Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
73/10.8TBPNC.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE
SUPRIMENTOS
Data do Acordão: 05/10/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PENAMACOR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.20, 48 CIRE, 245 CSC
Sumário: O credor por suprimentos não tem legitimidade para requerer, por esses créditos, a insolvência da sociedade.
Decisão Texto Integral: ACORDAM O SEGUINTE NESTA RELAÇÃO:

I - Relatório:

L (…) veio intentar a presente acção especial pedindo a declaração de insolvência da sociedade por quotas M (…) Lda, alegando, entre o mais, que é sócio da requerida e credor desta por suprimentos de que a sociedade careceu para o exercício da sua actividade e que totalizaram €534.043,46.

Mais alegou que existe suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas e falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que pelo seu montante revela impossibilidade de a devedora satisfazer a generalidade das obrigações, sendo que, para além do desvio de 12 milhões de euros, a requerida tem um passivo de 2 milhões de euros para com o Banco (...) e tem ainda inúmeros processos de execução fiscal. E a requerida, na pessoa do seu legal representante, encontra-se a dissipar o seu património, desviando dinheiro da sociedade.

Mediante posterior pedido do requerente, foi determinada a nomeação de administrador de insolvência provisório.

Citada em 13-10-2010 na pessoa do seu legal representante, a requerida deduziu oposição, invocando, além do mais, a ilegitimidade do requerente, com base em que a qualidade de credor de suprimentos o impede de intentar a presente acção, e defendendo que é solvente.

Cumprido o contraditório quanto à excepção (vd. fls. 872 ss), foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada procedente a excepção de ilegitimidade do requerente, com absolvição da instância da requerida.

Inconformado com esta decisão, recorre o requerente, concluindo a sua alegação, em suma:

- nos art. 8, 9 e 19 da PI e em 1 a 6 da resposta são invocados outros créditos do requerente além do de suprimentos;

- pelo art. 20º/1 qualquer credor pode pedir a insolvência do devedor, qualquer que seja a natureza do crédito, preceito que é especial em relação ao do art. 245º/2 do CSC e por isso prevalece sobre este;

- além disso, foi gerente da R. entre Dezembro de 2000 e Julho de 2007.

A R. contra-alegou, defendendo a improcedência da apelação.

Correram os vistos.

Cumpre apreciar e decidir:

II- Fundamentos:

A questão essencial consiste em reapreciar se o recorrente, que requereu a insolvência da sociedade de que é sócio, tem ou não tem legitimidade para pedir a declaração de insolvência, como credor da sociedade. 

Não vem posto em causa que o requerente não seja credor da sociedade de que é sócio, por suprimentos. O que o agora recorrente acrescenta é que também é credor da sociedade, por dívidas de outra natureza, que não de suprimentos, o que teria alegado inicialmente.

Todavia, verifica-se, por análise do requerimento inicial, que os únicos créditos do requerente ali invocados são relativos a suprimentos – ver artigos 4,5, 9 a 17. Noutros artigos são invocados desvios de dinheiro, da sociedade para 3ºs, pelo gerente da R.  – ver 8º e 19º do requerimento inicial e 19, 28, 31 e 32 da resposta a fls. 872 ss.

Ora, esses alegados desvios de dinheiro não constituem crédito do sócio apelante sobre a sociedade. A terem existido, constituirão sim créditos da sociedade sobre os 3ºs que terão beneficiado desses desvios.

Temos, pois, por assente, que no caso concreto vem invocada a existência de crédito a favor do requerente apenas por suprimentos.

Deste modo depurada, a questão a reapreciar consiste em saber se o recorrente, que requereu a insolvência da sociedade de que é sócio, tem ou não tem legitimidade para pedir a declaração de insolvência, como credor da sociedade apenas por suprimentos. 

Preceitua o artigo 20.º, no n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa (CIRE) que "a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados...".

Por sua vez, o artigo 245º, nº 2, do Código das Sociedades Comerciais (CSC) estabelece que «Os credores por suprimentos não podem requerer, por esses créditos, a falência da sociedade (...)».

