Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
45191/10.8YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
RECURSO
MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 01/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ALÍN. B) DO N.º 1 DO CIT. ART.º 668.º DO CPC
Sumário: I – Não incorre em nulidade por falta de fundamentação de facto a sentença que, em acção especial para cumprimento de obrigação pecuniária emergente de contrato, remete parte dos factos provados para a petição inicial;

II- Só há nulidade de sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão se a construção da sentença for viciosa, no sentido de os fundamentos conduzirem logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto;

III – Porque os depoimentos testemunhais, como os documentos particulares juntos, são de livre apreciação, por falta de gravação daqueles, não pode sindicar-se a matéria de facto dada como provada pela 1.ª instância, a partir de tais meios de prova.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            “A..., Lda.” apresentou no Banco Nacional de Injunções requerimento de injunção, requerendo a notificação da requerida “B..., Lda. para esta lhe efectuar o pagamento da quantia global de € 7.865,84, correspondente a € 7.355,26 de capital e € 409,58 de juros de mora, € 50,00 de “outras” quantias e € 51,00 de taxa de justiça, com fundamento em que, em 3.4.09, vendeu e forneceu à requerida, no âmbito da actividade comercial de ambas as empresas, quantidade, qualidade e espécie de peles constantes da factura n.º 15335/1 emitida em 3.4.09, naquele valor de € 7.355,26.

            A requerida deduziu oposição, excepcionando a ineptidão do requerimento inicial, por ininteligibilidade da causa de pedir e impugnando qualquer fornecimento.

            Distribuído o processo ao TJ da comarca de Alcanena para seguir os termos de acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, foi proferido despacho a apreciar (oficiosamente) a excepção de incompetência territorial, a favor desse tribunal e a nulidade do processo pela alegada ineptidão daquele requerimento, no sentido da improcedência.

            Realizada a audiência de discussão e julgamento, sem gravação dos depoimentos orais, veio a ser proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a Ré no pagamento à A. da quantia de € 7.355,26, acrescida de juros de mora comerciais desde a citação e da quantia de € 51,00, do demais a absolvendo.

            Inconformada, recorreu a Ré, apresentando alegações rematadas com as seguintes úteis conclusões:

            a) – Porque a sentença não especificou os fundamentos de facto que fundamentaram a decisão está a mesma eivada de nulidade (n.º 1, alín. b), do CPC);

            b) – Não foram devidamente valorados os documentos juntos aos autos (factura n.º 15335/1 e guia de transporte 00279-B de 1.4.09), em nenhum constando ter havido encomenda ou fornecimento entre a A. e a Ré;

            c) – As relações comerciais entre a intermediária “C...” e a Ré terminaram de forma litigiosa em Fevereiro de 2009, pelo que os factos provados estão em contradição com a decisão, incorrendo esta, também e por isso, em nulidade (n.º 1, alín. d), do cit. art.º 668.º);

            d) – Foram violados os art.ºs 516.º e 668.º, n.º1, alíns. b) e c), do CPC.

            A Ré não respondeu.

Dispensados os vistos, cumpre apreciar, sendo questões a decidir:

a) – As nulidades de sentença, de falta de fundamentação de facto e de oposição entre os fundamentos e a decisão;

b) – A modificabilidade da decisão de facto, por não devidamente valorados os documentos juntos aos autos.


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            2. Fundamentação
a) De facto
Foi a seguinte e neste modo a factualidade dada como provada pela 1.ª instância:

Todos os factos constantes do requerimento inicial com exclusão dos que contenham matéria de direito ou conclusiva;

Da contestação, a Ré mantinha relações comerciais com a empresa C..., Lda.;

A Ré participou criminalmente do sócio gerente da C..., Lda. e aqui testemunha da A. (D...) tendo corrido processo-crime no M.º P.º do Tribunal de Felgueiras, que foi arquivado.


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b) – De direito

            Porque são as conclusões das alegações que em princípio delimitam o “thema decidendum” do recurso (art.ºs 685.º-A, n.º 1 e 684.º, n.º 3, do CPC na versão aplicável da reforma de 2007), comecemos pela invocada nulidade de sentença por falta de motivação de facto.

            De acordo com a alín. b) do n.º 1 do cit. art.º 668.º é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto (e de direito) que justificam a decisão.

