Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
114/09.1GCSEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: GRAVAÇÃO DA PROVA
DEFICIENTE
Data do Acordão: 04/27/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SEIA - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 363º E 364º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: Quer a omissão total ou parcial da gravação, quer a sua imperceptibilidade (quando esse segmento da prova for essencial ao apuramento da verdade) constituem nulidade dependente de arguição, a qual tem influência na decisão da causa, na medida em que o recorrente fica impossibilitado de cumprir o ónus de especificação previsto no art.º 412º, n.ºs 3 e 4, do C. Proc. Penal, resultando assim inviabilizada a apreciação da prova, pelo Tribunal “ad quem”, em conformidade com o preceituado no n.º 6, do mesmo normativo.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

BB... veio interpor recurso da sentença que decidiu:

1. condená-lo pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;

2. suspender a execução desta pena pelo período de 2 anos e 6 meses;

3. condená-lo na pena acessória de proibição de contacto com a vítima AJ..., pelo período de 2 anos e 6 meses, salvo quando procurado e/ou assentido pela mesma tal contacto;

4. julgar totalmente procedente o pedido de indemnização cível formulado pela demandante e, em consequência condenar o arguido/demandado no pagamento de € 5.000,00.


*

A sua discordância encontra‑se expressa na respectiva motivação de recurso de onde retirou as seguintes conclusões:

1- Uma vez que o arguido, com o presente recurso, e para além do mais que impugna, pretendia que o tribunal ad quem procedesse à reapreciação da prova gravada (e pretende ainda, obviamente), requereu a entrega de cópia da gravação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, para o que forneceu o competente CD.

2- O dito CD, com a referida gravação, foi-lhe entregue no dia 2 de Dezembro de 2010.

3- No dia 7 de Dezembro de 2010, o mandatário do arguido, ouvindo pela primeira vez a mencionada gravação, a fim de elaborar a parte do presente recurso para a qual o conhecimento da mesma se mostrava necessário, apercebeu-se de que, no que toca aos depoimentos das testemunhas, bem como no que se refere a algumas das declarações do arguido, as correspondentes gravações se encontram, integralmente, inaudíveis, ouvindo-se apenas e só, do princípio ao fim, um enorme ruído e zumbido, não se conseguindo discernir uma única palavra!

4- Face a esta situação, necessário é concluir-se não se ter procedido à exigida documentação de tais declarações.

5- Os depoimentos em questão mostram-se, naturalmente, mais concretamente indicados na parte relativa à fundamentação do presente recurso, com especificação do dia e hora de início e fim de cada gravação em causa.

6- Ora, com a reapreciação da prova gravada, o arguido, obviamente, pretendia, e pretende ainda, impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto.

7- Para tanto, a audição dos depoimentos prestados pelas ditas testemunhas, assim como das declarações do arguido e ora recorrente, seria absolutamente crucial, pelos motivos supra explanados.

8- Tendo em conta o exposto, está o recorrente ilegalmente impossibilitado de impugnar, como era e é sua intenção, a decisão proferida sobre a matéria de facto, vendo assim, e designadamente, postergado o seu direito ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto, o que, além do mais, se traduz numa violação flagrante do seu direito de defesa, direito este aliás consagrado no artigo 32º, n.º 1, da própria Constituição da República Portuguesa C.R.P.).

9- Cumpre referir que, nos termos do artigo 363° do C.P.P., «As declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade».

10- A não documentação das aludidas declarações constitui pois uma violação legal cominada com nulidade, sendo assim inválida essa documentação, bem como a audiência de julgamento no seu todo, e ainda todos os actos subsequentes, incluindo, naturalmente, a sentença ora impugnada.

11- Nulidade esta que ora pois expressamente se deduz.

12- No dia 27 de Outubro de 2010 realizou-se a terceira sessão da audiência de julgamento, retomando-se a produção de prova, a qual se iniciou com a inquirição da testemunha SM..., prosseguiu com mais declarações do arguido e com os depoimentos das testemunhas, e terminou com a inquirição da testemunha AA....

13- Aliás, que a produção de prova terminou nessa altura, e portanto com a prestação do aludido depoimento da AA..., é algo que não oferece quaisquer dúvidas, até porque tal se encontra expressamente consignado na acta da sessão de audiência de julgamento realizada nesse dia 27 de Outubro.

14- Após a Mmª Juiz para o efeito lhes ter concedido a palavra, o Digníssimo Magistrado do Ministério Público e o Ilustre Mandatário da assistente produziram então as suas alegações, após o que, dado o adiantado da hora (13:00 horas), designou-se para a continuação da audiência as 15:30 horas desse mesmo dia 27 de Outubro.

15- A referida audiência acabou por ser aberta às 16 horas desse dia, tendo começado pela alegação exposta pelo Ilustre Mandatário do arguido.

16- Após tal alegação, e em cumprimento do preceituado no artigo 361° do Código de Processo Penal (C.P.P.), foi dada a palavra ao arguido para, querendo, dizer algo mais em sua defesa, o que fez.

17- Seguidamente, a Mmª Juiz designou o dia 2 de Novembro de 2010 como data para a leitura da sentença.

18- Ora, sucede que, nos termos do disposto no n.º 2 do dito artigo 361°, a discussão é encerrada após as alegações orais e as (eventuais) últimas declarações do arguido.

19- Imediatamente a seguir ao referido encerramento da discussão, ocorrido, conforme se disse, na tarde do dia 27 de Setembro de 2010, o tribunal procedeu à deliberação. Tal aliás o atesta a simples circunstância de, no final dessa sessão, se ter marcado nova data para a continuação da audiência, destinada precisamente à leitura da sentença.

20- E nem poderia ter sido de outro modo, pois, de acordo com o estabelecido no artigo 365º, n.º 1, do C.P.P., «Salvo em caso de absoluta impossibilidade, declarada em despacho, a deliberação segue­-se ao encerramento da discussão» - o sublinhado é nosso. E, conforme se pode verificar pela simples consulta das actas da audiência, não se procedeu a qualquer declaração de impossibilidade imediata de deliberação.

21- A leitura da sentença, a qual, normalmente, e nos termos dos artigos 372°, n.º 1, e 373º, n.º 1, ambos do C.P.P., se segue imediatamente à conclusão da deliberação, foi, como se referiu supra, designada para o dia 2 de Novembro de 2010, assim se tendo respeitado o prazo de 10 dias fixado naquele último preceito.

22- Face a tudo quanto se expôs supra, dúvidas não restam de que, no dito dia 2 de Novembro de 2010, a Mm," Juiz deveria, tão só, e conforme aliás havia já decidido, ter procedido à competente leitura da sentença.

