Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
131/13.7TBFCR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
QUESTÃO PREJUDICIAL
RESPONSABILIDADE CIVIL
SEGURADORA
INCÊNDIO
INQUÉRITO
RESPONSABILIDADE CRIMINAL
Data do Acordão: 09/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA - GUARDA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL E CRIMINAL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 272º, Nº 1, 1ª PARTE, DO CPC
Sumário: I – A suspensão da instância, ao abrigo do disposto no art. 92º, nº 1, do CPC, pressupõe a existência de uma questão que, constituindo um pressuposto necessário da decisão de determinada causa (questão prejudicial), seja da competência do tribunal criminal ou do administrativo.

II – Ao contrário do que acontece com a situação prevista no art. 92º, nº 1 – em que a mera constatação da existência de uma questão prejudicial, que seja da competência do tribunal criminal ou administrativo, legitima o juiz a sobrestar na sua decisão para que as partes promovam, junto do tribunal competente, a resolução dessa questão –, a suspensão da instância, ao abrigo do disposto no art. 272º, nº 1, 1ª parte, do CPC pressupõe que já se encontre pendente uma outra acção onde se discute uma determinada questão da qual depende a decisão da causa, independentemente da natureza dessa questão e independentemente de ela se integrar ou não no âmbito de competência do tribunal da causa.

III – Discutindo-se nos autos a responsabilidade de uma seguradora pelos danos causados por um incêndio e a eventual exclusão da sua responsabilidade por acto doloso da Autora/segurada, relativamente à origem do incêndio, não se configura a existência de qualquer questão prejudicial que seja da competência do tribunal criminal e que legitime a suspensão da instância ao abrigo do art. 92º do CPC, porquanto a eventual responsabilidade criminal que possa advir desses factos (e só esta questão seria da competência do tribunal criminal) não é condição necessária para a decisão da presente causa à qual apenas interessa o apuramento daqueles factos e a sua integração e valoração à luz do contrato do seguro e da lei civil, independentemente da circunstância de eles poderem vir (ou não) a ser qualificados como crime e de poderem vir (ou não) a desencadear responsabilidade criminal.

IV – Um inquérito que corre termos nos Serviços do Ministério Público com vista à averiguação das circunstâncias e autoria do incêndio em causa nos autos – inquérito que nem sequer corre contra pessoa determinada e que até já havia sido arquivado, tendo sido agora reaberto a pedido da Ré – não constitui causa prejudicial que possa legitimar a suspensão da instância ao abrigo do disposto no art. 272º, nº 1, 1ª parte, do CPC.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... , Ldª, com sede em Figueira de Castelo Rodrigo, intentou a presente acção contra B... , S.A., com sede na (...), Lisboa, pedindo que esta lhe pague a quantia de 700.000,00€ acrescida de juros e de outras quantias a liquidar posteriormente, a título de danos emergentes de um incêndio ocorrido em 21/05/2012 num empreendimento que explorava comercialmente e relativamente ao qual havia celebrado com a Ré um contrato de seguro pelo qual havia transferido o risco de ocorrência de incêndio no aludido empreendimento, mais alegando que, à data, estava a correr termos pelos serviços do Ministério Público o processo-crime, ainda em fase de inquérito, com o nº 56/12.3JAGRD.

A Ré contestou, impugnando os danos invocados e alegando, designadamente, que o incêndio não teve carácter acidental, tendo sido provocado intencionalmente, existindo muitas dúvidas sobre quem teria efectuado os preparativos de fogo posto, dada a ausência de sinais de arrombamento e a ausência de vestígios exteriores de introdução forçada.

Na audiência prévia, a Ré foi convidada a aperfeiçoar a sua contestação, tomando posição definitiva sobre os factos respeitantes a actos eventualmente dolosos da Autora, tendo a Ré reafirmado e concretizado os factos que havia alegado, aludindo a dúvidas sobre quem teria efectuado os preparativos de fogo posto e dizendo que, dada a ausência de sinais de arrombamento e a ausência de vestígios exteriores, os mesmos só poderiam ter sido perpetrados por quem tinha acesso ao local.

Foi proferido despacho saneador, foi admitida a intervenção principal provocada de C..., S.A. e, depois de esta ter vindo declarar que fazia seus os articulados da Autora, foram fixados o objecto do litígio e os temas de prova.

