Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
254/10.4TTFIG.1.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: INCIDENTE DE REVISÃO DA INCAPACIDADE
PRESTAÇÕES EM ESPÉCIE
Data do Acordão: 09/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – FIGUEIRA DA FOZ – INST. LOCAL - 2ª SEC. TRABALHO – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 145º DO CPC; ARTº 10º DA LEI Nº 100/97, DE 13/9 (LAT).
Sumário: I – O incidente de revisão de incapacidade, por definição e nos termos do artº 145º do CPT, destina-se a apreciar se se verificou um aumento ou diminuição da capacidade laboral do sinistrado, culminando com o despacho do juiz a manter, aumentar ou reduzir a pensão ou a declarar extinta a obrigação de a pagar – art. 145º, nº 6, do CPT.

II – Contudo, esse preceito não poíbe, nem faria qualquer sentido que o fizesse, que nos autos se discuta outro tipo de questões, como sejam o direito à prestação em espécie a que se refere o artº 10º, al. a) da Lei nº 100/97, de 13/09 (LAT aplicável ao caso).

III – As lesões consequentes a um acidente de trabalho poderão incapacitar o trabalhador para o trabalho, conferindo o artº 10º da LAT o direito à reparação em espécie (compreendendo as prestações referidas na al. a)) e em dinheiro (compreendendo, conforme previsto na al. b), o direito a indemnização, pensão ou capital de remição e demais subsídios aí mencionados).

IV – No tocante aos direitos do sinistrado emergentes de acidente de trabalho, independentemente da posição processual das partes e da actividade por elas desenvolvida ou omitida, o tribunal deve desenvolver toda a actividade processualmente necessária para que se determinem todas as prestações infortunísticas a que o sinistrado tem direito por causa de um acidente de trabalho e, nesse enquadramento, deve condenar cada um dos responsáveis por aquelas prestações a satisfazê-las ao sinistrado.

Decisão Texto Integral:

           

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

Por considerar que se registava uma situação de agravamento das sequelas decorrentes do acidente de trabalho a que estes autos se reportam, bem assim como da incapacidade correspondente às ditas sequelas agravadas, requereu o sinistrado incidente de revisão de incapacidade.

Efectuado exame por por junta médica, os Srs. peritos foram de parecer que se tinha registado efectivamente o agravamento denunciado pelo sinistrado, razão pela qual entenderam que deveria ser atribuída ao sinistrado uma IPP de 75,45%, com IPATH.

                        A fls. 354, o sinistrado apresentou atestado médico, onde se considera que o mesmo tem aptidão física e mental para a condução de veículos das categorias B e B1 (Grupo 1), sendo essa condução “limitada a velocidade inferior a 100 Km/ hora; Caixa de velocidades automática; pedal do travão adequado para ser utilizado pelo é esquerdo”.

                        Notificada de tal documento médico, a seguradora nada veio dizer em relação ao mesmo.

                        Tendo sido notificado para apresentar orçamentos de viatura a adquirir, o sinistrado veio juntar dois- de um Volskwagen Golf Sportsvan 2.0 TDI- 150 cv, no valor de € 25.900,00 - fls. 367, e de um Ford Grand C-MAX 2.0 TDCi- 150 cv, no valor de € 24.181,11- fls. 372.

                        A fls. 379, o sinistrado apresentou requerimento do seguinte teor:

                        “ A... , Sinistrado no âmbito do processo à margem referenciado e nele melhor identificado, notificado do requerimento junto pela Entidade Responsável, vem expor e requerer a V. Exa. o seguinte:

                        1. O Sinistrado, que anteriormente ao sinistro ocorrido, era pessoal saudável e com mobilidade plena, avançou com o presente processo, que de bom grado dispensaria pois seria demonstrativo que nenhuma consequência ao nível da sua saúde teria ocorrido pelo sinistro em causa, com o objectivo de ver ressarcidos, os prejuízos que sofreu.

                        2. Nesse sentido, anteriormente ao acidente, exercia as funções de motorista de pesados, auferindo um vencimento líquido de €2.256,63 (dois mil duzentos e cinquenta e seis euros e sessenta e três cêntimos).

                        3. Após o acidente, passou a auferir uma pensão vitalícia, que hoje se cifra no montante líquido de €1.352,92 (mil trezentos e cinquenta e dois euros e noventa e dois cêntimos) — o seu único rendimento actual — cumulando, até Fevereiro de 2014, com o subsídio de desemprego.

                        4. Sucede que o Sinistrado tinha uma vida orientada e gerida de acordo com os rendimentos que auferia, praticamente o dobro à data do acidente - daqueles que aufere hoje.

                        5. Ora, hoje em dia as suas dificuldades financeiras são grandes.

                        6. Pois está impedido de exercer quaisquer funções.

                        7. Aliás, se a incapacidade atribuida em 2011 ao Sinistrado foi de 56,48%, em Abril de 2015, a mesma foi fixada em 75,45% e, infelizmente com tendência para agravar.

                        8. Em consequência, refere o Sinistrado que não tem quaisquer possibilidades de adquirir uma viatura, colocando-se a Entidade Responsável na confortável situação de suportar as despesas de adaptação do veículo, sabendo que as mesmas, tendo em conta o universo do preço de aquisição de um veículo, são meramente residuais.

                        9. 0 Sinistrado sofreu e sofre física e psicologicamente em consequência das marcas paratoda a sua vida que possui do sinistro.
                        10. Nunca foi ressarcido por quaisquer danos morais relativamente ao acidente.
                        11. Encontra-se em casa desde 15 de Setembro de 2014 — há mais de um ano — pois está impossibilitado de conduzir veículos que não sejam adaptados, em virtude do atestado médico que lhe permitia a condução de veículos ditos “normais” ter expirado na data mencionada, conforme melhor se pode comprovar pelo documento que se anexa sob a forma de n.º 1.
                        12. Aliás, a situação que vive já foi impeditiva de o Sinistrado frequentar duas formações a que foi chamado pelo Centro de Emprego, que se viu obrigado a não comparecer, por não se poder deslocar até aos locais em que as mesmas decorreriam, nem tão pouco lhe ser paga qualquer deslocação.
                        13. Situação essa que levou à sua exclusão da lista de desempregados, pelas faltas referidas, não constando o nome do Sinistrado como desempregado.
                        14. Pelo que nesse sentido, não tem quaisquer condições de suportar a aquisição de um veículo, sem que o mesmo seja pago pela Entidade Responsável — R... — Companhia de Seguros, S.A.
                        15. Opondo-se, em consequência, de forma frontal, a que a Entidade Responsável se responsabilize, somente, pelo pagamento da adaptação da viatura, mas sim pela aquisição e adaptação da mesma, conforme decorre do clausulado no contrato de seguro assinado”.
                        Em resposta, a seguradora veio, a fls. 376, dizer: “Só aceita responsabilizar-se, após sinistrado adquirir a viatura, pelo acréscimo da adaptação mediante apresentação de orçamento”.

