Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2725/08.3TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
ARRENDAMENTO
Data do Acordão: 04/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA 4º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.334º CC
Sumário: I. O abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium pressupõe: i) uma primeira conduta (que se poderá traduzir numa declaração negocial), entendida como uma tomada de posição vinculante em relação ao futuro e, por essa razão, geradora de uma situação objectiva de confiança; ii) a boa-fé da contraparte, que justificadamente confiou nessa conduta; iii) uma segunda conduta, contraditória com a anterior, que frustra a confiança gerada.

II. Tendo os réus (locadores) assumido numa transacção judicial celebrada com os autores (locatários), o compromisso de autorizar a realização de obras no arrendado indispensáveis ao regular funcionamento do estabelecimento comercial ali sedeado, recusando mais tarde conceder autorização para a realização dessas obras, o que justificou o indeferimento camarário do pedido de licenciamento, vindo depois peticionar a resolução do contrato com fundamento na falta de licenciamento do estabelecimento (motivada pela sua recusa de autorização de obras), mostram-se verificados todos os pressupostos da litigância de má fé por abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
J (…) intentou a presente acção declarativa de condenação com forma de processo ordinário demandando M (…) e mulher E (…) formulando os seguintes pedidos: 1- que sejam os réus condenados a reconhecer que: a) “o espírito da cláusula 16 da alteração ao contrato de arrendamento, bem como da declaração por si emitida é a autorização do autor a realizar quaisquer obras no local arrendado de adaptação do mesmo às leis vigentes para os sector de serviços de restauração e bebidas ou, para quando assim, se não entender, sem conceder”; b) as obras realizadas pelo autor no local arrendado são legais e necessárias ao normal desenvolvimento da actividade do autor, actividade esta que ambas as partes acordaram que aí fosse exercida na data da celebração do contrato de arrendamento e consequentemente que o autor se considera autorizado a realizar as mesmas; 2- que sejam os réus condenados a diligenciarem junto da Câmara Municipal de Leiria requerendo e assinado tudo o que necessário for para que: a) seja emitida a licença de serviços de restauração e bebidas para o local que deram de arrendamento ao autor; b) o estabelecimento implementado no local arrendado não seja encerrado pelos motivos constantes do documento que junta com o nº 19 e/ou quaisquer outros relacionados com o processo de obras 189/03, ou qualquer outro processo de obras que se mostre necessário dar entrada e que vise a adaptação do estabelecimento às leis vigentes; 3- que sejam os réus condenados a indemnizar o autor por todos e quaisquer prejuízos que a sua actuação, por não diligenciarem pela obtenção de licença para serviços de restauração e bebidas para o local arrendado, causar, incluindo o pagamento de coimas e/ou multas que venham a ser aplicadas e pagas pelo autor, por quaisquer entidades e, bem assim, a ressarcirem o autor de todos e quaisquer prejuízos que se venham a apurar, quer por perda de clientela, quer por eventual encerramento do estabelecimento, tudo a liquidar em execução de sentença.
Como fundamento da sua pretensão, alega em síntese o autor: tomou de arrendamento aos réus um estabelecimento comercial denominado CN.... que, à data do contrato de arrendamento, possuía alvará de licença sanitária emitido em 21-5-1991; o regime de licenciamento de estabelecimentos de restauração e bebidas foi objecto de diversas alterações o que determina a realização de obras para que o alvará de licença sanitária seja substituído pela, actualmente exigida, licença de utilização; daí que o referido contrato de arrendamento foi, em 16-3-2004, objecto de alteração por sentença homologatória de transacção judicial, sendo realizadas obras pelo autor e outras pelos réus; quando a transacção teve lugar já se encontrava pendente processo de obras a pedido do autor, tendo-se os réus, na sequência do referido acordo, comprometido a assinar e requerer junto de qualquer entidade o que fosse necessário para realização efectiva das obras; para melhor esclarecimento dos réus e antes de estes subscreverem qualquer declaração de autorização o autor facultou-lhes os elementos do referido processo de obras e deu-lhes conhecimento das alterações que iam ser requeridas; como o autor, por dificuldades financeiras, não iniciou de imediato as obras e por estarem descontentes com tal atraso os réus desenvolveram um conjunto de iniciativas – acção judicial visando o despejo e requerimentos/exposições junto da Câmara Municipal invocando a falta de autorização o denunciando a ilegalidade das obras – sempre visando o encerramento do estabelecimento do autor; tais diligências conduziram a que o autor tenha sido notificado para encerrar o estabelecimento por o ocupar sem a necessária licença, licença que não é emitida por o autor não apresentar declaração de autorização dos réus para a realização das obras; sucede que todas as obras realizadas pelo autor estão compreendidas na autorização concedida pelos réus na já referida transacção, revelando-se, no que concerne às não mencionadas na dita transacção, obras essenciais ao funcionamento do estabelecimento e ao cumprimento das exigências legais de refrigeração e ventilação do mesmo, constituindo obras de conservação ordinária; as diligências dos réus conduziram a que o estabelecimento esteja a laborar sem para tal se encontrar licenciado, tendo determinado diversas autuações do autor e consequentes aplicações de coimas, sendo que o enceramento do estabelecimento determina a perda de clientela pelo autor e consequente prejuízo da responsabilidade dos réus.
