Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1624/19.8T9PBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: PEDIDO CÍVEL
INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
SEGURADORA
Data do Acordão: 01/31/2024
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE POMBAL - JUIZ 1)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 64º, N.º 1, AL. A), DO DL 291/2007, DE 21.8; 74º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; 963º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
Sumário: I- O incidente de intervenção não permite que a demandante substitua o demandado/arguido contra quem, por erro, formulou o seu pedido de indemnização civil.
II- A Seguradora é quem, desde o início, tinha que ter sido demandada, inexistindo no caso, atento o valor do pedido, litisconsórcio necessário passivo.

III- A ilegitimidade passiva singular é insanável ou insuprível, não podendo ser ultrapassada por via do incidente de intervenção provocada.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

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O recurso é o próprio, foi tempestivamente apresentado, por quem para tal tem legitimidade, sendo adequados o efeito e o regime de subida.

           

Nos termos do disposto no artigo 417.º do Código de Processo Penal, uma vez concluso o processo, o relator deve, no exame preliminar, além do mais, verificar se há condições para proferir decisão sumária, o que sucederá se, por exemplo, o recurso dever ser rejeitado - alínea b) do n.º 6.

O recurso é rejeitado sempre que for manifesta a sua improcedência, se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414.º ou o recorrente não apresente, complete ou esclareça as conclusões formuladas e esse vício afete a totalidade do recurso nos termos do n.º 3 do artigo 417.º – alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 420.º do Código de Processo Penal.

Ora, como referimos, uma das causas de rejeição do recurso é a sua “manifesta improcedência”.

Pese embora a nossa lei adjetiva não forneça qualquer definição sobre o conceito de “manifesta improcedência”, é entendimento pacífico dos nossos tribunais superiores que a mesma se verifica quando o recurso se mostre desprovido de fundamento ou quando a sua inviabilidade se revele inequívoca.

Como se salientou no Ac. do STJ de 29/3/2007, proferido no âmbito do processo nº07P1020, in www.dgsi.pt), «são manifestamente improcedentes os recursos quando é clara a sua inviabilidade, quando no exame necessariamente perfunctório a que se procede no visto preliminar, se pode concluir, face à alegação do recorrente, à letra da lei e às posições jurisprudenciais sobre as questões suscitadas, que os mesmos estão votados ao insucesso»

É o que a seguir iremos concluir, sendo certo que a decisão que admita um recurso (tal como a que lhe fixa o regime de subida e o efeito) não faz caso julgado e não vincula o tribunal superior (n.º 3 do citado artigo 414.º).

Assim, ao abrigo do disposto no Artº 417º, nº 6, al. b), passamos a proferir:

 

Decisão sumária.

            I.Relatório

            1.

            No âmbito dos presentes autos, por despacho proferido em 5/2/2023, foi decidido não admitir o incidente de intervenção principal provocada da seguradora, e, em consequência, julgar o demandado AA parte ilegítima para o pedido de indemnização civil, absolvendo-o da instância cível.

            É do seguinte teor o despacho recorrido:

“Na sequência de despacho proferido a 16/01/2023, no âmbito do qual, atento o valor do pedido e o disposto no art. 64º nº 1, al. a) do DL nº 291/2007, de 21 de Agosto, atento o princípio da proibição de decisões surpresas, nos termos e para os efeitos do artigo 3º nº 3 do Código de Processo Civil, se conferiu contraditório à demandante para, querendo, se pronunciar quanto à existência de eventual ilegitimidade activa, veio a mesma, por requerimento datado de 26/01/2023, requerer ao Tribunal o chamamento à demanda da F... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., na qualidade de Demandada nos autos, por via do Incidente de Intervenção Provocada.

Cumpre apreciar e decidir.

Estatui o art. 64º nº 1 do DL nº 291/2007, de 21 de Agosto que: “As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente:

a) Só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório;

b) Contra a empresa de seguros e o civilmente responsável, quando o pedido formulado ultrapassar o limite referido na alínea anterior.(…). – nosso sublinhado e negrito.

