Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1064/08.4TBMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: RECORRIBILIDADE
DESPACHO JUDICIAL
RECLAMAÇÃO DE ACTO DO AGENTE DE EXECUÇÃO
IMPUGNAÇÃO DE DECISÃO DO AGENTE DE EXECUÇÃO
ACEITAÇÃO DE PROPOSTA DE COMPRA
DEPÓSITO DA CAUÇÃO
NULIDADE PROCESSUAL
ERRO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 195.º, 724.º, ALÍNEA C), 824.º, N.º 1, DO CÓDIGO DO PROCESSO CIVIL
Sumário: I) É recorrível o despacho judicial que aprecie uma decisão do agente de execução tomada em domínio vinculado ou da legalidade, sendo desse tipo a decisão judicial que aprecia a decisão do agente de execução de que houve reclamação judicial fundada em ilegalidade por violação da lei processual - aceitação de uma proposta de compra sem prévio depósito da respectiva caução.

II) A aceitação pelo agente de execução de uma proposta de compra sem o prévio depósito da caução devida não envolve nenhuma nulidade processual, antes consubstancia um erro de julgamento.

III) O vício de que padece a decisão de aceitação referida em II) não implica a realização de nova diligência de venda, apenas implicando a revogação da decisão de aceitação da proposta de compra pelo agente de execução, devendo essa decisão ser substituída por outra que rejeite a proposta e, na ausência de qualquer outra de valor superior à do exequente, adjudique o bem penhorado ao exequente.

Decisão Texto Integral:                                                                                                





Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de execução comum, requerida pelo exequente a adjudicação do bem penhorado – quinhão hereditário na herança ilíquida e indivisa por óbito de A... – foi designado dia 16 de novembro de 2020 para abertura de propostas nos termos do artigo 800º do CPC.

Encontrando-se presente apenas a Sra. Agente de Execução, foi deliberada a aceitação da proposta de melhor preço, apresentada por B... , apesar de não acompanhada da caução prevista no artigo 824º nº1 do CPC, desde logo se determinando que, caso o proponente não procedesse ao pagamento do preço, se aceitava a proposta do exequente nos termos do artigo 825º, nº1, al. a) do CPC.

Notificado para proceder ao pagamento imediato da totalidade do preço, mediante a referência multibanco que lhe foi enviada, veio o proponente, por carta datada de 27 de novembro de 2020, solicitar ao AE que, tendo sido informado de que tal herança tinha sido vendida num processo de insolvência e que os prédios se encontravam já na possa do novo dono, informe quais os bens que, neste momento, fazem parte do quinhão hereditário por si licitado.

Pela Srª. Agente de Execução foi proferida, a 04 de dezembro de 2020, a seguinte Decisão:

“Venho no seguimento da sua comunicação, a qual mereceu a minha melhor atenção e face ao teor da mesma cumpre informar que, o que efectivamente está em venda é um quinhão hereditário, ou seja uma universalidade de facto, pelo que não se compreende o motivo das diligências que entendeu por si concretizar sem que tivesse solicitado esclarecimentos no próprio processo.

Mais informo que efectivamente a herança está insolvente e a ser administrada por Administrador de Insolvência, que eventualmente já realizou vendas do património da mesma, cujo produto está salvaguardado para o processo, entre eles os herdeiros, e nessa medida a existência e interesse do quinhão hereditário dos presentes autos de um desses herdeiros.

O quinhão hereditário é a fração ou quota da herança a que tem direito o herdeiro, numa herança.

A qual é o conjunto de relações jurídicas de conteúdo patrimonial de uma pessoa falecida. Por outras palavras, é o conjunto de bens, direitos e dívidas de que de era titular a pessoa que morreu.

No entanto e considerando que não fez até ao momento o pagamento nos termos do disposto no artigo 824º do CPC, vai a sua proposta recusada. (…)”

A Executada C... vem, por requerimento apresentado a 11 de dezembro 2020, Reclamar do despacho da Sra. Agente de Execução, com a seguinte alegação:

 aceite a proposta, caberia à Sra. Agente de Execução informar o proponente de que o quinhão hereditário permitiria ao adquirente concorrer na insolvência da herança em substituição do herdeiro executado e, face à aceitação da proposta e informação prestada, deveria a Sra. Agente de Execução notificar o proponente para efetuar o depósito da totalidade do preço, o que não fez, rejeitando, pura e simplesmente a proposta após ser aceite.