Regularmente citados vieram os réus contestar e reconvir, concluindo pela improcedência da acção e pedindo: 1- a declaração de resolução do contrato de arrendamento por incumprimento do autor; 2- A condenação do autor no pagamento do valor da diferença de rendas vencidas desde Agosto de 2006 até à entrega efectiva livre e devoluta do estabelecimento, valor acrescido de juros de mora até efectivo e integral pagamento; 3- a condenação do autor no reconhecimento da resolução do contrato e no consequente despejo do locado no prazo máximo de um mês após a data da sentença; 4- a condenação do autor como litigante de má-fé em multa e indemnização.
Em síntese, alegam os réus: nos termos do contrato de arrendamento todas as obras de conservação/reparação que o locado interiormente carecer ficam a cargo do inquilino e este não poderá fazer no locado quaisquer benfeitorias sem autorização escrita do senhorio, não lhe assistindo qualquer direito de retenção ou indemnização pelas benfeitorias realizadas; a transacção não visou qualquer alteração do contrato de arrendamento mas tão só a desistência do embargo pelo autor e a desistência pelos réus de um pedido de demolição de um anexo que haviam apresentado junto da Câmara Municipal; na referida transacção estavam apenas em causa as obras de legalização do anexo, que passou a fazer parte do contrato de arrendamento, e as diligências necessárias à mesma junto das entidades competentes, mantendo-se inalterado o referido no contrato quanto às obras e à necessidade de autorização do senhorio para sua realização; os réus cumpriram a sua parte do acordado na transacção ao contrário do sucedido com o autor que realizou obras que alteram a fachada do estabelecimento; as obras que o autor se propunha realizar eram as necessárias à adequação do estabelecimento ao disposto no DL 168/97 e o autor realizou obras para além do que constava no projecto aprovado; os réus apenas autorizaram as obras que haviam sido aprovadas, tendo o autor realizado obras que não constavam do projecto inicialmente aprovado nem eram estritamente necessárias à adaptação das exigências do DL 168/97, sendo por tal, por sua exclusiva culpa, que não logrou obter a licença de utilização; as obras, não autorizadas, que o autor realizou no locado alteraram a fachada do edifício e a morfologia do locado, ampliaram o mesmo, violando o disposto no art. 1074º nº 2 do Código Civil; o autor mantém em funcionamento no locado um estabelecimento comercial sem a necessária licença – cuja falta lhe é totalmente imputável – e o referido estabelecimento, seja pelo seu horário de funcionamento, seja pelo sistema de refrigeração utilizado, gera ruído que coloca em causa as regras de sossego e boa vizinhança; acresce que o autor nunca liquidou o acréscimo de renda que se havia obrigado na transacção efectuada, encontrando-se em mora no pagamento no pagamento da renda; todos estes factos constituem conduta grave e reiterada do autor que fundamentam a resolução do contrato; com a presente acção o autor altera a verdade dos factos, deduz preensão cuja falta de fundamento não pode ignorar pelo que deve ser condenado como litigante de má-fé e em indemnização a favor dos réus/reconvintes.
Na resposta, o autor: arguiu a inadmissibilidade da dedução de pedido reconvencional por falta de verificação dos requisitos do art. 274º nº 2 do Código de Processo Civil; impugnou a existência de qualquer situação de mora no pagamento da renda; excepciona o incumprimento dos réus quanto às suas obrigações na transacção que justificam e determinam tal aumento de renda; cautelarmente deposita o valor que os réus acusam estar em falta acrescido da indemnização legal; negou que o estabelecimento por si explorado produza ruído que perturbe o descanso e sossego dos réus; alega que todo o equipamento instalado se encontra devidamente homologado e conjugado com as exigências legais da Lei do Ruído; quanto à falta de licenciamento do estabelecimento defendeu que se trata de uma obrigação/dever do proprietário pelo que não podem os réus, com tal fundamento, pretender a resolução do contrato; quanto às obras cuja realização os réus acusam excepciona a caducidade de qualquer pedido de resolução com fundamento nas mesmas; impugna que as mesmas careçam de autorização dos réus ou que tenham alterado a estrutura do locado; alega que a única ampliação que teve lugar se reporta ao anexo que foi objecto da transacção judicial e que os réus expressamente consentiram; termina concluindo pela improcedência do pedido reconvencional, sem prejuízo da sua inadmissibilidade, e pedindo a condenação dos réus como litigantes de má-fé e em indemnização por deliberada e consistentemente alterarem a verdade dos factos, justificando a sua pretensão com base em factos dos quais são os únicos responsáveis.
O tribunal fixou o valor da causa (despacho de fls. 273) e admitiu parcialmente o pedido reconvencional, na parte em que se reporta ao pedido de despejo do locado com base na realização de obras descritas na petição inicial e na contestação, no facto do aparelho de ar condicionado perturbar o sossego dos réus e no facto do locado não se encontrar licenciado (fls. 274).
Dispensada a realização de audiência preliminar, foi a instância julgada válida e regular nos seus pressupostos objectivos e subjectivos, tendo sido seleccionados os factos assentes e fixou base instrutória (fls. 280 a 293).
Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida decisão sobre a matéria de facto (fls. 632 a 643), sem reclamações.
Foi proferida sentença, na qual se conclui com o seguinte dispositivo:

«Termos em que, com fundamentação de facto e de direito supra exposta se decide:

A- Julgar a acção parcialmente procedente por provada condenado os réus a:

1- reconhecer que o espírito da cláusula 16 da transacção celebrada em 16-3-2004 nos autos 7550/03.5TBLRA do 2º juízo deste tribunal, bem como  a declaração por si subscrita em 24-4-2004 se reporta à autorização de realização de obras no locado para adaptação do mesmo às exigências legais do sector restauração e bebidas;

2- a, na sua qualidade de proprietários, subscreverem tudo o que se revele necessário para que o autor no contexto do processo de obras 189/2003 obtenha a licença de serviços de restauração e bebidas;

3- a pagarem ao autor a quantia, que se venha a apurar em sede de liquidação de execução de sentença, referente ao valor despendido pelo autor com processo de contra-ordenação por ausência de licença para exploração do estabelecimento, processos verificados e os que se venham a verificar até à subscrição pelos réus dos documentos que se revelem necessários à obtenção da licença.

B- Julgar quanto ao mais a acção improcedente por não provada absolvendo, nessa parte, os réus do peticionado.

C- Julgar o pedido reconvencional totalmente improcedente por não provada absolvendo o réu dos pedidos nele contra si formulados.

D- Custas da acção por autor e réus na proporção de, respectivamente 1/8 e 7/8 – art. 446º do Código de Processo Civil.

E- Custas da reconvenção pelos réus – art. 446º do Código de Processo Civil.

F- Notificar os réus para, querendo e em dez dias, se pronunciarem sobre o pedido de condenação como litigantes de má-fé.»
Cumprido o contraditório, foi proferida decisão na qual se condenaram os réus por litigância de má fé, no pagamento de seis UCs a título de multa (fls. 687), e de € 4.647,48 a título de indemnização (fls. 847).
Inconformados, apelaram os réus, apresentando alegações, onde formulam as seguintes conclusões:

(…)
O autor respondeu às alegações de recurso, preconizando a sua total improcedência e, consequentemente, a manutenção da sentença recorrida.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A n.ºs 1 e 3 do CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se nas seguintes questões: i) reapreciação da decisão da matéria de facto na parte impugnada pelos apelantes; ii) reapreciação da matéria de direito, averiguando se, face à factualidade provada, será de manter o dispositivo da sentença recorrida, no que concerne à condenação parcial dos réus no pedido, e à absolvição dos autores da reconvenção; iii) reapreciação da condenação por litigância de má fé.

2. Recurso da matéria de facto
2.1. O lapso invocado
Alegam os apelantes (conclusões 1.ª e 2.º), que se verifica um lapso na transposição da resposta ao quesito 32.º para a matéria de facto dada como assente na sentença, preconizando que seja “corrigido o lapso, passando o ponto 40 da matéria de facto, dada como provada pela douta sentença recorrida, a ter a seguinte redacção: ― Quando concederam a autorização referida na transacção mencionada em 6, pretenderam os réus abranger as obras requeridas no âmbito do processo camarário n.º 189/03, demandadas pelo DL 168/97.”
Vejamos.
Consta do artigo 32.º da base instrutória (fls. 228): «Quando concederam a autorização referida na transacção mencionada em F), pretenderam os réus abranger todas e quaisquer obras requeridas no âmbito do processo camarário n.º 189/03».
O tribunal respondeu a esta matéria (fls. 633): «Provado apenas que pretenderam abranger as obras do referido processo demandadas pelo DL 168/97».
Foi consignado na sentença, no ponto 40.º dos factos provados: «40. Quando concederam a autorização referida na transacção mencionada em 6, pretenderam os réus abranger as obras requeridas no âmbito do processo camarário n.º 189/03 – resposta dada ao ponto 32º da base instrutória.»
Não vislumbramos o alcance prático da alteração proposta.
Dizer que “pretenderam os réus abranger as obras requeridas no âmbito do processo camarário n.º 189/03”, ou que “pretenderam os réus abranger as obras requeridas no âmbito do processo camarário n.º 189/03, demandadas pelo DL 168/97”, são afirmações equivalentes, com o mesmo alcance, sendo dispensável em sede de definição da factualidade provada, a referência ao Decreto-Lei aplicável (ao facto de as obras serem exigidas pelo referido diploma).
Apesar do apontado défice de relevância, de acordo com o princípio “quod abundant non nocet”, deverá consignar-se o facto de tais obras serem exigidas pelo DL 168/97.
Pelas razões expostas, procede a argumentação dos apelantes, aditando-se ao facto 40.º a referência omitida.