Da leitura do preceito legal ora transcrito, concretamente, no que releva ao presente caso, o disposto na sobredita alínea a), resulta claro que, nessas situações (pedido formulado que se contem dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório), não está em causa qualquer situação de litisconsórcio necessário passivo.

Ao invés, nos casos da mencionada alínea a), em causa está uma situação de pura legitimidade originária e exclusiva da seguradora, ou seja, de pedidos que têm que ser, ab initio, deduzidos contra a empresa de seguro.

A este propósito, num caso idêntico, como bem se refere no Ac. TRC de 12/09/2012, proc. nº 151/10.3GAALB.C1, www.dgsi.pt, “importa ter presente que, nos termos do artigo 64, nº 1, alínea a), do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto (referido na alegação do recurso), as acções destinadas à efectivação de responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório. (…). Assim, contendo-se a indemnização peticionada nos limites do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório [cf. artigo 12, do Decreto-lei número 291/2007, de 21 de Agosto], pelo seu pagamento apenas responderia a seguradora, caso houvesse seguro e a existência deste tem de se presumir, dado que é “seguro obrigatório”. (…) Tendo em conta o exposto, temos que o pedido cível deveria ter sido formulado contra a seguradora, dado que o pedido formulado se continha dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório. Pelo que, nos termos do disposto no art. 64 nº 1 al. a) do Dl. 291/2007, o demandado A... é parte ilegítima, devendo ser absolvido da instância” – nosso sublinhado.

Acresce que, tal como bem se refere no Ac. TRP de 20/12/2000, proc. nº 0010747, disponível em www.dsgi.pt, “Incumbe ao demandante alegar, no requerimento em que deduz o pedido, factos que mostrem que desconhece sem culpa a existência do seguro, a qual, de resto, constitui a regra, dada a obrigatoriedade deste.

Não tendo a lesada feito essa alegação, sendo que na própria participação policial é feita referência à existência de seguro, carece o lesante de legitimidade para figurar inicialmente na acção cível enxertada na acção penal como único demandado”. – nosso sublinhado.

Revertamos ao caso em concreto.

In casu torna-se manifesto que o valor do pedido indemnizatório está absolutamente compreendido dentro dos limites fixados para o seguro obrigatório, pelo que, face ao preceito legal ora transcrito e às considerações supra explanadas, o mesmo devia ter sido deduzido apenas e tão-somente contra a seguradora, melhor identificada desde logo no auto de participação do acidente, e não contra o arguido/demandado.

Assim, face ao exposto e por força do sobredito preceito legal, torna-se por demais evidente que o ora demandado é parte ilegítima no pedido indemnizatório em causa, o que implica inevitavelmente a sua absolvição da instância, porquanto consubstancia uma excepção dilatória de conhecimento oficioso (cfr. arts. 278, nº 1 al. d), 577º al. e) e 578º, todos do Código de Processo Civil).

Acresce que, tal como anteriormente explanado, tratando-se de uma legitimidade originária e exclusiva da seguradora e não estando, na presente situação, em causa qualquer circunstância impeditiva ao regime geral da legitimação exclusiva da seguradora, evidentemente que não poderá agora, tal como requer a demandante, ser sanada a apontada ilegitimidade originária do demandado através (da dedução) de incidente de intervenção principal provocada da seguradora, por inexistir qualquer situação de preterição de litisconsórcio necessário passivo.

Termos em que, face ao exposto e ao abrigo dos preceitos legais supra citados, o Tribunal não admite o incidente de intervenção principal provocada da seguradora em apreço, por não se verificarem os pressupostos previstos no art. 316º do CPC (inexistência de qualquer preterição de litisconsórcio necessário ou até mesmo voluntário) e, em consequência, julga desde já o demandado AA parte ilegítima para o pedido de indemnização civil, absolvendo-o da instância cível.   

Face ao ora decidido, resulta prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pela demandante.

(…)”

           

            2.

