Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
694/13.7TBGRD-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: INSOLVÊNCIA
RESOLUÇÃO
ACTO JURÍDICO
FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 06/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 123º Nº 1 DO CIRE
Sumário: I. A declaração resolutiva prevista no n.º 1 do art.º 123.º do CIRE, sendo embora a lei a este respeito omissa, há-de ser fundamentada, ou seja, deve conter a indicação dos concretos fundamentos que legitimam o exercício do direito potestativo de resolução, impondo-se ao Sr. administrador que invoque os concretos factos que, na sua perspectiva, são idóneos a motivar a resolução do acto;

II. Não relevam para indagar do bom fundamento da resolução quaisquer factos ali não invocados, pois só aqueles poderão ser discutidos na acção de impugnação da resolução que pelos interessados na manutenção do acto venha a ser proposta.

Decisão Texto Integral: I. Relatório
A... e mulher, B..., residentes na Rua ..., na Guarda, instauraram acção declarativa, que denominaram de impugnação da resolução de acto em benefício da massa insolvente, contra a Massa Insolvente de C... e D..., representada pela Sr.ª Administradora de Insolvência Dr.ª E..., com domicílio profissional na Rua ..., Moita, pedindo a final:

i. seja reconhecido que, em face do disposto nos artigos 120.º, n.º 1 e 121.º. n.º 1 do CIRE estava precludido o direito da AI declarar a resolução do contrato de arrendamento celebrado em 1 de Janeiro de 2005, por ter decorrido lapso de tempo superior àquele que as normas legais prevêem para o efeito;

ii. seja declarada nula e de nenhum efeito a declaração de resolução do aludido contrato de arrendamento, mantendo-se intocado o contrato e a qualidade de arrendatários dos AA, com todos os direitos e deveres inerente;

iii. quando assim se não entenda, sempre deverá a impugnação ser julgada procedente por provada, revogando-se o acto impugnado.

Em fundamento alegaram, em síntese, terem sido notificados pela Sr.ª Administradora da Insolvência da resolução do contrato de arrendamento que haviam celebrado com os RR no ano de 2005, tendo por objecto a cedência do gozo do imóvel que identificam, no qual os declarados insolventes intervieram como locadores. Nos termos da carta que lhes foi enviada, e que recepcionaram em 5 de Agosto de 2013, a Sr.ª Administradora invocou o art.º 119.º, n.º 3 do CIRE, sendo certo que em missiva anterior, na qual dera conta da sua intenção de proceder à resolução do contrato, convocara as disposições contidas nos artigos 120.º, n.ºs 1 e 3 e al. b) do art.º 121.º.

Sucede, porém, que, atenta a data da celebração do contrato ajuizado, há muito se achava extinto o direito de proceder à sua resolução, quer se tenha em vista o n.º 1 do art.º 120.º do CIRE, quer a disposição imediata.

Por outro lado, aditam, a declaração resolutiva era omissa quanto à data da prática do acto resolvido, não indicava a data em que foi declarada a insolvência nem continha factos concretizadores da má fé dos demandantes, sendo assim nula e de nenhum efeito, quer estejamos perante uma resolução condicional, quer incondicional.

Cautelarmente, e caso a declaração resolutiva se inscreva na previsão do art.º 120.º, invocaram ser o negócio praticado muito anterior à declaração de insolvência, justificando o montante fixado a título de renda a circunstância dos apelantes terem assumido todas as demais despesas com o imóvel, sendo certo ainda que suportaram todas as despesas com a construção do mesmo. O contrato em causa foi celebrado de boa fé, sem qualquer intuito de prejudicar a massa insolvente ou os seus credores, inexistindo fundamento para que seja resolvido.

    *

Citada a massa insolvente, contestou nos termos da peça constante de fls. 63 a 75 dos autos, nela tendo refutado a invocada nulidade/ineficácia da declaração resolutiva, por terem sido observados todos os requisitos legais, reafirmando que a resolução operou ao abrigo dos art.ºs 120.º e 119.º, n.º 3 do CIRE, tal como consta da missiva enviada aos demandantes e por estes recebida.

