Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
229/20.5T8SPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA MELO
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
FORMA DO CONTRATO
ALTERAÇÕES AO CONTRATO
PROVA TESTEMUNHAL
PRAZO PARA DENÚNCIA DE DEFEITOS
Data do Acordão: 11/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 222.º, N.º 3, 376.º, 394.º, 1222.º, N.º 1, 1223.º, 1224.º E 1225.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Não estando o contrato de empreitada sujeito a forma escrita, poderá ser alterado mediante acordo verbal entre as partes.
II – A prova da existência desse acordo verbal, só poderá ser efetuada mediante o recurso à prova testemunhal, nos casos em que é permitida a prova testemunhal para a prova das convenções contrárias ou adicionais às estipuladas num contrato ou seja, quando exista um começo ou princípio de prova por escrito; quando se demonstre ter sido moral ou materialmente impossível a obtenção de uma prova escrita; e, em caso de perda não culposa do documento que fornecia a prova.
III – Pretendendo fazer-se a prova de um acordo verbal antecipando, o tempo de pagamento de uma prestação que no contrato constava que só seria devida após a conclusão de certa fase da obra, constitui um princípio de prova escrito, a carta onde a dona da obra reconhece ter pago antecipadamente determinada quantia, embora a fase de construção a cujo pagamento se destinava, ainda não se encontrasse concluída, permitindo o recurso à prova testemunhal para complementar.
IV – A lei não impede que as partes acordem verbalmente a realização de outros trabalhos para além dos previstos no contrato de empreitada. Trata-se de um novo contrato ou novos contratos de empreitada que não estão, enquanto tal, sujeitos à forma escrita.
V – O prazo para denunciar defeitos da obra, tanto no âmbito do Código Civil como no âmbito de uma empreitada de consumo regulada pelo DL 67/2013 é de um ano, a contar do seu conhecimento pelo dono da obra.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: Relatora: Helena Melo
Adjuntos:
Catarina Gonçalves
José Avelino Gonçalves


Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

 I – Relatório

 A... Unipessoal Lda. propôs contra AA, ação declarativa sob a forma de processo comum, alegando para tanto, e, em síntese que a autora dedica-se à construção civil; em 11 de Janeiro de 2017, autora e ré, celebraram um contrato de empreitada para a construção de uma moradia unifamiliar em BB, tendo acordado o preço total da empreitada em 114.000,00€; apesar de terem acordado que a ré anteciparia o pagamento das fases 5 e 6, a ré incumpriu, tendo apenas liquidado 12.000,00 por conta da fase 5,  não mais tendo feito qualquer pagamento à autora; à data a autora já tinha executado 90% da fase 5 da obra correspondente aos revestimentos exteriores, 42% dos trabalhos correspondentes à fase 6 da obra e executados 83% dos trabalhos correspondentes à fase 7 da obra, tendo ainda procedido, a solicitação da ré, à execução de trabalhos “extra”, tendo suportado com a execução dos mesmos a quantia global de € 6.253,00, dos quais a ré apenas liquidou € 400,00, peticionando assim, na procedência da ação, pela condenação da Ré a pagar à autora a quantia de € 21.888,76, ou, sendo julgado improcedente o pedido principal, ser a ré condenada a pagar à autora a quantia de € 25.388,77, por enriquecimento sem causa.

A Ré contestou por exceção e por impugnação, tendo ainda deduzido pedido reconvencional.

Alegou, em síntese, que a obra de edificação esteve parada desde 3 de maio de 2018, abandonada pela Autora, quando a mesma deveria sido concluída em data posterior e próxima a 31 de Maio de 2018; a Ré, só volvido cerca de um ano, é que veio a conseguir que um novo empreiteiro aceitasse contratar consigo uma nova empreitada para continuação da obra, com início dos trabalhos em maio de 2019; a Ré enviou à Autora uma carta registada c/ AR, a 15.05.2018, pedindo explicações para o abandono da obra a partir daquela 1ª data; que os pagamentos não eram devidos por não estarem findas as respetivas fases de construção, assim invocando a exceção de não cumprimento do contrato. Mais veio invocar o cumprimento defeituoso; que as eventuais alterações ao orçamento terão sido da iniciativa da Autora e sem o acordo da Ré, que, em razão do abandono da obra gastou ainda mais dinheiro em licenças, relatórios e expediente diverso, pugnando pela improcedência da ação, por não provada e provada a matéria da exceção invocada - exceção de não cumprimento -, bem como procedente por provada a matéria da reconvenção, condenando-se a reconvinda a reconhecer que à reconvinte assiste o direito à resolução contratual pelo abandono da obra que lhe foi adjudicada, pelo incumprimento do projeto da obra e pelo cumprimento defeituoso da obra por ela inacabada, bem como a reconhecer que se constituiu na obrigação de indemnizar a reconvinte nas quantias de € 11.500,00 (onze mil e quinhentos euros) respeitante ao diferencial a mais pago à nova empreiteira para acabar a casa inacabada e abandonada; e de € 25.000,00 € ou em outra que subsidiariamente se vier a apurar, respeitante à eliminação dos defeitos elencados nos artigos 91 a 98 da reconvenção.

A Autora apresentou resposta às exceções e à reconvenção.

Foi admitido o pedido reconvencional e fixado à ação o valor de € 57.338,76.

Procedeu-se à realização de audiência prévia e prolação de despacho saneador, tendo sido fixado o objeto do processo e selecionados os temas da prova e relegado para momento ulterior o conhecimento das exceções deduzidas.

Realizou-se a audiência final e foi proferida sentença com o seguinte teor:

“Face ao exposto, julgo procedente por provada a presente ação, totalmente improcedente o pedido reconvencional e, em consequência:

1– Condena-se a Ré AA a pagar á A. A... Unipessoal, Lda., a quantia global de € 21.888,76 (vinte e um mil, oitocentos e oitenta e oito euros e setenta e seis cêntimos), acrescida dos juros vencidos desde a data de interpelação para pagamento e vincendos até efetivo e integral cumprimento.

2 – Julgar verificada a exceção de caducidade e improcedente por não provado o pedido reconvencional, absolvendo a autora do pedido.

3 - Custas da ação a cargo Ré, nos termos do artigo 527º do Código de Processo Civil.

V - Registe e notifique.”

A R. não se conformou e interpôs o presente recurso, tendo concluído as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

Nestes termos e nos demais de Direito, julgando-se procedente o presente Recurso e revogando-se a douta sentença recorrida, na factualidade provada e não provada, conforme aqui é alegado, dando procedência à Contestação/Reconvenção, fazer-se-á, só

assim, justiça.

A parte contrária contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…).

II - Objeto do recurso:

De acordo com as conclusões da alegação da apelação interposta pela R., as quais delimitam o objeto do recurso, as questões a conhecer são as seguintes:

. se os factos dados como provados nos pontos 1.6 a 1.16, 1.20, 1.22, 1.23 a 1.25, 1.28 e 1.29, 1.47 a 1.56, 1.59 a 1.61 devem ser dados como não provados, apreciando-se previamente se a apelante cumpriu os ónus que impedem sobre o recorrente que impugna a matéria de facto;

.  se são válidas as alterações verbais ao contrato de empreitada;

. se assistia à apelada o direito de resolver o contrato de empreitada;

. se assistia à apelante o direito de resolver o contrato de empreitada;

. se a apelante dispunha do prazo de três anos para denunciar os defeitos que entendia existirem na obra, perante o empreiteiro ou se o prazo de que dispõe para denunciar os defeitos é de um ano a contar do conhecimento dos mesmos, tendo caducado o seu direito.

III – Fundamentação de facto

1. Factos Provados

(Da petição inicial)

1.1. A autora é uma sociedade que tem como objeto social a atividade de construção civil.

1.2. No âmbito da sua atividade a autora foi contactada pela ré que lhe solicitou a elaboração de um orçamento para a construção de uma moradia unifamiliar em BB – .... Página.

1.3. A autora elaborou e entregou à ré o solicitado orçamento, o qual foi por esta aceite.

1.4. Em 11 de Janeiro de 2017, autora e ré, celebraram um contrato de empreitada para a construção de uma moradia unifamiliar em BB – ....

1.5. O preço total da empreitada foi fixado em 114.000,00€ (cento e catorze mil euros).

1.6. No decurso da execução dos trabalhos de empreitada a autora foi confrontada por diversas vezes com as mais diversas exigências por parte da ré.

