Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
48/23.7GTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: PROCESSO SUMÁRIO
NOTIFICAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
NULIDADE INSANÁVEL
Data do Acordão: 01/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE PENACOVA)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA. ANULADO O JULGAMENTO
Legislação Nacional: ARTS. 385º, N.º 2, 386º, N.º 1, 332º, N.º 1, 382º, N.º 6, 61º, N.º 1, AL. A), 119º, AL. C) E 122º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
Sumário: A falta de notificação do arguido para a audiência de julgamento, bem como para a continuação da mesma e leitura da sentença, integra a nulidade prevista no art. 119º, al. c), do Código de Processo Penal, tornando inválidos os referidos atos e implicando a repetição destes.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

  


I.

Relatório


        

No processo sumário n.º 48/23.7GTCBR, foi a 4.7.2023 proferida a seguinte sentença (transcrição da parte decisória):

a) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, conjugado com o artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, na pena de 6 (seis) meses de prisão;---

b) Substituir a pena de 6 (seis) meses de prisão referida em a) pela pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros);---

c) Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, de qualquer categoria, na via pública, pelo período de 10 (dez) meses, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea c), do Código Pena


***



Recurso do arguido (conclusões que se transcrevem integralmente):

(…)

8. Apesar de, no caso dos autos, existirem circunstâncias agravantes, que foram tidas em conta pela Exma. Juiz de Direito.

9. Porém, em favor do arguido intervêm as seguintes circunstâncias:

- Não foi notificado para comparecer na A. e J.;

- O arguido é um cidadão inserido, profissional, familiar e socialmente;

- Necessita do veículo para exercer a sua atividade profissional.

- O arguido é um cidadão inserido, profissional, familiar e socialmente;

- Face aos critérios apontados pelos art. 40.º e 71.º, do CP, concluímos que as circunstâncias atenuantes se sobrepõem às circunstâncias agravantes.

(…) 15. Pelo que se não se pode considerar como proporcional a pena aplicada e a injunção aplicada.

NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão exposta.


*


Respondeu o Ministério Público, pugnando pela improcedência do recurso interposto, rematando com as seguintes conclusões.

(…)
8 – Considerando o já moderado grau de ilicitude e de perigosidade com que o arguido atuou, a ausência de interiorização do desvalor da sua conduta, o seu pretérito criminal, a intensidade do seu dolo, as fortes exigências de prevenção geral e especial e a variação da moldura abstrata, consideramos que as medidas das penas fixadas na sentença são adequadas para fazer face às exigências de prevenção que aqui se fazem sentir, mostrando-se ajustadas às circunstâncias do caso em apreço.

*

No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador-geral Adjunto pronunciou-se igualmente pela improcedência do recurso.

***

II.

Questões a decidir no recurso


O objeto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995) ou de qualquer nulidade de conhecimento oficioso.

São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, pelo que se ficam aquém, a parte da motivação que não consta das conclusões não é considerada, e se forem além também não são consideradas, porque a motivação das mesmas é inexistente ([1]).

Assim, as questões a decidir são as seguintes:

a)    Notificação da audiência de julgamento; e

b)    Medida concreta das penas aplicadas.


*



III.

Fundamentação

A) Sentença recorrida (transcrição da parte relevante para a apreciação do recurso

2.1. Factos provados:---

1. No dia 24.06.2023, cerca das 04,00 horas, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-PT, no IC ..., km 0;---

2. Naquelas circunstâncias, o arguido foi fiscalizado por uma patrulha do Destacamento de Trânsito da Guarda Nacional Republicana de ... e foi solicitado ao arguido que se submetesse a exame para a determinação da taxa de alcoolemia, o que recusou;---

3. Mesmo depois de ser advertido de que incorria na prática do crime de desobediência se mantivesse a recusa, o arguido manteve a decisão de não efetuar o teste para a determinação da taxa de alcoolemia, através do método do ar expirado;---

4. O arguido sabia que a ordem para se submeter à realização do teste para determinação da taxa de alcoolemia era legítima, que emanava da autoridade competente e que lhe foi transmitida pessoalmente, pelos militares devidamente uniformizados;---

5. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo ser proibida por lei a sua conduta.---

(…)


*

                        B) Notificação para a audiência de julgamento:

            No recurso interposto, alega o recorrente não ter sido notificado para a audiência de julgamento.