            Não se conformando com o decidido, veio a assistente e demandante civil interpor o presente recurso, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

            “a) Vem o presente recurso interposto da decisão, aliás, douta, do Tribunal "a quo" de 05 de Fevereiro de 2023, referência CITIUS n.º 10.28.33.030:

“Termos em que, face ao exposto e ao abrigo dos preceitos legais supra citados, o Tribunal não admite o incidente de intervenção principal provocada da seguradora em apreço, por não se verificarem os pressupostos previstos no art. 316º do CPC (inexistência de qualquer preterição de litisconsórcio necessário ou até mesmo voluntário) e, em consequência, julga desde já o demandado AA parte ilegítima para o pedido de indemnização civil, absolvendo-o da instância cível.”

b) Proferido na sequência de resposta da Assistente ora Recorrente, a requerer a chamada a juízo da interessada - F... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. - com legitimidade activa para intervir na presente causa, como associada da parte contrária, ou seja, do Arguido, Demandado no âmbito do p.i.c., ao convite do Tribunal "a quo" para se pronunciar quanto à existência de eventual ilegitimidade activa.” (cfr. referência CITIUS n.º 10.25.77.773;

c) Ora, o Tribunal “a quo”, ao considerar que ocorreu ilegitimidade originária do demandado (Arguido), viola de forma ostensiva o espírito e a intenção que norteou a Comissão Revisora do Código de Processo Penal, que, em rigor, nem sequer é citado na decisão impetrada;

(…)

II – Fundamentação

            Nos presentes autos o arguido foi acusado e posteriormente pronunciado pela prática em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de duas contraordenações, previstas nos artigos 18º,nº1,24º,nº1 e 145º,nº1,als.e) e f), do Código da Estrada, e um crime de ofensa á integridade física por negligência, previsto e punido pelos artigos 148º, nº1,69º,nº1,al.a) do Código Penal.

Está em causa um acidente de viação cuja culpa vem imputada ao arguido.

Com base nos factos imputados ao arguido, descritos no despacho de pronúncia por remissão para a acusação, veio a ofendida, ora assistente e demandante civil, deduzir pedido de indemnização pelos danos sofridos na sequência do acidente de viação, os quais computou em oito mil euros, pedido este que formulou apenas contra o arguido.

Resultando dos autos que o veículo conduzido pelo arguido aquando da prática dos factos, encontrava-se segurado pela Seguradora F..., Companhia de Seguros, SA, a Mma Juiz, por despacho  proferido a 16/01/2023, face ao valor do pedido e o disposto no art. 64º nº 1, al. a) do DL nº 291/2007, de 21 de Agosto, e invocando o  princípio da proibição de decisões surpresas, nos termos e para os efeitos do artigo 3º nº 3 do Código de Processo Civil, determinou a notificação da demandante  para, querendo, se pronunciar quanto à existência de eventual ilegitimidade, vindo a mesma,  por requerimento datado de 26/01/2023, requerer ao Tribunal o chamamento à demanda da F... - COMPANHIA DE SEGUROS, SA, na qualidade de Demandada nos autos, por via do Incidente de Intervenção Provocada, o que lhe veio a ser indeferido, com a consequente absolvição do demandado da  instância civil. 

É relativamente ao indeferimento da intervenção da seguradora e absolvição da instância do demandado que se insurge a demandante.

Mas, salvo o devido respeito, sem qualquer razão.

De facto, ainda que se reconheça ser admissível em processo penal a intervenção principal provocada, consagrada, aliás, no artigo 74º,nº3, do CPP – questão abundantemente explanada pela recorrente - não podemos deixar de concordar com a decisão recorrida quando na mesma se defendeu que, no caso concreto, tal incidente não é admissível.   

Na verdade, é indiscutível, à luz do já citado artigo 64º,nº1, al.a), do DL 291/2007, de 21 de agosto, que existindo, como existe no caso vertente, contrato de seguro,  o que a demandante não desconhecia, e contendo-se o montante por si peticionado dentro do capital mínimo do seguro obrigatório, o pedido por si formulado, fundado em acidente de viação, tinha de ter sido obrigatoriamente deduzido contra a Companhia de Seguros, e unicamente  contra esta, a única que possuía legitimidade para ser demandada.

Mas tal não ocorreu.

Quem foi demandado, mas mal, foi o arguido.

E na situação dos autos, não tinha que o ser, nem sequer acompanhado da companhia de seguros.

Só esta, repete-se, possui legitimidade passiva, só contra esta a demandante devia ter formulado o seu pedido de indemnização civil.