Os autos prosseguiram com a designação de data para a realização da audiência de discussão e escassos dias antes da data designada para o julgamento, a Ré veio apresentar requerimento, onde alegava que, no dia 25/06/2014, havia requerido a reabertura do inquérito no processo nº 56/12.3JAGRD e que o resultado do inquérito tinha relevância para os autos e, com base nesses factos, requereu a suspensão destes autos, nos termos do art. 92º, nº1, do CPC.

A Interveniente opôs-se a tal requerimento e a Autora veio dizer que, apesar de entender que não existia uma questão prejudicial, não se opunha a que fosse dada sem efeito a data designada para julgamento e que os autos aguardassem a pronúncia do MP a respeito do estado do inquérito.

Entretanto, veio aos autos a informação de que o aludido inquérito havia sido reaberto e que se encontrava em investigação na Polícia Judiciária, não havendo conhecimento da constituição de arguidos.

 

Na sequência desse facto, foi proferido despacho que, ao abrigo do disposto nos arts. 92º e 272º, nº 1, do CPC, determinou a suspensão da instância até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no aludido processo que considerou corresponder a uma causa/questão prejudicial.

Discordando dessa decisão, a Autora veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. O douto despacho de fls. deve ser revogado.

2. O inquérito-crime que corre termos nos Serviços do Mº Pº da Instância Local de Figueira de Castelo Rodrigo, da Comarca da Guarda, com o nº 56/12.3JAGRD, não constitui, perante os presentes autos, qualquer questão ou causa prejudicial.

3. A questão controvertida nos presentes autos radica no (in)cumprimento de contrato de seguro, por força da ocorrência de sinistro (incêndio).

4. O contrato de seguro em causa é regido pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16.04, que aprovou a Lei do Contrato de Seguro.

5. Tal regime legal prevê a exoneração da seguradora em caso de actos dolosos (cf. artigo 46º daquela Lei).

6. Nesse conspecto, e em sede de contestação de fls., a R. seguradora invocou factos susceptíveis, em abstracto, de integrarem actos dolosos.

7. Por despacho de fls., proferido em audiência prévia de 18.03.2014 (v. acta), a R. foi convidada a concretizar esses factos – por serem lacónicos –, o que fez.

8. Assim, é notória a suficiência processual da presente instância para apuramento de quaisquer eventuais factos geradores da exoneração de responsabilidade civil da R. por actos dolosos do segurado.

9. Tanto assim que a prova carreada para os presentes autos pela R. é a mesma que elencou no requerimento de reabertura do inquérito (reaberto em 1.07.2014).

10. Donde, não se verifica qualquer relação de essencialidade entre os dois processos.

11. Constituindo o pedido de suspensão da instância formulado pela R. uma tentativa (óbvia) de protelamento no tempo dos presentes autos.

12. Donde, perante o exposto, e tratando-se, ademais, de uma faculdade – e não de um dever –, não deveria o Tribunal ter acolhido a pretensão da R.

13. Até porque, se inexiste questão prejudicial, para os estritos termos do disposto no nº 1 do artigo 92º do NCPC – norma que se tem por erradamente aplicada –,

14. Menos ainda existirá uma causa prejudicial, à luz do que dispõe o nº 1 do artigo 272º do NCPC.

15. Tanto mais que, face à informação trazida aos autos, a fls., pelo Mº Pº, não é possível, em sede de prognose póstuma, sequer considerar como provável que o inquérito venha a desembocar em algo diverso de (novo…) arquivamento.

16. Note-se que o Mº Pº dá conta de que não há sequer arguidos constituídos nesse inquérito.

17. Ora, acresce que, e sem prescindir ou conceder do exposto,

18. Deve o Tribunal não só aferir da viabilidade (e interesse) de uma eventual causa prejudicial, cf. dispõe o nº 2 do artigo 272º do NCPC,

19. Como, convencendo-se que ela existe, deve sopesar as vantagens e desvantagens advenientes da suspensão da instância.

20. Ora, a proceder o entendimento do Tribunal a quo, tal significa que a presente instância, instaurada em 27.11.2013, ficará suspensa a aguardar o desfecho de um inquérito-crime, relativamente ao qual não constam quaisquer elementos nos autos além da informação de fls. dos Serviços do Mº Pº competentes, e a cópia do requerimento de reabertura do inquérito,

21. Inquérito esse sem quaisquer arguidos constituídos, pondo-se em causa a tramitação normal da presente acção, que visa o ressarcimento dos avultados prejuízos descritos na PI de fls.