23- Embora tal já não fosse preciso, o artigo 373°, n.º 2, do C.P.P., reforça ainda mais esta ideia, ao estipular o seguinte: «Na data fixada procede-se publicamente à leitura da sentença e ao seu depósito na secretaria, nos termos do artigo anterior».

24- Acontece que porém que no dito dia 2 de Novembro de 2010, numa atitude francamente surpreendente, ilegal, inaudita e até bizarra, o tribunal a quo, ao invés de proceder à leitura da sentença, resolveu proferir despacho a proceder a uma alteração, apelidada de não substancial, dos factos descritos na acusação.

25- Face a esta atitude, e mais a mais porquanto o arguido, apanhado de surpresa pelo insólito e inaudito da ocorrência, não prescindiu de prazo para analisar a situação e eventualmente preparar nova defesa, a leitura da sentença acabou mesmo por não ocorrer, tendo o tribunal a quo designado o dia 9 de Novembro de 2010 para a continuação da audiência de julgamento.

26- Ora, resulta de tudo quanto supra se expôs que a aludida alteração dos factos descritos na acusação, fosse ela substancial ou não, jamais poderia ter ocorrido, como ocorreu, após o encerramento da discussão, e muito menos, como igualmente se verificou, após a deliberação e em substituição da designada leitura de sentença!

27- E mais do que isso: atento o disposto nos artigos 358.°, 359.°, e 360.°, n.º 1, todos do C.P.P., e face à própria inserção sistemática dos artigos relativos à alteração dos factos descritos na acusação, é por demais evidente que esta, para ser legalmente admissível, tem de ocorrer durante a fase da produção de prova, e portanto, desde logo, antes das alegações orais!

28- Acresce que, face à concatenação do teor do despacho em que se procedeu à alteração, apelidada de não substancial, dos factos descritos na acusação, com a parte da sentença relativa aos factos provados, verifica-se que todos esses factos, ilegal e inoportunamente alterados, como se demonstrou, foram considerados como assentes, sendo assim por demais evidente estarmos perante uma condenação por factos diversos dos descritos na acusação, tendo tal sido feito fora, como igualmente se viu, dos casos e condições em que tal é possível.

29- Posto isto, e em função do disposto no artigo 379.°, n.º 1, alínea b), do C.P.P., bem como dos preceitos anteriormente citados, é por demais evidente que a presente sentença é nula, devendo tal nulidade ser arguida aqui mesmo, ou seja, em sede do presente recurso (cfr. n.° 2 da citada disposição legal).

30- Esta nulidade sai ainda mais reforçada, atingindo contornos nitidamente kafkianos, pelo facto de o tribunal a quo ter procedido à dita alteração dos factos descritos na acusação, não apenas após o terminus da produção de prova, mas inclusivamente, pasme-se, após as próprias alegações orais e as últimas declarações do arguido!

31- Com a situação acima descrita, o tribunal a quo, não apenas violou pois o princípio da acusação mas também o do contraditório.

32- Sendo indiscutível que o tribunal a quo condenou o arguido, fora dos casos e condições em que tal é legalmente admissível, por factos manifestamente não compreendidos na acusação, resta saber se o conhecimento e julgamento da matéria em questão se traduziu numa alteração substancial ou não substancial da factualidade descrita naquela peça processual.

33- Isto pelo seguinte: caso se chegue à conclusão de que a aludida alteração, ou alguma parte dela, deve ser tida por substancial, então o tribunal a quo violou também, directamente, o estabelecido no artigo 359.° do C.P.P., o que constituirá novo motivo para que a sentença ora impugnada haja de ser considerada nula.

34- Uma vez porém que a nulidade da sentença resulta já inequívoca do supra alegado, não nos deteremos pois muito sobre esta nova questão.

35- Sempre se dirá porém, e na esteira da lição de Mário Paulo da Silva Tenreiro (in Considerações Sobre o Objecto do Processo Penal, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 47, 1987) que, sempre que se esteja perante meras nuances respeitantes às circunstâncias de espaço, tempo e modo em que terá ocorrido o crime, ou seja, alterações mínimas, quanto a tais elementos, da factualidade descrita na acusação, que não ponham pois em causa pois o princípio da identidade, deveremos considerar a alteração em causa como não substancial.

36- Já quando as alterações espácio-temporais ou de modo em causa sejam relevantes ou assumam proporções de alguma dimensão e/ou importância, ao ponto de não se poder já considerar estar-se perante o mesmo pedaço ou relação concreta de vida trazida ao processo, deverão as mesmas ser tidas por substanciais.

37- O critério será, por conseguinte, o manter-se, afinal, no processo a mesma relação social concreta, o mesmo recorte da realidade que ao mesmo fora trazida pela acusação. E tal avaliação é feita, não com referência a juízos meramente naturalísticos (exemplo: saber qual a distanciação temporal admissível), mas fundamentalmente apoiando-se na avaliação social da relação de vida em presença.

38- A questão estará sempre em saber se a base de facto (o juízo de valoração social subjacente ao recorte existencial trazido a tribunal pela acusação) se mantém idêntica (cfr, quanto a tudo isto, obra citada, sobretudo pág. 1025 e segs.).

39- Ora, sucede que, das seis alterações à matéria descrita na acusação a que o tribunal a quo procedeu, apenas a última (referente ao parágrafo 16.0 de tal peça processual), não pode qualificar-se como substancial.

40- Na verdade, e conforme melhor e mais aprofundadamente se alegou supra, as primeiras cinco alterações em causa, basicamente, traduzem-se no seguinte:

- ou em completas transmudações do recorte existencial, passando-se de situações isoladas, singulares ou episódicas, para se passar a considerar tais factos corno tratando-se de vicissitudes do dia a dia, ou mesmo de ocorrências quase diárias, ao longo de mais de 43 anos de relação conjugal;

- ou então em radicais mudanças do enquadramento temporal, e portanto também da relação de vida, passando-se de referências cronológicas com 3 ou 4 anos de antiguidade para mais de 20 anos e até mais de 30 ...

41- Face ao exposto, dúvidas não restam que as apontadas alterações n.ºs 1 a 5 à matéria descrita na acusação, correspondentes aos parágrafos 5.° a 8.°, e 14.°, de tal peça processual, não podem deixar de ser considerados como substanciais, razão pela qual, tendo o ora recorrente sido condenado por tais (aliás radicalmente) modificados factos, deverá a sentença ser declarada nula.

42- Na actual impossibilidade, face à nulidade supra deduzida, de se impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, e portanto, nomeadamente, de se propugnar pela absolvição do arguido, sempre se dirá, em nome da mais avisada cautela, e tendo pois de nos basear, por ora, na matéria de facto erradamente dada como assente, que a aplicada pena de 2 anos e 6 meses de prisão se mostra manifestamente desproporcionada, exagerada, e injusta.

