Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
266/11.0TBLMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: TRANSPORTE
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
RESPONSABILIDADE
TRANSPORTADOR
ÓNUS DA PROVA
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
FURTO
Data do Acordão: 04/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - INST. CENTRAL DE VISEU - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 17º Nº 2, 23º Nº3 E 29º DA CONVENÇÃO RELATIVA AO CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS POR ESTRADA (CMR).
Sumário: I – O furto da mercadoria transportada, ainda que não seja directamente imputável ao transportador (por ter sido levado a cabo por terceiros), não constitui, só por si, causa de exclusão da sua responsabilidade ao abrigo do disposto no art. 17º, nº 2, da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR).
II – Para que, em tal situação, a sua responsabilidade seja excluída, o transportador terá ainda o ónus de provar que actuou com a diligência de um bom pai de família no que toca à guarda e vigilância da mercadoria que estava a seu cargo e que adoptou todas as cautelas e providências que estavam ao seu alcance no sentido de evitar – ou, pelo menos, dificultar – a ocorrência de um facto dessa natureza.

III – Não actua com a devida diligência – e, portanto, age com culpa, respondendo pela perda da mercadoria – o transportador que procede ao transporte da mercadoria em camião com cobertura de lona e cujas portas não tinham qualquer cadeado ou sistema de segurança e que, não obstante essas circunstâncias, estaciona o veículo, durante a noite, num local sem qualquer vigilância ou protecção e sem que, pelo menos, um dos motoristas assegurasse a sua vigilância enquanto o outro descansava, circunstâncias em que a mercadoria transportada veio a ser furtada do interior do camião.

IV – Reportando-se o art. 29º da aludida Convenção à responsabilidade emergente para o transportador do incumprimento do contrato de transporte e porque, para efeitos de constituição da obrigação de indemnizar por incumprimento contratual, a nossa lei não estabelece distinção entre dolo e negligência (pois que qualquer uma dessas modalidades de culpa determina a constituição daquela obrigação), deverá entender-se que a negligência é equivalente ao dolo para efeitos de aplicação do citado art. 29º.

V – Assim, estando demonstrada a culpa (ainda que sob a forma de mera negligência) do transportador na perda ou avaria da mercadoria, não poderá o mesmo invocar as disposições da Convenção que limitam a sua responsabilidade, como é o caso do art. 23º, nº 3; a limitação da responsabilidade ali consignada ficará reservada para os casos em que o transportador responde por mero efeito da presunção de culpa que sobre si recai, nos termos da aludida Convenção, sem que se demonstre a sua culpa efectiva.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... , Companhia de Seguros, S.A., com sede na Rua (...) , Lisboa, intentou a presente acção contra B..., Transportes Internacionais, Ldª, com sede na Rua (...) , Mezio, alegando, em suma, que: C... celebrou com a Ré um contrato de transporte internacional de mercadorias tendo em vista o transporte até à sua sede, em Lamego, de diversa mercadoria que havia adquirido na Alemanha e cujo valor total era de 94.763,00€; dos 239 volumes que compunham essa mercadoria, apenas um chegou ao destino, sendo que os restantes terão sido furtados do veículo, em França, sendo que o camião, com cobertura de lona, foi deixado pelos motoristas, durante a noite, sem qualquer vigilância ou protecção; em consequência desses factos e por força de um contrato de seguro, do ramo mercadorias transportadas, que havia celebrado com a referida C... , a Autora pagou à sua segurada a quantia de 103,351,60€; na sequência desse facto, reclamou junto da Ré o reembolso desse valor por carta datada de 18/01/2011, sem que, até à data, tenha recebido qualquer resposta a essa carta.

Com estes fundamentos, pede que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de 103.351,60€ acrescida de juros vincendos até pagamento.

A Ré contestou, impugnando alguns dos factos alegados e contestando o valor peticionado na medida em que a responsabilidade do transportador pela perda da mercadoria deve ser calculada nos termos do art. 23º da Convenção CMR, tendo por base a data do roubo, a cotação do DSE e o peso da mercadoria.

Com estes fundamentos e alegando ter transferido a sua responsabilidade para a Companhia de Seguros D... , S.A., conclui pedindo a sua absolvição do pedido e a intervenção principal provocada da aludida companhia de seguros.

Admitida a requerida intervenção, a Companhia de Seguros D... , S.A. veio apresentar contestação, invocando causas de exclusão da sua responsabilidade e, questionando a existência do furto, alega que, de qualquer forma, sempre o mesmo teria sido facilitado pela omissão grosseira dos motoristas no que toca à forma e às circunstâncias em que aparcaram o veículo.

Conclui pela improcedência da acção.

A Autora respondeu, reafirmando a posição assumida na petição inicial e sustentando a improcedência das excepções invocadas.

Foi realizada a audiência preliminar, foi proferido despacho saneador e foi efectuada a selecção da matéria de facto assente e base instrutória.

Foi realizada a audiência de discussão e julgamento e, na sequência desse facto, foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu as Rés do pedido.

Discordando dessa decisão, a Autora veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. Face à matéria de facto dada como provada, não devia ter sido considerado "não provado" que "a ré podia e devia ter organizado a viagem de modo a evitar que o camião ficasse parado na estrada, em local sem vigilância ou protecção".

2. O camião tinha dois motoristas a bordo, esteve imobilizado durante mais de 41 horas seguidas, durante o feriado e domingo, nos dias 1 e 2 de Maio de 2010, retomou a marcha às 22.00 horas do dia 2/5/2010, decidindo os dois motoristas parar, menos de 4 horas depois, pelas 01.50 horas, numa área de repouso numa estrada em França.