            Quer a doutrina, quer a jurisprudência têm entendido, ao longo dos tempos, que tal nulidade supõe uma omissão total de fundamentação, seja de facto, seja de direito, não se bastando com uma justificação deficiente, sumária ou menos consistente.[1]

            O que ocorre no caso sub judice não é uma omissão absoluta de fundamentação de facto, antes uma remissão parcial no que tange à matéria do requerimento inicial de injunção e a discriminação de dois factos provados da contestação.

            Daí que, à luz daquele entendimento, soçobraria desde logo o vício arguido.

            Embora o valor doutrinal de qualquer sentença se não compadeça com a fundamentação da respectiva matéria de facto por remissão para os articulados (desde logo face ao princípio geral da auto-suficiência dos actos judiciais) cremos, contudo, que o carácter simplificado da presente acção declarativa especial, mormente ao nível da sentença (que o n.º 7 do art.º 4.º do correspondente DL n.º 269/98, de 1.9 manda fundamentar apenas sucintamente) atenua um maior rigor canónico na discriminação dos factos.

            Seja como for, porque fundamentada de facto, ainda que por parcial remissão, o que, sem esforço é perceptível, indefere-se a nulidade arguida.

            Quanto à outra nulidade, da oposição entre os fundamentos e a decisão (alín. c) do n.º 1 do art.º 668.º) reconduz-se a um vício lógico no raciocínio do julgador, em que as premissas de facto e de direito apontam num sentido e a decisão noutro, oposto ou diverso.

            O que aí sucede, no dizer de A. dos Reis[2], é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.

            Fundamento do vício foi a sentença ter dado como provado que “a Ré mantinha relações comerciais com a empresa C..., Lda. (…) que terminaram em Fevereiro de 2009” e a transacção dos produtos da A. à Ré reportou-se a 3 de Abril de 2009, sendo que a A., a par da factura, juntou uma guia de transporte em nome daquela empresa, onde, de resto, se indicou a mercadoria destinada à Ré (fls. 17).

            Ora, daqui não pode concluir-se que, do facto de as relações comerciais da empresa “ C...” com a Ré haverem terminado em Fevereiro de 2009, as relações comerciais da A. com a Ré não tivessem decorrido cerca de 1 mês depois!

            Até porque, de acordo com o depoimento escrito em assentada (fls. 41) da gerente da A., quem efectuou o transporte dos produtos vendidos foi a empresa “E...”, de que a mesma é também gerente, conforme a mencionada guia de transporte, transporte esse de que não teve a certeza se efectuado pelo gerente da “ C...”, se pelos motoristas que indicou.

            Nenhuma oposição, assim, vicia a sentença, igualmente se indeferindo a nulidade arguida.

            Finalmente, quanto à modificabilidade da decisão da matéria de facto, esta só é possível no quadro legal do art.º 712.º do CPC e, no que aqui pode ter aplicação, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art.º 690.º-A, a decisão com base neles proferida (alín. a)), se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas (ali. b)).

            O julgamento da questão de facto assentou declaradamente fosse nos depoimentos das testemunhas oferecidas pelas partes, fosse nos documentos juntos, nomeadamente da guia de transporte da empresa “ E...”.

            Os depoimentos não foram objecto de gravação, pelo que não são aqui sindicáveis.

            São, por outro lado, de livre apreciação, como de livre apreciação são os documentos juntos (art.ºs 396.º e 366.º, do CC).

            Assim sendo, os documentos juntos (seja a factura, seja a guia de transporte) não têm virtualidade, ao nível da sua força probatória, que se situa no mesmo patamar da prova testemunhal, impor decisão diversa daquela que alcançou o tribunal a quo.

            Improcede, assim também, estoutra conclusão recursiva.


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            3. Sumariando (n.º 7 do art.º 713.º do CPC):

            I – Não incorre em nulidade por falta de fundamentação de facto a sentença que, em acção especial para cumprimento de obrigação pecuniária emergente de contrato, remete parte dos factos provados para a petição inicial;

            II- Só há nulidade de sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão se a construção da sentença for viciosa, no sentido de os fundamentos conduzirem logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto;

            III – Porque os depoimentos testemunhais, como os documentos particulares juntos, são de livre apreciação, por falta de gravação daqueles, não pode sindicar-se a matéria de facto dada como provada pela 1.ª instância, a partir de tais meios de prova.


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4. Decisão

Face ao exposto, na improcedência da apelação, mantêm a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.


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Francisco M. Caetano (Relator)
António Magalhães
Ferreira Lopes


[1] V. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil, Anot.”, V, pág. 140 e, por todos, o Ac. STJ de 14.11.06, Proc. 06A1986, in www.dgsi.pt.
[2] Ob. cit., pág. 141.