Foi, então, proferido o seguinte despacho:

                        “No presente incidente de revisão de incapacidade para o trabalho, em que é Sinistrado A... e (atual) Entidade Responsável “ R... – Companhia de Seguros, S.A.”, o Sinistrado A... veio requerer exame de revisão, nos termos do Art. 145º, n.º 7 do Código de Processo do Trabalho, que se realizou com os resultados que constam dos autos, após o que foi requerida, pela Entidade Responsável “ R... – Companhia de Seguros, S.A.”, a realização de junta médica, que se efetuou sem qualquer reclamação das partes.

                                                                       *

(…)

                        Resultam provados os seguintes factos, ordenados e concatenados lógico-cronologicamente:

                        […]

                       

(…)

                        Assim, considerando que o Sinistrado ficou afetado de Incapacidade Permanente Parcial de 75,45 %, com Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual, os direitos do Sinistrado consistem na atribuição de uma pensão anual e vitalícia, nos termos dos Arts. 10º, al. b) e 17º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 100/97, cujo valor ascende a € 18.792,11 (dado que € 28.870,98 x 70 % = € 20.209,67 e € 28.870,98 x 50 % = € 14.435,49, pelo que (€ 20.209,67 - € 14.435,49) x 75,45 % = € 4.356,62 + € 14.435,49), a ser paga em 1/14 até ao 3.º dia cada mês e ainda os subsídios de férias e de Natal, de idêntico montante, a serem pagos em maio e em novembro (Art. 51º, n.os 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 143/99).

                        3.3.1 – Quanto à aquisição, pelo Sinistrado, de uma viatura automóvel adaptada às sequelas de que ficou afetado, concorda-se com o exposto e requerido pelo Sinistrado, a fls. 379/380 do processo em papel (a cuja factualidade não foi, propriamente, deduzida qualquer oposição pela Entidade Responsável), e já promovido pelo Ministério Público.

                        Assim, considera-se, efetivamente, que o Sinistrado tem direito, nos termos do Art. 10º, al. a) da Lei n.º 100/97, de 13 de setembro, e dado também que está habilitado para a sua condução, ao pagamento pela Entidade Responsável da quantia necessária para a aquisição de uma viatura automóvel adaptada às sequelas com que ficou afetado em resultado do acidente de trabalho objeto deste processo (cfr., por todos e mutatis mutandis, o Acórdão da Relação do Porto de 11 de outubro de 2011, consultado em www.dgsi.pt, em que se escreveu “Quanto à condenação a pagar o subsídio de readaptação automóvel é certo que tal prestação não está assim prevista na LAT. É também certo que nos autos não há qualquer orçamento ou elemento de prova que indique qual o valor da readaptação ou qual o valor mínimo da readaptação. Por isso mesmo, de novo a fixação do valor respetivo foi remetida para a liquidação da sentença, mas por isso mesmo não podia ser fixado um limite mínimo. O recorrido não tem direito a que a recorrente lhe pague a despesa que realizar com a readaptação do seu automóvel, se possível, ou com o custo de aquisição dum veículo já adaptado? Bem pelo contrário. A reparação infortunística laboral, tenha carácter objetivo e responda a seguradora por força do contrato de seguro, importa – como custo da proteção obtida na vivência numa sociedade organizada - na observância dos direitos reparatórios que da lei (e não do contrato) derivam. Dito por outro modo: a seguradora, chamada a responder por força do contrato, responde pelas prestações que derivam da lei. E tais direitos reparatórios visam, na herança civilística, a maior aproximação possível à reparação natural. O que se pretende na reparação dos danos derivados dum acidente de trabalho é, não apenas compensar a perda da capacidade de ganho, mas tanto quanto possível recuperar o sinistrado para a vida ativa – esta é a razão pela qual, não se contesta, este sinistrado tem direito às próteses e à sua renovação. O conceito de vida ativa não é colado ao conceito de vida ativa laboral, mas tem esse alcance mais geral, mais próximo da reparação natural, que é a vida que o sinistrado tinha – ou podia ter – antes de ter sofrido as lesões que lhe resultaram do acidente. Se é claro que um automóvel não é uma prótese, no caso do sinistrado ter um automóvel antes do acidente e poder guiá-lo, se as lesões que sofreu com o acidente já não lhe permitem fazê-lo, está o mesmo privado da sua vida ativa – não se trata do seu conforto, trata-se da sua capacidade de agir como qualquer outro cidadão que tem e pode guiar o seu automóvel. Está privado de levar o filho ao hospital, ou de ir passear, ou de iniciar uma vida laboral nova como taxista (por improvável que seja) está privado quer antes utilizasse muito ou pouco o carro, porque estaria na sua liberdade natural utilizá-lo no futuro, muito ou pouco. Não assim pertinência perguntar se a necessidade do veículo é pontual, para os casos em que a mulher do sinistrado não possa conduzir, porque o sinistrado não era e não tem passar a ser dependente da mulher, neste particular, e porque esta não tinha nem tem de ter carta. Queremos dizer que, embora o artº 10º da LAT remeta os termos das prestações em espécie que elenca na sua al. a) para a futura regulamentação, e esta se encontre no artº 23º do DL 143/99, este elenco tem de ser interpretado à luz do objetivo que aquele artº 10º dispõe, ou seja, “quaisquer outras (prestações), seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas à recuperação do sinistrado para a vida ativa”. Em bom rigor, segundo a lógica da recorrente, uma cadeira de rodas não se integra em nenhuma das alíneas a) a f) do artº 143º nº1, nem é um aparelho de prótese, ortótese e ortopedia, e por isso já tivemos oportunidade em processo anterior, que relatámos, de explicar que a seguradora não deixa de estar obrigada a fornecer uma cadeira de rodas, e que esta obrigação procede da al. h) do nº 1 do artº 143º citado. O raciocínio é o mesmo no que toca à readaptação do veículo. Trata-se também de reabilitação funcional, das funções do corpo que são utilizadas na vida ativa, qual seja, conduzir (o seu) automóvel. Não será porque ficou sem um braço e uma perna que o sinistrado terá de passar ao médico de autocarro. Nenhuma razão assiste à seguradora recorrente ao procurar eximir-se ao pagamento desta reparação”).