43- Isto face à natureza dos bens jurídicos supostamente violados (honra e integridade física), às diminutas consequências das acções imputadas ao arguido (as quais, por exemplo, nunca provocaram lesões ou levaram a que a assistente tivesse tido que receber qualquer tipo de tratamento ou assistência médica), e, finalmente, ao facto de os episódios de maior relevo terem ocorrido há mais de 20 e 30 anos.

44- Tendo todas estas circunstâncias, de resto, sido admitidas pelo próprio tribunal a quo.

45- Tudo pois ponderado, e perante os pressupostos em que, forçosa e ilegalmente, ora nos temos de basear, entendemos que não se deverá aplicar ao arguido pena superior a um ano e meio de prisão, a suspender por igual período de tempo.

46- Toda a matéria constante do pedido de indemnização civil (artigos 2.° a 9.° de tal articulado), bem como, lógica e necessariamente, a que, quanto a esse petitório, foi considerada como provada em sede da sentença ora impugnada (cfr. pontos n.ºs 21 e 22 dos factos provados), é manifestamente conclusiva e de direito, razão pela qual jamais deveria a mesma ter sido levada em conta aquando da apreciação do aspecto jurídico da causa.

47- Com efeito, as respostas aos quesitos conclusivos ou constituídos por matéria de direito devem ser consideradas como não escritas (cfr. artigo 646.°, n.º 4, do C.P.C., aplicável ao processo penal ex vi artigo 4.° do respectivo código, acórdão da Relação do Porto de 20-9-90, in C.J., ano XV, tomo IV, pág. 211, acórdão da Relação do Porto de 8-3-84, in C.J., ano IX, tomo TI, pág. 204, e acórdão do S.T.J. de 15-3-94, in CJ., ano II, tomo I, págs. 159 a 163).

48- Dúvidas não restam portanto de que os referidos pontos n.ºs 21 e 22 dos factos provados devem ser tidos como não escritos, com a consequente absolvição do arguido do pedido de indemnização civil contra si deduzido, por inexistência de matéria factual que o suporte.

49- Ainda que o argumento acabado de aduzir não obtivesse acolhimento, sempre a condenação no pedido de indemnização civil deveria ser reduzida para montante não superior a 1500 euros.

50- Isto porquanto a matéria na qual o tribunal a quo se baseou para decidir sobre o dito pedido de indemnização civil - os aludidos pontos n.ºs 21 e 22 dos factos assentes - de forma alguma se reveste de gravidade, intensidade, extensão ou relevo suficientes para justificar uma condenação em valor superior aos ditos 1500 euros.

Normas jurídicas violadas: a sentença impugnada violou, entre outros, os seguintes preceitos: 32.°, n,º 1, e 32.°, n.º 5, ambos da C.R.P.; 358.°, 359.°, 360.°, n.º 1, 361.°, 363.°, 373.°, n.º 2, e 379.°, n.º 1, alínea b), todos do C.P.P.; 646.°, n.º 4, do C.P.C.; 496.° do C.C.

Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso:

1 - Deve declarar-se a nulidade da não documentação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, bem como a nulidade da própria audiência de julgamento e de todos os subsequentes actos, incluindo, naturalmente, a sentença ora impugnada.

2 - Deve, concomitantemente, a dita sentença ser ainda declarada nula por nela se ter condenado por factos diversos dos descritos na acusação, fora dos casos e das condições em que tal é legalmente admissível.

Tudo isto, obviamente, com as necessárias consequências, como sejam, respectivamente, as do reenvio do processo para nova audiência de julgamento e nova documentação da mesma, e a da ordem de prolação de nova decisão.

Na improcedência dos anteriores fundamentos, hipótese que só em nome da mais avisada cautela de patrocínio se coloca:

3 - Deverá aplicar-se ao arguido pena não superior a um ano e meio de prisão, a suspender por igual período de tempo.

4 - Deverá o arguido ser absolvido do pedido de indemnização civil contra si deduzido ou, se assim se não entender, ser a condenação no mesmo reduzida para valor não superior a 1500 (mil e quinhentos euros).


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Respondeu o Magistrado do MºPº junto do Tribunal a quo defendendo a procedência do recurso quanto à invocada deficiência da gravação do depoimento das testemunhas, bem como algumas das declarações do arguido BB..., porquanto «tendo procedido à audição das declarações em causa, prestadas na sessão da audiência de julgamento ocorrida em 14 de Outubro de 2010, constatou-se que, efectivamente, as declarações das supra aludidas pessoas é imperceptível, apenas se logrando ouvir um zumbido permanente na gravação efectuada, nada se descortinando no que tange ao conteúdo dos depoimentos.

(…) Nesta decorrência, e em conclusão, consideramos que se verifica in casu a deficiente gravação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, que tal integra uma nulidade e que esta foi tempestivamente invocada, sendo a consequência a repetição da prova oral, no que diz respeito às testemunhas e ao arguido BB..., devendo assim proceder-se a nova inquirição das testemunhas referidas e a nova tomada de declarações ao arguido.»

Ainda que considere que as demais questões suscitadas no recurso ficará prejudicada, o Magistrado do MP, por uma questão de cautela processual, abordou as mesmas, defendendo a sua improcedência.

Nesta instância também o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que «o recurso do arguido deverá proceder quanto à invocada nulidade pela deficiência da gravação, ordenando-se a reabertura da Audiência para seu suprimento, com repetição dos depoimentos em causa, e subsequentes termos processuais».

Os autos tiveram os vistos legais.


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II- FUNDAMENTAÇÃO

Da sentença recorrida consta o seguinte (por transcrição):

Factos Provados:

Da acusação pública:

1. AJ... casou com o arguido, no dia … de 1966, em …, acabando o casal por fixar residência em …, área desta comarca.

2. Sucede que, desde os primeiros meses de vivência em comum, o arguido começou por denotar um comportamento agressivo e violento sobre a sua mulher.

3. Na verdade, o arguido desde o início da relação conjugal que atingia corporalmente a sua mulher, fazendo-o, através de bofetadas e pontapés, em diversas partes do corpo daquela, e de modo sistemático.

4. Nos últimos anos, o arguido continuou a desferir, rotineiramente, bofetadas e pontapés na sua mulher, recorrendo, ainda, a insultos, chegando a fazê-lo no café que a ofendida explorava, assim a ofendendo física e psicologicamente e vexando-a.

5. Com efeito, o arguido, além de atingir corporalmente a sua mulher, de modo rotineiro, ainda a apelidava, constantemente, de “filha da puta”, o que fazia em tom sério e em voz alta.