1.7. As quais, pelos mais diversos motivos, mas essencialmente por atraso na escolha de materiais por parte da ré, ou pela exigência de execução de trabalhos (extra) não contemplados no contrato de empreitada celebrado entre as partes, motivaram diversos atrasos na obra.

1.8. A ré, constantemente, mudava de ideias na escolha de materiais, atrasando a sua encomenda, e consequentemente a sua entrega e aplicação.

1.9. A ré exigia alterações ao projetado no plano de arquitetura e de especialidades, sendo que por vezes tais alterações não eram sequer exequíveis.

1.10. A ré chegou a exigir à autora que executasse a pré-instalação de gás canalizado quando não existia projeto de especialidade executado e aprovado para esse fim.

1.11. Devido às exigências da ré, a autora não conseguia concluir as diversas fases da obra, o que retardava o seu andamento e cobrança.

1.12. A autora prosseguia com a execução de trabalhos, interligados nas próprias fases e de avançando para as fases da obra seguintes, a suas expensas, para evitar mais atrasos na execução da obra.

1.13. Autora e ré acordaram que a ré anteciparia o valor correspondente à conclusão das fases 5 (revestimentos exteriores) e 6 (instalações e infraestruturas) da obra.

1.14. A autora manteve a execução da obra, tendo avançado para a fase 7 da obra (revestimentos interiores).

1.15. Apesar do acordado, a ré apenas liquidou a quantia de € 12.000, quantia que dizia respeito à execução da fase 5 – revestimentos exteriores - do contrato de empreitada.

1.16. Não mais tendo feito qualquer pagamento à autora, não obstante esta já ter grande parte da fase 5 da obra correspondente aos revestimentos exteriores, já se encontrarem executados cerca de metade dos trabalhos correspondentes à fase 6 da obra - instalações e infraestruturas, encontrarem-se executados parte dos trabalhos correspondentes à fase 7 da obra – revestimentos.

1.17. A autora remeteu à ré, carta registada com A/R datada de 03.05.2018, notificando a mesma da suspensão da execução do contrato de empreitada, mais a notificando para no prazo de 10 dias proceder ao pagamento da quantia global de € 18.000 euros sob pena de resolução contratual.

1.18. A referida missiva, veio a ser devolvida à autora pelos serviços de correio postal.

1.19. A autora a remeteu nova missiva, com conteúdo idêntico, à ré em 17.05.2018 e recebida pela ré em 18. 05.2018.

1.20. Decorridos que foram os 10 dias para a ré proceder ao pagamento das quantias em divida, a ré não liquidou tais montantes, nem demonstrou vontade de o fazer.

1.21. A autora remeteu à ré carta registada em 25 de junho de 2018, recebida pela ré em 27 de junho de 2018, fazendo operar a resolução unilateral do contrato de empreitada nos termos da cláusula 3ª do contrato.

1.22. A autora executou os seguintes trabalhos:

- Fase 5 da obra – trabalhos executados no valor 13.481,86€ - valor pago pela ré = 12.000, valor a pagar 1481,86.

- Fase 6 da obra – trabalhos executados valor 6.266,00€ - valor pago pela ré = 0,00€, valor a pagar 6.266,00€.

- Fase 7 da obra – trabalhos executados valor 8.287,90€ - valor pago pela ré = 0,00€, valor a pagar 8.287,90€.

1.23. No decurso da execução dos trabalhos contemplados no contrato de empreitada celebrado em 11 de janeiro de 2017, a ré solicitou à autora a execução de trabalhos que não se encontravam comtemplados no referido e identificado contrato de empreitada, identificados e discriminados na “lista de trabalhos a mais”

1.24. A realização de tais trabalhos “extra” foi solicitada de forma expressa pela ré à autora e o seu custo seria acrescido ao valor global da empreitada.

1.25. A autora executou os mesmos, nos exatos termos pretendidos pela ré.

1.26. Tendo suportado com a execução dos mesmos a quantia global de € 6253,00, dos quais a ré apenas liquidou € 400,00, estando em dívida o montante de €5853,00.

1.27. Após a resolução contratual operada pela autora, a ré, recorrendo aos serviços de terceiro concluiu a obra que havia sido objeto de contrato de empreitada.

1.28. A autora no âmbito de contrato de empreitada atrás referenciado incorporou em obra através da execução de trabalhos em construção civil o montante de € 25.388,76.

1.29. Tais trabalhos, no valor indicado, consubstanciavam a prestação da autora a que se obrigou pelo contrato de empreitada no dia 11 de janeiro de 2017.

(Da contestação)

1.30. A obra de edificação esteve parada desde 3 de maio de 2018.

1.31. A obra deveria estar concluída em data posterior e próxima, a 31 de maio de 2018,

1.32. A Ré, só volvido cerca de um ano, é que veio a conseguir que um novo empreiteiro (a firma “C..., Lda.”, com sede em ...) aceitasse então contratar com a Ré uma nova empreitada, para a execução da obra abandonada, com início dos trabalhos em maio de 2019.

1.33. A Ré enviou à Autora uma carta registada c/ AR, a 15.05.2018, dando conta da interrupção / suspensão dos trabalhos durante um mês e dos pretensos motivos referidos e pedindo explicações para o abandono da obra

1.34. A Autora, foi avisada dessa carta, pelos serviços de distribuição dos CTT, em 16.05.2018, não a recebeu.

1.35. A Ré enviou à Autora outras 2 cartas registadas com AR: a 1ª, registada a 21 de maio, solicitando cópia do registo da carta alegadamente enviada a 3 de Maio, a fim de solicitar informações aos CTT sobre as razões da alegada devolução; a 2ª, registada a 24 de maio, contrariando o teor dessa carta de 3 de Maio.

1.36. A Autora, avisada de todas elas, não recebeu qualquer uma das 3 cartas enviadas pela Ré, as quais, foram todas devolvidas por não reclamadas.

1.37. As cartas foram enviadas para a morada da autora constante do contrato.

1.38. O Eng.º Civil CC, em março de 2019, antes do início da empreitada para acabamento da casa, elaborou um relatório técnico do estado da obra.

1.39. A Ré pagou à Autora as quantias de € 10.000,00 € + € 10.000,00 + € 15.000,00 + € 15.000,00 + € 12.000,00, no total de € 62.000,00, quantia esta em que se inclui uma prestação de € 15.000,00, não faturada pela Autora, mas que ela declarou ter recebido da Ré, em 28.03.2017.

1.40. Quanto ao revestimento de paredes, tetos e pisos:

a) Não foi executado o revestimento em granito na fachada (paredes exteriores);

b) Há paredes exteriores com revestimento fissurado, que foram reparados;

c) Não foram executados todos os revestimentos cerâmicos nas paredes interiores;

d). Nos tetos interiores não foram executadas as molduras;

e) Não foram executados os tetos da garagem, lavandaria e dos arrumos e também não foi executado o revestimento em qualquer pavimento.

1.41. No que diz respeito a cantarias e guarnecimento de vãos:

a) Falta a forra do portão da garagem e a restante pedra, além de muito fraca qualidade, também alguma é manchada, que necessariamente tem que ser substituída;

b) Nas orlas dos vãos foram aplicados mais metros de pedra do que constam neste mapa de medições, mas a maioria são para arrancar, por a pedra ter muitas manchas.

Rede de esgotos domésticos; rede de água quente e fria; sistema de aquecimento de águas sanitárias, respetivamente:

a) Não foi feita a condução de esgotos, nem fossa sética nem poço absorvente (na 1ª rede);

b) Não foi executada mais do que a passagem dos tubos (na 2ª rede);

c) Não foi executada mais do que a passagem dos tubos (nos sistemas ditos).

1.42. Relativamente às infraestruturas de telecomunicações e elétricas, pinturas, peças sanitárias, caixilharia, persianas e portadas exteriores, carpintarias, serralharias e outros:

a) Foram unicamente passados os tubos e montadas as caixas para os quadros, mas sem tampas.

c) Não foi executada qualquer tarefa das mencionadas para além da feitura das chaminés e da montagem dos pilares de granito.

(Da Réplica)

1.43. Quanto à fase 5 da obra (revestimentos exteriores) a mesma encontra-se executada na sua quase totalidade, com trabalho executado no valor de € 13.481,86.

1.44. A fase 6 da obra (instalações e infraestruturas), tem cerca de metade dos trabalhos executados no valor de € 6.266,00.