                        Em suma e dado igualmente que a Entidade Responsável não põe em causa a necessidade de utilização pelo Sinistrado de uma viatura adaptada, pretendendo apenas que a mesma seja adquirida previamente pelo Sinistrado e só se responsabilizando pelo pagamento da sua adaptação – o que não se afigura correto, dado que a necessidade de aquisição dessa viatura resultou exatamente do acidente em questão e das sequelas resultantes do mesmo, nem se vendo que se deva impor ao Sinistrado que adquira previamente essa viatura (o que seria, de resto, difícil de cumprir pelo mesmo), deve a Entidade Responsável adiantar ao Sinistrado a quantia necessária para a compra da viatura, após o que o Sinistrado deverá comprovar documentalmente ter procedido à sua compra.

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                        4 – Decisão

                        Pelos fundamentos expostos, julgo procedente o presente incidente de

revisão de incapacidade e, em consequência:

                        a) Declaro que o Sinistrado A... se encontra, em virtude do acidente de trabalho objeto deste processo, afetado com uma Incapacidade Permanente Parcial de 75,45 %, com Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual, desde 9/1/2014;

                        b) Condeno a Entidade Responsável “ R... – Companhia de Seguros, S.A.” a pagar ao Sinistrado A... uma pensão anual e vitalícia de € 18.792,11 (dezoito mil setecentos e noventa e dois euros e onze cêntimos), devida desde 9/1/2014, a ser paga na proporção de 1/14 até ao 3.º dia cada mês, sendo os subsídios de férias e de Natal, na mesma proporção, pagos em maio e em novembro, acrescida dos juros de mora, vencidos e vincendos à taxa legal, até integral pagamento;

                        c) Condeno a Entidade Responsável “ R... – Companhia de Seguros, S.A.” a adiantar ao Sinistrado A... a quantia necessária à aquisição de um veículo automóvel adaptado às sequelas que o Sinistrado atualmente apresenta, devendo o Sinistrado comprovar documentalmente junto da Entidade Responsável ter procedido à sua compra.

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                        Custas a cargo da Entidade Responsável (Art. 527º, n.º 1, in fine, e 539º, n.º 1 do Novo Código de Processo Civil, aplicável face ao disposto no Art. 5º, n.º 1 da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, que aprovou o Novo Código de Processo Civil, e subsidiariamente por força do disposto no Art. 1º, n.º 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho), fixando-se o valor deste incidente de revisão, nos termos do Art. 120º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho, no valor que resultar da aplicação das reservas matemáticas à pensão estabelecida – Art. 120º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo do Trabalho, na redação em vigor aquando do início destes autos”.

                        Parcialmente inconformada, recorreu a Ré, arguindo, expressa e separadamente, nulidades da sentença e processual, nos seguintes termos:

                        (1) De facto, afigura-se que este Tribunal não poderia conhecer da questão suscitada nos autos relativa à pretensão do sinistrado de obter uma viatura automóvel adaptada às sequelas de que ficou afectado, pelo que, nessa medida, a douta decisão sempre terá de ser declarada nula, nos termos do nº 1, d) do artº 615º do CPC.

                        (2) Efectivamente, o objecto do presente incidente é, como se vê, a revisão da incapacidade por alegado agravamento das sequelas do acidente de trabalho. A prova desse agravamento será, em princípio, efectuada através de perícia médico-legal, salvo a necessidade de outros exames e ou pareceres complementares e ou pareceres técnicos.

                        (3) No entanto, no incidente suscitou-se ainda uma questão diferente, qual seja a de saber se o sinistrado tem, ou não, e em que medida, direito a uma viatura automóvel adaptada à sua incapacidade. Para tal questão, no modesto entender da entidade responsável, não basta a perspectiva pericial: esta será relevante quanto a saber se o sinistrado possui, ou não, aptidão física, mental ou psicológica e se tem capacidade para conduzir com segurança. Mas tal perícia não pode substituir a discussão contraditória acerca da existência, ou não, de um direito do sinistrado, em concreto, a obter a entrega de viatura automóvel, uma vez que esse direito está sujeito a outros meios de prova e a uma apreciação jurídica dos seus pressupostos legais.

                        (4) Acresce que, como se verá adiante, a perícia por Junta Médica nem sequer se chegou a pronunciar acerca da aptidão física, mental ou psicológica do sinistrado e sobre a sua capacidade para conduzir com segurança, tendo apenas emitido parecer acerca da incapacidade actual. Assim, carece até de fundamento a decisão na parte em que considera que o sinistrado necessita de utilizar um veículo automóvel (cf. nº 2 dos factos provados).

                        (5) Perante pretensão do sinistrado de que lhe fosse entregue uma viatura, deveria, pois, ter sido seguida a tramitação adequada (artº 547º do CPC) à produção de outros meios de prova e à discussão jurídica sobre os pressupostos do alegado direito, com apresentação de uma petição inicial.

                        (6) A omissão do procedimento processual (passe a redundância) adequado à apreciação do direito a uma viatura constitui nulidade processual, que é susceptível de correcção oficiosa, nos termos do artº 193º do CPC.

                        (7) Por outro lado, e como se sublinhou, inexiste nos autos qualquer demonstração probatória de que o sinistrado necessite de utilizar uma viatura, sendo que essa necessidade não se presume. Assim, a douta decisão é, nesse aspecto, pelo menos, obscura, senão mesmo deficiente, na sua fundamentação, o que é igualmente causa da sua nulidade.

                        (8) Finalmente, mas sem prejuízo do exposto, a douta decisão sempre seria, como é, igualmente obscura e ou deficiente na parte em que determina à entidade responsável que adiante a quantia necessária à aquisição de um veículo automóvel adaptado às suas sequelas, sem que se decida, sequer, qual a medida exacta dessa quantia, qual o tipo de viatura, no fundo, qual o critério a seguir na sua fixação da prestação em espécie.

