Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
186/20.8T8LRA.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: PODERES DO CABEÇA-DE-CASAL
PEDIDO DE ENTREGA DE BENS EM POSSE DE TERCEIRO OU HERDEIROS
QUE LHE INCUMBA ADMINISTRAR
NECESSIDADE DE JUSTIFICAÇÃO DO PEDIDO
QUANTIAS MONETÁRIAS PERTENCENTES À HERANÇA
Data do Acordão: 09/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2079.º; 2087.º E 2088.º, 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: O cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído.
A entrega dos bens deve estar de alguma forma justificada, nomeadamente pela necessidade do exercício da gestão que os artigos 2079º e 2087º confiam ao cabeça-de-casal, como administrador da herança.
Sabendo-se que a posse dos Réus é ilegítima, obtida contra a vontade do “de cujus”, devendo o dinheiro estar em conta bancária da falecida, onde não está, a entrega pedida mostra-se justificada.
Decisão Texto Integral: *

AA intentou ação contra BB e CC, DD e EE, FF e EE e EE, pedindo a entrega de quantias financeiras na posse destes herdeiros, consubstanciada nos seguintes pedidos: a) Reconhecerem os primeiros RR, BB e mulher CC, que o valor por si possuído de 6.000,00€, pertence ao acervo a partilhar e a procederem à sua restituição à massa da herança por óbito de GG e HH, acrescido de juros vencidos no valor de 1.201,00€, e vincendos até à integral restituição; b) Condenados ainda estes RR a entregarem o valor de 7.131,00€ a título de juros sobre o capital de 69.300,00€ que pertenciam também à mesma massa da herança e que foram condenados a restituir; c) Reconhecerem os segundos RR, DD e mulher EE, que o valor por si possuído de 35.000,00€, pertence ao acervo a partilhar e a procederem à sua restituição à massa da herança por óbito de GG e HH, acrescido de juros vencidos no valor de 7.007,00€, e vincendos até à integral restituição; d) Reconhecerem os terceiros RR, FF e mulher EE, que o valor por si possuído de 35.000,00€, pertence ao acervo a partilhar e a procederem à sua restituição à massa da herança por óbito de GG e HH, acrescido de juros vencidos no valor de 7.007,00€, e vincendos até à integral restituição; e) Reconhecer a quarta R, EE, que o valor por si possuído de 35.000,00€ pertence ao acervo a partilhar e a proceder à sua restituição à massa da herança por óbito de

GG e HH, acrescido de juros vencidos no valor de 7.007,00€, e vincendos até à integral restituição.

            Contestaram os Réus, em síntese:

Não se apossaram de forma unilateral ou abusiva das referidas quantias, apenas se limitaram a aceitar as transferências que a então cabeça-de-casal, a sua mãe HH, havia decidido efetuar.

Além disso, a manutenção das quantias na posse dos Réus em nada prejudica a herança.

Após ampliação do julgamento da matéria de facto, ordenada por decisão singular desta Relação, foi proferida a seguinte sentença:

Julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência, condeno os primeiros RR. BB e mulher CC a reconhecerem que o valor por si possuído de €6.000,00 pertence ao acervo a partilhar e a procederem à sua restituição à massa da herança por óbito de GG e HH, acrescido de juros de mora, à taxa legal desde a citação até efetiva e integral entrega; condeno os segundos RR. DD e mulher EE a reconhecerem que o valor por si possuído de €35.000,00 pertence ao acervo a partilhar e a procederem à sua restituição à massa da herança por óbito de GG e HH, acrescido de juros de mora, à taxa legal desde a citação até efetiva e integral entrega; condeno os terceiros RR. FF e mulher EE a reconhecerem que o valor por si possuído de €35.000,00 pertence ao acervo a partilhar e a procederem à sua restituição à massa da herança por óbito de GG e HH, acrescido de juros de mora, à taxa legal desde a citação até efetiva e integral entrega; condeno a quarta R. EE a reconhecer que o valor por si possuído de €35.000,00 pertence ao acervo a partilhar e a proceder à sua restituição à massa da herança por óbito de GG e HH, acrescido de juros de mora, à taxa legal desde a citação até efetiva e integral entrega; absolvo os RR. dos restantes pedidos.