1.45. Quanto ao entulho, pouco ou nenhum havia em obra, mas o que havia seria retirado na conclusão da obra como é de prática comum.

1.46. No que à fase 5 diz respeito, apenas faltava concluir o revestimento em granito tradicional ou da região no alçado principal.

1.47. Esta fase não foi concluída, uma vez que a ré nunca se decidiu pelo material que pretendia colocar no dito alçado, não obstante lhe terem sido apresentadas várias opções.

1.48. Quando o fez, escolheu um material com um preço cerca de 3 vezes superior ao contratado com a autora.

1.49. A pedra seria para aplicar apenas numa parede da fachada principal, sendo que a ré queria que a pedra fosse aplicada em parede, cuja aplicação não se encontrava nem projetada nem contratada.

1.50. No que à fase 6 diz respeito, a ré, por diversas vezes solicitou alterações à localização dos pontos de luz, das tomadas elétricas, e neste ultimo caso, tendo inclusive solicitado a instalação de tomadas elétricas “anti-regulamentares” nos WC.

1.51. Não se decidia quanto à altura das tomadas de tv e elétrica a aplicar na parede, tendo forçado, a que autora tivesse aberto vários roços para passar os cabos, e posteriormente os tivesse que fechar, porque já não pretendia as tomadas nos locais anteriormente decididos.

1.52. A ré também sempre questionou a localização do quadro elétrico, ainda que tivesse sido explicado à ré que o local junto à porta de entrada é o regulamentar.

1.53. Não aceitando a ré a localização do quadro elétrico a autora encontrava-se impedida de proceder a toda a instalação elétrica.

1.54. Perante a impossibilidade de concluir as diversas fases da obra, autora e ré acordaram em adaptar as condições de pagamento, ante a derrogação das estipuladas no contrato de empreitada.

1.55. A ré nunca denunciou os defeitos que agora alega.

1.56. A mesma era conhecedora dos alegados defeitos, pelo menos desde novembro de 2018.

1.57. A ré, embora lhe fosse explicado, não entendia a diferença entre a quota de tosco e a quota de “pronto” e afirmava que a casa estava baixa de mais.

1.58. A Ré chamou ao local o topógrafo que marcou na obra a quota final do “pronto da obra”, que estava 10cm mais alta que a prevista em projeto.

1.59. A execução da cobertura obedeceu às exigências da ré.

1.60. A cobertura foi efetuada da forma pretendida pela ré, que pretendia que entre o telhado superior e o telhado inferior existisse uma janela, não abdicando de tal pretensão, não obstante ter-lhe sido explicado que se assim fosse a cobertura não seria executada em conformidade com o projetado.

1.61. A perda de largura entre as paredes que ladeiam a entrada principal, deveu-se ao facto de ré exigir que todas as paredes exteriores tivessem 45cm de espessura (tijolo 20cm + isolamento de 8cm + revestimentos).

1.62. A espessura das paredes projetadas era de 35 cm, pelo que acrescentando 10 cm em cada parede exterior, a distancia entre as paredes exteriores diminuiu.

2. Factos não provados

2.1. A Ré ficou com o seu património valorizado/enriquecido no montante de € 21.888,76 à custa da autora.

2.2. A Autora pretendeu fugir às suas responsabilidades, não só por lhe ser impossível terminar a obra no prazo a que se obrigou pelo contrato e a que se reporta também todo o processo de licenciamento da obra, como também por não conseguir a sua conclusão e receção, sem defeitos e adentro o preço da empreitada.

2.3. Os pagamentos dos pontos 5 e 6, de € 15.000,00 de acordo com o contrato seriam devidos: «Depois de efectuados os revestimentos exteriores» e - «Depois de executadas as instalações e infraestruturas».

2.4. Faltando realizar ou executar concretos trabalhos dos pontos 5 e 6, como condição para o pagamento dos mesmos.

2.5. Por acordo da Ré e da Autora o trabalho a mais por esta executado, no valor de € 400 €, que consistiu no isolamento da garagem, por ter sido então também acordado que a Autora não isolaria a lavandaria, como orçamentado, o que, a preços unitários, custaria menos os ditos € 400 €, assim perfazendo os tais € 12.400,00).

2.6. Quanto a outras eventuais alterações ao projecto e/ou orçamentado, sempre as mesmas terão sido da iniciativa da Autora e sem o acordo da Ré.

2.7. Na montagem não foram respeitadas as cotas de projeto e não foram também montadas telhas de ventilação em número suficiente, por responsabilidade da autora.

2.8. O livro da obra onde são anotados todos os desenvolvimentos desta, e sem prejuízo da aplicação das coimas, foi retirado pela Autora, assim impossibilitando o controle técnico dos trabalhos e anotação dos mesmos, sobretudo pelo diretor da obra e da fiscalização municipal.

2.9. Autora não observou o referente à publicidade/aviso da obra, com os sinais da lei, obrigando ao pagamento de € 10.000,00, o que a Ré fez.

2.10. A Autora deixou a lage fora de cota (a chamada «cota-soleira»), o que fez com que ela a tivesse enchido com uma camada de betão superior a 40 cm, para correção dessa mesma cota.

2.11. O que pode vir a acarretar para a Ré, no futuro, uma despesa, ou para reparar eventuais avarias nas tubagens ou condutas ali enterradas, ou então, a passá-las, nessa eventualidade, para cima dessa camada de betão; sendo que.

2.12. A cobertura não foi executada pela autora de acordo com o projeto, tendo antes erros graves de montagem, de tal forma que, para colocar a telha do corpo mais baixo da casa, a Autora teve que partir a cornija do telheiro que cobre a entrada.

2.13. Para além de, então, não ter sido revestida exteriormente a varanda, faltavam ainda as forras de granito na entrada e o mosaico no pavimento.

2.14. A Autora não havia ainda concluído nenhuma das tarefas ou trabalhos, não havendo, pois, neste ponto, qualquer equipamento montado ou os fios.

2.15. As partes mais dispendiosas das tarefas não foram executadas pela tão exigente como incumpridora Autora.

2.16. Já quanto aos defeitos notoriamente mais salientes e passíveis de eliminação e seus custos:

Da impugnação da matéria de facto

A Relação pode alterar a matéria de facto se a prova produzida impuser decisão diferente.

A apelante veio impugnar diversos pontos da matéria de facto, referindo inicialmente,  pretender impugnar os pontos 1.6 a 1.16, 1.23 a 1.25, 1.28 e 1.29, 1.47 a 1.56, 1.59 a 1.61(pág 10 do recurso), mas vindo, mais à frente,  a incluir também a impugnação dos  pontos 1.20 e 1.22 (conclusões 29 e 31).

Entende a apelada que o recurso relativamente à impugnação da matéria de facto deve ser rejeitado, por falta de cumprimento dos ónus que recaem sobre os recorrentes que impugnam a matéria de facto, porquanto a apelante não indica qual a fundamentação para a alteração à matéria de facto que pretende ver alterada de provada para não provada.

Vejamos:

O apelante que pretende impugnar a matéria de facto tem de cumprir diversos ónus:

O sistema vigente  impõe nas alíneas a) a c) do nº 1 e alínea a) do nº 2 do artº 640º do CPC o seguinte:

            .a) o recorrente deve indicar os concretos pontos da matéria de facto que considere encontrarem-se incorretamente julgados, tanto na motivação do recurso como nas conclusões, ainda que nestas de modo mais sintético;

            .b) quando  a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve indicar aqueles que em seu entender conduzem a uma decisão diversa relativamente a cada um dos factos;

            .c) no que concerne aos pontos da matéria de facto cuja impugnação se apoie em prova gravada (no todo ou em parte), para além da especificação dos meios de prova em que se fundamenta, tem de indicar com exatidão as passagens da gravação relevantes, transcrevendo, se assim o entender, os excertos que considere oportunos;

            .d) o recorrente deverá mencionar expressamente qual a decisão que deve ser proferida sobre os pontos concretos da matéria de facto impugnada.

            Todos estes pontos têm de ser observados com rigor. O não cumprimento destes mencionados ónus,  conduz  à rejeição imediata do recurso na parte afetada, não havendo sequer lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento, porquanto esse convite se encontra apenas consagrado no n.º 3 do artigo 639º do Código de Processo Civil para as conclusões relativas às alegações sobre matéria de direito (em sentido contrário, mas em clara minoria, o acórdão do STJ, de 26-05-2015, processo 1426/08.7TCSNT.L1.S1[1]  que admite  também o convite ao aperfeiçoamento das conclusões relativas ao recurso de impugnação da matéria de facto).