                        Nestes termos, REQUER a V.Exa. se digne apreciar e julgar procedentes as arguidas nulidades, processuais e da douta sentença, sendo anulado o processado após a formulação da reclamação pelo sinistrado, sem prejuízo dos actos cuja validade não deve ser prejudicada, e sendo ordenada a adequação formal do processo para que seja possível a discussão acerca dos pressupostos legais do direito que o sinistrado se arroga, com admissão de outros meios de prova, para o que deverá o sinistrado, querendo, apresentar a sua petição, seguindo-se os demais trâmites.

                        E apresentando as seguintes conclusões:

                        1ª) A douta sentença deve ser anulada pois o Tribunal não poderia conhecer da questão da pretensão do sinistrado a ter um automóvel, questão autónoma suscitada no incidente de revisão, sem que tivesse sido devidamente formulada pretensão, através de uma petição inicial, que permitisse a citação da entidade responsável para contestar, discutindo-se essa pretensão com indicação de outros meios de prova, para além da perícia médico-legal.

                        2ª) Deveria, assim, ter sido adequada a tramitação do processo, o que, não tendo sucedido, é causa de uma nulidade processual, com reflexo na boa decisão da causa.

                        3ª) Inexiste nos autos qualquer demonstração probatória de que o sinistrado necessita de utilizar uma viatura, necessidade que não se presume.

                        4ª) A douta decisão é obscura ou deficiente ao determinar que se adiante a quantia necessária à aquisição de um veículo automóvel adaptado às suas sequelas, sem que se decida, sequer, qual a medida exacta dessa quantia, qual o tipo de viatura, no fundo, qual o critério a seguir na sua fixação da prestação em espécie, como que deixando ao critério do sinistrado a determinação dessa prestação.

                        5ª) A douta decisão de fls. tomou em consideração, como matéria de facto provada, que o sinistrado necessita, para conduzir e possuindo a habilitação necessária para o efeito, de utilizar um veículo automóvel adaptado às sequelas que apresenta (parte final do nº 2 dos factos provados).

                        6ª) Porém, inexiste nos autos qualquer elemento que permita dar como provada tal matéria, não bastando a junção pelo sinistrado de “orçamentos” de viaturas “a adquirir”, por si livremente escolhidas, nem tendo havido da parte da perícia médico-legal qualquer pronúncia sobre a questão.

                        7ª) O direito a dispor de um automóvel como forma de reparação de um acidente de trabalho deve ser discutido quanto aos seus pressupostos fácticos, que aqui não existem, nem foram alegados, pelo que não pode o Tribunal apreciar e decidir se existe, ou não, tal direito, e em que medida deve ele ser satisfeito.

                        8ª) Assim, a matéria de facto em causa não pode constar dos “factos provados”, devendo até ser eliminada dos autos, subsistindo a decisão apenas na parte em que fixa o direito à pensão anual e vitalícia por força de incapacidade, que não se questiona.

                        No caso de assim se não entender, mas apenas por mero dever de patrocínio:

                        9ª) O direito à reparação por acidente de trabalho compreende as denominadas prestações em espécie (artº 10º da Lei 100/97, de 13 de Setembro, e artº 23º do DL 143/99, de 30 de Abril), que não estão taxativamente fixadas na lei, sendo de carácter indeterminado.

                        10ª) A pretensão de atribuição de um veículo automóvel é a de uma ajuda técnica, ou de um produto de apoio, como meio de restabelecimento da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e da sua recuperação para a vida activa, não sendo relevante o interesse que o sinistrado possa ter em determinado tipo de viatura, de gama alta, elevada potência e cilindrada, uma vez que essas características nada têm que ver com o escopo do regime reparatório de acidentes de trabalho.

                        11ª) Segundo informação que a recorrente fez chegar ao processo, apura-se que o sinistrado não tinha qualquer veículo próprio à data do acidente, facto que, pela sua enorme relevância, sempre teria de ser apreciado e considerado.

                        12ª) Conforme tem sido entendido, é inquestionável que a utilização de viatura pode contribuir para a recuperação do sinistrado para a vida activa, assim podendo, dentro do possível, retomar a normalidade da vida anterior ao acidente.

                        13ª) Se o sinistrado não dispunha de qualquer viatura antes do acidente, sendo essa a livre opção, porque nem todas as pessoas possuem viatura própria, e por razões perfeitamente compreensíveis e aceitáveis, mas sendo necessária a viatura, após o infortúnio, deverá o sinistrado deduzir, fundadamente, tal pretensão, não se podendo o Tribunal substituir ao ónus de alegação e prova do sinistrado, conferindo-lhe o direito, sem mais.

                        14ª) Não pode a recorrente ser condenada a adiantar quantia ao sinistrado para que este adquira uma viatura, como se ficasse ao seu livre arbítrio a escolha da prestação em espécie, na falta de um critério (legal) imposto pela decisão, um patamar máximo na fixação de uma ajuda técnica, ou produto de apoio, que na lei se podem recolher nos princípios enformadores do regime legal, e dos artºs 23º, 36º e 37º do DL 143/99.

                        15ª) Nada obsta que o sinistrado, por sua opção própria, possa adquirir aparelho ou dispositivo de custo superior, no caso, uma viatura de valor superior, ainda que essa sua opção individual nada tenha que ver com a capacidade de trabalho ou de ganho ou com a recuperação para a vida activa.

                        16ª) A entrega ao sinistrado de uma viatura fora do critério legal, constituiria um inadmissível enriquecimento sem causa do sinistrado à custa do património da entidade responsável.

                        17ª) Se um sinistrado possuidor de automóvel não pode ser beneficiado, por força do acidente de trabalho, com uma viatura de qualidade superior à que tinha, tendo direito à adaptação necessária na sua viatura, ou em viatura de características e em estado semelhantes, um sinistrado que não possui automóvel, que passa a ter, objectivamente, essa necessidade com o acidente, não tem o direito de escolher a viatura.

                        18ª) E uma pretensão de obter, à custa da entidade responsável, viatura com as características apontadas neste recurso, sem que a tal pretensão corresponda a protecção do interesse tutelado pela lei, constituiria ainda intolerável abuso de direito.

                        19ª) Considera a recorrente que os critérios legais de atribuição de automóvel em sede de reparação de acidente de trabalho não devem ser diferentes dos previstos no Decreto-Lei n.º 93/2009, de 16 de Abril, do Despacho n.º 14278/2014, de 26 de Novembro de 2014, e da Lista de produtos de apoio ali publicada, da qual consta na categoria de “carros”, o código ISO 12-10-06, descrito como “Carros de baixa velocidade”, sendo esse o tipo de viatura eventualmente devido ao sinistrado.

