trabalhador não gozou número concretamente não apurado de dias de férias.

34. Nos anos de 2016 a 2018 o Trabalhador não gozou quaisquer dias de férias.

Assim sendo, acompanhamos a sentença recorrida quando na mesma se decidiu que:

“No que tange ao período de 2012 a 2015, não tendo sido apurado o concreto número de dias de férias que o Trabalhador não gozou, é aplicável a norma do artigo 609º, nº 2, do Código de Processo Civil, segundo a qual:

“2 – Se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida”.

Deste modo, relega-se a liquidação do montante devido, por referência às férias não gozadas nos anos de 2012 a 2015, para incidente de liquidação posterior (artigos 358º e segs do Código de Processo Civil).”

No mais, também não assiste razão ao recorrente, na medida em que, como já ficou dito, o despedimento do A. é regular e lícito.

5ª questão

Se é devido ao trabalhador o subsídio de alimentação.

Alega o recorrente que:

“88. Estando provado que o subsidio alimentação dos anos em que o Trabalhador esteve suspenso foram imputados a Entidade Financiadora, e que apesar do Trabalhador não ter a despesa acrescida para almoçar, por estar suspenso, a Entidade Patronal também teve a seu encargo o fornecimento da alimentação com o Trabalhador em gêneros (não forneceu alimentação enquanto o Trabalhador esteve suspenso);

Daí que seja nosso entendimento de que se a suspensão provisória não pode afectar os direitos do Trabalhador, e se esse direito do Trabalhador ao subsídio alimentação foi assegurado pela Entidade Financiadora, e a Entidade patronal não entregou ao Trabalhador em género, deverá reverter para o Trabalhador, e não para Entidade Patronal;

Devendo esse Venerando Tribunal substituir a sentença recorrida por outra que determine a restituição do valor de €2.536,38, a título de subsídio alimentação para o Trabalhador;”

Não acompanhamos o recorrente.

Na verdade, como se refere na sentença recorrida, o pagamento do subsídio de alimentação não se encontra previsto no CT e, no caso em análise, não se encontra consagrado no contrato de trabalho ou CCT, antes se tendo acordado naquele contrato a concessão pelo Empregador de alimentação, sendo que, enquanto compareceu ao serviço do Empregador, o Trabalhador sempre tomou as suas refeições no refeitório do Empregador, tal como os restantes trabalhadores.

Assim sendo, facilmente se conclui que o trabalhador recorrente não tem direito a receber o valor peticionado a título de subsídio de alimentação e que, conforme acordado, lhe era prestado em espécie.

Acresce que, como também se refere na sentença recorrida:

“É, todavia, certo que o Empregador incluiu o subsídio de refeição do Trabalhador nos projetos de candidatura a formação, sendo, por essa razão, que o entregou ao Trabalhador e solicitou a sua devolução.

Ainda que se possa defender que o Empregador não tem direito a receber o montante inscrito no projeto, a título de subsídio de refeição, sempre será a entidade financiadora quem poderá ter direito à restituição, não se vislumbrando fundamento para que seja o Trabalhador, bem como qualquer outro trabalhador em idênticas condições, a beneficiar dessa restituição, tanto mais que, ao permanecer em casa, o Trabalhador deixou de ter os custos acrescidos que teria ao tomar as suas refeições fora do seu domicílio.”

Improcede, assim, esta pretensão do recorrente.

 

6ª questão

Se existe um crédito de horas de formação respeitantes ao ano de 2018.

Alega o recorrente que:

“92. No nosso modesto entendimento não existe razão para a douta sentença recorrida, tratar situações idênticas de forma distinta;

93. A sentença recorrida determina, e bem o pagamento de crédito pelas horas de formação não facultadas ao Trabalhador em 2016 e 2017, mas depois, sem razão aparente, invoca o despedimento para não determinar qualquer quantia e esse título no ano de 2018;

94. Com o devido respeito, o trabalhador peticionou apenas os proporcionais até ao despedimento, não havendo razão para que não sejam determinados, o que expressamente requer;

95. Relativamente aos cálculos, também o peticionado teve em conta o ordenado a data do despedimento, sendo os valores dos cálculos aqueles constantes da p.i.

96. Devendo esse Venerando Tribunal substituir a sentença recorrida por outra que determine a indemnização do Trabalhador pela formação obrigatória não facultada nos anos de 2016, 2017 e 2018 no valor de €902,14;”

Vejamos:

A este propósito resulta da sentença recorrida o seguinte:

“O Trabalhador peticionou a condenação do Empregador no pagamento de determinada importância referente à formação que não lhe foi proporcionada nos anos de 2016 a 2018.

(…)

Dado que não teve formação nos anos de 2016 e 2017, o crédito de formação é de 70 horas.

Já no que concerne ao ano de 2018, entendemos que o Trabalhador não tem direito a receber qualquer importância.