Não tem sido pacífico  na jurisprudência a questão de saber se os ónus do recurso de impugnação da decisão da matéria de facto devem constar formalmente das conclusões e se, devendo constar, deverão ser todos ou apenas alguns e quais.

Os acórdãos do STJ, de 19-02-2015, proferido no processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, de  de 13.10.2016, processo 98/12.9TTGMR.G1.S1, de 12-05-2016, Proc.º 110/08.6TTGDM.P2.S1  e de 03/11/2016, Proc.º 342/14.8TTLSB.L1.S1, consideraram suficiente que nas conclusões se especifiquem os concretos pontos de facto impugnados e a decisão a proferir nesse domínio, enquanto delimitativas do objeto do recurso, entendimento que se tem vindo a seguir. Nestes casos, a falta destas menções  nas conclusões, implicará a rejeição do recurso[2].

Para além disso, exige-se também que o recorrente fundamente as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa. A alegação e, em particular, as conclusões devem identificar e localizar com  clareza mas de forma sintética, o erro de julgamento em que o tribunal incorreu e  que deu causa à impugnação e explicar os concretos motivos da discordância, de modo que a Relação possa reapreciar o percurso decisório levado a cabo pelo tribunal a quo, e decidir a impugnação, pronunciando-se sobre o seu mérito.

No entanto, enquanto a falta de indicação das especificações constantes das alíneas a) e c) do nº 1 e alínea a) do nº 2 do artº 640º do CPC[3] se entende conduzir à rejeição do recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto, mantendo-se inalterados os factos dados com provados e não provados pelo tribunal de 1ª instância, a deficiente fundamentação da pretensão de alteração, poderá conduzir ao malogro da impugnação, ou seja à sua improcedência, mas não conduz, por si só, à rejeição do recurso. A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1).

Assim, a falta de fundamentação poderá conduzir ao malogro da impugnação, mas não é caso de rejeição, pelo que não se rejeita a impugnação da matéria de facto com esse fundamento. No entanto, como se verá infra, relativamente a determinados factos haverá que rejeitar a impugnação da matéria de facto por falta da indicação dos meios de prova (tanto nas conclusões, como no corpo alegatório do recurso).

            Passamos à análise dos pontos impugnados, seguindo a ordem seguida pela apelante. Relativamente a cada facto ou conjunto de factos, primeiramente transcrevemos a sua redação e após, procedemos à análise da impugnação.

Factos 1.6 a 1.12

(…).

Factos 1.13

1.13. Autora e ré acordaram que a ré anteciparia o valor correspondente à conclusão das fases 5 (revestimentos exteriores) e 6 (instalações e infraestruturas) da obra.

Entende a apelante que este facto não deveria ter sido dado como provado porque não tem qualquer suporte lógico, nem contratual, não é tema em qualquer documento assinado pelas partes, nem resulta do depoimento de qualquer testemunha.

Ao longo do seu recurso é manifesto o inconformismo da apelante por ter sido dado como provado que autora e ré acordaram na antecipação de pagamento das fases 5 e 6 da obra.

Parece resultar do que refere que o tribunal não podia dar como provados estes factos – antecipação do pagamento -  porque não estão provados por documento escrito (o contrato de empreitada), sendo que no contrato estava convencionado que os pagamentos só seriam pagos com a conclusão de cada uma das fases.

A questão de se saber se é válido um acordo verbal posterior à redução a escrito de determinado contrato e que altera, relativamente às fases 5 e 6, o momento do pagamento é uma questão que, em princípio, só se colocaria na fase da aplicação do direito aos factos e não em sede de impugnação da matéria de facto.

No entanto, a questão é pertinente, porque se pode colocar a questão, de ser inadmissível a prova por testemunhas para a prova de tais factos.

O contrato de empreitada não está sujeito a forma escrita, pelo que entendemos que poderá ser alterado mediante acordo verbal entre as partes (artº 222º, nº 3 do CC). O facto de poder ser alterado por acordo verbal não preclude que esse acordo não possa ser provado por testemunhas, o que é uma questão diferente. A questão só não se colocaria se entendesse que o contrato só poderia ser alterado por acordo escrito.

O tribunal a quo na motivação da decisão de facto não explicitou porque razão deu como provados os factos constantes do ponto 1.13. A fundamentação que consta da sentença, relativa a toda a prova produzida, é apenas a seguinte:

 “Assim, quanto à prova documental junta aos autos, valorou-se o teor dos documentos denominados contrato de empreitada, orçamentos, faturas, emails e demais documentos juntos pelas partes, não tendo sido valorado o documento denominado relatório pericial por este ter sido impugnado, sendo que se valorou a prova testemunha quanto ao estado da obra por ocasião da resolução do contrato por banda da autora.

Relativamente à prova por declarações de parte do legal representante da autora (A...) e testemunhas da autora e das testemunha da Ré (DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ (pessoa que pouco soube esclarecer) e KK), pessoas que trabalharam na obra em questão, ou antes ou depois de a autora ter saído da obra, o tribunal valorou, desde logo as declarações de parte do legal representante da autora, sendo que as testemunhas esclareceram de forma credível e coerente, sincera, os trabalhos realizados na obra e as dificuldade que tinham em avançar com alguns dos trabalhos na obra por força da atuação da ré que não tomava decisões os as alterava, depoimentos esses que se revelaram essenciais e esclarecedores para a apreciação dos factos e valoração da prova, por se terem revelado espontâneas, desde logo em relação à forma como as testemunhas depuseram (o que se pode constatar das gravações dos depoimentos) sinceros, credíveis e esclarecedores.

Todas estas testemunhas prestaram o seu depoimento de forma espontânea, clara, isenta e desinteressada, com conhecimento pleno dos factos, pelo que os seus depoimentos foram valorados pelo tribunal, por terem sido considerados credíveis e sinceros.

O Tribunal valorou ainda o depoimento da testemunha CC, engenheiro civil, diretor final da fase da obra, mas já não as conclusões do documento denominado relatório pericial subscrito pela testemunha LL e que foi junto aos autos, da testemunha MM e da testemunha NN, quanto ao estado em que se encontrava a construção apos a saída da Autora da obra.

Assim, a autora fez prova dos factos por si alegados, sendo que os depoimentos das testemunhas arroladas pela ré não contraditaram esses depoimentos, apenas versando sobre o atraso na obra e perturbação da Ré (testemunhas OO, irmão da Ré e PP, QQ, RR).

Assim, a prova das obras e trabalhos a mais, realizadas pela autora foi feita cabalmente, as faturas não foram impugnadas e a ré não alegou nem provou ter procedido ao seu pagamento.

Não logrou a Ré fazer prova em sentido contrário dos factos alegados pela autora, tendo confessado o não pagamento das faturas em causa, sendo por isso devedora de tais montantes, nem fazer prova do pedido reconvencional deduzido quanto a uma eventual compensação reparação de defeitos, desde logo porque a obra já se mostra concluída, sendo que, em primeira mão, proceder à interpelação da empreiteira para proceder à reparação dos defeitos que seja da sua responsabilidade, o que a autora não fez, não tendo sequer denunciado os defeitos que agora invoca, o que fez apenas na contestação apresentada na presente ação.”

Já no segmento destinado à fundamentação de direito na sentença recorrida, ao iniciar a análise do pedido reconvencional formulado pela R., consignou-se que a  ré nos articulados reconhece “a derrogação das condições de pagamento originalmente contratadas, ao ter feito (antecipado) o pagamento confessado em 56º da Contestação”, correspondendo o texto entre aspas ao alegado pela A. no artº 33º da réplica.

No artº 56º da contestação a R. alega “Faltando, por isso, realizar ou executar concretos trabalhos dos ditos pontos 5 e 6, como condição para o pagamento dos mesmos, não obstante a constatação e confissão do pagamento de €12 000,00, quanto ao inacabado ponto nº 5”.

E a R. refere-se a este pagamento antecipado de novo no artº 58º  e também no artº 82º  da sua contestação, sem que, em qualquer dos três artigos, indique qual é o fundamento/motivo para este pagamento antecipado.