                        20ª) A recorrente não deve ter de adiantar ao sinistrado qualquer quantia, como decidido, mas apenas teria de lhe proporcionar o produto de apoio adequado, não existindo necessidade de subverter as regras de distinção entre prestações em dinheiro e em espécie.

                        21ª) Decidindo, como decidiu, o Tribunal a quo  violou, entre outras, as normas dos artºs 473º e seguintes, 483º e seguintes, 562º do C. Civil, 154º, 193º, 547º, 607º do CPC, 10º da Lei 100/97, 23º, 36º e 37º do DL 143/99, DL 93/2009, Despacho nº 14278/2014 e a Norma ISSO 12-10-06.

                        O Autor contra-alegou, pugnando pela manutenção do julgado, terminando com as seguintes conclusões:

                        A) Não está a douta Sentença a quo ferida de qualquer nulidade;

                        B) O que aqui está em causa é a aquisição de uma viatura a expensas da Entidade Responsável que, também por necessidade do Sinistrado após o acidente, custeou a aquisição de calçado ortopédico e de canadianas para minimizar a sua normal locomoção;

                        C) O presente meio processual é o indicado para também se questionar a referida aquisição, conforme bem decidiu o douto Juiz do Tribunal a quo;

                        D) Ademais encontra-se já junto aos autos um atestado médico elaborado pela Presidente da Junta Médica da Região de Saúde do Centro, em consequência de exames a que o sinistrado foi submetido, porquanto teve necessidade de alterar o seu título de habilitação legal de condução em consequência do sinistro;

                        E) Teve já nos presentes autos a Entidade Responsável oportunidade para se pronunciar sobre hipotéticas nulidades que pudessem assolar o presente processo, pois era já do seu conhecimento que se peticionava a aquisição de uma viatura, nunca o tendo feito;

                        F) Aliás, nos presentes autos, a Recorrente questiona, somente, a aquisição de uma viatura e nem tão pouco a incapacidade atribuída ao Recorrido, nem tão pouco a pensão vitalícia a pagar;

                        G) Tendo, inclusivamente, já adquirido calçado ortopédico e canadianas para o Recorrido, reitera-se, sem refutar essa mesma aquisição nem invocando quaisquer nulidades, não existindo nenhuma tramitação autónoma para o pagamento em espécie dos bens mencionados;

                        H) Por conseguinte, e no âmbito do princípio da restituição natural, procura-se através dos presentes autos colocar o Recorrido numa situação o mais próxima possível daquela em que se encontrava antes da ocorrência do sinistro;

                        I) Como tal, a aquisição de uma viatura adaptada é fundamental para que possa realizar as suas normais deslocações, como seja tratar de tarefas do quotidiano, deslocar-se à cidade da Guarda onde possui uma habitação por ali ter exercido a sua actividade profissional durante vários anos, ou mesmo para sair do meio em que se encontra;

                        J) Aliás, o Recorrido não está impedido de conduzir, podendo-o fazer mas, somente, em veículos adaptados, situação que, como é consabido, surge, somente, após a ocorrência do sinistro, conforme atestado médico elaborado pela Presidente da Junta Médica da Região de Saúde do Centro em Março de 2013, ou seja, há 3 (três) anos, tendo do mesmo sido dado conhecimento junto aos autos e, consequentemente, à Recorrente;

                        K) Neste contexto, o Recorrido está completamente dependente de terceiros, quando podia não depender desses mesmos terceiros, não tendo possibilidades de se deslocar para fora do lugar onde reside e, mesmo dentro deste, para distâncias maiores, sentindo-se cada vez mais enclausurado, psicologicamente mais abatido, sentindo-se um “fardo pesado” para com quem ele convive e habita;

                        L) Ademais, não corresponde à verdade a alegação da Recorrente quando por inúmeras vezes refere, através de informações que obteve – desconhecendo o Recorrido a fonte - que o Recorrido não era possuidor de viatura própria, pelo que se antes não tinha necessidade da mesma, agora, por maioria de razão, também não necessitará;

                        M) De facto e de Direito, há mais de 35 (trinta e cinco anos) que o Recorrido é continuamente proprietário de veículos, sendo que à data do acidente era proprietário de um veículo ligeiro de passageiros de marca Seat, modelo Toledo, 1900 TDI, de matrícula (...), tendo adquirido, posteriormente, em 2011, um outro veículo ligeiro de passageiros, marca VW, modelo Golf 2.0 TDI, que hoje é conduzido pelo seu filho;

                        N) Realça ainda o Recorrido que com o sinistro que sofreu, teve um decréscimo anual de cerca de €12.000,00 (doze mil euros) no seu rendimento o que, a não suceder, permitir-lhe-ia adquirir um veículo automóvel novo, se assim o entendesse, de acordo com as suas necessidades;

                        O) Com a incapacidade que padece, não pode o Recorrido ser impedido de se poder deslocar em viatura própria para o efeito, sem depender de quem quer que seja, quer para tarefas necessárias ao seu quotidiano ou da sua família, bem como deslocar-se à cidade da Guarda conforme fazia regularmente ou, simplesmente, poder distrair-se, saindo de casa, por forma a não poder cair num estado anímico depressivo;

                        P) Como tal deve procurar-se colocar o Recorrido na situação em que se encontrava antes do acidente, pelo que, no caso em apreço, deve dotar-se o Recorrido de um veículo automóvel que lhe permita realizar as deslocações necessárias, conforme ocorriam antes da data do sinistro, por forma a promover ao máximo a sua reabilitação funcional, através dos meios em espécie – como é o caso de um veículo automóvel – necessários;

                        Q) Não estando em causa um mero “capricho” ou factor de conforto do Recorrido, mas sim um factor de necessidade;

                        R) Não sendo possível proporcionar ao Recorrido uma vida “normal” como possuía anteriormente ao acidente, nem tão pouco lhe sendo possível obter título de habilitação legal de condução para as categorias A1, B1, B, C1, C, BE, C1E e CE – que detinha antes da ocorrência do sinistro – mas sim das categorias B1 e B, conforme determinado por Junta Médica realizada pelo Ministério da Saúde, é-lhe possível proporcionar, através de um veículo automóvel adaptado, um meio de locomoção que lhe permitirá encarar a vida de forma mais positiva;