6. Em data não concretamente apurada, mas há mais de 30 anos, quando a ofendida se encontrava a confeccionar uma panela de sopa, na habitação do casal, o arguido pegou naquela panela, que já estava a ferver, e arremessou-a, com todos os seus ingredientes, na direcção da sua esposa por forma a atingi-la e queimá-la, não o tendo conseguido apenas porque aquela se conseguiu desviar a tempo.

7. Em data não concretamente apurada, mas há mais de 20 anos, quando a ofendida se encontrava no quintal da residência do casal, o arguido sem qualquer motivo, abeirou-se dela e deu-lhe um violento empurrão, provocando a queda daquela e causando-lhe mau estar físico e psicológico.

8. Quase diariamente, na habitação de ambos, o arguido dirigia-se à sua mulher e dizia-lhe, em voz alta e em tom sério: “filha da puta”; “vai para a puta que te pariu”, “porca”, “suja”, “lambona”.

9. No dia 12 de Dezembro de 2009, na residência do casal, o arguido, após ter regressado a casa, abeirou-se da ofendida e, mais uma vez, desferiu-lhe diversas bofetadas e, além disso, ainda lhe apertou o pescoço, provocando-lhe dores.

10. Além disso, o arguido retirou o telefone fixo da residência para que a ofendida não pudesse pedir o auxílio de terceiros e retirou, também, o micro-ondas para que a ofendida não pudesse utilizá-lo na preparação de refeições para si.

11. Em data não concretamente apurada o arguido fechou a porta do quarto do casal à chave impedindo a sua mulher de ali dormir.

12. Acresce que o arguido dizia, insistentemente, à ofendida, em tom sério e convicto, que a matava.

13. O arguido chegou a insultar e a ofender corporalmente a ofendida diante dos seus netos. 

14. Acresce que o arguido nunca permitiu que a ofendida gerisse os seus rendimentos, nem os auferidos enquanto aquele explorava um café - cujas receitas o arguido retinha para si – nem os referentes à reforma que a ofendida recebia, assim a deixando sempre na sua dependência, quer física, quer monetária.

15. Por diversas vezes, nos últimos anos de convivência entre o casal, o arguido não permitiu que a ofendida tivesse acesso à divisão da casa (mercearia) onde se encontram depositados diversos bens alimentares e de primeira necessidade, tendo fechado à chave tal divisão e não disponibilizando a(s) respectiva(s) chave(s) à ofendida.

16. Ao longo dos anos foram frequentes os berros insultuosos e intimidatórios do arguido relativamente à ofendida e os gritos de dor e de desespero desta, bem como era frequente ela apresentar pisaduras e outras marcas resultantes dos comportamentos agressivos de que era alvo por parte daquele, sendo que os seus filhos chegaram a pedir auxílio para ela junto do gabinete de apoio às vítimas de violência doméstica.

17. No dia 14 de Dezembro de 2009, a ofendida teve de se dirigir a casa de uma vizinha pedindo-lhe ajuda e para chamar a Guarda Nacional Republicana.

18. Em função disso, e por estar cansada de ser alvo dos descritos comportamentos do arguido, a ofendida, logo após estes últimos factos, foi acolhida na residência dos filhos, tendo, entretanto, intentado acção de divórcio, que corre(u) termos neste Tribunal.

19. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, querendo, e conseguindo, com os comportamentos e com as palavras proferidas e as expressões utilizadas, molestar física e psicologicamente a ofendida, sua esposa à data dos factos, fazendo-o de forma sistemática e até diante dos seus netos menores de idade, bem sabendo que ao assim proceder a envergonhava, humilhava, causando-lhe indignação, ofendendo-a, não só na sua honra, consideração e dignidade, mas também no seu corpo e saúde; intimidando-a e fragilizando-a, submetendo-a, assim, a intenso sofrimento físico e psicológico, fazendo-a recear pela sua saúde e integridade física.

20. Não obstante isso, o arguido sempre assim se comportou, pese embora soubesse que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

 

Do pedido de indemnização cível:

21. A demandante foi calando para si, ao longo dos anos, todo o sofrimento que lhe era infligido pelo arguido, o que fazia para que tal situação não extravasasse o âmbito do seu agregado familiar e por sentir vergonha de tal situação perante a sociedade em que está inserida.

22. A demandante viveu infeliz e sofrida durante um período de tempo muito extenso.

 

Mais se provou que:

23. O arguido e a ofendida vivem separados desde … de 2009, não pretendendo a ofendida regressar a casa.

24. O arguido vive, actualmente, sozinho na casa do casal.

25. O arguido encontra-se reformado e aufere cerca de € 720,00 mensais.

26. O arguido e a ofendida são proprietários de um prédio urbano e sete prédios rústicos e dois veículos automóveis. 

27. O arguido completou o 4º ano de escolaridade.

28. Depois de a ofendida ter saído de casa o arguido levantou todo o dinheiro do casal que tinha no banco.

29. A ofendida não tem intenção de voltar a fazer vida comum com o arguido.

30. O arguido foi condenado por decisão transitada em julgado a 15.10.2001, por factos praticados a 23.03.2000, pela prática de um crime de injúrias e dano, em cúmulo jurídico, na pena de 66 dias de multa.

Factos não provados:

Não se provou que:

a) Nos últimos anos o arguido passou a desferir bofetadas e pontapés na sua mulher com maior intensidade e persistência.

b) O provado em 5. só tenha ocorrido desde pelo menos 2004.

c) O provado em 6. tenha ocorrido em 2006 ou 2007.

d) O provado em 7. tenha ocorrido em 2006 ou 2007.

e) O provado em 8. tenha ocorrido em dia 10 de Dezembro de 2009 e que nesse dia o arguido tenha desferido várias bofetadas na cara da ofendida, causando-lhe dores.

f) Para além do referido em 9., o arguido tenha visto na cozinha um saco de fruta, pegado neste e arremessado ao solo, com violência, tendo a ofendida pegado no mesmo e, acto contínuo, o arguido, insatisfeito, com tal comportamento, lhe tenha desferido vários pontapés no seu corpo.

g) O arguido dissesse à ofendida que a matava, conforme provado em 12., se ela contasse a alguém o que se passava/tinha passado.

h) O provado em 13. tenha ocorrido em diversas ocasiões, entre 2006 e 2009, quando os seus netos tinham entre 2 e 6 anos.

i) O provado em 15. ocorra desde, pelo menos, 2007.

j) O provado em 16. tenha ocorrido com especial predominância de 2006 em diante. 

k) O provado em 17. tenha ocorrido no dia 14 de Dezembro de 2009.

l) A ida da ofendida para casa dos filhos, provada em 18., tenha ocorrido a seu pedido.