Mais alegou que o documento junto pelos demandantes não faz prova da data em que o contrato terá sido alegadamente celebrado, tanto mais que só foi participado fiscalmente em Maio de 2012, dias depois da declaração de insolvência da sociedade F..., Lda., de que eram sócios os locadores C... e D..., qualidade na qual avalizaram a sociedade em diversos créditos que a esta foram concedidos. Deste modo, sabendo-se que a declaração de insolvência importa o vencimento de todas as obrigações, uma vez declarada a insolvência da sociedade estava iminente a insolvência dos seus sócios. Disso tendo perfeita consciência, logo cuidaram os referidos C... e mulher de acautelar o seu património, estratégia em que se inscreve a invocada celebração do contrato de arrendamento aqui em causa, no qual surgem como arrendatários os pais da insolvente D..., sogros do insolvente C.... O negócio em causa é simulado e com ele visaram os autores e os declarados insolventes enganar terceiros e prejudicar a satisfação dos credores, por se tratar de acto que, onerando o imóvel pelo dilatado período de 30 anos, prejudica clara e seriamente a possibilidade de proceder à venda respectiva pelo seu justo e real valor.

Acrescentou que o mesmo imóvel se encontrava onerado desde 2002, sobre ele incidindo hipoteca para garantia de um crédito do BIC sobre os insolventes que se cifra actualmente em € 63 481,76, sendo o valor do imóvel € 81 200,00. Por força do aludido contrato de mútuo com hipoteca os insolventes suportavam uma prestação mensal no montante de € 274,16, recebendo dos AA uma renda no valor de € 20,00, o que indicia a celebração de um contrato danoso, sendo este último valor absolutamente discrepante do praticado no mercado de arrendamento para a zona e que se cifra em €450,00 mensais. Os factos assim alegados integram o conceito de justa causa de resolução do contrato, pelo que deverá considerar-se válida e eficaz a declaração resolutiva e, em consequência, validamente resolvido em benefício da massa o negócio celebrado.

    *

Responderam os AA, mantendo que a declaração de resolução não continha os elementos indispensáveis para que o seu destinatário tomasse conhecimento dos respectivos fundamentos, insuficiência que não pode ser suprida na contestação, sendo assim nula e de nenhum efeito na exacta medida em que apenas os fundamentos invocados na carta resolutória podem ser discutidos na presente acção de impugnação.

Acrescentaram que não é a data da participação fiscal do contrato que determina a data da celebração, questão que também só agora foi suscitada. Deste modo, e em remate, concluíram que, encontrando-se o ajuizado contrato em vigor há mais de 8 anos, é insusceptível de ser afectado pela declaração de insolvência dos locadores.

Finalmente, não se presumindo a má fé, uma vez que o contrato foi celebrado fora do período de suspeição consagrado na lei, não vale a factualidade agora e pela primeira vez invocada pela massa insolvente para a fundamentar, uma vez que a declaração de resolução era, a este respeito, perfeitamente omissa.

Quanto aos demais factos invocados como fundamento da resolução, impugnaram-nos de forma especificada, concluindo como na petição inicial.

     *

Teve lugar audiência prévia e nela foram as partes prevenidas para a possibilidade de conhecimento do mérito da causa em sede de saneador, tendo-lhes sido permitido discutir de facto e de direito os termos do litígio (cf. acta de fls. 131 a 135).

Foi de seguida proferido saneador sentença que, na procedência da acção, revogou o acto de resolução efectuado pela Sr.ª Administradora de Insolvência e neste processo impugnado.

Inconformada, apelou da decisão a Massa Insolvente e, tendo produzido pertinentes alegações, rematou-as com as seguintes necessárias conclusões:

“1.ª- A sentença recorrida enferma de nulidade, nos termos do disposto nos artigos 615º, nº 1, al. d) do Código do Processo Civil (CPC), uma vez que não conheceu de questões que foram invocadas pela parte.

2.ª- O Tribunal invoca na fundamentação da sentença recorrida que a resolução efectuada pela Sra. Administradora de Insolvência não ataca de qualquer forma a data constante do contrato de arrendamento e que tal não pode ser suprido em sede de contestação.

3.ª- Ora tal fundamento é inverosímil, uma vez que ao enviar a missiva datada de 01/07/2013, a Sra. Administradora de Insolvência, fundamenta a resolução nos termos do artigo 121.º n.º 1 b) do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), que se refere à data do contrato.