É pacífico que na cláusula segunda nº 3 do contrato de empreitada as partes acordaram que, o pagamento ao 2º Outorgante (a ora apelada), seria efetuado a pronto pagamento, por cheque bancário, nas seguintes condições:

.1. 10.000,00 – depois de efetuado o desaterro da casa;

.2. 10.000,00 – depois de terminada a primeira lage;

.3. 15.000,00 – depois de terminada a segunda lage;

.4. 15.000,00 – depois de terminada a cobertura;

.5. 15.000,00 – depois de efetuados os revestimentos exteriores;

.6. 15.000,00 – depois de executadas as instalações e infra estruturas;

.7. 10.000,00 – depois de efetuados os revestimentos interiores;

.8. 12.600,00 – depois de efetuadas as pinturas e carpintarias;

.9. 11.400,00 – depois de terminados todos os trabalhos com a entrega das chaves ao cliente.

No ponto 1.13 foi dado como provado que as partes posteriormente acordaram que a apelante anteciparia o pagamento das fases 5 e 6.

No âmbito da prova testemunhal, o art.º 393 n.º 2 do Código Civil adverte para a sua inadmissibilidade quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena, acrescentando o art.º 394 do Código Civil igual inadmissibilidade (da prova testemunhal) se tiver por objeto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico, ou dos documentos particulares mencionados nos artºs. 373º a 379º, ambos do Código Civil quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.

Dispõe o art. 376.º do Código Civil:

«1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.

2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.

(...)».

De acordo com a regra do n.º 1 do art. 376.º do CC, o documento particular prova plenamente que a pessoa a quem é atribuído fez as declarações dele constantes, isto é, prova a materialidade a declaração (cfr. artigo 376.º, n.º 1 do CC). Porém, tal força probatória plena não significa que os factos documentados sejam tidos como verdadeiros. Como afirma Luís Filipe Pires de Sousa (Direito Probatório Material, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, págs. 171-172):

«Provada a materialidade das declarações, há que aquilatar em que medida é que as declarações vinculam o seu autor. Ou seja, há que distinguir entre as regras que regem[4] a eficácia da prova documental e as regras que dispõem[5] sobre a eficácia da prova documental ‘em razão da declaração documentada’.(…)

E, mais à frente, afirma o mesmo autor (cit., pág.172):

«Em suma, a força probatória atribuída pelo artigo 376.º, n.º 1, reporta-se à materialidade das declarações documentadas e não à sua exatidão.

Saber se as declarações documentadas vinculam o seu autor é questão que não respeita à força probatória do documento mas sim à eficácia da declaração. As declarações só vinculam o seu autor se forem verdadeiras».

No acórdão do STJ, de 22.03.2018 (proc. n.º 120112/15.9YIPRT.P1.S1),  pode ler-se no sumário:

«III - Da demonstração da autoria de um documento particular não resulta necessariamente que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provadas, posto que a força ou eficácia probatória plena atribuída às declarações documentadas se limita à sua existência, não abrangendo a sua exatidão (art. 376.º, n.º 1, do CC).».

Isto significa que, no que respeita à realidade dos factos afirmados, ou, para utilizar as palavras da lei, dos «factos compreendidos na declaração», vale a regra do n.º 2 do referido art. 376.º do CC, considerando-se tais factos provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.

No caso, não se aplica o comando estatuído no n.º 2 do artigo 376.º do CC, uma vez que o declarado no contrato de empreitada, não contém qualquer confissão escrita de factos desfavoráveis formulada pela A. perante a R.

O fim do nº 1 do artº 394º do CC é  afastar os perigos que a admissibilidade da prova testemunhal é suscetível de originar, pois quando uma das partes (ou ambas) quisesse infirmar ou frustrar os efeitos do negócio, poderia sempre socorrer-se de testemunhas para demonstrar que a existência de outras cláusulas para além das constantes do negócio acordado por escrito, destruindo assim, mediante uma prova muito menos segura,  a eficácia do documento .

Contudo, a referida  proibição de prova testemunhal  não reveste carácter absoluto. A jurisprudência há muito que vem admitindo a prova testemunhal quando por documentos haja um princípio de prova desse acordo  e não só a jurisprudência , como também a doutrina.

Vaz Serra,  sensível à necessidade de introdução de algumas restrições a esta regra, considera que as exceções formuladas nos códigos francês e italiano em vigor à data  – arts. 1347º e 2724º do Code Civil e do Codice Civile, respetivamente – e aplaudidas pela doutrina e jurisprudência desses países parecem igualmente verdadeiras no nosso direito, apesar do silêncio do Código acerca delas, defendendo a admissibilidade da prova testemunhal nas seguintes situações excecionais :

. quando exista um começo ou princípio de prova por escrito;

. quando se demonstre ter sido moral ou materialmente impossível a obtenção de uma prova escrita;

. em caso de perda não culposa do documento que fornecia a prova.

Quando há um princípio de prova escrita, o julgador  não se defronta com a proibição dos nºs 1 e 2 do art.394º do CC, porque já se não trata de descobrir a convenção contrária ou adicional ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º do CC - nº1 do art.394º do CC - no depoimento de testemunhas, mas de encontrar essa prova num documento, que as testemunhas apenas ajudarão a entender no seu verdadeiro e próprio (e querido) significado .

Concordamos com este  entendimento.

No caso, a prova da alteração do acordado, porque está em causa uma convenção que altera o que constava de documento escrito, em sentido diferente/contrário ao que nele consta, está vedada à prova testemunhal a não ser que se verifique uma das três exceções que mencionámos.

            O que temos vindo a expor e a analisar tem pertinência, tendo em conta, designadamente que, nas contra-alegações a apelada vem defender que os factos constantes do nº 1.13, se encontram provados com base no depoimento da testemunha GG.

A primeira questão que se coloca é o que se deve entender por princípio de prova escrito. Sobre o que se considera princípio de prova ou começo de prova, defendeu-se no  Ac. STJ de 07/02/2017, proc. 3071/13.6TJVNF.G1.S1:

«O conceito só pode ter correspondência no de “fumus bonni juris”, ou prova indiciária, sobretudo elaborado em sede de procedimentos cautelares.

A assim não se entender caímos nos princípios de experiência geral, de verosimilhança que a nada mais conduzem do que a presunções simples, judiciais ou de experiência (…)

Daí que o tal “princípio de prova” só poderia ser constituído por qualquer dos documentos a que se refere o n.º 1 do artigo 394.º que, se não unívocos, só poderão tornar-se completos se conjugados com a prova secundária (que, então, se concede ser testemunhal), complementar ou, com rigor, meramente residual, e só por si sem valor autónomo, por não lho permiti o n.º 2 do artigo 394.º.

De todo o modo, não repugna aderir à interpretação menos restritiva, desde que o “princípio de prova” seja um documento que não integre facto – base de presunção judicial pois sendo-o o n.º 2 do artigo 394.º poderia entrar em colisão com o citado artigo 351.º CC.(…)”

 No caso, poderá entender-se que há um princípio de prova escrito no sentido da existência desse acordo?

Na carta que  a R.  remeteu à A. datada de 24.05.2018, a R. reconhece que não obstante a fase 5 não se encontrar concluída,  já liquidou 12.400,00, o que também afirma na contestação (embora aqui defenda que pagou 12.000,00 e não 12.400,00 por conta da 5ª fase), nunca adiantando qualquer explicação para o facto de ter adiantado o pagamento, antes da conclusão da fase respetiva,  e mantendo sempre a versão, contraditória com a sua conduta,  de que os pagamentos só eram devidos após a conclusão de cada fase.

Poder-se-á entender que, ao admitir que já liquidou 12.400,00 para pagamento da fase 5, a ré reconheceu implicitamente ter sido acordado entre as partes, quanto às fases 5 e 6, uma alteração ao acordo inicial?

Relativamente à fase 5, entendemos que a resposta deve ser afirmativa. Mesmo que não houvesse a referida carta, ter-se-ia que considerar admissível a prova por testemunhas, atenta a confissão escrita do pagamento nos articulados. Consequentemente é admissível o recurso à prova testemunhal.