Estamos, pois, perante uma situação de ilegitimidade passiva singular.

A ilegitimidade passiva do demandado/arguido para o pedido em apreço é clara, manifesta, não levanta qualquer dúvida.

E, assim sendo, como é, claro está que não pode a demandante pretender corrigir tal ilegitimidade através do incidente de intervenção de terceiros, provocando a intervenção da companhia de seguros, quando nada impedia que contra esta, e só contra esta, o pedido civil tivesse inicialmente sido formulado.

Ou seja, o incidente de intervenção não permite que a demandante substitua o demandado/arguido contra quem, por erro, formulou o seu pedido de indemnização civil.

A Seguradora é quem, desde o início, tinha que ter sido demandada, inexistindo, no caso, atento o valor do pedido, litisconsórcio necessário passivo.

A ilegitimidade passiva singular é insanável ou insuprível, não podendo ser ultrapassada por via do incidente de intervenção provocada.

O incidente de intervenção provocada destina-se a permitir que em situações de litisconsórcio necessário, qualquer das partes chame a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária, ou, em casos de litisconsórcio voluntário o autor provoque a intervenção do litisconsorte do réu ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido, no caso de dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação material controvertida (arts 316º e 39º, do CPC).

Destina-se também a possibilitar a efetivação do direito de regresso, nos termos do artigo 317º do CPC, e pode ser deduzida pelo réu nas situações referidas no art.316º,nº3, do CPC, hipóteses que não estão em causa.

Só a ilegitimidade plural (preterição de litisconsórcio) é suprível por via do incidente de intervenção. No que tange à ilegitimidade singular é insanável, constituindo uma exceção dilatória que dá lugar à absolvição da instância.

Por conseguinte, está afastado, de todo, lançar mão do incidente de intervenção em casos de legitimidade singular (em que só uma pessoa pode estar em juízo), porquanto, nessa hipótese, o incidente ao invés de permitir a intervenção na lide de um novo sujeito, associado a uma das partes, teria como consequência a substituição de sujeitos processuais, o que, claro está, a lei não admite. 

A admitir-se a intervenção de um terceiro tal  implicaria a exclusão do demandado/arguido e a sua substituição pela chamada (companhia de seguros), finalidade que não é possível alcançar por esta via, pois o incidente de intervenção não é um meio de substituição processual de demandados, nomeadamente quando erradamente se demandou certa pessoa, e se deveria ter demandado outra.

O objetivo do incidente de intervenção provocada é ultrapassar o vício de preterição de litisconsórcio necessário ou assegurar a intervenção dos litisconsortes voluntários.

O que não é a situação dos autos.

Como se referiu na decisão recorrida, “tratando-se de uma legitimidade originária e exclusiva da seguradora e não estando, na presente situação, em causa qualquer circunstância impeditiva ao regime geral da legitimação exclusiva da seguradora, evidentemente que não poderá agora, tal como requer a demandante, ser sanada a apontada ilegitimidade originária do demandado através (da dedução) de incidente de intervenção principal provocada da seguradora, por inexistir qualquer situação de preterição de litisconsórcio necessário passivo.

Em suma, sem necessidade de mais considerações, porquanto despiciendas, a pretensão da recorrente está manifestamente votada ao insucesso, mantendo-se a decisão recorrida.

III. Dispositivo

           

Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se rejeitar o recurso interposto pela demandante, por manifesta improcedência, mantendo-se, consequentemente, a decisão recorrida.

 

Custas pela demandante e assistente/recorrente, fixando-se em 3 (três) UC a taxa de justiça, a que acrescem 3 (três) UC, nos termos do disposto no Artº 420º, nº 3, do CPP.

(Decisão elaborada em computador pela relatora e por ela integralmente revista, que a assina eletronicamente - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal).

Coimbra, 31 de janeiro de 2024
(consigna-se que os presentes autos foram objeto de redistribuição no passado dia 16, em virtude da anterior titular dos mesmos se encontrar de baixa médica, data a partir da qual ficaram afetos à ora relatora).

                                                A Juiz Desembargadora Relatora

                                                            Cândida Martinho