4.ª- Ademais, com a contestação não houve qualquer tentativa de corrigir qualquer deficiência, uma vez que, sempre foi pressuposto da Sra. AI que o contrato de arrendamento havia sido celebrado na data da efectiva participação às finanças, razão pela qual foi emitida a primeira carta a resolver o contrato nos termos do CIRE.

5.ª- A questão de ser ou não ser nessa data, parece que só o julgamento poderia resolver a questão, com prova adicional. A junção do contrato com data anterior não parece suficiente para o Tribunal formar a convicção que, de facto, o arrendamento foi celebrado antes da data da sua participação às finanças, não se exclui a hipótese e a necessidade de produzir prova – testemunhal e até documental, para prova de tal factualidade.

6.ª- Apesar do Tribunal considerar que a comunicação ao serviço de finanças não acarreta qualquer consequência ao nível da data de início do contrato, apenas através de prova, documental e testemunhal se poderia determinar a data de início do mesmo, que a ser diversa de 2005, apenas provaria ser um contrato simulado, e desta forma nulo.

7.ª- A colocação de uma outra data e ano no documento, apenas demonstra ainda mais a má fé dos intervenientes, que perante a situação de insolvência da empresa e a sua insolvência singular eminente, tentaram enganar terceiros, onerando os bens com arrendamentos de duração máxima com seus familiares por forma a acautelar o património no seio da família.

8.ª- Considerando que o contrato em referência é um contrato sinalagmático que atribui prestações a ambas as partes, ao senhorio a obrigação de promover o uso da coisa e ao arrendatário a obrigação de pagar uma renda, é justo e claro que o que está aqui em causa é também o valor atribuído ao montante da renda.

9.ª- Tendo em conta o valor do imóvel, as despesas a ele inerentes, a renda praticada e o prejuízo dos insolventes entre o conteúdo das prestações pagas e o direito que conferiram, não se pode considerar que haja uma contrapartida justa das prestações a que cada um se obrigou.

Com tais fundamentos pretende a alteração da decisão de primeira instância, devendo ser considerados procedentes os pedidos da apelante.

Contra alegaram os apelados, sustentando naturalmente a manutenção do decidido, atenta a circunstância do contrato objecto da declaração de resolução ser “já inatacável pela via operada pela Sr.ª administradora de insolvência por se encontrarem largamente ultrapassados os dois anos legalmente previstos como primeiro requisito para a resolução condicional.”

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A Mm.ª Juíza pronunciou-se sobre a arguida nulidade, desatendendo-a.

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Assente que pelas conclusões se define e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões submetidas à apreciação deste Tribunal:

i. indagar se a sentença proferida é nula nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d) do CPC;

ii. indagar se se verifica o fundamento resolutivo invocado pela Sr.ª AI.

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i. da nulidade da sentença

Assaca a apelante à decisão proferida o vício da nulidade por omissão de pronúncia, o qual decorreria, ao que se alcança dos termos pouco precisos da alegação, de ter sido proferida decisão de mérito em momento anterior à discussão da causa, uma vez que remanescia como controvertida a data da celebração do contrato ajuizado, tendo para além do mais sido invocada a simulação do contrato e a má fé dos contraentes.

Em termos que reproduzem o cessante art.º 668.º do CPC, o agora em vigor art.º 615.º sanciona com a nulidade a sentença na qual o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de outras de que não podia tomar conhecimento. Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, ou seja, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir invocadas e todas as excepções deduzidas, e ainda das que oficiosamente lhe cabe conhecer (art.º 608.º, n.º 2), é nula a sentença quando deixe de se pronunciar sobre alguma delas.

No caso em apreço, submetida à apreciação do Tribunal “a quo” estava a validade do fundamento de resolução invocado e sobre ela se pronunciou a Mm.ª juíza em termos exaustivos. Se o processo não continha ainda todos os elementos de facto em ordem a proferir decisão de mérito, estamos antes perante um erro de julgamento, a determinar a anulação da decisão e a baixa do processo em ordem a determinar o seu prosseguimento, mas não contende com a validade formal da decisão.

Improcede, pelo exposto, a arguição da nulidade.