            Compulsados os autos, verifica-se que o arguido foi detido no dia 24.6.2023, às 4 horas, e libertado às 4,30 hrs. da mesma madrugada, tendo sido notificado para comparecer em tribunal em 26.6.2023, pelas 10:00, nos termos do n.º 2 do art. 385º do Código de Processo Penal.

O arguido foi sujeito a TIR, não constando do mesmo contacto telefónico.

Com data de 26.6.2023 foi proferida acusação pelo Ministério Público, pelas 9:07 hrs.

No mesmo dia foi proferido despacho judicial que recebeu a acusação, nomeou defensor oficioso ao arguido e designou a audiência de julgamento para o mesmo dia, às 14 horas.

Encontra-se elaborado termo pela secretaria judicial no mesmo dia com o seguinte teor:

TERMO DE NOTIFICAÇÃO VIA TELEFONE

Consigno que não foi possivel notificar o arguido via telefónica já que a chamada quer para o numero ...46/...76 deu sempre telemovel indisponivel, sendo certo que o arguido não compareceu neste tribunal há hora que havia sido notificado pelos Srs. Agentes da GNR.

O arguido não se apresentou à hora designada para julgamento, tendo o mesmo sido realizado na sua ausência. A leitura da sentença foi marcada para o dia 4.7.2023, não tendo o arguido sido notificado ou contactado para a data da continuação da audiência de julgamento.

Apreciemos.

O art. 386º, n.º 1, do Código de Processo Penal estabelece que “o julgamento em processo sumário regula-se pelas disposições deste Código relativas ao julgamento em processo comum, com as modificações constantes deste título”. O art. 332º, n.º 1, do mesmo Código estabelece a regra da obrigatoriedade da presença do arguido em julgamento, sendo apenas admitido excecionalmente o julgamento na ausência do arguido e nos casos e circunstâncias expressamente previstas na lei.

Dispõe o n.º 2 do art. 385º do Código de Processo Penal, para cujos termos o arguido foi notificado pela autoridade policial:

            “2- No caso de libertação nos termos do número anterior, o órgão de polícia criminal sujeita o arguido a termo de identidade e residência e notifica-o para comparecer perante o Ministério Público, no dia e hora que forem designados, para ser submetido:

a) A audiência de julgamento em processo sumário, com a advertência de que esta se realizará, mesmo que não compareça, sendo representado por defensor; ou

b) A primeiro interrogatório judicial e eventual aplicação de medida de coação ou de garantia patrimonial.

Da notificação efetuada não consta para que efeitos o arguido deveria comparecer em tribunal, se para realização de julgamento em processo sumário ou para primeiro interrogatório judicial.

Na verdade, o art. 382º, n.º 6, do Código de Processo Penal ordena que o arguido, quando notificado para julgamento em processo sumário, seja advertido “de que o julgamento se realizará mesmo que não compareça, sendo representado por defensor para todos os efeitos legais.” – o que constitui exceção à regra da obrigatoriedade da presença do arguido no julgamento.

Não consta, no entanto, que tal notificação tenha sido efetuada.

Ora, a presença em tribunal constitui um direito fundamental do arguido, consagrado na al. a) do n.º 1 do art. 61º do Código de Processo Penal: “O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as exceções da lei, dos direitos de: a) Estar presente aos atos processuais que diretamente lhe disserem respeito”. Esse direito encontra-se reconhecido no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem como inerente ao processo justo e equitativo, nomeadamente pelo reconhecimento da importância da aferição da personalidade do acusado na formação da decisão ([2]).