Procedeu-se à audição integral do depoimento da testemunha GG que foi ouvida sobre esta matéria, tendo referido que a R. atenta as suas indecisões, retardava o andamento da obra, motivo porque, para não parar a obra, a A. ia avançando os trabalhos para outra fase, ainda que a anterior não estivesse concluída. Avançavam assim para a fase seguinte sem concluir a anterior, o que prejudicava a A., pois que nada recebia da fase anterior e tinha de  suportar as despesas com a subsequente, uma vez que, atento o clausulado no contrato, nada recebia até que a fase estivesse concluída. Houve assim necessidade de falar com a R., atento que a não conclusão da obra, não era imputável à A., para que a R. pagasse, ainda que a fase não estivesse concluída. Foi a testemunha que falou com a R. sobre a questão, tendo a R. concordado com a antecipação do pagamento.

Ora, tendo em conta o que a testemunha declarou, depoimento que nos soou credível, acrescido do facto da R. ter efetivamente pago a quantia de 12.000,00 sem que se mostrasse concluída a fase 5 – faltava colocar pedra  numa das paredes exteriores, colocação que não tinha ainda sido feita, por motivos imputáveis à R. -  afigura-se estar de acordo com as regras da experiência comum e do normal acontecer, que as partes tenham acordado no adiantamento da verba relativamente à fase 5.  A apelante acaba por reconhecer a existência deste acordo, embora não utilizando essa denominação. A apelante nas suas alegações diz que “o adiantamento de parte dos valores das fases, embora não concluídas, não implica acordo nenhum entre as partes, conforme foi convicção do tribunal, mas que se deve à insistência da A. em receber, não se cansando de solicitar adiantamentos, bem sabendo que a isso não tinha direito”, o que também afirma na conclusão 17ª. Ora, se a A. solicitou adiantamentos e a R. pagou, isto não consubstancia um acordo de vontades no mesmo sentido? Ainda que a R. tenha sentido pressão por parte da A. para aderir a esta alteração, tal não afasta a existência de um acordo. A realidade é o que é, independentemente do nome que lhe damos.

Deve assim ser alterado o ponto 1.13.. Ainda que se tivesse considerado a produção de prova testemunhal relativamente a toda a matéria deste ponto, não resultou claro do depoimento da testemunha que o acordo fosse para vigorar também para a fase 6 (depoimento gravado entre 35´18´´ a 38´08´´), tendo apenas resultado provado com segurança a existência de um acordo relativamente à fase 5 da obra. Para a falta de clareza relativamente à fase 6, muito contribuíram as constantes interrupções levadas a cabo pela Mma. Juíza a quo, que foi uma juíza ativa e interessada no apuramento dos factos, mas que no decurso da audiência não considerou muito relevante esta matéria para a decisão.

É a seguinte a redação dos factos 1.13:

1.13.Autora e ré acordaram que a ré anteciparia, pelo menos,  o valor correspondente à conclusão das fases 5 (revestimentos exteriores).

Factos 1.14.

(…).

Factos 1.15

1.15. Apesar do acordado, a ré apenas liquidou a quantia de € 12.000, quantia que dizia respeito à execução da fase 5 – revestimentos exteriores - do contrato de empreitada.

Entende a apelante que não deveriam ter sido dados como provados estes factos, pelos mesmos motivos pelos quais não deviam ter sido dados como provados os factos constantes do ponto 1.13., não tendo o tribunal a quo analisado bem o contrato de empreitada e a forma de pagamento acordado.

Sobre o ponto 1.13 já nos pronunciámos supra. E face ao decidido a propósito do ponto 1.13, impõe-se aqui a seguinte alteração, passando a redação deste ponto a ser a seguinte, a fim de evitar contradições:

            A R. apenas liquidou a quantia de 12.000,00 quantia que dizia respeito à execução da fase 5 – revestimentos exteriores – do contrato de empreitada.

Factos 1.16.

(…).

            Factos 1.20 e 1.22

            (…).

Factos 1.23[6] a 1.26 e 1.28 a 1.29.

(…).

Factos 1.40 a 1.47

(…).

Factos 1.48 a 1.54

1.48. Quando o fez, escolheu um material com um preço cerca de 3 vezes superior ao contratado com a autora.

1.49. A pedra seria para aplicar apenas numa parede da fachada principal, sendo que a ré queria que a pedra fosse aplicada em parede, cuja aplicação não se encontrava nem projetada nem contratada.

1.50. No que à fase 6 diz respeito, a ré, por diversas vezes solicitou alterações à localização dos pontos de luz, das tomadas elétricas, e neste ultimo caso, tendo inclusive solicitado a instalação de tomadas elétricas “anti-regulamentares” nos WC.

1.51. Não se decidia quanto à altura das tomadas de tv e elétrica a aplicar na parede, tendo forçado, a que autora tivesse aberto vários roços para passar os cabos, e posteriormente os tivesse que fechar, porque já não pretendia as tomadas nos locais anteriormente decididos.

1.52. A ré também sempre questionou a localização do quadro elétrico, ainda que tivesse sido explicado à ré que o local junto à porta de entrada é o regulamentar.

1.53. Não aceitando a ré a localização do quadro elétrico a autora encontrava-se impedida de proceder a toda a instalação elétrica.

1.54. Perante a impossibilidade de concluir as diversas fases da obra, autora e ré acordaram em adaptar as condições de pagamento, ante a derrogação das estipuladas no contrato de empreitada.

Invoca a apelante, relativamente ao ponto 1.48, que não compreende como é que pode ter sido dado como provado este ponto se não consta qual foi o preço unitário acordado para os materiais a aplicar.

Ora, efetivamente no orçamento final junto aos autos com a petição inicial no capítulo 8 – Revestimento de paredes e tetos e pisos – onde se inclui o fornecimento e aplicação de revestimento exterior em granito da região, aplicado com cimento cola flexível para exterior numa extensão de 16,32 – não consta o preço desta aplicação, mas apenas o preço total do capítulo 8.

A testemunha GG que ouvimos, não indicou qualquer valor para a pedra escolhida pela R., limitando-se a referir que era mais cara que a que eles tinham perspetivado quando indicaram o preço.

Afigura-se assim ter havido erro de julgamento, uma vez que não foi acordado um preço determinado entre as partes para a pedra que iria revestir uma parede exterior da casa da R., eliminando-se, consequentemente, os factos 1.48 dos factos provados e aditando-se aos não provados.

Factos 1.49 a 1.54

(…).

            Facto 1.55

(…).

Factos 1.60 e 1.61

(…).

            A matéria de facto a considerar é, assim, a seguinte:

Pontos 1.1 a 1.12 e 1.14, 1.16 a 1.21, 1.23 a 1.47 e 1.49 a  1.62 mantém-se inalterados.

Elimina-se o ponto 1.48 que passa para os factos não provados.

Alteram-se os ponto 1.13, 1.15 e 1.22 que passam a ter a seguinte redação:

.1.13. Autora e ré acordaram que a ré anteciparia o valor correspondente à conclusão de, pelo menos, a fase 5 (revestimentos exteriores).

1.15.A R. apenas liquidou a quantia de 12.000,00 quantia que dizia respeito à execução da fase 5 – revestimentos exteriores – do contrato de empreitada.

1.22.A autora executou os seguintes trabalhos:

- Fase 5 da obra – trabalhos executados no valor 13.481,86€ - valor pago pela ré = 12.000;.

- Fase 6 da obra – trabalhos executados valor 6.266,00€ - valor pago pela ré = 0,00€; e  

- Fase 7 da obra – trabalhos executados valor 8.287,90€ - valor pago pela ré = 0,00€.

Aditam-se aos factos não provados os seguintes factos:

.A autora e a ré acordaram que a ré anteciparia o valor correspondente à conclusão da fase 6 (instalações e as infra-estruturas).

. Quando o fez, escolheu um material com um preço cerca de 3 vezes superior ao contratado com a autora.

Da resolução do contrato pela apelada

A apelante manifesta o seu inconformismo pela circunstância do tribunal a quo ter entendido que assistia à apelada o direito de exigir o pagamento das faturas, uma vez que não estavam concluídas as fases 5 e 6 e só após a conclusão os pagamentos eram devidos, em conformidade com o disposto na cláusula 2ª, nº 3 do contrato.

Foi mantida parcialmente a matéria de facto constante do ponto 1.13. Como já referimos supra, a propósito da impugnação deste ponto, a lei não impede que as partes alterem por acordo verbal uma cláusula de um acordo escrito, quando se trata de um caso, como o presente, em que a forma escrita foi voluntariamente adotada (artº 222º, nº 3 do CC. Neste sentido, Ac. do STJ de 02.11.2010, proc. 196/06. .8TCFUN.L1.S1). E, não tendo a apelada, depois de a A. lhe ter fixado um prazo para pagar, procedido ao pagamento, da totalidade da fase 5,  passou a assistir à A. o direito de proceder à resolução do contrato (art 801º, nº 2 do CC). Relativamente à fase 6 não foi feita prova de acordo com vista à antecipação do pagamento.