3. É do conhecimento geral, e por maioria de razão, dos motoristas que efectuam transportes internacionais - tanto mais que no presente caso um dos motoristas é o próprio gerente da R. - a existência de frequentes assaltos e furtos em parques de repouso não vigiados ao longo das estradas, durante a noite.

4. Sendo a Ré uma empresa que se dedica à actividade dos transportes rodoviários internacionais (cfr. facto provado c)), podia e devia, no âmbito da organização das viagens que efectua, ter encontrado em alguma localidade próxima, um parque ou outro espaço com vigilância, onde pudesse estacionar o veículo em segurança e permitir aos motoristas descansar igualmente em segurança, tanto mais que a Ré circula com camiões de lona material vulnerável, facilmente cortável, e nem sequer coloca selos ou cadeados nas portas do veículo transportador (cfr. facto provado jj).

5. Manifestamente a Ré podia e devia ter programado melhor a viagem, pelo que deve ser acrescentado aos factos provados que:

"a ré podia e devia ter organizado a viagem de modo a evitar que o .camião ficasse parado na estrada, em local sem vigilância ou protecção".

6. O que está em causa nos presentes autos é o incumprimento do contrato de transporte rodoviário internacional, celebrado entre a R. e a Segurada da Autora, titulado pelas Declarações CMR juntas aos autos a fls. 51 e 52.

7. Nos termos do disposto no artigo 17° nº 1 da Convenção de Genebra de 1956, relativa ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada - Convenção CMR - aprovada pelo Dec.Lei nº 46.235, de 18/3/1965, aplicável ao caso em apreço, o "transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento de carregamento da mercadoria e o da entrega, assim, como pela demora na entrega".

8. De acordo com o nº 2 do mesmo artigo "o transportador fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar".

9. De acordo com a jurisprudência dos nossos tribunais, está em causa, no contrato de transporte, uma obrigação de resultado, por parte do transportador, bastando a demonstração pelo credor –  ­expedidor – da não verificação desse resultado, ou seja, a não entrega da mercadoria no destino, para se estabelecer o incumprimento do devedor - transportador.

10. Esta presunção de culpa do transportador só pode ser afastada se este invocar e provar alguma das causas de exclusão da sua responsabilidade previstas no nº 2 do art. 17º da Convenção CMR.

11.A Autora demonstrou a não entrega da mercadoria no destino, tal como resulta do facto p) da matéria provada - "Dos 239 volumes carregados, apenas 1 (um) volume contendo 15 passa cabos, chegou ao destino".

12. A R. não fez prova de circunstâncias que não podia evitar ou cujas consequências não podia obviar, de modo a afastar a sua responsabilidade.

13. Acresce, tal como decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 14/6/2011, que o furto de mercadorias do interior de um veículo estacionado, durante a noite, em local sem vigilância, não constitui caso fortuito, que possa integrar as exclusões do art. 17º nº 2 da Convenção CMR, e assim afastar a presunção de culpa do transportador.

14. Releva ainda que, no presente caso, existiam dois motoristas no camião, coberto com lona, e cujas portas não estavam sequer fechadas com selo ou cadeado.

15. A culpa da R. na produção do incidente é manifesta, bem como a sua total falta de cuidado relativamente à mercadoria entregue à sua guarda.

16. A douta Sentença recorrida fez uma incorrecta aplicação do direito aos factos, violando, entre outros, o disposto no art. 17° nº 1 e nº 2 da Convenção CMR, devendo ser substituída por outra que condene a R. no pagamento a quantia peticionada, ou

17.Quando assim se não entenda, o que se aduz por mera cautela de patrocínio, deverá a Ré ser condenada a pagar à A. o valor correspondente à aplicação do disposto no art. 23º nº 3 da já referida Convenção CMR.

  

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se deve ou não ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto, no sentido de considerar provado o facto a que alude a Apelante e que a decisão recorrida considerou não provado;

• Saber, em face da matéria de facto provada, se a Ré (transportadora) deve ou não ser responsabilizada pela perda da mercadoria que ocorreu durante o transporte, por efeito de um furto, apurando, designadamente, se foram ou não demonstradas quaisquer circunstâncias que, nos termos da Convenção aplicável (CMR), sejam susceptíveis de excluir a sua responsabilidade;

• Caso se conclua que a Ré é responsável pela perda da mercadoria, apurar o valor da indemnização devida.


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III.

Na 1ª instância, considerou-se provada a seguinte matéria de facto:

a) A autora é uma companhia de seguros.

b) A ré transferiu a sua responsabilidade civil emergente de transportes de mercadorias CMR, do veículo para a chamada “Companhia de Seguros D... , S.A.”, por contrato de seguro titulado pela apólice n.º (...) /CMR, conf. fls. 105 a 108.

c) A ré é uma empresa que se dedica à actividade dos transportes rodoviários internacionais de mercadorias.

d) A autora celebrou com C... , um contrato de seguro, do ramo mercadorias transportadas, Apólice nº 00 (...) .

e) A Segurada da autora adquiriu na Alemanha, diversos equipamentos de som, conforme facturas de fls. 144, 145, 151 e 158.

f) A mercadoria em questão foi adquirida pela Segurada da autora, a dois fornecedores, na Alemanha, a E... e a F... .

g) A mercadoria adquirida à E... , tinha o valor de Euros 47.554,-(46.234,- + 1.320).

h) Era composta por 24 volumes, como o peso bruto de 1.000 Kgs.

i) A mercadoria adquirida à F... , tinha o valor de Euros 47.209.

j) Era composta por 215 volumes, como o peso bruto de 2.000 kgs.

k) Para efectuar o transporte da mercadoria da Alemanha até às instalações da Segurada da autora, no (...) , em Lamego, esta contratou os serviços da ré.