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II Fundamentação

De facto

Da 1.ª instância chega-nos a seguinte factualidade, que não foi objecto de impugnação:

1. Por sentença datada de 12.06.2013 foi declarada a insolvência de D... e C....

2. Por carta registada com Aviso de Recepção remetida aos Autores e por estes recepcionada a 15.08.2013, a Sra. Administradora da insolvência de D... e C..., Dr.ª. E..., declarou resolvido e ineficaz o contrato de arrendamento celebrado entre os insolventes e os Autores, concedendo a estes o prazo de 30 dias para proceder à entrega do imóvel devoluto de pessoas e bens.

3. Para o efeito a Sra. Administradora fez consignar do aludido documento o seguinte:

“Considerando que:

1. os insolventes deram de arrendamento a habitação sita na Rua ..., na Guarda, a seguir melhor identificada:

(…)

O referido imóvel à data do início do arrendamento já se encontrava onerado com hipoteca a favor do Banco Internacional de Crédito, actualmente incorporado no Banco Espírito Santos, SA, por força de operação de fusão, inscrita no registo comercial pela Ap. 39/041215, igualmente credor com crédito reclamado e reconhecido pela Administradora de Insolvência;

O imóvel representava uma garantia patrimonial dos credores, cujos créditos, na generalidade, já existiam à data do início do arrendamento;

O contrato de mútuo com hipoteca foi celebrado em 23/05/2002 e ficou estabelecido que qualquer oneração do mesmo apenas poderia ser realizada com prévia autorização escrita da Instituição Bancária, o que não aconteceu.

Ao celebrar o citado contrato de arrendamento, os outorgantes não ignoravam que do mesmo resultava uma significativa depreciação do valor do imóvel, no caso do mesmo vir, no futuro, a ser vendido em sede de processo de insolvência;

Considerando ainda o valor irrisório do montante da renda inscrito no contrato num total de 20,00€ mensais e sendo as partes especialmente relacionadas com os insolventes, nos termos do art. 49º do CIRE;

Atenta a situação descrita, tendo em conta a natureza e conteúdo das prestações contrastais, verificam-se assim os requisitos da justa causa de resolução do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 119.º, n.º 3 do CIRE”

4. Já anteriormente ao referido em 3. a Sra. Administradora de Insolvência houvera manifestado intenção de proceder à resolução do contrato de arrendamento, por carta datada de 1 de Julho de 2013 e recepcionada pelos Autores em 5 de Julho de 2013.

5. O contrato de arrendamento resolvido pela Sra. Administradora de Insolvência está datado de 01.01.2005.

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De Direito

A resolução de actos em benefício da massa, cujo regime se encontra previsto nos art.ºs 120.º a 126.º do CIRE[1] é o mecanismo por via do qual a lei permite à massa insolvente recuperar as atribuições correspondentes às vantagens concedidas a um credor, tendo como finalidade a reintegração do património da massa, em ordem a satisfazer o interesse dos credores. A consagração legal de tal mecanismo encontra assento na ideia básica, que enforma todo o processo insolvencial, de que, visando a insolvência a satisfação igualitária dos direitos dos credores (cf. art.º 1.º), não deverá ser admitida a concessão de vantagens a nenhum credor a partir do momento em que seja conhecida a situação de insolvência do devedor. Deste modo, e cumpridos que sejam determinados requisitos de natureza objectiva e subjectiva, a lei prevê a possibilidade do administrador de insolvência destruir a eficácia de toda uma panóplia de actos.

De realçar que, no âmbito deste instituto, os actos resolúveis não são tidos por inválidos, enquanto afectados de vícios, quer de natureza formal, quer de natureza substancial; “do que se trata aqui é de, em razão dos interesses supremos da generalidade dos credores da insolvência, sacrificar outros interesses havidos como menores (os de que contratam com o devedor insolvente e, eventualmente, os de que negoceiam com aqueles, portanto todos os terceiros em relação ao devedor insolvente) em função do empobrecimento patrimonial daqueles credores, por via da prática de actos num dado período temporal, designado como suspeito, que precede a situação de insolvência”, sendo sua “finalidade a reintegração no património do devedor (ou melhor da massa insolvente) para efeito de satisfazer os direitos do credor.”[2].