 

Da validade do acordo relativamente à realização de outros trabalhos para além dos referidos no contraton e das alterações ao projeto

A apelante defende que  a estipulação de trabalhos a mais tinha de ser reduzida a escrito porque o contrato de empreitada a tal obriga, assim como os trabalhos que implicaram a alteração do projeto.

Mas sem razão.

Na cláusula 6ª, 3, alínea b) do contrato as partes convencionaram que “a execução de qualquer trabalho não previsto será precedida de acordo prévio entre ambas as partes”.

Não se acordou que esse acordo prévio tivesse de ser reduzido a escrito. Apenas se exigiu que houvesse acordo prévio para a realização de trabalhos extra.

A lei não impede que as partes acordem verbalmente a realização de outros trabalhos. Trata-se de um novo contrato ou novos contratos, sendo que o contrato de empreitada, não está sujeito à forma escrita, como se referiu já (cfr. se defende no Ac. do STJ de 02.11.2010, proc.196/06.8TFUN.L1.S1).

            Da pretensão de  resolução do contrato pela apelante

A R. deduziu reconvenção, tendo formulado os seguintes pedidos:

NESTES TERMOS e nos mais de direito, deve a presente ação ser julgada improcedente por não provada e por provada a matéria da exceção perentória invocada (factos impeditivos do nascimento do direito que a Autora se arroga e factos constitutivos do nascimento do direito da Ré, que assim exceciona), bem como procedente por provada a matéria da reconvenção, condenando-se a reconvinda a reconhecer que à reconvinte assiste o direito à resolução contratual, quer pelo abandono da obra que lhe foi adjudicada, quer pelo incumprimento do projeto da obra, quer finalmente pelo cumprimento defeituoso da obra por ela inacabada, bem como a reconhecer que, assim, se constituiu na obrigação de indemnizar a reconvinte nas seguintes quantias (valor da reconvenção):

a) 11.500,00 € (onze mil e quinhentos euros) respeitante ao diferencial a mais pago à nova empreiteira para acabar a casa inacabada e abandonada;

b) 25.000,00 € (vinte e cinco mil euros) ou em outra que subsidiariamente vier a apurar-se nos autos (também pela perícia adiante requerida), respeitante à eliminação dos defeitos supra elencados nos arts º 91 a 98 da reconvenção, seguindo-se os ulteriores termos e consequências.

Face ao pedido que formula, afigura-se que a apelante entende que lhe assiste o direito à resolução com base em três fundamentos:

. abandono da obra pelo empreiteiro;

. alteração do projeto por iniciativa do empreiteiro;

. a existência de defeitos.

O facto de se ter entendido que assistia à A. o direito à resolução do contrato de empreitada celebrado com a R., não implica que a R. não pudesse ter também razões para pôr fim ao contrato por resolução. Nos contratos bilaterais, ambas as partes podem encontrar-se em incumprimento.

Ora, com base em abandono não é possível decretar a resolução, uma vez que assistia à apelada o direito de não prosseguir a obra por falta de pagamento. Também não se apuraram factos que permitisse a resolução do contrato por incumprimento do projeto da obra, uma vez que se apurou que as alterações efetuadas ao projeto, foram feitas a pedido da apelante. Relativamente aos defeitos, apenas se apurou que, relativamente às cantarias e guarnecimento de vãos, as pedras apresentavam muitas manchas pelo que tinham de ser substituídas (factos provados 1.41).

A apelante, segundo interpretamos a sua contestação, fundamenta o pedido de resolução com base nos defeitos, não apenas nos defeitos com base nos quais formula pedido reconvencional (defeitos alegados nos artigos 92º a 97º da contestação), mas também com base nos que descreve nos artigos 64º  e seguintes (artº 89º da contestação), onde se incluem os dados como provados no ponto 1.41, alegados no artº 68º da contestação.

No seu recurso, a apelante vem defender a aplicação ao caso da disciplina do DL 67/2003.

O DL 67/2003 veio proceder à transposição para o direito interno da Diretiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Maio, relativa a determinados aspetos de venda de bens de consumo e das garantias a elas relativas, assim como dos contratos de fornecimento de bens de consumo a fabricar ou a produzir e de locação de bens de consumo (artº 1º, nºs 1 e 2),  visando assegurar a proteção dos interesses dos consumidores, afirmando que o vendedor deve entregar ao consumidor os bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda, n.º 1 do art.º 2º e consigna no nº 2 do mesmo artigo presunções ilidíveis de não conformidade.

Já se entendia que na amplitude da designação “contratos de fornecimentos de bens de consumo” se incluíam as empreitadas de coisas móveis ou imóveis, firmadas por consumidores a fabricar ou produzir com materiais fornecidos pelo empreiteiro ou pelo dono da obra[7]. O nº 2 do artº 1º -A do DL 67/2003, introduzido pelo DL 84/2008, veio expressamente consagrar a aplicabilidade do disposto no diploma, com as necessárias adaptações, aos bens de consumo fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada ou de outra prestação de serviços, bem como à locação de bens de consumo. 

As normas contidas no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, aplicáveis aos contratos de empreitada numa relação de consumo, revelam-se normas especiais relativamente às regras gerais do Código Civil previstas para o contrato de empreitada. Assim, a responsabilidade contratual do empreiteiro pelos defeitos existentes na obra, nos contratos de empreitada de consumo, rege-se pelas regras gerais previstas no Código Civil para o contrato de empreitada e pelas regras especiais previstas na Lei de Defesa do Consumidor e no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, adaptáveis a este tipo contratual, não sendo aplicáveis as normas do Código Civil que sejam incompatíveis com as normas constantes destes dois diplomas (cfr. se defende no Ac do TRC de 15.06.2020, proc. 101/18.9T8VLF.C1).

Com este diploma legal pretendeu-se proteger o consumidor relativamente à aquisição de bens de consumo ( móveis ou imóveis), em que o bem entregue padece de desconformidade face ao contrato.

De acordo com o disposto no art. 2º nº 1 do DL 67/2003, o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda, presumindo-se a desconformidade dos bens  com o contrato nas seguintes situações: a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo; b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado; c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo; d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem

Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato – art.º4 nº 1 do DL 67/2003.

Pode, ainda, o consumidor que tenha adquirido coisa defeituosa, e sem prejuízo dos direitos que lhe assistem perante vendedor, optar por exigir diretamente do produtor a sua reparação ou substituição, salvo se tal se manifestar impossível ou desproporcionado tendo em conta o valor que o bem teria se não existisse falta de conformidade, a importância desta e a possibilidade de a solução alternativa ser concretizada sem grave inconveniente para o consumidor. Ao produtor é concedida a faculdade de se opor à reparação ou substituição nas situações descritas no nº 2 do artº 6º.

            O consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos no nº 1 do artº 4º, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito nos termos gerais (nº 5 do artº 4º).

Na Diretiva transposta está, embora não expressamente,  prevista uma hierarquização dos direitos do comprador: em primeira linha deve lançar mão do direito à reparação/substituição, em segunda linha assiste-lhe o direito à redução do preço/resolução do contrato. É o que resulta da conjugação do nº 3 da Diretiva com o nº 5 e o considerando 10[8].

Mas essa hierarquização não foi acolhida no  DL 67/2003, de acordo com o entendimento jurisprudencial maioritário. Entende-se que do nº 5 do artº 4º ressalta que o comprador pode optar por qualquer dos direitos, a não ser que tal se revele  impossível ou constitua abuso de direito[9]. O DL 84/2021, de 18 de outubro veio revogar, no seu artº 54º, o DL 67/2003 e estabelecer uma hierarquização dos direitos do consumidor (artº 15º), estatuindo no seu nº 4 que “ O consumidor pode escolher entre a redução proporcional do preço, nos termos do artigo 19.º, e a resolução do contrato, nos termos do artigo 20.º, caso:

a) O profissional:

i) Não tenha efetuado a reparação ou a substituição do bem;

ii) Não tenha efetuado a reparação ou a substituição do bem nos termos do disposto no artigo 18.º;

iii) Tenha recusado repor a conformidade dos bens nos termos do número anterior; ou

iv) Tenha declarado, ou resulte evidente das circunstâncias, que não vai repor os bens em conformidade num prazo razoável ou sem grave inconveniente para o consumidor;

b) A falta de conformidade tenha reaparecido apesar da tentativa do profissional de repor os bens em conformidade;

c) Ocorra uma nova falta de conformidade; ou

d) A gravidade da falta de conformidade justifique a imediata redução do preço ou a resolução do contrato de compra e venda.”