                        S) De todo o modo, por não ser verdade, não pode o Recorrido aceitar o argumento inúmeras vezes utilizado pela Recorrente de que não era possuidor de veículo automóvel, sendo que o mesmo não é, de todo, um factor de conforto, mas sim, dado o seu estado físico e anímico, um bem essencial para que se possa sentir um ser humano útil, até porque o Recorrido não ficou confinado a estar numa cama o resto da vida ou a deslocar-se, somente, através de cadeira de rodas;

                        T) Os orçamentos de viaturas novas juntos aos autos pelo Recorrido nunca foram questionados se não agora pela Recorrente, tendo sido juntos a pedido da mesma que não colocou quaisquer restrições, fossem elas de que ordens fossem, à apresentação dos mesmos, tendo há muito tido conhecimento dos orçamentos;

                        U) De todo o modo, a viatura que melhor se adequa ao estado incapacitante do Recorrido é do tipo “SUV”, pois são os veículos automóveis que possuem altura suficiente, medida desde o banco do condutor e o solo, que permita a entrada menos complexa e mais cómoda na viatura por parte do Recorrente, sem qualquer lesão para o mesmo, conforme foi oportunamente explicado ao perito nomeado e enviado pela Recorrente à habitação do Recorrido;

                        V) Pelo conhecimento que o Recorrido tem do mercado, não existem carros automáticos com cilindrada inferior a 1600 cm3;

                        W) Quanto à questão particular de adaptar o VW Golf do Recorrido, a mesma afigura-se, salvo melhor opinião, pouco viável, não só em virtude da baixa altura do veículo medida desde o banco do condutor até ao solo, o que impede a entrada o Recorrido no mesmo, como também do pouco período de vida útil do carro, o que a curto prazo, demonstrar-se-ia ter sido um custo desnecessário, pela necessidade de adquirir nova viatura;

                        X) Pelo que não poderá o Recorrido ser privado de obter uma viatura adaptada nova, que não necessitaria, caso não tive ocorrido o sinistro em apreço, o que permitirá, somente, minimizar o esforço e o sacrifício que diariamente suporta com o estado em passou a viver.

Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta entendeu não ser de emitir parecer.

                                               x
                        Definindo-se o âmbito do recurso pelas suas conclusões,  temos, como questões em discussão:

-a nulidade da sentença;

- a nulidade processual- erro na forma de processo;

- a impugnação da matéria de facto;

                        - se o sinistrado tem direito ao fornecimento, pela seguradora, de veículo automóvel;

                        - em caso afirmativo, em que termos / condições.

                                               x

Como circunstancialismo relevante temos o descrito no relatório do presente acórdão.

                                               x                     

                        - a nulidade da sentença:

                        Entende a recorrente que  “o Tribunal não poderia conhecer da questão suscitada nos autos relativa à pretensão do sinistrado de obter uma viatura automóvel adaptada às sequelas de que ficou afectado, pelo que, nessa medida, a douta decisão sempre terá de ser declarada nula, nos termos do nº 1, d) do artº 615º do CPC”.
                        Nos termos desta disposição legal, é nula a sentença quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”

                        A consideração, sem mais, dessa simples frase, que transcrevemos, da arguição da recorrente, conduziria a que se considerasse que a mesma estava a invocar um excesso de pronúncia, por o Sr. Juiz ter conhecido de questão que lhe não era lícito conhecer.

                        Acontece, porém, e lida a restante argumentação da recorrente, que o que esta vem invocar é a nulidade processual de erro na forma de processo, dado que, no seu entender,  para apurar se o sinistrado tem, ou não, e em que medida, direito a uma viatura automóvel adaptada à sua incapacidade, não basta a produção da prova pericial em que se traduziu o exame por junta médica, sendo necessária a apresentação de petição inicial, com  a “tramitação adequada (artº 547º do CPC) à produção de outros meios de prova e à discussão jurídica sobre os pressupostos do alegado direito”.

                        Aliás, a própria recorrente acaba por qualificar esse invocado vício como nulidade processual.

                        Estando essa eventual nulidade coberta por decisão judicial, pode ser invocada por via de recurso, cabendo a esta Instância da mesma conhecer.

                        Contudo, a mesma nulidade não existe.

                        É certo que o incidente de revisão de incapacidade, por definição e nos termos do artº 145º do CPT, se destina  a apreciar se se verificou um aumento ou diminuição da capacidade laboral do sinistrado, culminando com o despacho do juiz a manter, aumentar ou reduzir a pensão ou a declarar extinta a obrigação de a pagar- nº 6 de tal artigo.

                        Contudo, esse artigo não proíbe, nem faria qualquer sentido que o fizesse, que nos autos se discuta outro tipo de questões, como sejam o direito à prestação em espécie a que se refere o artº 10º, al. a), da Lei 100/97, de 13/9, (que é a LAT aqui aplicável). O processo de acidente de trabalho, que se destina a fazer valer em juízo a reparação infortunística, com a atribuição, se for caso disso, do direito do sinistrado às prestações previstas na lei, está estruturado por forma, e salvo as excepções no mesmo previstas quanto ao momento e à forma como as mesmas prestações devem ser analisadas, a que em qualquer altura dos autos se aprecie e discuta, com a necessária observação do princípio do contraditório, qualquer pretensão da vítima de acidente de trabalho a que lhe seja facultada qualquer dessas prestações, designadamente em espécie. Sem preocupação de exposição exaustiva, vejam-se o artº 125º, nº 1, em que o juiz pode determinar, em qualquer altura do processo, que a entidade apontada como responsável continue a suportar os encargos com o tratamento do sinistrado e o artº126º, onde se estabelece que “no processo principal se decidem todas as questões, salvo a fixação de incapacidade, quando esta deve correr por apenso” (sendo ambas as disposições do CPT).

                        As lesões consequentes a um acidente de trabalho poderão incapacitar o trabalhador para o trabalho, conferindo o citado artº 10º da Lei 100/97 o direito à reparação em espécie (compreendendo as prestações referidas na al. a)) e em dinheiro (compreendendo, conforme previsto na al. b), o direito a indemnização, pensão ou capital de remição e demais subsídios aí mencionados)

                        Seria sempre um excesso de formalismo a imposição ao sinistrado, para fazer valer o seu direito a uma prestação em espécie - vg cadeira de rodas, próteses- obrigá-lo a elaborar e a apresentar uma petição inicial, só por esse fundamento, com o formalismo e demora daí decorrentes, quando o processo de trabalho lhe permite, por não o proibir, solicitar tal pretensão em qualquer fase dos autos, reconhecido que esteja o seu direito à reparação infortunística, e observados que sejam o princípio do contraditório e a produção da correspondente prova, por natureza de ordem pericial.  