Nos termos do art.º 120.º podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos a ela prejudiciais quando praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência (cf. o n.º 1). Consoante dispõe o n.º 2 do preceito, consideram-se prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência, estando assim em causa, “para além dos actos que implicam diminuição da massa insolvente (…) todos os que tornem a satisfação do interesse dos credores mais difícil ou mais demorada”[3]. No entanto, não deixou a lei de estabelecer uma presunção iuris et de iure de prejudicialidade em relação aos actos taxativamente elencados no art.º 121.º, assim presumindo, de forma inilidível, que são prejudiciais à massa: a) Partilha celebrada menos de um ano antes da data do início do processo de insolvência em que o quinhão do insolvente haja sido essencialmente preenchido com bens de fácil sonegação, cabendo aos co-interessados a generalidade dos imóveis e dos valores nominativos; b) Actos celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, incluindo o repúdio de herança ou legado, com excepção dos donativos conformes aos usos sociais; c) Constituição pelo devedor de garantias reais relativas a obrigações preexistentes ou de outras que as substituam, nos seis meses anteriores à data de início do processo de insolvência; d) Fiança, subfiança, aval e mandatos de crédito, em que o insolvente haja outorgado no período referido na alínea anterior e que não respeitem a operações negociais com real interesse para ele; e) Constituição pelo devedor de garantias reais em simultâneo com a criação das obrigações garantidas, dentro dos 60 dias anteriores à data do início do processo de insolvência; f) Pagamento ou outros actos de extinção de obrigações cujo vencimento fosse posterior à data do início do processo de insolvência, ocorridos nos seis meses anteriores à data do início do processo de insolvência, ou depois desta mas anteriormente ao vencimento; g) Pagamento ou outra forma de extinção de obrigações efectuados dentro dos seis meses anteriores à data do início do processo de insolvência em termos não usuais no comércio jurídico e que o credor não pudesse exigir; h) Actos a título oneroso realizados pelo insolvente dentro do ano anterior à data do início do processo de insolvência em que as obrigações por ele assumidas excedam manifestamente as da contraparte; i) Reembolso de suprimentos, quando tenha lugar dentro do mesmo período referido na alínea anterior.

Demonstrada a prejudicialidade do acto, a sua resolubilidade depende, ainda assim, da má fé do terceiro, a qual, no entanto, é presumida -presunção juris tantum- quando nele tenham participado ou dele tenham tirado proveito “pessoas especialmente relacionadas com o insolvente”, aqui relevando todas as situações previstas no art.º 49.º, dada “a manifesta proximidade entre a suspeição do legislador que está aqui em causa e a que se identifica na qualificação dos créditos subordinados”[4].

A par da resolução dos actos prevista neste art.º 120.º, subordinada aos mencionados pressupostos, prevê o preceito imediato uma outra modalidade, dita incondicional. Nos termos da solução legal aqui consagrada, atendendo à natureza do acto e tempo em que foi praticado, não depende a sua resolução de qualquer requisito adicional, ou seja, presumida em termos inilidíveis a sua prejudicialidade (cf. n.º 3 do artigo precedente), dispensa a lei a demonstração do requisito da má fé.

Quanto à forma da resolução, estabelece o n.º 1 do art.º 123.º, de forma harmónica com a solução consagrada no art.º 436.º, n.º 1 do CC, que esta deve ter lugar mediante o envio de carta registada com aviso de recepção no prazo de seis meses após o conhecimento, pelo administrador, do negócio, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração da insolvência.

No que concerne aos requisitos da declaração, sendo embora a lei omissa a este respeito, é consensual o entendimento de que deve ser fundamentada[5], isto é, deve conter a indicação dos concretos fundamentos que legitimam o exercício do direito potestativo de resolução, requisito não satisfeito pela mera indicação das normas legais correspondentes ou pelo uso de expressões jurídicas ou juízos conclusivos, impondo-se ao Sr. administrador que invoque os concretos factos que, na sua perspectiva, são idóneos a motivar a resolução do acto. “E embora possa estar dispensado de alegar os factos que integram um determinado requisito da resolução, em virtude de a lei presumir a sua existência, terá sempre que alegar, pelo menos, os factos concretos que servem de base a tal presunção”[6]. E assim terá de ser porque da precisa indicação dos fundamentos de resolução depende o cabal exercício, pelo terceiro prejudicado, do direito à impugnação que lhe é facultado pelo art.º 125.º, uma vez que são esses precisos factos que irão “ser apreciados e discutidos na acção que se interponha com vista à impugnação da resolução, quer no sentido de confirmar a sua existência (mediante a produção de prova que seja necessária), quer no sentido de decidir se os mesmos se integram ou não na previsão legal e se, como tal, têm a aptidão necessária para determinar a resolução do acto”[7].