l) Em 30 de Abril de 2010, a mercadoria adquirida à E... foi carregada no camião da ré, matricula (...) IF, e atrelado L- (...) , na localidade de Siershahmn, conforme consta da declaração de Expedição Internacional, CMR, com o nº 0042, conforme fls. 51.

m) Esta declaração CMR encontra-se assinada pela ré, na pessoa do motorista do camião transportador, na casa correspondente ao transportador.

n) Na mesma data, a mercadoria adquirida à F... , foi carregada no mesmo camião da ré, matricula (...) IF e atrelado L- (...) , na localidade de Koln, conforme consta da Declaração de Expedição Internacional, CMR, com o nº 0041, conforme fls. 52.

o) Esta Declaração CMR encontra-se igualmente assinada pela ré, na pessoa do motorista do camião transportador, na casa correspondente ao transportador.

p) Dos 239 volumes carregados, apenas 1 (um) volume contendo 15 passa cabos, chegou ao destino.

q) De acordo com informações fornecidas pela ré, o camião transportador terá sido objecto de furto, em França.

r) No âmbito do contrato de seguro celebrado, a Segurada da autora participou o sinistro aqui em causa, conforme Participação de Sinistro que se encontra junta ao Certificado de Vistoria.

s) A empresa de peritagens, a H... , Lda, a pedido da autora e após as averiguações que levou a cabo, procedeu à elaboração do seu Certificado de Vistoria nº (...) , conforme fls. 24 a 36.

t) De acordo com o Certificado de Vistoria, a mercadoria viajava em veículo com cobertura de lona, lona esta que foi rasgada com qualquer objecto cortante.

u) Acresce que o camião foi estacionado pelos motoristas da ré, durante a noite, numa área de repouso da estrada, algures em França, sem qualquer vigilância, ou protecção, sendo certo que no camião seguiam dois motoristas.

v) Perante o desaparecimento da mercadoria durante o transporte rodoviário, no âmbito do contrato de seguro celebrado, a autora pagou à sua segurada a quantia de Euros 103.351,60, conforme recibo de fls 13.

w) Na sequência do pagamento efectuado, e nos termos da Convenção CMR a que adiante se faz referência, a autora reclamou junto da ré o reembolso desse valor, o que fez através de carta registada, datada de 18 de Janeiro de 2011, conforme fls. 14.

x) Até ao momento a autora não recebeu qualquer resposta a esta carta.

y) A ré procedeu ao carregamento de mercadoria no dia 29 de Abril de 2010 em MENDEM - ALEMANHA, para a empresa G... , em Lisboa, carga composta por calhas e acessórios para instalações eléctricas.

z) Depois carregou em Koln, na F... material de Hi-Fi e de som.

aa) Depois iniciou a viagem para Luxemburgo, entrou em França e cerca das 4:30 horas do dia 01.05.2010 e devido ao feriado, imobilizou o veículo em Limoges (área serviço) até às 22h00 do dia 02.05.2010.

bb) Em 2 de Maio de 2010 reiniciou a viagem cerca das 22 horas com direcção a Fronteras pelas 01h50 horas do dia 03.05.2010, tentou imobilizar o TIR numa área de serviço, no entanto e dado a falta de lugar, optou por continuar viagem, tendo parado pelas 02h25 horas na área de repouso de D'ONESSE ET LAHARIE, parando por volta das 01:50 horas, e desta forma ter horário directo a Lisboa.

cc) Uma vez que eram dois motoristas, tentaram parar numa área de serviço contudo não havia lugar para estacionar e por isso deslocaram-se até às bombas mais próximas tendo imobilizado o veículo por volta das 02:25 horas na área de repouso de D.ONESSEETLAHAIREI (França).

dd) Parquearam o veículo TIR no estacionamento, em espinha, entre outros camiões, tendo posteriormente outro condutor imobilizado o seu camião na traseira, ficando bloqueado.

ee) Pelas 08:00 horas do dia 03.05.2010, foram acordados por um motorista de outro camião, que lhes informou que as portas do semi-reboque estavam abertas.

ff) Após a inspecção à caixa de carga foi constatada a falta de material que se encontrava estivado na parte traseira.

gg) Durante a noite, os motoristas não se aperceberam de qualquer barulho estranho.

hh) Após a constatação do furto, a polícia solicitou aos motoristas informação sobre o valor da carga e fizeram o levantamento dos volumes em falta, posteriormente deslocaram-se ao posto da polícia onde foi feita e elaborada a participação tendo saído do posto cerca das 16:30 horas.

ii) Posteriormente deslocaram-se ao posto da Policia, onde foi solicitado aos expedidores os respectivos documentos (facturas) da carga, no sentido de apurarem o montante da mercadoria desaparecida.

jj) As portas não continham selo e/ou cadeado.

kk) O local onde o veiculo se encontrava estacionado possui um poste de iluminação junto ao posto de SOS, as laterais são vedadas por rede, não existe vigilância permanente e/ou videovigilância.

E consideram-se não provados os seguintes factos:

- Que a ré podia e devia ter organizado a viagem de modo a evitar que o camião ficasse parado na estrada, em local sem vigilância ou protecção.

- Que a ré B... remeteu, por correio registado, à companhia de Seguros D... nas 24 horas seguintes, a participação do sinistro e a relação detalhada dos objectos desaparecidos com os respectivos valores unitários, assim como o documento comprovativo da denúncia efectuada.

-Que a ré elaborou e entregou o plano de paragens aos seus motoristas onde constassem, feita a escolha com critérios criteriosos e adequados, os locais onde pudessem aparcar e que preenchessem os requisitos indispensáveis de segurança necessários ao transporte a realizar.