Efetivamente, na medida em que o contrato de trabalho cessou, por efeito do despedimento regular e lícito, datado do mês de setembro, nessa altura estava o Empregador ainda em tempo de promover a formação profissional, não o tendo feito por ato imputável ao Trabalhador, devendo considerar-se que foi este quem inviabilizou a possibilidade de promoção da formação profissional, sendo certo que o Trabalhador não demonstrou a inexistência de plano de formação.

Não podemos olvidar que a obrigação de formação profissional vale para um período anual, não estando estabelecida qualquer regra de fracionamento da formação ao longo desse período de um ano, de modo que nada obsta que uma empresa, por exemplo, proporcione toda a formação legalmente exigida nos últimos dias do ano.

Atenta a conversão em crédito de horas a remunerar aquando da efetivação da formação, entendemos agora, contrariamente ao que vínhamos sustentando, que o valor do crédito deverá ser calculado com base na retribuição auferida à data da cessação do contrato e não com base nas sucessivas retribuições que vigoraram no decurso do contrato, por referência ao respetivo número de horas

Sendo a retribuição horária, no termo do contrato de trabalho, de € 8,51 [(€ 1 475,00 × 12) ÷ (52 × 40)], ao Trabalhador é devida, a título de formação profissional não proporcionada, a quantia de € 595,70 [€ 8,51 × 70].”

Acompanhamos a sentença recorrida que, ao contrário do alegado pelo recorrente, não tratou situações idênticas de forma distinta.

Como se constata da mesma, entendeu-se não existir qualquer crédito de formação respeitante ao ano de 2018 porque o contrato de trabalho cessou em setembro, por despedimento regular e lícito, sendo que, nessa data, a empregadora estava ainda em tempo de promover a formação profissional, não o tendo feito por ato imputável ao Trabalhador, devendo considerar-se que foi este quem inviabilizou a possibilidade de promoção da formação profissional.

Na verdade, <<o trabalhador tem direito, em cada ano, a um número mínimo de trinta e cinco horas de formação contínua (…)>> - n.º 2 do artigo 130.º do CT.

Assim sendo, o recorrente não tem direito ao peticionado crédito de formação respeitante ao ano de 2018.

7ª questão

Se a Ré deve ser condenada a pagar ao A. a quantia peticionada a título de trabalho suplementar.

O recorrente alega que estão provadas as horas de trabalho suplementar prestadas desde o início da relação laboral até à sua suspensão, devendo a Ré ser condenada, sem qualquer necessidade de liquidação posterior, no valor de €58.535,60.

Ao contrário do alegado pelo recorrente, não resultou provado que o trabalhador, desde o início da relação laboral, trabalhava, em média, pelo menos, mais 2 horas por dia.

Provou-se apenas que, por vezes, a execução do trabalho exigia que o Trabalhador exercesse a sua atividade para além da hora de saída, de modo a ter o trabalho cumprido.

Assim sendo, facilmente se conclui que o A. não tem direito a receber a quantia peticionada no valor de €58.535,60, a título de trabalho suplementar tal como consta da sentença recorrida.

8ª questão

Se a Ré deve ser condenada a pagar ao trabalhador uma indemnização por danos não patrimoniais no montante de €5.000,00.

Alega o recorrente que:

“Provado que está que o despedimento em causa nos autos é ilícito, e conforme melhor explicitado em XII supra, estão provados os danos não patrimoniais sofridos pelo trabalhador, o comportamento ilícito da Ré, quer na divulgação publica da detenção, quer na frustração das expectativas legitimamente criadas pelo trabalhador de regresso a instituição com a formalização da suspensão provisória do processo crime, bem como o nexo de causalidade entre eles, deverá a Ré ser condenada, no valor de €5.000,00, ao qual deverão acrescer juros desde a data da citação;”.

Compulsada a matéria de facto provada, da mesma não consta a prática por parte da empregadora de qualquer facto ilícito violador de direitos do trabalhador, pelo que, a sua pretensão tem necessariamente de improceder.

Na verdade, o despedimento do trabalhador foi julgado regular e lícito e não se apurou qualquer um dos outros comportamentos imputados à empregadora mas, tão só, que:

- Em dezembro de 2015, os órgãos de comunicação social divulgaram a notícia da emissão de um comunicado do Empregador, em que este aludia à suspensão preventiva de funções do Trabalhador.

- As comunicações feitas pelo Empregador à comunicação social foram-no com a intenção de “acalmar os ânimos”.

- Quaisquer expressões usadas com a imprensa serviram apenas para acalmar utentes, pais e colaboradores.

- Ao trabalhador foi referido informalmente que seria reintegrado, assim que formalizada a suspensão provisória no processo crime, não tendo, contudo, o empregador conhecimento do crime subjacente a essa suspensão.

Falece, assim, mais esta pretensão do recorrente.