Refere, com pertinência a decisão recorrida: «As razões de fundo da consagração da regra contida no artigo 245º, nº 2 do Código das Sociedades Comerciais mantêm-se rigorosamente as mesmas: pretende-se evitar que pelo uso formalmente correcto de um meio processual que visa, em primeira linha a protecção dos credores sociais, se diminua ou anule estas por meio de um crédito “interno” da sociedade, gerando-se situações em que venha a ser decretada, então a falência e ora a insolvência de uma sociedade externamente saudável face à existência de um elevado crédito por suprimentos. Razões de fundo que subjazem ainda à expressa consagração, no artigo 245.º, n.º 3, alínea a) do Código das Sociedades Comerciais, de que os suprimentos só serão reembolsados após satisfação integral das dívidas da sociedade para com terceiros, disposição que indubitavelmente se mantém em vigor e que, na prática, implica que na graduação dos créditos verificados a fazer na falência e ora na insolvência, os créditos por suprimentos serão sempre graduados em último lugar, mesmo após os créditos comuns. Razões de fundo essas que saem reforçadas com a consagração dos créditos por suprimentos como créditos subordinados – artigo 48.º, n.º 1, alínea g) do CIRE. Ademais, o titular do crédito de suprimentos apenas pode requerer a insolvência da sociedade se for simultaneamente credor da sociedade a título diferente de suprimento, invocando a titularidade desse outro crédito» ([1]).

O dito preceito do artigo 20º/1 do CIRE confere legitimidade a qualquer credor em geral, acrescentando: “qualquer que seja a natureza do seu crédito”.

Esta irrelevância da natureza do crédito do sócio para efeitos de poder requerer a falência da sociedade já tinha consagração expressa no nº 1, alínea a) do então vigente artigo 1176º do C.P.Civil. Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado, 3ª ed., pág. 80, “a necessidade de afirmação dessa irrelevância justificava-se, nomeadamente, pelo facto, na lei processual civil anterior, a falência ser um instituto tendencialmente privativo dos comerciantes, o que, na falta de uma concreta previsão sobre a matéria, dava lugar à questão de saber se os créditos não mercantis também fundamentariam a instância falimentar.” Reitera-se: no regime transacto a falência entendia-se privativa dos comerciantes, enquanto para os não comerciantes curava-se de insolvência: havia especificidades capitulares de regime jurídico, conforme se tratava de falência ou de insolvência.

A irrelevância da natureza do crédito foi assim consagrada com vista ao esclarecimento de que a falência é extensiva a toda e qualquer empresa, independentemente da qualificação jurídica da actividade desenvolvida – e logo dos créditos sobre ela gerados, nada obstando a que o mesmo raciocínio, dirigido à «falência», agora se aplique à «insolvência» ([2]).

E, ao falarmos, nesses termos, em irrelevância da natureza do crédito, estamos a referir-nos ao significado da expressão legal “qualquer que seja a natureza do seu crédito”, significado esse que tanto vale para o anterior instituto da falência, como para o correspondente e actual instituto da insolvência. No regime actual, a insolvência tanto se refere a comerciantes como a não comerciantes, havendo sim especificidades pontuais de regime conforme se trate de empresas ou pessoas singulares, ou se trate de empresas comerciais ou não comerciais ou de certas pessoas colectivas.

A expressão “qualquer que seja a natureza do seu crédito” significa, em qualquer caso (no instituto da falência ou da insolvência): seja crédito de natureza comercial, seja crédito de natureza não comercial.

Consequentemente, o que no preceito do art. 245º, nº 2, do CSC se refere à falência vale identicamente para o actual regime geral da insolvência e a natureza comercial ou não comercial do crédito do requerente é irrelevante. O que de seguida cabe dilucidar é se prevalece a norma do artigo 20º/1 do CIRE, que concede legitimidade activa a qualquer credor, ou a norma do artigo 245º, nº 2, do CSC, que ao credor de suprimentos retira a legitimidade para requerer a falência/insolvência.

O apelante aponta como critério de solução a relação de especialidade entre as normas, o que se nos afigura correcto.

O que se nos afigura incorrecto é defender-se, como o apelante defende, que o destacado preceito do art. 20º/1 do CIRE é especial em relação ao do art. 245º/2 do CSC e por isso prevalece sobre este.

Com efeito, na relação entre generalidade e especialidade, em termos ontológicos, deve ter-se em atenção que o género tem sempre maior extensão ([3]) do que cada uma das espécies, pois que estas constituem ramificações abrangidas no género a que pertencem ([4]). E, havendo várias espécies dentro de um género, tal significa que todas elas têm determinadas características comuns que justificam a unificação no género.

Por outro lado, embora as espécies do mesmo género tenham características comuns que fazem com que participem do mesmo género, sucede que cada espécie há-de ter pelo menos uma característica que a diferencia dentro do género (é a diferença específica, differentia specifica). Caso contrário, não haveria diferenciação das espécies do mesmo género: não haveria especificação, não haveria especificidades.