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IV.

Impugnação da matéria de facto

A Apelante começa por sustentar, nas cinco primeiras conclusões das suas alegações, que deveria ter sido considerado provado que “a ré podia e devia ter organizado a viagem de modo a evitar que o camião ficasse parado na estrada, em local sem vigilância ou protecção”.

É certo, portanto, que a Apelante impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, sustentando que aquele facto (considerado como não provado pela decisão recorrida) deve considerar-se provado.

Entrando na análise dessa questão, parece-nos, antes de mais, que aquela afirmação não corresponde, propriamente, a um facto, mas sim a um juízo conclusivo, porquanto, embora se mova no domínio do facto, aquela afirmação pressupõe uma apreciação e valoração de um conjunto de factos.

De qualquer forma, pretendendo impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, a Apelante teria que especificar, obrigatoriamente, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida (cfr. art. 640º, nº 1, alínea b) do CPC).

Acontece que a Apelante não invocou um qualquer meio probatório no qual pudesse assentar a decisão de considerar aquele facto como provado, limitando-se a aludir a outros factos considerados provados e a tecer uma série de considerações sem qualquer idoneidade para alterar a decisão proferida.

Diz-se na fundamentação da decisão de facto que, de acordo com os depoimentos das testemunhas da Ré, que não foram infirmados por qualquer outro meio de prova, só em Paris existiriam parques com vigilância. Mais se diz não ter sido demonstrado que a Ré poderia ter-se deslocado para um parque fechado que, pelo menos na auto-estrada, não existe, referindo-se ainda que, de acordo com aqueles depoimentos, o camião esteve dois dias parados porque, nos termos da legislação do país em que se encontravam, era proibido circular aos domingos e feriados.

Ora, a Apelante não faz qualquer apreciação sobre tais depoimentos e nada diz no sentido de justificar que os mesmos não deveriam ter merecido a credibilidade do tribunal. E também não invoca um qualquer meio probatório que permitisse afirmar que a Ré poderia ter evitado a paragem do camião na estrada em local sem vigilância ou protecção; a Apelante não invoca qualquer elemento probatório com base no qual se possa afirmar que, no percurso efectuado, existiam locais com vigilância ou protecção onde o camião poderia ficar aparcado ou que existiam percursos alternativos onde existiam tais lugares.

Afirma a Apelante, nas suas alegações, que a Ré poderia ter encontrado em alguma localidade próxima, um parque ou outro espaço com vigilância onde pudesse estacionar o veículo em segurança. Mas esta é uma afirmação da própria Apelante que, como é evidente, não tem qualquer idoneidade para fundamentar a decisão de considerar esse facto como provado e a verdade é que a Apelante não indicou qualquer elemento probatório com base no qual se pudesse afirmar que existiam, efectivamente, em localidades próximas, espaços com vigilância ou qualquer tipo de protecção.

Assim sendo, ter-se-á que manter a decisão proferida no que toca ao aludido facto, já que, como se referiu, a Apelante não indicou qualquer elemento probatório que fosse susceptível de fundamentar uma convicção ou decisão diversa daquela que foi proferida.

 

Direito

Resolvida a questão suscitada ao nível da matéria de facto, importa agora analisar as questões relacionadas com a aplicação da lei.

Está em causa nos autos um contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada (contrato por força do qual alguém se obriga perante outrem a realizar, mediante um preço, o transporte de mercadorias, por estrada, de um país para outro) e ao qual se aplica a Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR) assinada em Genebra no dia 19 de Maio de 1956, inserida no direito português pelo Decreto Lei nº 46.235, de 18 de Março de 1965 e alterada pelo Protocolo de Genebra de 05/07/1978, aprovado em Portugal para a sua adesão pelo Decreto nº 28/88 de 06/09.

Tal contrato foi celebrado entre a Ré (transportadora) e a segurada da Autora e tinha como objecto o transporte de mercadorias da Alemanha para Portugal.

Sucede que tal mercadoria – carregada no camião da Ré em 30/04/2010 – veio a ser furtada do camião durante o transporte (mais concretamente, em França), sendo que, dos 239 volumes carregados, apenas um chegou ao seu destino.

Coloca-se, portanto, a questão de saber se a Ré responde ou não – e em que termos – pela perda da mercadoria. É essa a questão essencial que se debate nos autos e no presente recurso.

De acordo com o disposto no art. 17º do CMR, o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega.

O transportador fica, no entanto, desobrigado dessa responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar – cfr. art. 17º nº 2 – ficando ainda isento da sua responsabilidade quando a perda ou avaria resultar dos riscos particulares inerentes a um ou mais dos factos referidos no art. 17º nº 4.

Mais dispõe o art. 18º que compete ao transportador fazer a prova de que a perda ou avaria teve por causa um desses factos ou riscos particulares.

Resulta, portanto, destas disposições legais que o transportador é, em princípio, responsável pela perda ou avaria da mercadoria que se produzir entre o momento do carregamento e o da entrega, sobre ele recaindo o ónus de provar que a perda ou avaria foi determinada por qualquer das circunstâncias supra mencionadas que excluem a sua responsabilidade.

É incontroverso que a perda da mercadoria em causa nos presentes autos ocorreu no decurso do transporte efectuado pela Ré, ou seja, no decurso da viagem efectuada pelos seus motoristas da Alemanha para Portugal, pelo que, em face do disposto no art. 17º do CMR, a Ré (transportadora) será, em princípio, responsável por essa perda.

Resta saber se a Ré logrou ou não fazer a prova – já que, por disposição expressa da lei, sobre si recai o respectivo ónus – de qualquer facto ou circunstância susceptível de afastar aquela responsabilidade.