2.2. Pontos controvertidos, respostas do tribunal e fundamentação
 (…)
3. Fundamentos de facto
Face à decisão que antecede, é a seguinte a matéria de facto provada nos autos:
1. Em 13.03.1993, o autor tomou de arrendamento aos réus o prédio urbano sito na Rua .... , inscrito na matriz predial urbana da freguesia de X.... sob o art.º n.º a.... e descrito na 2.ª Conservatória do Registo predial de Leiria sob o n.º B.... , da freguesia de X.... , para aí explorar um estabelecimento de café, snack-bar e restaurante – alínea A dos factos assentes.
2. O estabelecimento acima mencionado e denominado “ CN.... ”, encontrava-se à data da celebração do contrato de arrendamento, ou seja 13.03.1993, devidamente licenciado para os fins pretendidos, sendo possuidor do alvará de licença sanitária n.º 3.048, emitido em 21.05.1991, pela Câmara Municipal de Leiria – alínea B dos factos assentes.
3. Tendo ficado acordado que o valor da renda anual era de Esc. 720.000$00 (setecentos e vinte mil escudos), pagável em duodécimos de Esc. 60.000$00 (sessenta mil escudos) – alínea C dos factos assentes.
4. No tocante às obras, autor e réus estipularam que “todas as obras de conservação e de reparação de que o local arrendado interiormente carecer, ficam a cargo do inquilino, que responderá por toda a qualquer deterioração nele causada por sua culpa ou negligência” – alínea D dos factos assentes.
5. Além disso, ficou ainda convencionado que "o inquilino não poderá fazer no local arrendado, sem o consentimento por escrito, do senhorio, quaisquer benfeitorias, não lhe assistindo o direito de retenção ou indemnização por elas ou por quaisquer outras que faça, pois, desde logo, são consideradas pertenças do prédio" – alínea E dos factos assentes.
6. Por sentença de 16.03.2004, proferida nos autos de procedimento cautelar instaurado pelo ora autor contra os ora réus, cujos termos correram no 2º Juízo Cível, do Tribunal Judicial de Leiria, sob o nº 7550/03.5TBLRA, foi homologada uma transacção celebrada entre autor e réus, a qual integrava os seguintes termos e condições:

“1- O requerente desiste do pedido de embargo;

2- As duas janelas do rés-do-chão do lado norte do prédio, onde se situa o estabelecimento do requerente, os requeridos comprometem-se a subir as mesmas, de acordo com o projecto de construção apresentado e bem assim da planta que se anexa;

3- Na direcção da janela da casa de banho sita a poente e sobre a placa será implantada urna abertura que confira luminosidade à casa de banho;

4- Os custos inerentes aos dois pontos supra serão suportados integralmente pelos requeridos;

5- Os requeridos comprometem-se a desistir do requerimento de alteração do projecto camarário que hoje deu entrada na correspondente Câmara Municipal, onde pediam a demolição do anexo sito no vão das escadas e melhor identificado nos autos;

6- Os requeridos comprometem-se, a expensas do requerente, incluindo honorários a pagar a técnicos e custos com a construção da obra, a requerer a legalização do referido anexo, bem como o seu prolongamento até à janela do estabelecimento do requerente, sita a poente;

7- Esse prolongamento será efectuado para sul do prédio e em linha recta a partir do já existente e até à referida janela, salvo se o índice de construção não permitir tais dimensões, caso em que será construído de acordo com o legalmente permitido;

8- No terreno sul do prolongamento do anexo será construído um muro/vedação a expensas dos requeridos, até à varanda sul do prédio;

9- Na parede poente que delimita a varanda será aberta, a expensas do requerente, uma porta que dará acesso ao referido anexo;

10- Os requeridos a expensas suas irão colocar um gradeamento, com cerca de 1 metro de altura na varanda sul;

11- O portão referido nos autos como muro, sito a sul, será colocado nos exactos termos constantes da planta junto da p.i. como doc.5;

12- Os requeridos comprometem-se a retirar de imediato as tábuas colocadas na porta sita a poente;

13- A porta sita a poente e referida nos autos será fechada, sendo substituída por outra sita no mesmo anexo, mas do lado sul;

14- Os requeridos autorizam os requerentes a utilizarem o referido anexo, passando o mesmo a fazer parte integrante do contrato de arrendamento;

15- O requerente, após a conclusão das obras que serão por si efectuadas passará a pagar uma renda mensal de €500, que será actualizada anualmente de acordo com o legalmente estipulado;

16- Os requeridos comprometem-se a assinar e a requerer, junto de qualquer entidade competente, tudo o que necessário for à realização efectiva das referidas obras, dando disso conhecimento ao requerente, no prazo de cinco dias;

17- À excepção da parte norte que será delimitada pela construção do muro referido nos autos, o restante logradouro passa a constituir parque de estacionamento do estabelecimento do requerente, fazendo parte integrante do contrato de arrendamento;