*

Por fim, impõe-se apreciar a seguinte questão suscitada pela empregadora recorrida:

Na sua resposta a recorrida veio alegar que no que concerne ao gozo de férias, a posição do trabalhador é de uma má fé substancial absoluta; sempre gozou as suas férias atempadamente como todos os outros trabalhadores; para prova de que faltou à verdade nas suas peças processuais e neste recurso, solicita a este tribunal a leitura de várias folhas de onde retira que o A. esteve de férias durante determinados períodos dos anos de 2016 e 2017.

Mais refere a recorrida que “se bem que não estejamos a recorrer da douta sentença, a verificação deste facto mesmo à posteriori – o exercício do direito de férias que o Tribunal não deu conta ter existido – deverá ser compensado a título de má-fé em indemnização do mesmo valor” e termina dizendo que o A. deverá ser condenado por má fé na quantia de €10.000,00.

Pois bem, a recorrida vem invocar a atuação de má fé por parte do trabalhador recorrente no que concerne ao gozo de férias, no entanto, fá-lo não com base nos factos apurados mas antes em documentos dos quais, no seu entender, resulta o gozo de férias e para concluir que a verificação do exercício do direito a férias que o tribunal não deu conta ter existido, deverá ser compensado a título de má fé em indemnização do mesmo valor.

Ora, a recorrente não interpôs recurso da sentença recorrida sendo que, foi condenada a pagar ao trabalhador a quantia de €4.425,00 a título de férias não gozadas nos anos de 2016 a 2018 e o montante que se vier a liquidar em sede de incidente posterior, respeitante às férias não gozadas nos anos de 2012 a 2015, com o limite de 33 dias.

Assim sendo, não existe qualquer fundamento legal para se proceder à apreciação de eventual responsabilidade por má fé do trabalhador, na medida em que, a pretensão da recorrida não assenta na efetiva litigância daquele mas antes num alegado “exercício do direito a férias que o tribunal não deu conta ter existido” e que deverá ser compensado a título de má fé em indemnização do mesmo valor, facto este que, como é por demais evidente, não pode ser considerado por este tribunal.

                                                             *

Face à improcedência das conclusões formuladas pelo trabalhador recorrente, impõe-se a manutenção da sentença recorrida em conformidade.

                                    

IV – Sumário[5]

1. Se o trabalhador praticou uma ofensa punida por lei sobre uma formanda da Ré, ou seja, ato sexual de relevo com pessoa incapaz de resistência, é manifesta a gravidade do seu comportamento, em si mesmo, e nas suas consequências, desde logo, porque tipificado como crime e tendo em conta que a empregadora intervém junto de cidadãos com deficiências ou incapacidades e respetivas famílias, de forma a proporcionar a sua inclusão social e melhoria na sua qualidade de vida, respetivamente.

Não é exigível à empregadora que mantenha a relação laboral com um trabalhador que no exercício das suas funções de coordenador, atuou da forma descrita, o que originou uma absoluta quebra de confiança.  

2. Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPC, impõe-se a notificação expressa da parte no sentido da possibilidade da inversão do ónus da prova. Se, finda a produção de prova, o tribunal nada ordenou e o trabalhador nada mais requereu ou arguiu perante o tribunal recorrido no sentido do cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPC, na sentença recorrida não se impunha o conhecimento de tal questão porque a Ré não foi notificada com a expressa advertência da possibilidade de inversão do ónus da prova. Na sentença impõe-se apenas a apreciação das consequências previstas na 2ª parte do n.º 2 do artigo 417.º do CPC, após notificação com expressa advertência das mesmas.

3. Se o contrato de trabalho cessou por despedimento regular e lícito, em setembro de 2018, estando a empregadora ainda em tempo de desenvolver a formação contínua (artigo 130.º, n.º 2, do CT), o que não fez por ato imputável ao trabalhador que inviabilizou a possibilidade de promoção daquela formação, inexiste qualquer crédito de formação respeitante a esse ano de 2018.

V – DECISÃO

Nestes termos, sem outras considerações, na total improcedência do recurso, acorda-se em  manter a sentença recorrida.                                                                    

Custas a cargo do trabalhador recorrente.                                                             

                                                                                Coimbra, 2020/03/20

 (Paula Maria Roberto)

      (Ramalho Pinto)

            (Felizardo Paiva)


***



[1] Relatora – Paula Maria Roberto
  Adjuntos – Ramalho Pinto
                 – Felizardo Paiva

[2] A gravação da audiência final devia ter sido requerida nos termos previstos no n.º 4 do artigo 68.º do anterior CPT, o que não ocorreu.
[3] Na sentença impõe-se apenas a apreciação das consequências previstas na 2ª parte do n.º 2 do artigo 417.º do CPC, após notificação com expressa advertência das mesmas.
[4] Tendo em conta a imputação que foi feita pela empregadora na nota de culpa.
[5] O sumário é da exclusiva responsabilidade da relatora.