 

III.  MOTIVAÇÃO  DA  DECISÃO  DA  MATÉRIA  DE  FACTO:

Funda-se a convicção do Tribunal, quer positiva, quer negativa, no conjunto da prova que se produziu em audiência de julgamento e no teor da prova documental junta aos autos, analisada de forma crítica e com o auxílio de juízos de experiência comum, nos termos do art. 127º Código de Processo Penal.

No que à prova documental respeita valorou-se o teor de fls. 57; 104 e 105 (certidões de nascimento e casamento) para prova da factualidade constante do ponto 1..

Incidindo, agora, sobre a demais prova produzida, nomeadamente as declarações do arguido e da assistente, demandante cível, e os depoimentos das testemunhas, importa reter que a apreciação de todos estes elementos, que redundou no juízo fáctico acima concretizado, teve sempre presente a especial natureza dos factos em causa e as especificidades que a sua apreciação em sede de audiência requer.

Relativamente ao arguido, começou o mesmo por negar a factualidade que lhe vem imputada, admitindo, apenas, poder ter chamado a ofendida de lambona e ter-lhe, efectivamente, trancado a despensa, justificando esta sua conduta pelo facto de a ofendida ter por hábito levar mercearia para casa do filho mais velho, situação que chateava o arguido, uma vez que entendia a mesma como um abuso da parte da sua esposa e, reflexamente, do seu filho.

Depois de ter admitido a existência de diversas discussões entre si e a ofendida, o arguido explicou a existência deste processo como uma forma de retaliação dos seus filhos relativamente a si, por questões de carácter financeiro.

Ora, foram precisamente estas questões que marcaram as declarações do arguido durante todas as suas intervenções na audiência de julgamento.

Na realidade, o arguido transmitiu ao Tribunal um clima de enorme conflituosidade com os seus dois filhos, justificando o mesmo pelo facto de estes pretenderem conseguir ainda mais dinheiro do que o que o arguido já lhes emprestara e que estes recusam, agora, devolver-lhe.

Assim, o arguido referiu que a ofendida é uma “bacoca”, atribuindo o nascimento deste processo àqueles.

Contrariamente ao seria expectável, o arguido não demonstrou qualquer revolta relativamente ao que fora relatado ao Tribunal pela ofendida, nem tentou, nas suas diversas intervenções contrariar o que por aquela fora referido, aquilo que o arguido fez durante todo o julgamento foi contas ao que toda a vida ganhou, ao que gastou com cada um dos seus filhos e ao que perdeu com os empréstimos que lhes fez.

Efectivamente, e no que respeita a estas questões, o Tribunal acreditou no arguido, e convenceu-se que, de facto, o mesmo teve uma vida bastante difícil, de grande sacrifício e que o dinheiro que entregou aos filhos não foi a título de doação, conforme por estes referido, mas antes de empréstimo. Aliás, tal é mais consentâneo, quer com a personalidade do arguido, transmitida ao Tribunal por si e por todas as demais testemunhas inquiridas, quer com a elaboração do documento junto aos autos a fls. 200. Contudo, e no que respeita à factualidade em causa nos autos, o arguido não logrou, de todo, o convencimento do Tribunal, uma vez que negou a prática dos factos sem qualquer espontaneidade e veemência. O arguido denotou, efectivamente, uma grande falta de respeito pela ofendida, quer pela forma como acabou (num segundo momento, é certo) por admitir as diversas relações extraconjugais que mantinha publicamente e, sobretudo, perante aquela, referindo com uma naturalidade notável que levava as mulheres com quem mantinha estes relacionamentos para dentro de sua casa, na presença da própria ofendida, quer, ainda, pelo menosprezo conforme se referiu à ofendida durante todo o julgamento.

Completamente descontextualizado do objecto do processo, o arguido não se esforçou por se defender da acusação contra si deduzida, mas antes provar que foi uma vítima da ingratidão dos seus filhos, que manietaram a ofendida.

Quanto à negação da prática dos factos e quanto à forma como o dinheiro era gerido pelo casal o arguido não logrou, de qualquer forma, obter o convencimento do Tribunal.

A este respeito sempre se dirá que, para além da falta de espontaneidade, o arguido alterou consideravelmente a sua expressão facial e corporal quando falou acerca destas questões, tentando rapidamente inverter o discurso para as questões financeiras supra referidas.

Relativamente às declarações da assistente importa começar por salientar a lisura, sinceridade, espontaneidade e transparência que revestiram.

Assim, não obstante a emotividade denotada e o grande desgaste que assistente transmitiu, que associado à sua avançada idade acabaram por ter como consequência um discurso mais lacónico, a assistente logrou obter o total convencimento do Tribunal, por ter dado corpo a umas declarações muito credíveis.

Assim, explicou a assistente o “inferno” que viveu durante quarenta e três anos e meio, uma vida marcada por dor e sofrimento pelos constantes (diários) insultos e múltiplas agressões de que era vítima.

O relato efectuado pela assistente, conjugado com as suas irreflectidas expressões faciais não deixaram ao Tribunal qualquer dúvida que a assistente sentia muito medo do arguido, medo este que, segundo o por si referido (corroborado por outra testemunha), era comum à vizinhança, que temiam as atitudes daquele.

A assistente relatou, de forma espontânea e circunstanciada a toda a factualidade provada em 1. a 18..

Não olvida, obviamente, o Tribunal o facto de a assistente ter tido enorme dificuldade em situar temporalmente os factos, situação que não pôde deixar de ser valorada pelo Tribunal em favor da credibilidade do seu depoimento, verdadeiramente natural, e, ainda, interpretado como perfeitamente compreensível em face da reiteração de condutas durante toda uma vida.

Saliente-se que não raras vezes foi perceptível a perplexidade da assistente em face da insistência do Tribunal na tentativa de localização espacio-temporal das ofensas que relatava, uma vez que, em face da sua reiteração, a assistente não conseguia, de todo, indicar datas exactas da prática dos factos.

Ficou, contudo, cabalmente demonstrada a localização temporal que supra resultou provada.

A assistente, para além de relatar ao Tribunal as ofensas perpetradas pelo arguido, conseguiu traduzir por gestos a forma como o arguido a agredia, sempre da mesma forma, e sem qualquer motivação especial.

Foi na contextualização das agressões que a assistente relatou os relacionamentos extraconjugais do arguido e fez questão de referir, com agrado, que houve uma coisa que o arguido nunca lhe chamou – puta – tendo, de seguida, relatado/confirmado os nomes injuriosos que lhe dirigia diariamente.

Saliente-se, ainda, que a assistente fez questão de esclarecer que o arguido não a agredia fisicamente com a mesma frequência com que a injuriava, dizendo que se havia meses que lhe batia mais que uma vez, havia, também alguns meses que não lhe batia vez nenhuma, assegurando, contudo que nunca, por nunca, passariam mais de 6 meses sem aquele a ofender fisicamente.