Depois de efectuar diversas considerações teóricas a propósito desta matéria e aplicando tais considerações ao caso concreto, a sentença recorrida julgou a acção improcedente, dizendo o seguinte:

Em face do que fica dito e recuperando a factualidade provada, diremos que, não havendo parques com vigilância no percurso da Ré, o referido parque dotado de vedação, onde aparcavam outros camiões, não é um local que propicie especialmente a ocorrência deste tipo de sinistro, não demostrou a A. que a adopção de outro comportamento ou um parque com vigilância adequada existisse nesse percurso e que se poderia ter evitado a ocorrência do furto em causa.

Também não são demostrados outros elementos que apontem para uma situação e negligência da Ré, e a própria falta de cadeado não é particularmente relevante porque o local escolhido para retirar a mercadoria foi a lona.

Deste modo, não se vislumbra culpa imputável a Ré na ocorrência do sinistro pelo que a acção deve improceder”.

Refira-se, antes de mais, que, ao contrário do que parece decorrer da sentença recorrida, não era à Autora que competia provar a culpa da Ré, sendo que a responsabilidade desta pela perda da mercadoria não depende da efectiva demonstração da sua culpa.

Com efeito, e tal como se referiu supra, a Ré é, em princípio, responsável por essa perda, apenas podendo livrar-se dessa responsabilidade caso prove que a mesma teve como causa algum dos factos a que alude o citado art. 17º e, não estando aqui em causa uma qualquer falta do interessado ou um vício da mercadoria, o que importa saber é se a matéria de facto provada permite ou não afirmar que essa perda ficou a dever-se a circunstâncias que a Ré não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar.

Sabemos que a perda da mercadoria decorreu, no caso sub judice, de um furto, que não é, em si mesmo, imputável à Ré ou aos seus motoristas.

 Mas isso não basta para excluir a responsabilidade da Ré; para que tal suceda será ainda necessário que a matéria de facto provada permita afirmar que a Ré não tinha como evitar esse furto, não podendo ser excluída a sua responsabilidade se esse furto foi potenciado ou facilitado pela omissão dos deveres de vigilância e de cuidado que sobre a Ré impedia, já que, enquanto transportadora, tem, evidentemente, o dever de tomar as precauções necessárias para evitar a perda, extravio ou destruição dos objectos ou mercadoria que transporta e que se obrigou a fazer chegar ao destino contratado.

Com efeito, e conforme se refere no Acórdão do STJ de 05/06/2012[1], “Ao transportador impõe-se a guarda e a conservação da mercadoria, protegendo-a da acção dos elementos da natureza ou de terceiros, tal como o faria um profissional experiente, conhecedor e responsável, com o padrão de diligência adoptado por um bonus pater famílias ”.

Ora, não nos parece que a Ré tenha feito a prova de ter adoptado todas as providências que se impunham e que, nas mesmas circunstâncias, seriam adoptadas por um bom pai de família, para evitar ou, pelo menos, dificultar a ocorrência de um furto.

Refira-se, em primeiro lugar, que, ao contrário do que se afirmou na sentença recorrida, não resulta da matéria de facto provada que não existissem, no percurso efectuado, parques com vigilância, importando notar que era à Ré que cabia provar a inexistência desses parques, demonstrando, desse modo, que não tinha possibilidade de evitar o estacionamento do veículo em local sem vigilância, como aconteceu.

Registe-se, além do mais, que o veículo apenas tinha uma cobertura de lona e que as portas não tinham selo ou cadeado. Ora, tais circunstâncias não parecem ser adequadas ao transporte de mercadorias com algum valor, designadamente quando, como aqui aconteceu, se pretende deixar o veículo estacionado sem qualquer vigilância.

Não ignoramos que, ainda que a cobertura não fosse de lona, o furto poderia ter ocorrido, até porque, como decorre da matéria de facto, a mercadoria terá sido retirada pelas portas do semi-reboque que estavam abertas. No entanto, a cobertura de lona – que sabemos ter sido rasgada – terá constituído um modo fácil e rápido de verificar o conteúdo do camião, contribuindo para que os autores do furto tomassem a decisão de o efectuar. Com efeito, se o conteúdo do camião não pudesse ser facilmente verificado e se as portas estivessem devidamente fechadas – com cadeado ou qualquer outro sistema de segurança – tais circunstâncias poderiam ter desmotivado os autores do furto na medida em que dificultariam e tornariam mais morosa a sua realização.

Refira-se, aliás, que nem sequer sabemos se as portas do camião estavam fechadas (não podendo ser excluída a possibilidade de os motoristas, por eventual esquecimento, as terem deixado abertas), já que nada sabemos acerca das exactas circunstâncias em que ocorreu o furto e, portanto, não sabemos se as portas foram arrombadas e como.

Registe-se, por outro lado, que a carga era acompanhada por dois motoristas e, portanto, na impossibilidade de aparcar o veículo em local devidamente vigiado ou protegido, sempre o mesmo deveria ser vigiado por um deles enquanto o outro descansava.

Diremos, portanto, em suma, que a Ré, embora não pudesse impedir, em absoluto, a ocorrência de um furto, podia e deveria ter adoptado providências – que não deixariam de ser adoptadas por um bom pai de família, nas mesmas circunstâncias – tendentes a dificultar a sua realização e a reduzir as possibilidades da sua ocorrência. Na impossibilidade de assegurar a marcha contínua do veículo, a Ré deveria, com efeito, ter procurado um local devidamente protegido ou vigiado para aparcar o veículo e, não sendo isso possível, deveria tê-lo estacionado devidamente fechado e em condições de segurança (não com cobertura de lona) e, dispondo de dois motoristas, deveria um deles ter assegurado a vigilância enquanto o outro descansava.