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Inconformados, os Réus recorreram e apresentam as seguintes conclusões:

1 O artº 2.088, nº 1 Código Civil condiciona a entrega material de bens pertencentes à herança ao cabeça-de-cal à circunstância de tal entrega se mostrar realmente necessária ao exercício da gestão.

2 Qualquer solicitação para entrega de bens que não seja realmente necessária configura uso indevido e infundado dos direitos do cabeça-de-casal.

3 O tribunal a quo, ao considerar que a necessidade da entrega das quantias bancárias “resulta da simples circunstância de se tratar de dinheiro que o cabeça-de-casal tem o poder/dever de administrar” violou o artº 2.088, nº 1 CC como também ignorou o entendimento jurisprudencial do STJ que deve aplicar-se a qualquer acção para entrega de bens, independentemente de tratar-se de bens móveis, imóveis ou quantias em numerário ou em contas bancárias.

4 “O artigo 2088º, sob a epígrafe "Entrega de bens", prescreve, no seu nº 1, o seguinte: "O cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído. Justificam-se duas observações. Tendo presente a intencionalidade da norma, tem-se como ESSENCIAL que a entrega material dos bens seja REALMENTE NECESSÁRIA ao exercício da gestão que os artigos 2079º e 2087º confiam ao cabeça-de-casal como administrador da herança” (Acórdão do STJ d.d. 13.12.2001 in: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/0/29387402c09a786c80256c3d0048a7da?opendocument)

5 “No exercício dessa administração, o cabeça de casal tem os amplos poderes, designadamente: -o de instaurar acções possessórias não só contra terceiros, mas até contra os próprios herdeiros, para obter a entrega de bens que estejam em poder deles, DESDE QUE a entrega material dos bens ao cabeça de casal seja REALMENTE NECESSÁRIA ao exercício da administração que lhe compete (art. 2088.º do CC); -o de cobrar dívidas activas da herança, quando a cobrança possa perigar com a demora (art. 2089.º do CC); -o de vender frutos e outros bens deterioráveis (nos termos e com os fins definidos no art. 2090.º do CC)” (acórdão do STJ d.d. 04.12.2007 in: http://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=25474&codarea=1).

6 “Essencial é que, como aliás se depreende do próprio texto da norma, a entrega material dos bens seja realmente necessária ao exercício da gestão que os artigos 2.079 e 2.087 confiam ao cabeça-de-casal como administrador da herança.” (Pires de Lima e Antunes Varela in: Código Civil anotado, Volume VI, Edição 1988, pág. 248).

7 Deverá haver sempre uma justificação ad hoc quanto às pretensões de entrega de um determinado bem por parte de um cabeça-de-casal designadamente quanto à própria natureza do bem, até porque os há que apenas podem ser administrados desde que se encontrem na posse efectiva do cabeça-de-casal (animais ou bens imobiliários) - pois que só estando na posse efectiva de tais bens é que o cabeça-de-casal os pode conservar bem como proceder à sua frutificação normal ou razoável –enquanto que outros em que não há qualquer necessidade de entrega para poderem ser administrados ou ficarem administráveis pelo cabeça-de-casal.

8 Termos em que deve a douta sentença ser revogada, alterando-se a respectiva parte dispositiva, que deverá concluir pela inexistência da necessidade de entrega das quantias ao cabeça-de-casal, com consequente absolvição dos aqui recorrentes.


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            O Autor contra-alegou, defendendo a correção do decidido.

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As questões a decidir são as seguintes:

Saber se as quantias existentes na posse dos Réus (herdeiros), que pertencem à massa da herança (conclusão não contestada), devem ser entregues ao Autor, como cabeça de casal, para este as administrar.


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            Os factos a considerar, fixados pelo Tribunal recorrido, são os seguintes (e por falta de impugnação):

1. Correm os seus termos os autos de inventário número ...3, no Cartório Notarial ..., Dr. II, proveniente do anterior Cartório Notarial da Dr.ª JJ nos quais, o ora autor figura como cabeça de casal.

2. Na respectiva relação de bens tempestivamente apresentada, na epígrafe “Dinheiro” consta sob a verba número 8, o montante de 69.300,00€.

3. Esta verba era indicada como valor em poder do interessado e ora Réu BB, mas pertencente à massa da herança por óbito dos acima referidos GG e HH.