Relativamente aos problemas de relacionamento do arguido com os filhos, a assistente, apesar de ter referido ter conhecimento dos mesmos, não conseguiu concretizá-los, dizendo mesmo não ter assistido a discussões, denotando estar, efectivamente, à margem das questões financeiras que os dividem.

Uma vez que o arguido se deteve de forma mais determinada em negar a última agressão à sua esposa, importa, ainda, referir, quanto às declarações da assistente, que esta não deu relevância maior à última agressão provada – no dia 10 de Dezembro de 2009 – do que a todas as demais que relatou, tendo-a descrito da mesma forma que todas as demais.

A assistente explicou, ainda, o motivo pelo qual aguentou durante todos estes anos o “inferno” que viveu e o esgotamento a que chegou e que a fez romper com todo aquele sofrimento.

A assistente não transmitiu e/ou concretizou ao Tribunal a factualidade supra elencada como não provada, a qual por não ter sido sustentada por nenhuma outra prova, não pôde deixar de ter tido reposta negativa.

Inquirido o filho do casal, confirmou o clima de enorme tensão que se vivia diariamente na casa do arguido e da assistente, clima esse não exclusivo do relacionamento daqueles, mas extensível a todos os membros do agregado familiar, de que é exemplo o facto de ter sido castigado pelo pai quando tinha, já, 18 anos em virtude de ter estacionado mal o seu automóvel em frente da residência.

Depois de ter referido o seu percurso de vida, por reporte à sua coabitação com o casal, a testemunha afirmou ter assistido, variadíssimas vezes, a insultos perpetrados pelo seu pai à assistente (que elencou) e, algumas vezes, a agressões físicas, através de pancadas na cabeça daquela.

A testemunha depôs de forma escorreita e consentânea com as declarações da assistente, contudo, não conseguiu deixar de transparecer o clima de conflituosidade com o arguido, por força do dinheiro que aquele lhe entregou, na sua versão dinheiro doado e na versão do arguido dinheiro emprestado.

Confirmou que a assistente se queixara ter sido agredida no dia 10 de Dezembro de 2009, quando foi jantar a casa daquela, não atribuindo relevância diversa a esse episódio do que a todos os demais por si percepcionados ou por aquela relatados.

Confirmou a prepotência do pai nos diversos campos de relacionamento, os relatos que a assistente lhe fazia dos episódios que vivia diariamente e que, também, resultaram provados, a total falta de autonomia da assistente nas mais diversas vertentes da sua vida e, ainda, o pedido de auxílio em 2000 ao gabinete de apoio à vítima. 

Também o filho do arguido, relatou ao Tribunal o clima de violência que se vivia em casa do casal, quer entre ambos, quer entre o arguido e os filhos, discriminou as palavras injuriosas que o arguido dirigia à assistente, dizendo, contudo, nunca ter assistido a nenhuma agressão física perpetrada pelo arguido à assistente, agressões estas que, não obstante, lhe eram transmitidas frequentemente pela sua mãe.

Relativamente ao dia 10 de Dezembro de 2009, apesar de ter confirmado ter estado em casa do casal, a almoçar e a jantar, a testemunha não conseguiu concretizar o que se passara, em concreto nesse dia, motivo pelo qual, o seu depoimento não assumiu grande relevância neste conspecto.

Relativamente à anterior testemunha esta não demonstrou um conhecimento tão directo dos factos, situação a que não será alheio o facto de se encontrar a residir em ... e a grande maioria das coisas lhe ser transmitidas via telefone.

Também esta testemunha referiu, de forma muito pouco espontânea, que à excepção de um montante para aquisição de uma viatura automóvel, todo o dinheiro que o seu pai lhe entregou foi-lhe dado por aquele e não emprestado.

Não obstante o conflito existente entre o arguido e os seus filhos, que emergiu de todo o julgamento e que, apesar de negado por ambas as testemunhas, o Tribunal deu como certo, ambos os depoimentos revestiram a seriedade suficiente para poderem ser considerados probatoriamente relevantes.

Relativamente à testemunha militar da G.N.R. que foi chamado ao local no dia 14 de Dezembro de 2009, importa apenas destacar o seu relato de todo o circunstancialismo que envolveu o telefonema e o que verificou quando chegou ao local, nomeadamente o estado em que encontrou a assistente, o que esta lhe relatou, totalmente coincidente, na sua globalidade, com o que a assistente também referiu em Tribunal.

Mais afirmou que a assistente se encontrava extremamente nervosa, denotando muito medo do arguido.

Acabou, depois, por explicar todos os trâmites processuais que levou a cabo, nomeadamente a condução da testemunha para o posto territorial e o contacto estabelecido com o filho.

O depoimento da testemunha SM…, vizinha do arguido e da assistente, revelou-se de grande valia probatória na medida em que relatou, de forma muito convincente, o conhecimento público do mau relacionamento entre o casal, o qual era perceptível à vizinhança, pelos gritos que recorrentemente se ouviam, vindos de sua casa, e, ainda, dos episódios do dia 12 e 14 de Dezembro a que pôde assistir.

Assim, e apesar de ter começado por assumir andar de relações cortadas quer com o arguido, quer com a assistente, a testemunha demonstrou uma notável imparcialidade, isenção e serenidade, motivo pelo qual logrou obter o total convencimento do Tribunal.

Depois de ter referido ter sido ela própria vítima da agressividade do arguido, a testemunha referiu, de forma circunstanciada, ter ouvido o arguido berrar com a assistente no dia 12 de Dezembro do ano transacto, e de ter ouvido, também, os gritos de aflição e pedidos de socorro da assistente, os quais denotavam, inclusivamente, dificuldade em respirar, situação que a levou a concluir que a assistente estivesse a ser agredida pelo arguido e que a levou a ir para a rua na expectativa que o arguido a visse e que parasse de agredir a sua esposa.

A testemunha fez questão de referir que, por ter muito medo do arguido, jamais iria a casa daquele, ainda que soubesse que ele estava a matar a sua esposa, ou chamaria alguém, mas não conseguiu deixar de tentar, através da sua presença nas imediações, parar a agressão de que convenceu que estava a ocorrer.

Explicou, então, que o arguido a viu, tendo, de imediato, começada a mandar-lhe bocas, mas que tal não foi suficiente para parar o que estava a acontecer na casa do casal.

Relatou, depois, que na segunda-feira seguinte, dia 14, estava em sua casa e a assistente lhe apareceu, para grande surpresa sua, à sua porta, pedindo-lhe ajuda.