A Ré não demonstrou ter adoptado essas providências – aliás, a Ré nada alegou sequer a esse respeito – e, como tal, não demonstrou que a perda da mercadoria tenha ficado a dever-se a circunstâncias que não podia evitar. 

Na linha do que dissemos, escreve-se no Acórdão do STJ supra citado o seguinte:

Com efeito, não basta o réu provar que deixou o camião estacionado em lugar público, bem iluminado, em zona residencial, e que na cidade de Viseu e até Vilar Formoso não existiam parques guardados ou fechados.

 Não sendo possível a continuidade ininterrupta do percurso, até França, ou a paragem em parques guardados, o réu devia fazer-se acompanhar por outro motorista, para alternarem no descanso e na vigilância da viatura, enquanto o outro repousava.

 Não podia o réu ir pernoitar a casa e deixar o camião abandonado, de noite e sem qualquer vigilância, durante cerca de 11 horas”.

E no mesmo sentido decidiu o Acórdão do STJ de 14/06/2011[2], onde se considerou que o transportador não havia demonstrado factos bastantes para excluir a sua responsabilidade numa situação em que o furto havia ocorrido quando o camião se encontrava estacionado num parque, em local com boa iluminação, onde se encontravam estacionados outros veículos e próximo de um posto policial, encontrando-se o motorista a dormir na cabina do camião e encontrando-se a porta do reboque fechada por loquete e um cabo tir e tendo o furto ocorrido depois de os assaltantes terem rasgado a tela/lona do reboque.

Não obstante se ter demonstrado, no caso a que alude o acórdão que acabamos de citar, que o transportador adoptou maiores cautelas do que aquelas que a Ré demonstrou ter efectuado nos autos – já que, ao contrário do que aqui aconteceu, naquele caso demonstrou-se que a porta do reboque estava fechada por loquete e um cabo tir, que o motorista se encontrava dentro da cabina (embora a dormir) e que o camião estava estacionado próximo de um posto policial -, ainda assim se considerou que essas cautelas não eram suficientes para excluir a responsabilidade do transportador, ali se referindo que, “… a ré, atendendo ao valor e à natureza, altamente, sonegáveis da mercadoria transportada, a não ter incluído na tripulação um outro motorista, quer para garantir a continuidade quase ininterrupta do percurso, ou, pelo menos, assegurar a vigilância dos bens enquanto um deles dormia, poderia ainda ter transformado o reboque do camião num compartimento menos permeável, apenas protegido por uma tela ou lona com uma porta fechada por um loquete e um cabo tir”. E, note-se, no caso sub judice, até existiam dois motoristas e, portanto, sempre poderiam ter alternado o seu descanso de forma a que um deles assegurasse a devida vigilância à carga que transportavam.

É certo, portanto, que a Ré não logrou fazer a prova – como a lei lhe impunha que fizesse para se livrar da responsabilidade – de que a perda da mercadoria resultou de circunstâncias que não poderia ter evitado, porquanto, ainda que a perda da mercadoria tenha resultado de furto e ainda que este não lhe seja directamente imputável, a Ré teria que demonstrar ter actuado com a diligência de um bom pai de família, no que toca à guarda e vigilância da mercadoria que estava a seu cargo, e, portanto tinha que provar ter adoptado todas as cautelas e providências que estavam ao seu alcance no sentido de evitar – ou, pelo menos, dificultar – a ocorrência de um furto. Não foi isso, no entanto, o que aconteceu. A Ré procedeu ao transporte da mercadoria em camião com cobertura de lona (circunstância que, evidentemente, facilitava e propiciava a realização do furto) e nem sequer demonstrou que as portas do reboque estivessem devidamente fechadas (sendo certo, de qualquer forma, que não tinham qualquer cadeado); não obstante esses factos e não podendo desconhecer a possibilidade de ocorrência de um furto que era facilitado por tais circunstâncias, os seus motoristas estacionaram o veículo num local que não tinha qualquer vigilância ou protecção sem que, pelo menos, um deles assegurasse a vigilância enquanto o outro descansava.

Consequentemente, e ao contrário do que se considerou na sentença recorrida, a Ré não poderá deixar de ser responsabilizada pela perda da mercadoria.

Resta, portanto, apurar o valor da indemnização.

A Autora pedia o valor de 103.351,60€, correspondente ao valor que havia pago à sua segurada.

Sustentava, porém, a Ré que a indemnização eventualmente devida estaria limitada ao valor resultante da aplicação do disposto no art. 23º do CMR, designadamente, no seu nº 3.

Dispõe o artigo 23º da CMR, nos seus nºs 1, 2 e 3, que “quando for debitada ao transportador uma indemnização por perda total ou parcial da mercadoria, em virtude das disposições da presente Convenção, essa indemnização será calculada segundo o valor da mercadoria no lugar e época em que for aceite para transporte”, sendo que “o valor da mercadoria será determinado pela cotação na bolsa, ou, na falta desta, pelo preço corrente no mercado, ou, na falta de ambas, pelo valor usual das mercadorias da mesma natureza e qualidade”, mas não podendo “…ultrapassar 8,33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta” (unidade de conta que é calculada de acordo com o disposto no nº 7).

A norma citada estabelece, portanto, uma limitação da responsabilidade do transportador que, nessa medida, se afasta do regime geral da responsabilidade contratual.