4. Pelo Primeiro R marido, em conjunto com os demais interessados, ora também RR, foi apresentada reclamação à referida Relação de Bens, a que o cabeça de casal respondeu, sendo que, apreciada a respectiva prova, a Senhora Notaria procedeu à exclusão desta verba, tendo remetido os interessados para os meios comuns, e suspendeu os referidos autos até que fosse proferida decisão, sobre esta verba em discussão.

5. A respectiva ação intentada pelo ora A contra os primeiros RR, BB e mulher CC, correu seus termos no Tribunal judicial da comarca ..., Juízo Central Cível de Leiria - Juiz ..., sob o número 2787/17.....

6. Tendo a final os RR sido condenados a restituírem à massa da herança o valor de 69.300,00€, acrescidos de juros desde a sua citação.

7. Como após o transito os referidos RR, BB e mulher CC, não procederam à restituição do quantitativo ordenado na referida decisão, o A teve de proceder à execução de sentença para que os referidos valores fossem restituídos à herança da qual ele é cabeça de casal e por consequência seu subministrador, autos nº 2787/17....,

correram seus termos no Juízo de Execução ..., Tribunal Judicial da Comarca de

..., já findos com a referida restituição.

8. Mais resulta do atrás referido inventario que por despacho transitado da Sr.ª Notaria, sobre o incidente de reclamação e resposta à respectiva relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal, ora A, que as verbas de 1 a 7 do dinheiro era matéria assente.

9. Das verbas 1 a 7 constante da referida relação de bens, e dadas como assente estavam assim relacionadas:

a) Verbas 1 e 2 nos valores de 20.000,00€ e 15.000,00€ respetivamente, no valor global de 35.000,00€, na posse da interessada, ora Ré, EE

b) Verbas 3 e 4 nos valores de 20.000,00€ e 15.000,00€ respetivamente, no valor global de 35.000,00€, na posse do interessado, ora Réu, FF

c) Verbas 5 e 6 nos valores de 20.000,00€ e 15.000,00€ respetivamente, no valor global de 35.000,00€, na posse do interessado, ora Réu, DD

d) Verba 7 nos valores de 6.000,00€, na posse do interessado, ora Réu, BB.

10. Por cartas registadas datadas de 19 de novembro de 2019, interpelou os RR nas suas pessoas e na pessoa do seu mandatário para virem restituir à herança o valor que agora trazemos a tribunal para que este os condene à referida restituição.

11. A R EE assinou o AR e recusou a carta e os restantes RR não reclamaram as referidas tendo as mesmas sido devolvidas.

12. E o R BB respondeu ao Autor nos seguintes termos: “Exmo. Senhor, O cargo de cabeça-de-casal confere-lhe não só direitos mas sobretudo obrigações, de entre as quais a prestação de contas, já solicitada por mais do que uma vez mas que V.Exª se tem recusado a realizar, optando por investir energias na via litigiosa. A circunstância de um herdeiro ter ou não em sua posse todos ou alguns dos bens que integram a herança não implica, só por si, que tais bens devam ser fisicamente entregues ao cabeça-de-casal. Aliás, nada na lei obsta a que se façam partilhas com os bens em posse de um ou vários interessados e que, após a homologação da partilha, tais bens sejam diretamente entregues a quem os mesmos foram adjudicados. O artº 2.088, nº 1 Código Civil condiciona a entrega material de bens à circunstância de tal entrega se revelar realmente necessária ao exercício da gestão, sendo que qualquer outra solicitação configura abuso de direito, mais a mais atento o tempo já decorrido (sem que o mesmo configure contudo qualquer tipo de presunção de aquisição). Não se tratando de qualquer recusa para entrega de bens que integram a herança, não se procede à entrega dos mesmos, por ora, sem que antes seja esclarecida a pretensa necessidade do referido valor para o exercício da gestão, ficando a aguardar a respectiva justificação, a fim de aquilatar tal necessidade. É que o prestar de contas também comporta que se dê explicações aos demais herdeiros sobre os actos praticados e os que se pretendem praticar. Com os melhores cumprimentos, BB”.

Aditados na julgada ampliação:

13. Os valores referidos supra no ponto 9. foram retirados pelos Réus das contas da inventariada HH ainda em vida desta e contra a sua vontade.