Claro que, em termos epistemológicos, a generalidade/especialidade tanto se pode referir a seres, ou entes, como pode referir-se a casos previstos, ou outras realidades.

O artigo 20º/1 do CIRE confere legitimidade activa a qualquer credor, seja o crédito comercial, seja não comercial. Temos aí o género: o rol mais extenso de credores.

Dentro do género credores, pode haver especificação, designadamente conforme a qualidade do sujeito (imaginemos: credor sócio ou não sócio) ou conforme a fonte ou a natureza do crédito respectivo (v.g. crédito por mútuo, crédito por locação, crédito por suprimentos…): nessa configuração, teríamos várias espécies dentro do mesmo género. Evidentemente, a consideração de espécies dentro do género só tem relevância no campo do direito se este associar à especificação alguma diferenciação jurídica.

Sucede que a lei atribui relevância à diferenciação entre credores por suprimentos efectuados a favor da sociedade e credores cujos créditos não tenham essa natureza.

Os suprimentos são meios de financiamento da sociedade com capital alheio, podendo basear-se em negócios de mútuo ou no diferimento de créditos ou noutros ([5]). O contrato de suprimento é, as mais das vezes, uma espécie do género mútuo. Fala-se então em empréstimos feitos à sociedade. O contrato de suprimento, empréstimo do sócio à sociedade, tem um regime específico (diferenciado do mútuo em geral), constante dos artigos 243º a 245º do CSC.

Embora o contrato de suprimento (que é informal) seja celebrado entre a sociedade e o sócio (art. 243º/1 do CSC), o crédito do sócio pode ser cedido ou transmitido a terceiro. Fala então o dito art. 245º/2 em “credor” por suprimentos, em vez de sócio credor por suprimentos.

Pois bem. A previsão da norma do art. 20º/1 do CIRE é genérica enquanto se refere a quaisquer credores; a previsão da norma do art. 245º/2 do CSC é especial em relação àquela, dado que se refere apenas a uma espécie daquele género: refere-se apenas aos credores por suprimentos.

Por regra, a norma especial prevalece sobre a norma geral.

Donde, ao caso concreto deve aplicar-se a norma do art. 245º/2 do CSC: o requerente, ora apelante, porque se apresenta como credor da sociedade por suprimentos, não pode requerer, por esses créditos, a insolvência da sociedade. O mesmo vale por dizer: o requerente, ora apelante, não tem legitimidade para pedir a declaração da insolvência da sociedade.

No mesmo sentido se pronunciou esta Relação em acórdão de 19.10.2010 ([6]).

As questões suscitadas nas conclusões da alegação do recorrente têm solução negativa para este.

Em síntese final:

1.O requerente da declaração da insolvência da sociedade requerida invoca a existência de crédito a seu favor apenas por suprimentos.

2. A norma do artigo 20º/1 do CIRE, ao referir-se na parte previsiva a qualquer credor, é norma geral, enquanto a norma do artigo 245º/2 do CSC, ao referir-se na parte previsiva aos credores apenas por suprimentos, é norma especial.

3. Por regra, a norma especial prevalece sobre a norma geral.

4. Deste modo, por aplicação da estatuição do artigo 245º/2 do CSC, o credor por suprimentos não tem legitimidade para requerer, por esses créditos, a insolvência da sociedade.

III- Decisão:

Pelo exposto, acordam nesta Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão impugnada.

Custas pelo apelante.


Virgílio Mateus ( Relator )
Carvalho Martins
Carlos Moreira


[1] Neste sentido, vd. o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-05-1997, disponível em www. dgsi.pt.
[2] Sobre a matéria, vide Fátima Reis Silva, in Conhecer o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, IDET, Miscelâneas, n.º 2, págs. 62 a 64.
[3] Na ontologia (literalmente, estudo do ser, ontos), distingue-se entre extensão e compreensão: uma referida ao número de seres, outra referida às características dos seres.
[4] Claro que em relação a cada espécie pode haver sub-espécies, hipótese em que a espécie funciona como género em relação às suas sub-espécies.
[5] Cf. Alexandre Mota Pinto, Do Contrato de Suprimento, Almedina, 2002, p. 232 ss e 391 s.
[6] Trata-se do acórdão proferido no Processo n.º 286/10.2TBCDN.C1, de 19-10-2010, disponível em www.dgsi.pt, segundo o qual «O credor por suprimentos carece de legitimidade para requerer, por esses créditos, a insolvência da sociedade (n.º 2 do art.º 245.º do CSC)».