18- As custas devidas a juízo seriam em partes iguais prescindindo as partes de custas e de procuradoria na parte disponível” (alínea F dos factos assentes).
7. Por deliberação camarária de 18.08.2003 o projecto de arquitectura apresentado na CML relativo ao locado foi aprovado, sendo que o autor apenas procedeu ao levantamento da licença de obras muito posteriormente à aprovação do projecto de arquitectura – alínea G dos factos assentes.
8. Ao estabelecimento explorado pelo autor foi concedido o alvará de licença sanitária nº 3.048, emitido em 21.05.1991, pela Câmara Municipal de Leiria – alínea H dos factos assentes.
9. Por decisão camarária de 15.10.2004, o autor foi notificado que o pedido de licença da obra relativa ao processo n.º 189/03 foi aprovado e que o despacho que licenciou a mesma caducaria ao fim de 1 ano se não fosse requerida a emissão do competente alvará – alínea I dos factos assentes.
10. Em 10.02.2005, os réus intentaram uma acção judicial contra o aqui autor e que tinha em vista a redução do objecto do contrato de arrendamento, acção esta cujos termos correram pelo 3º Juízo de competência Cível do Tribunal Judicial de Leiria, sob o nº 1122/05.7TBLRA e que, por sentença de 21.12.06, foi julgada totalmente improcedente e não provada – alínea J dos factos assentes.
11. Quando celebraram a transacção referida em 6, autor e réus pretenderam modificar o contrato de arrendamento referido em 1 – resposta dada ao ponto 1º da base instrutória.
12. Quando acordaram na realização da obras mencionadas na transacção referida em 6, autor e réus pretenderam dotar o local arrendado das condições necessárias à obtenção de licença de utilização própria para os serviços de restauração e bebidas – resposta dada ao ponto 2º da base instrutória.
13. Em 16.03.2004, já se encontrava pendente desde 12.02.2003, sob o n.º 189/2003 um processo de obras apresentado pelo autor junto da Câmara Municipal de Leiria e que tinha em vista a adaptação do estabelecimento às normas então vigentes – resposta dada ao ponto 3º da base instrutória.
14. Nessa data, 16.03.2004, o autor já havia sido notificado no processo camarário 189/03 para apresentar em 30 dias “(…) declaração do proprietário a autorizar as obras pretendidas face ao indicado no art.º 5.º do contrato de arrendamento (…)”– resposta dada ao ponto 4º da base instrutória.
15. O que era do conhecimento dos réus – resposta dada ao ponto 5º da base instrutória.
16. E foi por isso que no âmbito daquela transacção os réus se comprometeram a “assinar e requerer, junto de qualquer entidade competente, tudo o que necessário for à realização efectiva das referidas obras” – resposta dada ao ponto 6º da base instrutória.
17. Os réus tinham então plena consciência das obras já requeridas pelo autor no âmbito daquele processo de obras – resposta dada ao ponto 7º da base instrutória.
18. Foram remetidos à então mandatária do réus na providência cautelar acima referida, documentos referentes ao processo de obras nº 189/03 – resposta dada ao ponto 8º da base instrutória.
19. Em 24.04.2004 os réus subscreveram uma declaração a autorizarem a realização das obras requeridas pelo autor no âmbito do processo de obras n.º 189/03 da Câmara Municipal de Leiria – resposta dada ao ponto 10º da base instrutória.
20. Os réus apresentaram requerimentos junto da Câmara nos quais visavam e o encerramento do estabelecimento do autor – resposta dada ao ponto 12º da base instrutória.
21. Os réus declararam que não autorizavam a realização das obras previstas na transacção referida em 6 – resposta dada ao ponto 13º da base instrutória.
22. O pedido de legalização do estabelecimento apresentado pelo autor foi liminarmente rejeitado pela Câmara Municipal com fundamento em os réus terem apresentado uma exposição junto desta edilidade onde afirmam que não concedem autorização à realização das obras – resposta dada ao ponto 14º da base instrutória.
23. O réu marido tinha apresentado em 14.03.2007 um requerimento onde afirma, não só que “nunca concedi autorização, na qualidade de senhorio ou qualquer outra, ao meu inquilino J (…) para levar a cabo quaisquer obras no local que tomou de arrendamento” – resposta dada ao ponto 15º da base instrutória.
24. Tendo afirmado ainda que “a declaração que se encontra junta ao processo em referência (a junta aos presentes autos como doc. nº 8) é falsa, nunca tendo por mim sido assinada” – resposta dada ao ponto 16º da base instrutória.
25. Resolvida tal situação, os réus voltaram a acusar o autor junto da Câmara Municipal de não respeitar o projecto aprovado desta vez por ter procedido à: Instalação de condutas e aparelhos de ar condicionado abrindo nas paredes os respectivos respiradouros; Demolição de paredes; Abertura de buracos para condutas noutras paredes (exteriores); Colocação de aparelhos de ar condicionado fixos, instalação de caixas de ventilação; Levantamento de piso; Mudança de loiças e balcões – resposta dada ao ponto 17º da base instrutória.
26. O autor foi notificado que é intenção da CML ordenar a “cessação da utilização do rés-do-chão da moradia sita na Rua .... , no prazo de 60 dia, em virtude de se encontrar a ocupá-la sem a necessária licença de utilização” – resposta dada ao ponto 18º da base instrutória.
27. A falta de licença para serviços de restauração e bebidas deve-se à falta de apresentação pelo autor de uma declaração de autorização dos réus para as obras referidas em 26 – resposta dada ao ponto 19º da base instrutória.
28. À excepção do acordado nomeadamente no ponto nº 9 da transacção referida em 6, bem assim das obras relativas à reconstrução da casa de banho o autor não demoliu quaisquer paredes – resposta dada ao ponto 20º da base instrutória.
29. O revestimento do chão foi feito sem qualquer levantamento do mesmo e já constava do projecto inicial – resposta dada ao ponto 21º da base instrutória.
30. As loiças e balcões que se encontravam no estabelecimento foram adquiridos pelo autor por trespasse ao anterior arrendatário – resposta dada ao ponto 22º da base instrutória.