Com efeito, destinando-se a acção de impugnação da resolução a atacar os fundamentos que, para tanto, foram invocados pelo administrador e comunicados ao impugnante, não pode este ser posteriormente surpreendido com novos factos e novos fundamentos, relevando apenas e só aqueles que, enquanto fundamento da resolução, foram invocados na carta de resolução, e não quaisquer outros[8][9].

Finalmente, atendendo a que a acção de impugnação da resolução do acto em benefício da massa insolvente na qual não tenham sido invocados factos extintivos do direito de resolução se configura como uma acção de simples apreciação negativa, conforme vem sendo comummente entendido, a prova dos fundamentos resolutivos recai sobre a massa insolvente nos termos do n.º 1 do art.º 343.º do Código Civil[10].

Feitos estes genéricos considerandos, estamos em condições de centrar a nossa atenção no caso submetido à apreciação deste Tribunal. E como primeira relevante nota, decorrência do que se deixou referido, a afirmação de que ao conteúdo da carta contendo a declaração resolutiva emitida pela Sr.ª AI teremos de nos ater, tendo em vista sindicar a validade do(s) fundamento(s) invocados, irrelevando pois, quer o teor de uma anterior missiva, dando conta da intenção de vir a exercer o direito potestativo de resolução do contrato, quer os factos adicionais alegados na contestação e de alguma forma repescados nas alegações de recurso, tendo em vista demonstrar uma (só agora) alegada simulação do contrato.

E que invocou a Sr.ª administradora na carta relevante como fundamentos da resolução do contrato de arrendamento?

- a existência de ónus anterior, no caso hipoteca a favor do BIC, actualmente incorporado no Banco Espírito Santos, SA, por força de operação de fusão;

- a anterioridade da generalidade dos créditos sobre os insolventes;

- a violação de cláusula constante do contrato de mútuo celebrado com o credor hipotecário, nos termos da qual a constituição de um qualquer ónus sobre o imóvel estava dependente da prévia autorização escrita da entidade mutuante;

- a prejudicialidade do acto, quer atendendo ao valor irrisório da renda contratualmente fixada, quer porque a existência do arrendamento é susceptível de depreciar de forma significativa o valor de venda do imóvel;

- a existência de uma especial relação entre os arrendatários (terceiros intervenientes o acto) e os insolventes.

Com tais fundamentos, e “tendo em conta a natureza e conteúdo das prestações contrastais”, deu a Sr.ª AI como verificados “os requisitos da justa causa de resolução do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 119.º, n.º 3 do CIRE”, dispositivo legal que expressamente convocou.

Pois bem, irrelevando claramente a existência prévia de ónus sobre o imóvel, a anterioridade da generalidade dos créditos ou a inobservância da referida cláusula contratual,[11] a invocação da prejudicialidade do acto e do facto base da presunção da má fé (se bem que a Sr.ª administradora não tenha invocado, em concreto, a relação familiar existente entre os declarados insolventes e os intervenientes no contrato, não podiam as partes obviamente desconhecer a que se reportava, visto serem os terceiros e aqui impugnantes pais e sogros daqueles), remeter-nos-ia para uma resolução condicional do acto, cujo regime é definido pelo art.º 120.º (por contraposição à dita incondicional de que se ocupa o já mencionado art.º 121.º do CIRE). No entanto, a verdade é que o contrato se encontra datado de 1 de Janeiro de 2005, encontrando-se portanto fora do âmbito temporal em que é possível declarar resolvidos em benefício da massa actos praticados anteriormente.