O disposto no novo diploma não se aplica a contratos celebrados antes da sua entrada em vigor, como é o caso do dos autos (artº 53º do DL 84/2021).

No entanto, não foram dados como provados factos que permitam a qualificação da empreitada em causa, como empreitada de consumo. A R. alegou na contestação que o contrato de empreitada se destinava à  construção de uma moradia unifamiliar destinada à habitação da R.,  mas só foi dado como provado que o contrato de empreitada se destinava à construção de uma moradia familiar, sem se ter dado como provado o fim a que se destinava. A R. nada reclamou quanto à falta destes factos, não tendo pedido a sua inclusão na matéria de facto e não se pode considerar que os mesmos estão admitidos por acordo.

Assim, a disciplina legal aplicável é a que se encontra regulada no Código Civil.  Note-se que a apelante apenas em sede de recurso, veio defender a aplicabilidade ao caso do DL 67/2003.

Só o incumprimento definitivo dá lugar à resolução do contrato, sendo que relativamente ao contrato de empreitada com cumprimento defeituoso há ainda que se alegar e provar que os defeitos tornaram a obra inadequada ao fim a que se destina (1222º nº 1 CC parte final) e desde que tenham, primeiramente, sido denunciados os defeitos e solicitada a sua reparação, permitindo ao empreiteiro a sua eliminação. O Código Civil apenas permite o exercício do direito à resolução, depois de previamente terem sido denunciados os defeitos, estabelecendo uma hierarquização entre os diversos meios de reação à disposição do dono da obra. O dono da obra está, assim, em princípio, obrigado a observar a ordem de prioridade dos direitos estabelecidos nos referidos preceitos legais Porém, e como decorre do artº 1223º do CC, o exercício desses direitos não exclui o direito que o dono da obra tem de ser indemnizado, nos termos gerais.

Ora, a apelante não solicitou a reparação dos defeitos. Embora na sua carta de 24 de maio de 2018, tenha aludido à existência de granitos manchados, não solicitou a sua substituição. Acresce que a existência de manchas nas pedras não tornam a obra inadequada ao fim a que se destina.

Assim, também com fundamento nos defeitos apurados, não assiste à apelante direito à resolução.

Ainda que se aplicasse ao caso O DL 67/2003 e se entendesse que a apelante poderia resolver o contrato por falta de conformidade das pedras,  sem prévia denúncia dos defeitos e pedido da sua eliminação, não assistiria à apelante a indemnização que peticiona, desde logo porque não se provaram os factos em que assenta (factos não provados 2.18 e 2.19)[10].

Da caducidade do direito da A.

No que respeita ao exercício dos direitos por parte do consumidor, no âmbito da empreitada de consumo, se se tratar de bem imóvel, a lei contempla 3 (três) tipos de prazo:

i) - O prazo de denúncia dos defeitos é de 1 (um) ano, a contar da data em que tiver sido detetado o defeito (cfr. art. 5º-A, n.º 2 do DL n.º 67/2003).

ii) - O prazo de exercício judicial do direito é de 3 (três) anos, a contar da denúncia (atempada) dos defeitos (cfr. art. 5º-A, n.º 3 do referido DL n.º 67/2003).

iii) - O prazo da garantia legal de conformidade é de 5 (cinco) anos a contar da entrega do imóvel (cfr. art. 5º, n.º 1 do DL n.º 67/2003).

O Código Civil, no caso da empreitada ter por objeto a construção, como é o caso,  modificação ou reparação de edifícios ou outros imóveis destinados por sua natureza a longa duração, por sua vez, estabelece os seguintes prazos:

. a denúncia dos defeitos deve ser efetuada no prazo de um ano a partir do seu conhecimento e dentro dos cinco anos subsequentes à entrega ou no decurso do prazo de garantia convencionado entre as partes (artº 1225º, nºs 1 e 2 do CC);

. a ação correspondente deve ser intentada no ano subsequente à denúncia (cfr. arts. 1224º, nº 1 e também 1225º, nos 2 e 3, do C. Civil);

. o prazo da garantia legal de conformidade é de 5 (cinco) anos a contar da entrega do imóvel (cfr. art. 1225º, n.º 1 do Código Civil).

Assim, o prazo para denunciar os defeitos, tanto no âmbito do DL 67/2003, como no domínio do Código Civil é de um ano a contar do conhecimento.

Ora, a apelante, com o devido respeito, incorre em alguma confusão, baralhando os diversos prazos previstos. Há um prazo de caducidade para denunciar os defeitos  e um prazo de caducidade para instaurar a ação para os efetivar, em caso da sua não eliminação.

Ainda que se aplicasse o  DL 67/2003, o prazo de três anos a que a apelante faz referência, não corresponde ao  prazo de denúncia dos defeitos que é um ano, a contar do seu conhecimento, mas sim ao prazo  para instaurar a ação judicial, caso o empreiteiro não supra os defeitos ou os mesmos reapareçam.

E dúvidas não há que a apelante não denunciou ao apelante os defeitos com base nos quais pede que a apelada lhe pague 25.000,00 para a sua correção – nem em qualquer das cartas que remeteu à apelada nem na notificação judicial faz qualquer referência aos defeitos referidos nos artigos  92º a 97º da contestação, nem os denunciou no prazo de um ano a partir do seu conhecimento – novembro de 2018, pois que apenas os denunciou com a contestação, apresentada em 19.10.2020.

Ainda que tivesse denunciado os referidos defeitos tempestivamente, não lhe assistiria o direito a receber a importância que peticiona, desde logo porque não provou a existência dos defeitos que alegou como fundamento do pedido de indemnização (artºs 92º a 97º da contestação, factos não provados 2.16 a 2.17).

 A decisão recorrida é assim de manter.

Sumário:

(…).

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Notifique.

Coimbra, 21 de novembro de 2023


[1] Acessível em www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser consultados todos os acórdãos que venham a ser citados sem indicação da fonte.
[2] Muito recentemente foi proferido acórdão uniformizador de jurisprudência que não exige  que nas conclusões seja especificada a decisão a proferir sobre a impugnação, desde  que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações (AUJ nº 12/2023, publicado no DR, I série, de 14/11).
[3] Como se referiu já, o AUJ 12/2023 veio fixar jurisprudência no sentido de que, ainda que não conste a matéria de facto que o apelante pretende ver fixada, ainda assim poderá considerar-se cumprido o ónus se tal matéria resultar inequivocamente do corpo alegatório.
[4] Sublinhado nosso.
[5] Sublinhado nosso.
[6] No início das suas alegações a apelante afirma pretender impugnar, entre outros, os factos constantes do ponto 1.23. No entanto, no decurso das suas alegações, acaba por não o indicar expressamente, referindo apenas os factos constantes dos pontos 1.24 a 1.26. Porém, tendo em conta o seu texto a propósito deste grupo da matéria de facto, entende-se que a apelante pretendeu abranger na impugnação os factos constantes do ponto 1.23, como afirmou inicialmente, pelo que se incluiu o mesmo.
[7] Cfr. defende João Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, 3ª edição revista e aumentada, Almedina, p. 52.
[8] Cfr. defende João Calvão da Silva, obra citada, p. 82 e 83.
[9] Cfr. se defende nos Acs. do TRL de 01.03.2012, proc.777/09 e de 14.02.2012, proc. 111/08, e Ac. do TRC de 18.01.2011, proc. 2129/03 e Ac. do STJ de 30.09.2010, prof. no processo 822/06.
[10] No Ac. do STJ de 17.01.2023, proc. 1743/20.8T8BRG.G1.S1, sumariou-se que, havendo incumprimento bilateral, ambas as partes podem acionar o procedimento da resolução do contrato, mas apenas com a consequência de ser restituído tudo o que houver sido prestado (no caso tendo em conta o estatuído no n.º 2 do art. 434.º, do CC), ou seja, restituição ao statuo quo ante.