31. As obras relativas à abertura de buracos na parede para instalação dos respiradouros da conduta de ar condicionado enquadram-se no âmbito de um dos projectos das especialidades apresentados – resposta dada ao ponto 23º da base instrutória.
32. Após a realização das obras pelos réus acordadas no âmbito da transacção judicial referida em 6, o estabelecimento comercial denominado “ CN.... ” deixou de ter qualquer tipo de sistema de refrigeração/ventilação – resposta dada ao ponto 24º da base instrutória.
33. Era exactamente nas janelas do r/c do lado norte do prédio, que os réus se obrigaram a subir por força da mencionada transacção, que estava implantado o sistema de refrigeração – resposta dada ao ponto 25º da base instrutória.
34. Depois da realização de tais obras, as janelas deixaram de ter condições para permitir o funcionamento de qualquer sistema de refrigeração – resposta dada ao ponto 26º da base instrutória.
35. Não permitindo, designadamente, cumprir os condicionalismos introduzidos pela denominada Lei do Tabaco – resposta dada ao ponto 27º da base instrutória.
36. Tais janelas dão para a garagem que os réus edificaram naquela altura, o que impede que se faça através das mesmas qualquer refrigeração do estabelecimento – resposta dada ao ponto 28º da base instrutória.
37. O sistema de refrigeração instalado pelo autor no estabelecimento é amovível – resposta dada ao ponto 29º da base instrutória.
38. Se o local arrendado algum dia vier a ser entregue aos réus, as furações efectuadas com vista à instalação do referido sistema de refrigeração poderão ser reparadas – resposta dada ao ponto 31º da base instrutória.
39. Quando concederam a autorização referida na transacção mencionada em 6, pretenderam os réus abranger as obras requeridas no âmbito do processo camarário n.º 189/03, demandadas pelo DL 168/97 – resposta dada ao ponto 32º da base instrutória.
40. Ao celebrarem aquela transacção judicial e os réus ao emitirem aquela declaração de autorização, tinham as partes em vista a adaptação do estabelecimento aos requisitos impostos pela Lei para os serviços de restauração e bebidas – resposta dada ao ponto 33º da base instrutória.
41. O sistema de renovação de ar colocado pelo autor no estabelecimento tinha necessariamente que apresentar condutas de saída para o exterior – resposta dada ao ponto 37º da base instrutória.
42. Os réus realizaram diligências para que o estabelecimento seja encerrado pelas entidades competentes – resposta dada ao ponto 38º da base instrutória.
43. Foram já quatro as participações efectuadas pela Câmara Municipal de Leiria, e uma pela ASAE – resposta dada ao ponto 39º da base instrutória.
44. O autor executou as seguintes obras no locado: - construção de uma nova divisão, que denominou "arrumo" no interior do espaço de café; - colocação de tubagens de ar condicionado; - abertura de respiradouros e colocação de caixas de ventilação; - levantamento do piso e substituição de revestimentos – resposta dada ao ponto 48º da base instrutória.
45. A colocação do actual sistema de ventilação alterou a fachada do prédio – resposta dada ao ponto 50º da base instrutória.
46. O sistema de refrigeração que o autor instalou encontra-se fixo à parede, o que altera a morfologia do locado – resposta dada ao ponto 51º da base instrutória.
47. A concreta solução do sistema de refrigeração não foi discutida na transacção referida em 6 – resposta dada ao ponto 52º da base instrutória.
48. Nem no projecto aprovado no âmbito do processo de obras particulares nº 189/03 – resposta dada ao ponto 53º da base instrutória.
49. O autor mantém em funcionamento, há vários anos, um estabelecimento comercial de restauração e bebidas no prédio dos réus, sem a necessária licença de utilização – resposta dada ao ponto 55º da base instrutória.
50. Uma das condutas de ar condicionado está colocada por debaixo do quarto dos réus, quarto de esquina nascente/sul, emitindo um ruído constante – resposta dada ao ponto 56º da base instrutória.
51. Em 22.02.2005 o Autor foi citado para a acção referida em 10 – resposta dada ao ponto 59º da base instrutória.
52. Com base nesse facto, em 30.09.05, o autor requereu a prorrogação do prazo aludido em 9, o que foi deferido – resposta dada ao ponto 60º da base instrutória.
53. Procedeu ao levantamento do alvará n.º 185/06 em 10 Março de 2006 – resposta dada ao ponto 61º da base instrutória.
54. Iniciou as obras no verão seguinte ao levantamento do alvará e terminou as mesmas em Agosto de 2006 – resposta dada ao ponto 62º da base instrutória.
55. A obra de ampliação do edifício com a construção de uma divisão, denominada de “arrumo” com a área de cerca de 20 m², foi edificada através do alvará n.º 603/04, emitido no âmbito do processo n.º 1447/02 em nome do réu M (…) – resposta dada ao ponto 63º da base instrutória.
56. Tratando-se do “anexo” referido na transacção mencionada em 6 – resposta dada ao ponto 64º da base instrutória.
57. A conduta de ar condicionado apenas está tapada por uma calha de modo a não ficar à vista – resposta dada ao ponto 65º da base instrutória.
58. As obras referidas em 45 estão concluídas desde Agosto de 2006 – resposta dada ao ponto 66º da base instrutória.
59. Do projecto de alterações e respectiva memória descritiva datado de Maio de 2003, apresentado no processo 189/2003 consta que “os pavimentos dos pisos serão revestidos a mosaico e grés fino porcelânico após a regularização do pavimento com argamassa” e das plantas que o acompanham consta a construção, sob o nº 7, de um espaço de arrumos no interior do locado – doc de fls. 341 a 359 dos autos.
60. Nos autos de processo 943/08.3BELRA-A que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria e nos quais é impugnado o acto administrativo da Presidente da Câmara Municipal de Leiria, de 5-5-2008, que ordena a cessação da utilização do rés-do-chão da moradia sita na Rua .... , por considerar inexistir autorização de utilização relativamente ao estabelecimento comercial ali instalado foi, por decisão de 8-1-2009, determinada a suspensão da instancia ate ao transito em julgado da decisão final dos presentes autos de acção ordinária – doc de fls. 453 a 458.