                   E até porque decorre do artº 35º da LAT que os direitos emergentes de acidente de trabalho são de natureza indisponível, significando isso que estão em causa direitos não renunciáveis, de que o seu titular não pode privar-se por simples acto de sua vontade, seja porque a lei o determina, temporária ou definitivamente, seja porque por sua natureza não são alienáveis.

                        Trata-se, assim, de direitos em relação aos quais os seus titulares não têm qualquer poder de disposição, pois nascem, desenvolvem-se e extinguem-se independentemente da vontade dos titulares; são irrenunciáveis e em regra intransmissíveis.

                        Significa isso, no tocante aos direitos do sinistrado emergentes de acidente de trabalho, que independentemente da posição processual das partes e da actividades por elas desenvolvida ou omitida, o tribunal deve desenvolver toda a actividade processualmente necessária para que se determinem todas as prestações infortunísticas a que o sinistrado tem direito por causa de um acidente de trabalho e, nesse enquadramento, deve condenar cada um dos responsáveis por aquelas prestações a satisfazê-las ao sinistrado- cfr. Ac. desta Relação de 23-04-2015, in www.dgsi.pt.

                        Improcedem, assim, as nulidades da sentença e processual invocadas.

                        - a impugnação da matéria de facto:

                        Reage a recorrente contra o facto 2, dado como provado na 1ª instância, no parte em que considera que o sinistrado necessita, para conduzir, de utilizar um veículo automóvel adaptado às sequelas que apresenta, argumentando que nenhuma prova resulta dos autos nesse sentido.

                        Todavia, improcede essa sua pretensão.

                        A fls. 354, e como já se referiu no relatório deste acórdão, o sinistrado apresentou atestado médico, onde se considera que o mesmo tem aptidão física e mental para a condução de veículos, sendo essa condução “limitada a velocidade inferior a 100 km/ hora; Caixa de velocidades automática; pedal do travão adequado para ser utilizado pelo é esquerdo”.

                        Notificada de tal documento médico, a seguradora não o pôs em causa.

                        Tendo sido notificado para apresentar orçamentos de viatura a adquirir, o sinistrado apresentou dois- de um Volkswagen Golf Sportsvan 2.0 TDI- 150 cv, no valor de € 25.900- fls. 367, e de um Ford Grand C-MAX 2.0 TDCi- 150 cv, no valor de €24.181,11- fls. 372.

                        Em resposta, a seguradora veio, a fls. 376, dizer “Só aceita responsabilizar-se, após sinistrado adquirir a viatura, pelo acréscimo da adaptação mediante apresentação de orçamento”.

                        Quer isto dizer que a seguradora expressamente aceitou a necessidade do sinistrado  de utilizar um veículo automóvel adaptado às sequelas que apresenta, e com as características descritas no referido atestado médico.

                        Não pode, como tal e em sede de recurso, vir questionar essa realidade.

                        O processo de trabalho também se caracteriza, quer na sua fase conciliatória, quer na sua fase contenciosa, por se dever dar como assente, desde logo, qualquer questão que seja objecto de acordo entre as partes- sinistrado e entidade responsável, entre elas se incluindo, naturalmente e como não poderia deixar de ser, o direito a qualquer prestação em espécie.

                        É o que resulta claramente do disposto nos artºs 109º, 110º, 111º, 112º, 114º, 115º, 116º, 131º, nº 1, al. c), e 135º, todos do CPT.

                        E assim sendo, e dado o referido acordo expresso, ficou definitivamente resolvida nos autos a questão da necessidade de utilização de veículo automóvel pelo sinistrado e as características do mesmo.

                        E, pelas suas particulares acuidade e similitude com a presente situação, transcreve-se a seguinte passagem do Ac. desta Relação de 4/3/2010, relatado pelo aqui 2º adjunto e disponível in www.dgsi.pt:

              “O quadro legal em que deve ser resolvida a questão é o seguinte.

                        Artigo 10º alínea a) da Lei 100/97 de 13/09 que dispõe: “o direito à reparação compreende, nos termos que vierem a ser regulamentados, as seguintes prestações: em espécie: prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa.

                        Artigo 23º nº 1 alínea h) do Dec. Lei 143/99 de 30/04 que dispões: “as prestações em espécie previstas na alínea a) do artigo 10º da lei têm por modalidades: reabilitação funcional”.

                        Ora, conforme resulta da economia da alínea do citado artigo 10º, uma coisa é o restabelecimento da capacidade de trabalho do sinistrado e outra diferente é a sua recuperação para a sua vida activa, não referindo ou exigindo a lei que esta vida activa seja a vida activa laboral, à qual se refere outra das partes do preceito.

                        Por isso, e desde logo, não podemos acompanhar o entendimento da recorrente quando esta pretende que a vida activa se refere à vida laboral e que a atribuição do micro carro só é legalmente possível se as necessidades de deslocação do sinistrado se inserirem num projecto de reabilitação profissional.

                        Por outro lado, também a alínea h) do nº 1 do citado artigo 23º não fala em reabilitação profissional mas sim em reabilitação funcional, que é coisa diferente.

                        Etimologicamente reabilitação significa recuperar, restabelecer, readquirir, voltar à situação anterior, enquanto palavra funcional se refere às funções de um órgão.

                        Assim por reabilitação funcional deverá entender-se a recuperação por parte do sinistrado das funções que os seus membros inferiores tinham antes da ocorrência do acidente, ou seja, da sua mobilidade que não só é conseguida com a atribuição de uma cadeira de rodas mas também, naturalmente, com a atribuição do micro carro; e esta mobilidade, pelas razões atrás deixadas consignadas, não se refere exclusivamente à necessária mobilidade no âmbito de uma reabilitação profissional.

                        Acresce que a recuperação do sinistrado se prende com o princípio geral de responsabilidade civil da restauração natural (artigo 562º do Cód.Civil, em que por via da obrigação de indemnizar se pretende restabelecer a situação anterior.

                        Como no caso será praticamente impossível em face dos conhecimentos técnicos actuais colocar o sinistrado novamente a andar (relembre-se que o mesmo é paraplégico dos membros inferiores) haverá que lhe disponibilizar os meios em espécie que mais se possam substituir os seus membros naturais de forma a permitir-lhe a maior mobilidade possível, assim se aproximando da almejada, mas inviável, restauração natural”.