Conclui dever ser revogada a decisão reclamada, notificando-se o proponente para proceder ao depósito do valor correspondente à proposta por si apresentada ou, em alternativa, agendar nova data para apresentação de propostas, face à ilegalidade por si cometida na aceitação não acompanhada por cheque visado de 5%, em violação do artigo 824º, ns. 1 e 2, CPC.

A Reclamação da executada vem a ser objeto da seguinte Decisão por parte do juiz a quo, de que agora se recorre:

“Reclamação de ato de agente de execução

O auto de abertura de propostas em carta fechada é datado de 16.11.2020.

Analisada a mesma constata-se que não observou, desde logo, a formalidade prevista no artigo 824º, n.º1 do Código de Processo Civil.

Notificado o proponente, por notificação expedida em 16.11.2020, para efectuar o depósito da globalidade do preço, o mesmo nada depositou. Solicitou esclarecimento sobre os bens que compõem o quinhão hereditário, do que lhe foi dada resposta pela agente de execução em 04.12.2020, pelo que não assiste razão ao aduzido a este respeito pela executada/reclamante e bem andou a agente de execução a rejeitar a proposta por falta de depósito do preço.

O facto de não ter sido dado cumprimento ao disposto no artigo 824º, n.º1 do C.P.C. não constitui nulidade prevista na lei, mas apenas mera irregularidade artigo 195º, n.º1, do C.P.C., a qual foi imediatamente cognoscível pelo mandatário da executada/reclamante, quando foi notificado do teor do auto de abertura de propostas, notificação esta datada de 17.11.2020 (artigo 199º, n.º1 do C.P.C.), pelo que, mesmo que se entendesse que a executada podia invocar tal irregularidade, por ter interesse na observância da formalidade legal e não observância da mesma influir na decisão da causa (na decisão de venda), a verdade é que a mesma não foi tempestivamente arguida (veio apenas agora em 14.12.2020), estando sanada.

Nos termos e com os fundamentos expostos, julga-se improcedente a reclamação de ato de agente de execução apresentada.

Não obstante a improcedência da reclamação, a mesma não é manifesta, pelo que, entendemos não haver lugar à aplicação de multa (cfr. art.º 723.º, n.º 2 do nCPC, a contrario).

Notifique e comunique ao Ex.mo Sr. Agente de Execução.”