Apesar de ter ficado muito receosa do que poderia acontecer-lhe a si própria, a testemunha explicou, então, a forma como estabeleceu contacto com a G.N.R., o que a assistente lhe referira, dizendo-lhe ter sido vítima de agressões várias por parte do arguido e que nem telefone tinha para pedir socorro, uma vez que o arguido lho cortara, e, ainda, as marcas que aquela lhe mostrou no pescoço.

Relativamente às marcas no pescoço da assistente, só percepcionadas por esta testemunha sempre se dirá que atenta a época do ano em causa, pleno inverno e o referido por esta testemunha, no sentido de que a assistente andava toda tapada com roupa no pescoço, é perfeitamente plausível que mais ninguém se tenha apercebido dessas marcas.

Relativamente às testemunhas de defesa amigas do arguido, sempre se dirá que os seus depoimentos, atento o que infra diremos, podem ser objecto de apreciação conjunta.

Assim, comum a todas as testemunhas foi o facto de não terem conhecimento directo dos factos objecto do presente processo; de não residirem na mesma aldeia do arguido e da assistente; de (à excepção da primeira que disse ter ido alguma vezes a casa do casal) não frequentarem a casa destes e de apenas contactarem com o casal em algumas refeições em sua casa ou de terceiros.

Todos foram unânimes em referir terem ficado surpreendidos com a notícia da sua separação, e com os motivos da mesma, referindo que quando estavam juntos nunca se aperceberam que algo corresse mal entre ambos.

Apesar de terem referido nunca terem percepcionado nenhum tratamento menos correcto do arguido relativamente à sua esposa, todos foram unânimes em referir que a assistente não era pessoa de grandes falas, assumindo uma atitude passiva durante as refeições em que conviviam.

Todas as testemunhas foram ainda unânimes em referir terem conhecimento do mau relacionamento do arguido com os seus filhos, mas apenas por força daquilo que lhe era referido pelo arguido.

Em face do exposto, resulta óbvia a pouca ou nenhuma valia probatória dos seus depoimentos.

Ora, não residindo na mesma localidade, não frequentando a casa do arguido e da assistente e privando apenas com eles esporadicamente em ocasiões festivas, é natural que as testemunhas nunca tenham assistido a cenas de violência entre o casal, as quais, como é consabido, quando ocorrem, têm lugar em ambientes mais reservados.

Relativamente à última testemunha inquirida, AA..., residente e proprietária de um café na mesma localidade onde residem o arguido e a assistente, depois de situar o seu regresso de ... ao K... há cerca de vinte e tal anos, explicou ter frequentado o estabelecimento comercial do arguido e da assistente quando vinha passar algum tempo à aldeia, ter estado afastada do casal durante vinte e tal anos, altura em que passou a ser concorrente deles, e ter reatado o contacto com o arguido apenas há cerca de um ano, altura em que a assistente saiu de casa e aquele passou a frequentar o seu café.

De seguida referiu que o arguido tem um “feitio muito dele”, tendo muita dificuldade em manter diálogos, passando logo para a discussão, e que sempre achou muito estranha a sua relação com a assistente, começando, então, a relatar toda uma série de episódios que assistiu, de onde destaca aqueles em que o arguido metia em casa do casal mulheres com quem mantinha relacionamentos extraconjugais e que a assistente lhe chegou a referir não se importar nada com isso, uma vez que tais relações lhe traziam benefícios económicos.

Relatou, de seguida, ter visto algumas vezes, cerca de um ano antes de a assistente sair de casa, esta a gritar no quintal, chamando o arguido e dizendo-lhe para ele lhe vir bater para a rua.

Mais referiu ter falado com a assistente, já depois de ter saído de casa, e que esta lhe justificou a saída com questões relacionadas com os filhos.

O depoimento desta testemunha revestiu-se de uma animosidade fora do comum, para a qual o Tribunal não conseguiu arranjar qualquer justificação, não tendo, por esse motivo logrado obter grande credibilidade por parte do Tribunal.

Assim, e apesar de na sua essência o Tribunal não o ter desacreditado por completo, certo é que o desvalorizou na mesma dose do exagero evidenciado.

 Não obstante o agora referido, também é líquido que do seu teor nunca seria possível extrair qualquer abalo à convicção formada com base na prova supra analisada e nos exactos termos aí constantes.

Relativamente ao elemento subjectivo, apenas cumpre citar as palavras de Malatesta, quando refere que “o homem, ser racional, não obra sem dirigir as suas acções a um fim. Ora quando um meio só corresponde a um dado fim criminoso, o agente não pode tê-lo empregado senão para alcançar aquele fim.” [A Lógica das provas em matéria Criminal, p. 172 ss; (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Fevereiro de 2993, in BMJ nº 324, pág. 620] e, ainda, que sublinhar o recurso às regras de presunção natural, uma vez que os factos objectivos dados como provados permitem concluir pela sua efectiva verificação.

Daí que, igualmente, se julgue como provado o elemento subjectivo imputado ao arguido.

Relativamente à actual situação pessoal do arguido valorou-se o a este respeito por si referido.

Relativamente aos antecedentes criminais foi considerado o C.R.C do arguido de fls. 168.

Os factos não provados, para além do que a este respeito supra se referiu, ficaram a dever-se à total ausência de prova acerca da sua positividade.

Toda a demais matéria constante do pedido de indemnização cível deduzido pela ofendida, por consubstanciar juízos conclusivos e de direito, não pôde sobre a mesma recair qualquer juízo probatório, o mesmo sucedendo com a restante matéria da contestação apresentada pelo arguido.


***


APRECIANDO

Perante as conclusões da motivação do recurso, e tal como vêm sintetizadas pelo recorrente, são as seguintes as questões submetidas à apreciação deste tribunal:

- a nulidade da não documentação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, bem como a nulidade da própria audiência de julgamento e de todos os subsequentes actos, incluindo, a sentença ora impugnada;

- a nulidade da sentença, por nela se ter condenado por factos diversos dos descritos na acusação;

- a errada determinação da medida concreta da pena,

- a indemnização civil: - a inexistência de matéria factual que suporte o pedido e, a exagerada valoração dos danos não patrimoniais.


*

Da deficiente gravação da prova

Na motivação do recurso que apresentou, o recorrente começa por invocar que para além do mais que impugna, pretendia que o tribunal ad quem procedesse à reapreciação da prova gravada (e pretende ainda obviamente); acontece, porém, que ouvindo pela primeira vez a mencionada gravação, a fim de elaborar a parte do presente recurso para a qual o conhecimento da mesma se mostrava necessário, apercebeu-se de que, no que toca aos depoimentos das testemunhas, bem como no que se refere a algumas das declarações do arguido, as correspondentes gravações se encontram, integralmente, inaudíveis, ouvindo-se apenas e só, do princípio ao fim, um enorme ruído e zumbido, não se conseguindo discernir uma única palavra.