No caso do processo sumário, dada a sua natureza, a notificação da advertência de que a audiência se realizará na ausência do arguido caso este não compareça é fundamental para salvaguardar o núcleo essencial do direito referido.

A lei pressupõe que o arguido tenha sido regularmente notificado para a realização do julgamento na ausência. No caso, consta da ata de audiência de julgamento o seguinte despacho:

Verificando-se que o arguido foi regularmente notificado para comparecer na presente data, nos termos e com a advertência constantes do artigo 385.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, e não estando o mesmo presente, nem tendo respondido à chamada, vai o mesmo condenado em 2 (duas) UC de multa processual – cfr. artigo 116.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

No mais, atendendo à advertência feita ao arguido em conformidade com a disposição legal acima mencionada, dar-se-á início à presente audiência de julgamento, ficando o arguido representado pela sua Ilustre Defensora.

Foi produzida prova, tiveram lugar alegações orais e designada outra data para a leitura da sentença. Deste despacho foi apenas notificada a ilustre defensora do arguido.

A sentença foi lida na data designada, na presença apenas da defensora.

            Ou seja, a única notificação efetuada ao arguido foi a realizada pela entidade policial a 24.6, para este comparecer em tribunal a 26.6, às 10 horas, não constando da mesma a marcação do julgamento ou a certeza de que o notificando iria ser submetido a audiência de julgamento, que ocorreria caso não comparecesse.

            Do exposto se extrai com clareza que a audiência de julgamento foi realizada na ausência do arguido sem que fosse cumprida uma formalidade essencial para o efeito, a saber, a referida notificação do arguido.

            A falta de notificação do arguido para a audiência designada para as 14 horas do dia 26.6. (bem como para a continuação daquela audiência a 4.7, com a leitura da sentença) integra a nulidade prevista no art. 119º, al. c), do Código de Processo Penal ([3]).

            Acresce não ter o arguido sido notificado da acusação contra si deduzida pelo Ministério Público, onde descreveu os atos constantes do auto de notícia (que assinalou a condução em estado de embriagues, sem preencher os dados concretos, e ainda a recusa de submissão ao teste de álcool) e outros, nomeadamente relativos ao elemento subjetivo, pelo que não teve o arguido oportunidade de relativamente a ela exercer o seu direito de defesa, em violação do princípio do contraditório, circunstância igualmente geradora de nulidade ([4]).

A nulidade insanável decorrente da ausência do arguido é de conhecimento oficioso, podendo ser declarada em qualquer fase do processo, conforme estabelece o art. 119º do Código de Processo Penal, não necessitando de ser expressamente invocada, como não foi no caso.

            A declaração de nulidade torna inválido o ato em que se verifica (audiência de julgamento), bem como os atos que dela dependerem, mormente a sentença recorrida, o que implica a repetição dos atos viciados – art. 122º do Código de Processo Penal.

            Perante o exposto, torna-se inútil o conhecimento das questões recursivas suscitadas.


***


III.

DECISÃO


Nestes termos, declara-se a nulidade da audiência de julgamento e da sentença proferida, ordenando-se a repetição de tais atos com prévio cumprimento da notificação do arguido para o ato, bem como da acusação, que foram omitidos.

Sem tributação.

Coimbra, 26 de janeiro de 2024

Ana Carolina Cardoso (relatora – processei e revi)

João Novais (1º adjunto)

Paulo Guerra (2º adjunto)





[1] v. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, págs. 335-336
[2] - Cf. Irineu Cabral Barreto, “Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada”, pág. 138.
[3] - Cf. Ac. da Relação de Évora de 21.2.2017, proc. 279/16.6GEALR.E1, rel. Martins Simão, e desta Relação de Coimbra de 10.7.2014, proc. 209/13.7GAFIG.C1, rel. Belmiro Andrade, em www.dgsi.pt
[4] Cf. Acórdão da Relação de Évora de 24.5.2016, proc. 50/15.2PTEVR.E1, rel. Alberto Borges, em www.dgsi.pt