Pretende agora a apelante que o contrato foi simulado, o que ocorreu em altura em que era iminente a declaração de insolvência dos identificados filha e genro (os declarados insolventes C... e D...) dos ora impugnantes, o que decorre do facto de ter sido fiscalmente participado apenas no dia 1 de Março de 2012, pressuposto em que claramente teria assentado a declaração de resolução emitida pela Sr.ª Administradora.

A propósito da argumentação agora expendida, afigura-se não poder a mesma proceder. Com efeito, independentemente da razão que possa ou não assistir à apelante quando aqui defende a simulação do contrato, em lado algum resulta da declaração de resolução que a data que dele consta tivesse sido posta em causa pela Sr.ª AI.

Por outro lado, a despeito de, como se referiu, ter sido invocada a prejudicialidade do acto e a má fé do terceiro -ou o facto base da respectiva presunção, ainda que em termos não tão concretizados como deveria, conforme se assinalou-  a verdade é que a resolução não foi efectuada a coberto do art.º 120.º, o que permitiria, eventualmente, defender a tese de que estava pressuposta a verificação do limite temporal dos 2 anos exigido pelo n.º 1. Mas não foi isso que se passou. Com efeito, e quiçá visando contornar a data aposta no contrato como sendo a da sua celebração, alicerçou a Sr.ª AI a declaração resolutiva na previsão do n.º 3 do art.º 119.º do CIRE, dispositivo que expressamente convocou mas que, desde já se adianta, não tem aqui aplicação.

Epigrafado de normas imperativas, dispõe o art.º 193.º, que:

1 - É nula qualquer convenção das partes que exclua ou limite a aplicação das normas anteriores do presente capítulo.

2 - É em particular nula a cláusula que atribua à situação de insolvência de uma das partes o valor de uma condição resolutiva do negócio ou confira nesse caso à parte contrária um direito de indemnização, de resolução ou de denúncia em termos diversos dos previstos neste capítulo.

3 - O disposto nos números anteriores não obsta a que a situação de insolvência possa configurar justa causa de resolução ou de denúncia em atenção à natureza e conteúdo das prestações contratuais».

Pese embora a redacção pouco clara do preceito, está em causa a invalidade, por regra, das estipulações contratuais que prevejam, para o caso de insolvência de qualquer das partes, soluções diferentes das imperativamente estabelecidas no código. Especialmente visadas são as cláusulas que atribuam à situação de insolvência de uma das partes o valor de uma condição resolutiva do negócio ou confiram nesse caso à parte contrária um direito de indemnização, de resolução ou de denúncia, em termos diferentes dos previstos nas anteriores disposições. Interpretando o n.º 3 da disposição em referência de forma concertada com os precedentes, como nos parece que terá de ser interpretado, consagra a lei uma válvula de escape ao regime geral de invalidade de tais cláusulas, prevendo e permitindo a subsistência como válida da estipulação que configure a insolvência como justa causa de resolução ou denúncia, tendo em atenção “a natureza e conteúdo das prestações contratuais”[12].

Sendo este, como entendemos que é, o sentido e alcance da disposição legal em referência, fixado em obediência aos ditames do art.º 9.º do Código Civil, logo se vê que a faculdade aqui prevista, dependendo da existência de uma prévia estipulação contratual nesse sentido, não se compreende nos poderes do Sr. AI, conferidos pelos art.ºs 120.º e 121.º do CIRE, de exercício potestativo mas confinado aos casos e nos termos aqui previstos.

Em conclusão, tendo a Sr.ª AI identificado na carta enviada aos impugnantes o contrato de arrendamento objecto da declaração resolutiva sem pôr de modo nenhum em causa a data dele constante como sendo a da sua celebração, neste mesmo pressuposto teria de se indagar do bem ou mal fundado da resolução operada. Neste contexto, e face ao que vem de se expor, dada a irrelevância da alegação de que o mesmo contrato havia sido simulado (o que, segundo a apelante, decorreria desde logo da discrepância entre aquela data e a da respectiva participação fiscal), não tinha o Tribunal que proceder a actos de instrução para apuramento de um facto que, só na contestação tendo sido suscitado, não poderia ser considerado. E não se diga que, sendo o acto simulado e prejudicial aos credores, ficarão estes desprovidos de tutela face à procedência da presente impugnação, pois sempre poderão lançar mão dos meios de conservação da garantia patrimonial concedidos pelos art.ºs 605.º e seguintes do Código Civil.