Face a esta situação, necessário é concluir-se não se ter procedido à exigida documentação de tais declarações.

Trata-se pois do conteúdo integral das gravações efectuadas na sessão do dia 14 de Outubro de 2010.

Tendo em conta o exposto, está o recorrente ilegalmente impossibilitado de impugnar, como era e é sua intenção, a decisão proferida sobre a matéria de facto, vendo assim, e designadamente, postergado o seu direito ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto, o que, além do mais, se traduz num violação flagrante do seu direito de defesa, direito este aliás consagrado na própria Constituição da República Portuguesa, em sede do seu artigo 32º, n.º 1

Conclui pela nulidade da audiência de julgamento, face à nulidade da não documentação das aludidas declarações, por violação do disposto nos artigos 363º e 364º do CPP.


*

Conforme o estabelecido nos n.ºs 3 e 4 do art. 412º do CPP «Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) as provas que devam ser renovadas e, Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação».

E, nos termos do disposto no artigo 363º do CPP (com a alteração introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29-8) «As declarações prestadas oralmente em audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade», estando a forma da documentação descrita no artigo 364º.

Assim, quer a omissão total ou parcial da gravação, quer a sua imperceptibilidade (quando esse segmento da prova for essencial ao apuramento da verdade) constitui nulidade, a qual tem influência na decisão da causa, na medida em que o recorrente fica impossibilitado de cumprir o ónus de especificação previsto no citado artigo 412º ([1]).

No caso vertente, tendo sido suscitado, pelo recorrente, na motivação, que o depoimento das aludidas testemunhas e parte das declarações do arguido não era perceptível no registo magnetofónico, após a resposta do MP ao recurso, e na sequência do despacho judicial de fls. 290, a Secção informou que «após audição dos depoimentos verificamos que, com excepção da 1ª audição do arguido, não existem outros depoimentos totalmente perceptíveis (uns mais que outros), uma vez que são acompanhadas de um ruído que se sobrepõe às declarações prestadas. Contactado o técnico de informática, Sr. (…), pelo mesmo foi dito que não dispõe de meios técnicos que possibilitem a recuperação/filtragem/tratamento de registos de som.».

Perante esta informação a Exmª Juiz, por considerar que a arguição da referida nulidade não foi submetida à apreciação do tribunal de 1ª instância, mas em sede de motivação de recurso, limitou-se a apreciar a admissibilidade do recurso interposto.

Com efeito, não constando esta nulidade do elenco das nulidades insanáveis (art. 119º do CPP), está a mesma dependente de arguição. Contudo, também esta nulidade não está especialmente prevista e sujeita ao prazo de arguição a que alude o n.º 3 do artigo 120º do CPP, afigurando-se-nos que não tem de ser aplicado o prazo geral de arguição de 10 dias (a contar da entrega dos suportes técnicos pois, só a partir da entrega tomou conhecimento da deficiência da gravação) do artigo 105º, n.º 1 do CPP.

Como se observa da sentença recorrida, concretamente da Motivação da decisão da matéria de facto, o tribunal formou a sua convicção também com base no depoimento das referidas testemunhas e, bem assim, nas declarações do arguido.

Assim sendo, com o presente recurso, visando o recorrente a reapreciação da matéria de facto, a gravação perceptível de tais depoimentos e declarações é essencial para o apuramento da verdade, tal como foi alegado.

Efectivamente, com o novo regime da documentação das declarações prestadas em audiência, a prova deixou de ser transcrita e, sendo impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, o tribunal procede à audição ou à visualização da gravação magnetofónica ou audiovisual (art. 412º, n.º 6 do CPP).

Como sabemos, a gravação dos depoimentos orais prestados em audiência destina-se, para além do mais, a habilitar o tribunal de recurso a apreciar se a matéria de facto foi julgada em conformidade com a prova produzida.

Ora, sendo um funcionário judicial que procede à gravação da prova e, sendo os meios técnicos utilizados do próprio tribunal, quando um sujeito processual solicita cópia da gravação tendo em vista o recurso, confia que a gravação da prova está em perfeitas condições técnicas e que o registo magnético é totalmente perceptível.

Ainda que se entenda que uma actuação prudente implicará a verificação imediata da qualidade da gravação, afigura-se-nos que pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto, não lhe é exigível que proceda à audição dos respectivos suportes magnéticos no prazo de 10 dias a contar da data em que lhe foi entregue a cópia das cassetes/CDs pelo Tribunal, podendo fazê-lo dentro do prazo da apresentação da motivação do recurso. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos da RC de 1-7-2008, de 15-4-2008 e da RP de 5-5-2009, ambos disponíveis em www.dgsi.pt e, ainda o acórdão da RC de 2-6-2009, por nós relatado no proc. 2489/06. 5TALRA.C1.

De qualquer forma, in casu, dentro do prazo de interposição de recurso, o arguido requereu, em 2-12-2010, que lhe fosse facultada uma cópia da gravação das declarações prestadas em audiência de julgamento, gravação que lhe foi entregue na mesma data e, em  10-12-2010 interpôs o presente recurso, onde arguiu a nulidade em causa, ou seja, foi a nulidade arguida ainda dentro do prazo de 10 dias a contar da entrega da gravação.

Nos termos expostos, na situação dos autos, não sendo perceptível a gravação da prova, ficou inviabilizado o recurso do recorrente e a apreciação da prova pelo Tribunal ad quem, e consequentemente foram lesados os direitos de defesa do arguido/recorrente garantidos pelo artigo 32º, n.º 1 da CRP, como alega o recorrente.

Deste modo, procede a arguida nulidade e, independentemente de alguns depoimentos serem perceptíveis, conforme Acórdão de fixação de jurisprudência, de 29-10-2008, tendo o STJ decidido que “a perda da eficácia da prova ocorre independentemente da existência de documentação a que alude o artigo 363º do CPP”, mostrando-se excedido o prazo de 30 dias previsto no n.º 6 do artigo 328º do CPP, deverá proceder-se a novo julgamento.

Em consequência, ficam prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso.


*****

III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Julgar procedente o recurso e, em consequência, declarar a invalidade do julgamento, bem como da sentença dele dependente, determinando-se a realização de novo julgamento.

Sem tributação.


*****                                                                            
Elisa Sales (Relatora)
Paulo Valério



[1] - Anteriormente, o STJ havia fixado jurisprudência no acórdão n.º 5/2002, de 27-6, publicado no DR, I-A Série, de 17-7-2002, de que «A não documentação das declarações prestadas oralmente em audiência de julgamento, contra o disposto no artigo 363º do Código de Processo Penal, constitui irregularidade, sujeita ao regime estabelecido no artigo 123º do mesmo diploma legal, pelo que uma vez sanada o tribunal já dela não pode conhecer».