4. Fundamentos de direito
4.1. Apreciação do mérito da decisão, face à improcedência do recurso da matéria de facto
Os recorrentes estribaram o seu recurso exclusivamente no deferimento da alteração da factualidade vertida nas respostas aos artigos 1º, 11º, 19º, 45º, 46º, e 47, da base instrutória, não aduzindo qualquer argumento estritamente jurídico para infirmar a decisão recorrida em face dos factos que lhe serviram de base.
Perante estas circunstâncias, na falta de quaisquer outros fundamentos aduzidos para revogação da decisão sob censura e não se divisando quaisquer motivos para isso de conhecimento oficioso deste tribunal, poderíamos concluir, sem mais, pela total improcedência do recurso.
Opta-se, no entanto, por fazer uma breve abordagem ao mérito jurídico da decisão sob censura.
Nas suas alegações, os apelantes insistem na negação do que ficou amplamente demonstrado nos autos, alegando, nomeadamente:

«XI. Desta forma, constata-se que o único motivo pelo qual o estabelecimento do Réu não tem licença de utilização é porque aquele incumpriu a obrigatoriedade de execução de obras com o processo aprovado e não por causa da falta de autorização dos Apelantes para legalizar as obras executadas em desconformidade com esse mesmo projecto. (…)

XII. No caso em apreço, a não emissão de autorização para a realização das obras efectuadas em desconformidade com o projecto aprovado não consubstancia uma violação da obrigação de facultar o gozo do locado para o fim a que foi destinado, porquanto os Apelantes assinaram tudo o necessário à obtenção das licenças necessárias àquele gozo, sendo por culpa exclusiva do Apelado que o mesmo não tem licença. (…)

XVII. A não obtenção de licença de utilização não resulta de facto imputável aos Apelantes, mas sim ao Apelado – conforme supra alegado e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.»
Provou-se exactamente o contrário, como amplamente se fundamentou: os apelantes celebraram a transacção judicialmente homologada, na qual as partes alteram o objecto do contrato de arrendamento (facto negado pelos apelantes contra toda a evidência)[1]; os apelantes assumiram na referida transacção o compromisso de autorizar as obras[2]; finalmente, os apelantes recusaram a autorização de obras com que se tinham comprometido[3], o que justificou o indeferimento do pedido de licenciamento[4].
Perante a prova desta factualidade, afigura-se inquestionável o mérito da decisão recorrida, onde se declara que os réus assumiram o compromisso de autorizar as obras e se conclui que não o fazendo inviabilizaram o licenciamento, daí decorrendo prejuízos para o autor, como se constata da transcrição do dispositivo, que se segue:
«Termos em que, com fundamentação de facto e de direito supra exposta se decide:

A- Julgar a acção parcialmente procedente por provada condenado os réus a:

1- reconhecer que o espírito da cláusula 16 da transacção celebrada em 16-3-2004 nos autos 7550/03.5TBLRA do 2º juízo deste tribunal, bem como  a declaração por si subscrita em 24-4-2004 se reporta à autorização de realização de obras no locado para adaptação do mesmo às exigências legais do sector restauração e bebidas;

2- a, na sua qualidade de proprietários, subscreverem tudo o que se revele necessário para que o autor no contexto do processo de obras 189/2003 obtenha a licença de serviços de restauração e bebidas;

3- a pagarem ao autor a quantia, que se venha a apurar em sede de liquidação de execução de sentença, referente ao valor despendido pelo autor com processo de contra-ordenação por ausência de licença para exploração do estabelecimento, processos verificados e os que se venham a verificar até à subscrição pelos réus dos documentos que se revelem necessários à obtenção da licença.

B- Julgar quanto ao mais a acção improcedente por não provada absolvendo, nessa parte, os réus do peticionado.

C- Julgar o pedido reconvencional totalmente improcedente por não provada absolvendo o réu dos pedidos nele contra si formulados.