                        Improcede, assim, a impugnação.         

                        - a quarta e quinta questões - se o sinistrado tem direito ao fornecimento, pela seguradora, de veículo automóvel, e, em caso afirmativo, em que termos / condições:

                        Já quantos ao termos e critérios para aferição da prestação em espécie, não poderá subsistir o decidido em 1ª instância, já que nada estabelece a esse respeito, havendo, desde já se adianta, que proceder a diligências probatórias, designada mas não necessariamente em exclusivo, a prova pericial, a realizar na 1ª instância

                        Recorde-se que a sentença decidiu no sentido de condenar a seguradora a “adiantar ao Sinistrado A... a quantia necessária à aquisição de um veículo automóvel adaptado às sequelas que o Sinistrado atualmente apresenta, devendo o Sinistrado comprovar documentalmente junto da Entidade Responsável ter procedido à sua compra”.

                        Em primeiro lugar, o fornecimento de qualquer tipo de prestação em espécie    não passa, à partida, pelo adiantamento em dinheiro ao sinistrado, antes deverá ser a entidade responsável, com a brevidade que a situação imponha, a fornecer o equipamento- cadeiras de rodas, próteses, veículo automóvel- que seja adequado às lesões que o sinistrado apresente. É que resulta dos artºs 36º a 38º do DL 143/99, de 30/4 (RLAT), que embora  se refira a “aparelhos de prótese, ortótese e ortopedia” encontra aqui plena aplicação, pelas razões focadas quer na sentença, citando acórdão da Rel. do Porto, quer no aludido Ac. desta Relação de Coimbra.

                        Só no caso de o sinistrado pretender qualquer desses equipamentos de valor superior, designadamente veículo automóvel, é que a seguradora deverá adiantar o dinheiro, à ordem do juiz, no prazo que este fixar, para ser entregue à entidade fornecedora depois de verificado ou autorizado, por esta entidade, o fornecimento do veículo- artº 37º, nºs 1 e 2, do RLAT.

                        Por outro lado, argumenta a recorrente que o Autor- sinistrado  não tinha qualquer veículo automóvel à data do acidente. Nas suas contra-alegações, o Autor refere que tal não é verdade, referindo que “na data do sinistro,  era proprietário de um veículo automóvel de marca Seat, modelo Toledo, 1900 TDI, matrícula (...), e que após o acidente, já em 2011, adquiriu um veículo ligeiro de passageiros de marca VW, modelo Golf 2.0 TDI – conforme documento  (fotocópia de livrete) que anexa– tendo deixado de conduzir o mesmo a partir da supra mencionada data de Março de 2013”.

                        Trata-se de um elemento de facto que também deverá ser averiguado na 1ª instância, até porque releva para efeitos de apuramento do tipo de veículo eventualmente a fornecer ao sinistrado ou da manutenção do actual, como passaremos a abordar.

                        Assim, temos que, como já acima se referiu, a seguradora, a fls. 376, declarou aceitar responsabilizar-se, após o sinistrado adquirir a viatura, “pelo acréscimo da adaptação mediante apresentação de orçamento”.

                        Já vimos, também, que há que considerar como expressamente aceite a necessidade do sinistrado na utilização de veículo automóvel.

                        A questão que se põe é se deverá ordenar-se a adaptação do veículo que o Autor actual e eventualmente disponha, adaptação essa nos termos referidos no atestado médico de fls. 354 (também aceite pela seguradora) -ou se a seguradora deverá providenciar pela aquisição de uma viatura nova, com aquelas características.

                        A questão deverá resolver-se em termos da ponderação custo/benefício/ necessidades concretas do sinistrado, isto é importará apurar, como recurso à indispensável prova pericial, se se justifica – sendo tecnicamente viável- a adaptação, em termos de custos, do veículo eventualmente propriedade do sinistrado (que, segundo a fotocópia de fls. 428, será de 2007) às necessidades deste, em termos de a sua longevidade- vida útil do automóvel- poder fazer crer que a utilização do mesmo se poderá prolongar, sem vicissitudes de maior, por alguns anos, ou se, atentas todas essas variáveis, será, a médio prazo, mais curial e aconselhável adquirir desde já uma viatura nova, adaptada ao sinistrado, com todas as vantagens daí inerentes, designadamente a facilidade de todas as adaptações necessárias já virem de fábrica, a garantia desta e a natural menor propensão a avarias.

                        Outro aspecto que releva, salientado pelo sinistrado, e que nos parece de particular relevância no sentido de se poder optar por uma viatura nova, tem que ver com a adequação da altura ao solo do veículo às capacidades motoras do sinistrado, em termos de determinada altura ser decisiva na opção a fazer. Também isto deverá ser apurado pela correspondente prova pericial, designadamente, neste aspecto, por exame médico.

                        Já quanto à argumentação da recorrente de que o sinistrado pretende um veículo “topo de gama”, não podendo ser beneficiado, por força do acidente de trabalho, com uma viatura de qualidade superior à que tinha, o que se nos oferece dizer é que, por um lado, se desconhece qual a gama do veículo que o sinistrado eventualmente possui e, por outro, da mesma maneira que se entende que se o sinistrado não pode pretender, por força do acidente, um veículo superior, também não lhe é exigível que se contente com qualquer tipo de veículo, quando é certo que os seus padrões de vida anteriores ao acidente lhe permitiam optar por veículos de um determinado nível de preço. Seria uma abordagem miserabilista da necessidades de reparação infortunística, em que, repete-se, por via da obrigação de indemnizar se pretende restabelecer, tanto quanto possível,  a situação anterior ao acidente.

                        Daí que não subscrevamos ao argumento da seguradora de que há que recorrer à legislação indicada na conclusão 19º do seu recurso.

                                   x

                        Decisão:

                        Nos termos expostos, acorda-se em julgar, na estrita medida do exposto, parcialmente procedente a apelação, revogando-se, na parte impugnada, o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que ordene as diligências descritas, bem como outras que se venham a revelar sequencialmente necessárias, decidindo-se, depois, em conformidade.

                        Custas do recurso pela seguradora.

                                                                      

                                                                       Coimbra, 15/09/2016

                                                                      

                                                              (Ramalho Pinto)

                                                                      

                                                                                  (Felizardo Paiva)

                                                                              (Azeve Mendes)