Em síntese, permitindo o estado do processo, sem necessidade de mais provas, conhecer do pedido, como prevê e permite a al. b) do n.º 1, nºs 2 e 3 do art.º 595.º, não havia que determinar o seu prosseguimento, deste modo improcedendo “in totum” as conclusões do recurso.                              

                                                    *

III. Decisão

Em face a todo o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão apelada.

Custas a cargo da massa insolvente.

                                                    *

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Helder Almeida

[1] Diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que doravante vierem a ser citadas sem menção da sua origem.

[2] Gravato Morais, in “Resolução em Benefício da Massa Insolvente”, Almedina, 2008, pág. 47.

[3] Assim, Carvalho Fernandes, João Labareda, CIRE Anotado, 2.ª edição, 2013.

[4] Cire anotado, págs.526-527.

[5] Cf. Cire anotado, pág. 537, com indicação de diversa jurisprudência.

[6] Do acórdão desta Relação de 18/12/2013, proferido no processo n.º 1943/09.1 T2 AVR-L.C1, acessível em www.dgsi.pt, no qual a ora relatora interveio como adjunta.

[7] Idem.

[8] Neste sentido, ac. STJ de17-09-2009 (processo n.º 307/09.1YFLSB), acessível no mesmo site, de que se destaca o seguinte trecho:O impugnante (…) tem o direito de saber por que factos ou razões concretos se tinha de considerar resolvido o negócio por ele celebrado, pois só assim se garantiria o efectivo contraditório.

A acção de impugnação é pela sua natureza uma acção de contra-ataque, e, por isso tem o impugnante de conhecer previamente os concretos factos ou fundamentos que contra ele são desferidos. Só assim está ele em condições de poder demonstrar a insubsistência do acto resolutivo. O impugnante não vai atacar factos ou fundamentos que não lhe foram revelados na carta de resolução. Não pode ser surpreendido, por outro lado, com novos factos ou novas razões quando a acção de impugnação se encontra já em andamento. Se a Ré alegou a resolução com base em factos conducentes à simulação absoluta é apenas sobre essa matéria que o impugnante tem de defender-se.

O Administrador da Massa insolvente não pode pois, na contestação à impugnação, apresentar uma nova versão, contrária à primeira, ainda que subsidiariamente ou em alternativa. A invocação posterior de outras versões de factos ou vícios não invocados antes, maxime quando contrários aos indicados na resolução, ficam fora da alçada do campo que o Administrador primeiramente definiu e que não podem conviver com a primeira versão dos factos por ele apresentados”.

[9] Tal entendimento faz recair sobre o AI um ónus cujo cumprimento demandará, por vezes, admite-se, o domínio e manejo de alguns conceitos jurídicos de que não estará eventualmente munido. Nesta eventualidade, afigura-se nada obstar a que pelo Sr. AI seja reclamada assistência técnico-jurídica em ordem a desempenhar cabalmente os deveres que por lei lhe são cometidos, sem que daqui resulte beliscada a pessoalidade do exercício do cargo consagrada no art.º 55.º (cf., a propósito da contratação dos serviços de Il. Advogado para fins de patrocínio judiciário, o aresto do TRG de 19/3/2013, proferido no processo1464/0.0 TBGMR-H.G1, disponível ainda em www.dgsi.pt).

[10] Constitui jurisprudência constante, merecedora do aplauso da doutrina (cf. arestos desta Relação de Coimbra de 24/5/2011, proferido no âmbito do processo n.º 1791/08.6 TBLRA.K.C1 e de 21/5/2013, processo n.º 928/11.2 TBFIG.C3, acessíveis em www.dgsi.pt e na doutrina Carvalho Fernandes/João Labareda, ob. cit., nota 7, págs. 539/540.

[11] Atenta desde logo a sanção prevista para o seu incumprimento -resolução do contrato de mútuo, o que implicaria o vencimento de todas as prestações em falta- sem repercussão portanto na subsistência do dito ónus, tal como justamente se assinala na decisão recorrida.

[12] Aparentemente neste sentido, Carvalho Fernandes, João Labareda, ob. cit., págs. 522-523.