O art. 29º da aludida Convenção preceitua, no entanto, nos seguintes termos:

1. O transportador não tem o direito de aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo.

 2. Sucede o mesmo se o dolo ou a falta for acto dos agentes do transportador ou de quaisquer outras pessoas a cujos serviços aquele recorre para a execução do transporte, quando esses agentes ou essas outras pessoas actuarem no exercício das suas funções. Neste caso, esses agentes ou essas outras pessoas também não têm o direito de aproveitar-se, quanto à sua responsabilidade pessoal, das disposições do presente capítulo indicadas no parágrafo 1”. 

A interpretação desta norma – a propósito da equivalência (ou não) da negligência ao dolo – não tem merecido, no entanto, um tratamento uniforme da nossa jurisprudência.

Com efeito, encontramos várias decisões no sentido de que apenas o dolo releva para os efeitos da previsão contida no nº 1 da norma citada e, portanto, para o efeito de o transportador não poder invocar as normas da Convenção que excluem ou limitam a sua responsabilidade, argumentando-se, para tanto, que, de acordo com a nossa lei, a negligência ou mera culpa não equivale ao dolo (vejam-se, entre outros, o Acórdão do STJ de 06/07/2006, proc. nº 06B1679 e os Acórdãos da Relação do Porto de 29/10/2009 e 25/10/2012, proferidos nos processos nºs 982/07.1TVPRT.P1 e 9268/07.0TBMAI.P1, respectivamente[3]).

Mas outras decisões encontramos no sentido de que, para aquele efeito e de acordo com a nossa lei, a negligência é equiparável ao dolo – e, ao que nos parece, tem sido neste sentido a jurisprudência mais recente do STJ – como acontece com os Acórdãos do STJ de 05/06/2012 e de 14/06/2011 (supra citados) e como acontece ainda com o Acórdão do STJ de 15/05/2013, proferido no processo nº 9268/07.0TBMAI.P1.S1 e com o Acórdão da Relação do Porto de 26/06/2014, proferido no processo nº 5403/11.2TBMAI.P1[4].

E nós inclinamo-nos para a última posição.

É indiscutível que, no nosso sistema legal, a negligência ou mera culpa não é, em termos gerais e abstractos, equiparável ou equivalente ao dolo. O dolo e a negligência têm, efectivamente, tratamentos bem diferenciados ao nível, designadamente, da responsabilidade criminal, tal como têm um tratamento diferenciado relativamente a outras matérias e situações específicas e pontuais em que o legislador entendeu tratar essas situações de forma diferente.

Mas, apesar de não se poder afirmar que, em termos gerais e abstractos, o dolo e a negligência são realidades equiparáveis no nosso sistema legal, a verdade é que, para efeitos de responsabilidade civil – contratual e extra-contratual – a nossa lei não atribui qualquer relevo à modalidade de culpa para efeitos de estabelecer o nexo de imputação do facto ao agente, que é pressuposto da responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar. Com efeito, o art. 483º do CC, ao estabelecer o princípio geral em matéria de responsabilidade por factos ilícitos, alude expressamente a “dolo ou mera culpa”, daí resultando, inequivocamente, a irrelevância da distinção entre dolo e mera culpa para efeitos de responsabilidade civil e constituição da inerente obrigação de indemnização. E tal irrelevância estende-se à responsabilidade contratual, como decorre do disposto no art. 799º, nº 2, do mesmo diploma.

Ora, reportando-se o art. 29º da aludida Convenção à responsabilidade emergente para o transportador do incumprimento do contrato de transporte, não nos parece que a equivalência ao dolo ali mencionada (segundo a lei da jurisdição que julgar o caso) se deva reportar ao sistema legal no seu conjunto (no sentido de exigir uma equiparação absoluta em todas as situações), devendo antes reportar-se ao regime legal que regula a concreta matéria que está ali em causa: a responsabilidade contratual do transportador pelo incumprimento do contrato. E a verdade é que, nesta matéria e para efeitos de constituição da obrigação de indemnizar, a nossa lei não estabelece distinção entre dolo e negligência e tal não poderá deixar de significar que, para esse efeito e nesta matéria, a negligência (mera culpa) é equivalente ao dolo.

Significa isto, portanto, que, estando demonstrada a culpa (ainda que sob a forma de mera negligência) do transportador na perda ou avaria da mercadoria, não poderá o mesmo invocar as disposições da Convenção que limitam a sua responsabilidade, como é o caso do art. 23º, nº 3. A limitação da responsabilidade ali consignada ficará, portanto, reservada para os casos em que o transportador responde por mero efeito da presunção de culpa que sobre si recai, nos termos da aludida Convenção, sem que se demonstre a sua culpa efectiva. Não haverá, no entanto, lugar a tal limitação da responsabilidade quando a matéria de facto provada permite afirmar que o dano decorreu de falta imputável ao transportador e quando, de acordo com essa matéria, é possível formular o juízo de censura que é inerente ao conceito de culpa, por ser possível afirmar que o transportador não actuou com a diligência de um bom pai de família (cfr. art. 487º, nº 2, do CC).

E, na nossa perspectiva, é esta a situação dos autos.

De facto, e como decorre do que acima foi exposto, a Ré violou – ainda que por intermédio dos seus motoristas – os deveres de cuidado que lhe eram exigíveis e que não deixariam de ser adoptados por um bom pai de família, no sentido de evitar – ou pelo menos, dificultar – a ocorrência de um furto. Com efeito, independentemente da questão de saber se existia ou não a possibilidade de estacionar o camião em local devidamente protegido e vigiado (facto que desconhecemos), a verdade é que a Ré, devendo prever essa situação, deveria ter providenciado pela instalação de uma cobertura do veículo que oferecesse maior segurança (ao invés de ter utilizado uma cobertura de lona que, como é evidente, facilmente se rasga) e deveria ter providenciado pela instalação de qualquer dispositivo de fecho das portas que lhe desse maior segurança e, não tendo adoptado nenhuma dessas providências e sendo a carga acompanhada por dois motoristas, o mínimo que lhe seria exigível era que tais motoristas alternassem os períodos de descanso para que um deles assegurasse a vigilância do veículo e da carga nele transportada.