4.2. Apreciação do mérito da decisão de condenação dos réus por litigância de má fé
Alegam os réus que “inexiste a lide dolosa, ou sequer temerária, que se imporia para a condenação dos Apelantes por litigância de má-fé” (conclusão 31.ª).
Do que ficou dito resulta exactamente o contrário.
Conclui-se na decisão recorrida:
«Os RR., em reconvenção, pretendiam, além do mais, fosse decretada a resolução do contrato de arrendamento por causa das obras levadas a cabo pelo A. e por ausência de licenciamento.
Ora, a factualidade provada, e elencada na sentença que antecede, designadamente, aquela que se encontra sob os números 26 a 42 e 60 é bem elucidativa da conduta adoptada pelos RR. em contrário à verdade dos factos, como não poderiam deixar de saber.
Os RR., agindo em contrário ao que se comprometeram perante o A. e o Tribunal, após terem subscrito a autorização, alteram a verdade e tudo fizeram para que o A. não lograsse obter – como veio a suceder – o licenciamento necessário para poder manter a actividade no estabelecimento comercial de café.
Como consta na decisão sobre a matéria de facto, “mais que a existência de obras não previstas ou de desconformidade com o projecto aprovado o obstáculo à legalização será a falta de anuência dos senhorios”.
Pois, “as notificações efectuadas pelos serviços camarários ao autor, a decisão de rejeição e a informação dos serviços jurídicos da câmara municipal (…) revelam de forma clara que a não obtenção da licença de utilização não decorre das obras realizadas em desconformidade com o projecto aprovado – trata-se de uma questão de apresentação de projecto de alteração – mas sim da falta de autorização dos réus que terá, segundo os serviços camarários, de acompanhar o projecto de alterações.”
(…) Os RR. optaram, pois, nas palavras já citadas de Abrantes Geraldes, por uma atitude de quem, com leviandade, de forma gravemente grosseira, deduz uma pretensão infundada, por ser inequívoca a falta de apoio jurídico, através da alegação de factos que bem sabiam não corresponder à verdade.»
Subscrevemos na íntegra o que vem afirmado pela M.º Juíza de 1.ª instância, remetendo nesta sede, para o que escrevemos supra, no ponto 2.3.4.
A factualidade provada permite concluir com toda a segurança, pela existência de litigância de má fé, na modalidade de venire contra factum proprium.
O Professor Baptista Machado[5] considera como pressupostos do venire contra factum proprium: a) a existência de uma situação objectiva de confiança, emergente de uma conduta de alguém que possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura; b) um investimento de confiança e a irreversibilidade desse investimento; c) a boa-fé da contraparte que confiou.
Na base deste instituto está a confiança legitimada e tutelada pelo direito.
De acordo com o Professor citado, “o significado profundo do princípio da boa fé (do fides servare) nas relações entre os homens” determina que “a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem”, concluindo que “poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens. Mais ainda: esse poder confiar é logo condição básica da própria possibilidade da comunicação dirigida ao entendimento, ao consenso e à cooperação (logo, da paz jurídica).”
Como enfatiza Baptista Machado[6], o ponto de partida do venire é “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico.”
Revela-se fundamental que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que com base nessa situação de confiança a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe surgirão danos irreversíveis.
Para o Professor Menezes Cordeiro[7], o princípio da confiança surge como uma mediação entre a boa fé e o caso concreto, exigindo que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas.
Considera o mesmo Professor, que “No campo ético, cada um deve ser coerente, não mudando arbitrariamente de condutas, com isso prejudicando o seu semelhante. Juridicamente, a tutela da confiança acaba por desaguar no grande oceano do princípio da igualdade e da necessidade de harmonia”.
Lapidarmente, o Supremo Tribunal de Justiça faz a síntese da noção do instituto em apreço, no acórdão de 9.07.1998[8], nestes termos: «Há “venire contra factum proprium” quando alguém exerce uma posição jurídica em contradição com o comportamento pelo mesmo assumido anteriormente. A proibição do “venire contra factum proprium” reconduz-se à doutrina da confiança, pressupondo, como elemento subjectivo, que o confiante adira realmente ao facto gerador de confiança
A factualidade provada nos autos constitui caso paradigmático do instituto do venire contra factum proprium tal como ficou definido.
Com efeito e recapitulando, os réus (ora apelantes), assumiram na transacção judicial celebrada com os autores, o compromisso de autorizar a realização de obras no arrendado, indispensáveis ao regular funcionamento do estabelecimento comercial ali sedeado, mais tarde recusaram conceder autorização para a realização dessas obras, o que justificou o indeferimento camarário do pedido de licenciamento, finalmente vêm peticionar a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na realização de obras sem autorização nem licenciamento.
Estão reunidos todos os pressupostos da litigância de má fé, e bem andou o tribunal de 1.ª instância, ao condenar os réus (apelantes) em multa e indemnização que se revela, adequadas e proporcionais à gravidade da conduta processual dos réus.
Improcede o recurso também nesta parte.

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso e, em consequência, em manter na íntegra a sentença recorrida.
Custas do recurso pelo Apelante.
                                                         *

Carlos Querido ( Relator )
Virgílio Mateus
Carvalho Martins


[1] Basta a leitura dos termos do acordo homologado, como em cima se referiu.

[2] Veja-se o ponto 16 do acordo: “16- Os requeridos comprometem-se a assinar e a requerer, junto de qualquer entidade competente, tudo o que necessário for à realização efectiva das referidas obras, dando disso conhecimento ao requerente, no prazo de cinco dias
[3] Veja-se a carta junta aos autos a fls. 407, remetida pelo apelante à Exma Senhora Presidente da Câmara, onde declara peremptoriamente um facto que vem negar no recurso, contra os factos e a sua evidência: “nunca concedi autorização, na qualidade de senhorio, ou qualquer outra, ao meu inquilino J (…), para levar a cabo quaisquer obras”.
[4] Veja-se o ofício junto aos autos a fls. 408.
[5] Tutela da Confiança e “Venire contra Factum Proprium” in João Baptista Machado, Obra Dispersa, Volume I, Scientia Iuridica, Braga 1991, páginas 415 a 419. Também em Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 117º, página 232.
[6] Ob. cit. - Obra Dispersa, Volume I, Scientia Iuridica, Braga 1991, páginas 415 e seguintes
[7] Revista da O.A., Ano 2005 - Vol. II - Set. 2005.

[8] Proferido no Processo n.º 97A928, acessível em http://www.dgsi.pt