14. Tendo a inventariada HH, ao tomar conhecimento da apropriação de tais valores pelos Réus, interposto um procedimento cautelar especificado de arrolamento para efeitos de devolução desses valores à massa da herança e desistiu do mesmo mais tarde.

E como factos não provados:

a) Que os Réus apenas se limitaram a aceitar as transferências que a então cabeça-de-casal, a sua mãe HH, havia decidido efetuar.

b) As quantias retiradas da conta de HH, referidas no ponto 13., mais não foram do que doações que a mãe de A e RR, bem ou mal, decidiu fazer, entendendo que deveria compensar os RR pelo facto de o A se ter apossado, em vida dos pais, de quantia não inferior a € 51.540,78.


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Na anterior decisão singular ficou dito:

“Nos termos do disposto no art. 2079.º, do Código Civil (CC), a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal.

“E nos termos do disposto no art. 2088.º, n.º 1, do referido código, o cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído.

“Os Réus aceitam que têm em seu poder as quantias alegadas pelo Autor, no entanto entendem que o Autor, na qualidade de cabeça de casal, não pode simplesmente pedir aos Réus a entrega dos montantes em causa sem que para tal efeito invoque um motivo justificado, inerente à sua administração, e qual a necessidade da entrega.

            “A jurisprudência citada por estes indica que a entrega dos bens deva estar justificada pela necessidade do exercício da gestão que os artigos 2079º e 2087º confiam ao cabeça-de-casal, como administrador da herança. (STJ 28.5.2002, proc. 02A1276, em www.dgsi.pt.)

            “A administração da herança é em regra limitada à conservação do património. (L. Cardoso, Partilhas, I, páginas 322 e 323, 1990.)

            “Este património é conferido à data da abertura da sucessão, no momento da morte do seu autor.

            “É ainda certo que a administração dos bens doados pertence ao respetivo donatário (art.2087, nº 2, do CC).

            “À primeira leitura, parece que o Autor não justifica a posse ou a necessidade de administrar dinheiro que pertence à herança e que está na posse dos Réus desde data anterior à abertura da sucessão.

            “Numa 2ª leitura percebemos que o Autor pretende a entrega porque, alega, a posse dos Réus é ilegítima, obtida contra a vontade do “de cujus” (arts. 11 a 13 da petição).

            “Se esta ilegitimidade ocorrer, devendo o dinheiro estar em conta bancária da falecida, e nunca na posse dos Réus, a entrega estaria então justificada.

           “Por seu lado, os Réus defendem que a sua posse é legítima, derivada da vontade da falecida (arts.10 a 14 da contestação).

“Ora, estes e aqueles factos dos articulados não foram julgados porque o Tribunal se bastou, erradamente, com o mero cargo do cabeça de casal, não cuidando de saber se existe justificação para a posse dos Réus ou justificação para a pretendida conservação pelo Autor. Será preciso perceber como o dinheiro se transferiu de certo lado para outro lado”. (…) (Fim da citação.)

           Apesar do aditamento agora feito de factos provados e não provados, o Tribunal recorrido bastou-se, como já o tinha entendido antes, com o mero cargo do cabeça de casal, para impor a entrega pedida.

           Nós, no âmbito do enquadramento feito e obtidos os esclarecimentos sobre os factos agora julgados, podemos concluir o seguinte:

            Os valores em questão foram retirados pelos Réus das contas da inventariada HH, ainda em vida desta e contra a sua vontade.

            A justificação apresentada pelos Réus não se provou.

(Como vimos, em regra, o património não pode ser colocado, antes da partilha, ao serviço ou satisfação dos interesses de qualquer dos herdeiros.)

           A sede original e própria para os referidos valores eram as contas da inventariada.

           A conduta dos Réus fez e ainda faz suspeitar e recear pela ocultação ou dissipação dos valores. O natural arrolamento destes pressupõe um depósito que, a fazer-se, senão na conta original, deverá sê-lo à guarda do inicial responsável legal, o cabeça de casal.


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            Decisão.

Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelos Recorrentes, vencidos.

Coimbra, 2023-09-26


(Fernando Monteiro)

(Carlos Moreira)

(Moreira do Carmo)