Não tendo actuado desse modo, a Ré actuou culposamente e, como tal, não poderá invocar – como acima se referiu – a limitação da responsabilidade consagrada no citado art. 23º, nº 3, ficando obrigada a indemnizar a totalidade dos danos emergentes da sua conduta negligente.

E quais são esses danos?

Não obstante resultar provado que a Autora pagou à sua segurada o valor de 103.351,60€, a verdade é que não existe suporte factual que justifique a totalidade desse valor e que permita afirmar ter sido esse o valor do dano sofrido pela segurada da Autora e que a Ré está obrigada a indemnizar.

Com efeito, sabemos apenas que a mercadoria transportada no camião tinha o valor global de 94.763,00€.

Não obstante se depreenda dos documentos juntos com a petição inicial que o restante valor pago pela Autora se reportava a prejuízos decorrentes da perda dos rendimentos que poderiam ser obtidos com a venda da mercadoria (lucros cessantes), a verdade é que a Autora nada alegou no sentido de demonstrar esses danos e, porque nada alegou, nada provou a esse propósito.

Assim sendo, a indemnização a pagar pela Ré corresponderá apenas ao valor da mercadoria perdida.

Mas, sabendo-se que nem toda a mercadoria foi perdida, já que um dos 239 volumes que constituíam a carga chegou ao destino, o valor desse volume há-de ser deduzido ao valor total da mercadoria (94.763,00€).

Não consta, porém, da matéria de facto o valor da mercadoria que chegou ao seu destino, o que, em rigor, impunha que fosse relegado para posterior liquidação o apuramento da indemnização a pagar pela Ré.

No entanto, resultando dos documentos juntos aos autos (vistoria, facturas e reclamação do segurado) que o volume entregue (contendo 15 passa cabos) tinha o valor de 807,00€ e, apelando à equidade (cfr. art. 566º, nº 3, do CC) – no sentido de que tal valor se nos afigura razoável e ajustado, tendo em conta a natureza da mercadoria e a dimensão que representava na totalidade da carga (apenas um volume entre os 239 que constituíam a carga) –, fixamos, desde já, o valor da indemnização em 93.956,00€ por não se justificar, na nossa perspectiva, uma nova actividade processual para comprovar um valor que, embora não conste da matéria de facto (até porque não foi expressamente alegado, a não ser por eventual remissão para os documentos juntos com a petição), resulta dos documentos juntos e que nem sequer foram impugnados pela Ré.

Impõe-se, portanto, julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida e condenando-se a Ré nos termos supra mencionados.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – O furto da mercadoria transportada, ainda que não seja directamente imputável ao transportador (por ter sido levado a cabo por terceiros), não constitui, só por si, causa de exclusão da sua responsabilidade ao abrigo do disposto no art. 17º, nº 2, da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR).

II – Para que, em tal situação, a sua responsabilidade seja excluída, o transportador terá ainda o ónus de provar que actuou com a diligência de um bom pai de família no que toca à guarda e vigilância da mercadoria que estava a seu cargo e que adoptou todas as cautelas e providências que estavam ao seu alcance no sentido de evitar – ou, pelo menos, dificultar – a ocorrência de um facto dessa natureza.

III – Não actua com a devida diligência – e, portanto, age com culpa, respondendo pela perda da mercadoria – o transportador que procede ao transporte da mercadoria em camião com cobertura de lona e cujas portas não tinham qualquer cadeado ou sistema de segurança e que, não obstante essas circunstâncias, estaciona o veículo, durante a noite, num local sem qualquer vigilância ou protecção e sem que, pelo menos, um dos motoristas assegurasse a sua vigilância enquanto o outro descansava, circunstâncias em que a mercadoria transportada veio a ser furtada do interior do camião.

IV – Reportando-se o art. 29º da aludida Convenção à responsabilidade emergente para o transportador do incumprimento do contrato de transporte e porque, para efeitos de constituição da obrigação de indemnizar por incumprimento contratual, a nossa lei não estabelece distinção entre dolo e negligência (pois que qualquer uma dessas modalidades de culpa determina a constituição daquela obrigação), deverá entender-se que a negligência é equivalente ao dolo para efeitos de aplicação do citado art. 29º.

V – Assim, estando demonstrada a culpa (ainda que sob a forma de mera negligência) do transportador na perda ou avaria da mercadoria, não poderá o mesmo invocar as disposições da Convenção que limitam a sua responsabilidade, como é o caso do art. 23º, nº 3; a limitação da responsabilidade ali consignada ficará reservada para os casos em que o transportador responde por mero efeito da presunção de culpa que sobre si recai, nos termos da aludida Convenção, sem que se demonstre a sua culpa efectiva.


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V.
Pelo exposto, concedendo-se provimento ao presente recurso, revoga-se a sentença recorrida que absolveu a Ré, B... – Transportes Internacionais, Ldª, do pedido, condenando-se a referida Ré a pagar à Autora a quantia de 93.956,00€ (noventa e três mil, novecentos e cinquenta e seis euros), acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até pagamento.
Custas a cargo da Ré/Apelada.
Notifique.

Maria Catarina Ramalho Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Proferido no processo nº 3303/05.4TBVIS.C2.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[2] Proferido no processo nº 437/05.9TBANG.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[3] Disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[4] Também disponíveis em http://www.dgsi.pt.