*

Inconformada com tal decisão, a Executada dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:
(…)
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Recorribilidade da decisão do juiz que julgou improcedente a reclamação da executada
2. Se a irregularidade decorrente de ter sido aceite a proposta em causa era relevante e não se encontrava sanada, tendo sido tempestivamente arguida.
3. A ser reconhecida a invocada irregularidade, se teria por consequência a repetição da venda.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
1. Questão prévia – recorribilidade da decisão do juiz que julgou improcedente a reclamação da executada
Apesar de não invocada nos autos, levantou-se neste coletivo a questão acerca da recorribilidade da decisão do juiz que aprecia a reclamação de uma decisão do agente de execução.
Apesar de a al. c) do art. 724º CPC estabelecer a regra da recorribilidade do despacho judicial que aprecie a reclamação de ato ou a impugnação de decisão do agente de execução, diversos autores (seguidos por alguma jurisprudência) vêm adotando uma interpretação restrititiva daquela norma, no sentido de não se aplicar a regra da irrecorribilidade:
- quando os despachos respeitem à suspensão, extinção ou a anulação da decisão, uma vez que o artigo 853º CPC prevê expressamente ser a mesma suscetível de Apelação autónoma (Rui Pinto, CPC Anotado, vol. II, Coimbra Editora, p. 493, e "A Ação Executiva", AAFDL Editora);
- haveria que distinguir entre os atos e decisões praticados pelo agente de execução no âmbito da sua atividade discricionária - ex. decisão sobre a modalidade da venda e os bens a penhorar – e os que são praticados no domínio vinculado ou da legalidade. No domínio da atividade discricionária o juiz limitar-se-ia a apreciar a razoabilidade da decisão tomada pelo agente de execução, e daí a irrecorribilidade deste despacho. Já quando nos movemos no domínio da legalidade,  em que se encontre em causa um ato ou uma decisão vinculada do agente de decisão, pela possibilidade de afetar direitos das partes ou de terceiros, o juiz apreciará a reclamação com possibilidade de recurso[1].  
No caso em preço, encontra-se em causa a reclamação de uma decisão do agente de execução com fundamento na ilegalidade por violação da lei processual (aceitação de uma proposta sem prévio depósito da respetiva caução), pelo que, dentro deste último critério[2], integrar-se-ia no âmbito da atividade vinculada do agente de execução, como tal, recorrível.
*
2. Se a regularidade invocada era relevante, não se encontrava sanada e tinha sido tempestivamente arguida.
A executada/Apelante faz assentar as suas discordâncias com o decidido, insistindo em que a irregularidade decorrente da falta de depósito da caução por parte do proponente é relevante, alegando que tal constituiu uma nulidade processual e que se encontra ainda em tempo de a invocar, sustentando que na procedência do reconhecimento de tal nulidade deve ser revogado o despacho que mandar prosseguir a venda e que seja ordenada nova diligência de venda.
Não é de dar razão à Apelante.
Em primeiro lugar, a aceitação de uma proposta sem que a mesma viesse acompanhada da caução prevista no nº1 do artigo 824º, do CPC, na sequência de uma decisão do Agente de Execução, não era suscetível de constituir uma nulidade do processo, nos termos em que esta se encontra prevista nos artigos 195 a 202º do CPC.
Segundo o disposto no nº1 do artigo 195º do CPC, integrará uma nulidade “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva (…)”.
No caso em apreço, encontrando-se a omissão do depósito validada por uma decisão do Agente de Execução – que aceitou tal proposta apesar de não vir acompanhada da caução legal, tal constituiria, eventualmente, um erro de julgamento, revogável mediante Reclamação dessa mesma decisão para o juiz da causa.
Ora, notificada a executada de tal decisão por carta datada de 17.11.2020, não reclamou da mesma, vindo, tão só, a 11 de dezembro de 2020, reclamar da posterior decisão proferida a 04.12.2020, “que recusou a proposta após ter sido aceite”.
À data em que a Executada apresenta a reclamação, 11 de dezembro de 2020, há muito se havia esgotado o prazo de 10 dias para reclamar da irregularidade ocorrida a quando da abertura de propostas, consistente na aceitação de uma proposta sem que a mesma se encontrasse acompanhada de caução, em violação do disposto no artigo 824º nº1, do CPC.
De qualquer modo, ainda que o tribunal reconhecesse que o Sr. Agente de Execução errou ao aceitar a proposta desacompanhada da caução – fosse, reconhecendo a existência de uma nulidade e a tempestividade da sua invocação e julgasse procedente a invocada nulidade, fosse pela via do reconhecimento de que o Agente de execução cometeu um erro de julgamento (e tivesse ocorrido reclamação tempestiva de tal acto) –, sempre tal irregularidade teria por consequência, não “a repetição do ato da venda,” “agendando-se nova data para a aceitação da proposta”, como requer a Reclamante, mas, tão só, a revogação do ato de aceitação de tal proposta, com a consequente adjudicação do direito penhorado ao exequente, por inexistir qualquer outra proposta de valor superior.
A integrar um vício de nulidade (e não integra), só o ato de aceitação da proposta e os termos subsequentes seriam anulados, nos termos do nº2 do artigo 195º do CPC, segundo o qual “quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as partes que dela sejam independentes”.
Encontrando-nos perante a impugnação de uma decisão da Sra. Agente de decisão, o reconhecimento pelo tribunal de erro de julgamento teria por consequência a revogação da decisão que aceitou a proposta, substituindo-a por outra que rejeitasse, sem mais tal proposta e, na ausência de qualquer outra de valor superior à do exequente, a consequente adjudicação do direito penhorado ao exequente.
Ora, essa é precisamente a decisão tomada pela Sra. Agente de Execução no único ato sujeito a reclamação e que foi objeto da decisão recorrida.

A apelação será de improceder sem outras considerações.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pela apelante.         

                                                                            Coimbra, 26 de outubro de 2021

Voto de vencido

Votei a decisão em sentido favorável. Porém, não teria admitido o recurso, face ao disposto no artº 723º, nº 1, alínea c) do CPC, por entender, tratar-se de decisão irrecorrível (no sentido defendido no Ac. do  TRC de 22.01.2019, proc. 556/08.TBPMS-D.C1 e no Ac. TRG de 20.05.2021 proc. 2743/17.0T8GMR-D.G1, acessíveis em www.dgsi.pt).

                                                                                                          (Helena Melo)


(…)


[1] J. H. Delgado de Carvalho, "Jurisdição e Caso Estabilizado", Quid Juris, pp. 191 a 193, e em igual sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, "CPC Anotado, Vol. II, Almedina, p. 63.
[2] Critério aplicado pelos Acórdãos do TRL de 11.07.2019, de Jorge Leal, e de 05.05.2020, relatado por Micaela Sousa, disponíveis in www.dgsi.pt.