22. Donde, o Tribunal a quo pronunciou-se pela suspensão da instância sem curar de ponderar as desvantagens notórias que tal acarreta para os presentes autos.

23. O que naturalmente sempre deve determinar a revogação do douto despacho de fls.

24. Sem prescindir ou conceder do atrás exposto, sempre por cautela legal de patrocínio, e mesmo que se admita poder existir uma causa/questão prejudicial,

25. Diga-se, por último, que o Tribunal mal andou, em qualquer caso, ao suspender a presente instância “até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no supra aludido processo”.

26. Com efeito, como transita, por exemplo, a (mais que) expectável decisão de arquivamento? E se a R. decidir pedir sucessivas reaberturas do inquérito? Os presentes autos ficam a aguardar ad eternum?

27. Donde, verifica-se, em qualquer caso, que a decisão proferida não pode subsistir.

28. Na medida em que viola o disposto no nº 3 do artigo 272º do NCPC, o qual se deve ter aqui por aplicável, dado que, como dissemos acima, o inquérito não é uma causa tout court.

29. Pelo que – e sem prescindir – e a concluir pela existência de uma questão/causa prejudicial, sempre deveria o Tribunal ter fixado um prazo para a suspensão.

NORMAS VIOLADAS:

- artigo 92º, nº 1, do NCPC; e

- artigos 272º, nºs 1, 2 e 3 do NCPC.

Não foram apresentadas contra-alegações.    


/////

II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se estão reunidos os pressupostos necessários para que possa ser decretada a suspensão da instância, seja ao abrigo do disposto no art. 92º do CPC, seja ao abrigo do disposto no art. 272º do mesmo diploma, o que nos reconduz à questão de saber se existe ou não uma questão prejudicial para os efeitos da primeira disposição legal ou se o inquérito que se encontra pendente corresponde a uma causa prejudicial para os efeitos do art. 272º; caso se conclua pela existência de causa prejudicial, importará ainda ponderar as vantagens e desvantagens da suspensão de forma a saber se ela deve ou não ser decretada e, caso se conclua pela suspensão, importará ainda saber se deveria ter sido fixado um prazo determinado para a sua duração. 


/////

III.

A decisão recorrida determinou a suspensão da instância ao abrigo do disposto nos arts. 92º e 272º, nº 1, do CPC, sustentando a Apelante que não existe qualquer questão ou causa prejudicial e que, de todo o modo, os prejuízos decorrentes dessa suspensão sempre superariam as vantagens, tendo em conta o estado do inquérito, razão pela qual a decisão recorrida deve ser revogada.

Analisemos, então, a questão, na perspectiva de cada uma das disposições legais com base nas quais se determinou a suspensão da instância.

O artigo 92º dispõe nos seguintes termos:

1 - Se o conhecimento do objeto da ação depender da decisão de uma questão que seja da competência do tribunal criminal ou do tribunal administrativo, pode o juiz sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie.

2 - A suspensão fica sem efeito se a ação penal ou a ação administrativa não for exercida dentro de um mês  ou se o respetivo processo estiver parado, por negligência das partes, durante o mesmo prazo; neste caso, o juiz da ação decidirá a questão prejudicial, mas a sua decisão não produz efeitos fora do processo em que for proferida”.

Podendo definir-se a questão prejudicial como sendo aquela cuja resolução constitui um pressuposto necessário da decisão de mérito que importa proferir em determinada acção, o que se determina na norma supra citada é que, caso a decisão dessa questão seja da competência do tribunal criminal ou do tribunal administrativo, o juiz tem a faculdade de sobrestar na decisão – suspendendo a instância – até que tal questão seja decidida pelo tribunal competente. Trata-se, no entanto, de uma faculdade do juiz – como decorre da utilização da expressão “pode” – pelo que, ao invés de sobrestar na decisão, também lhe será permitido conhecer dessa questão com vista à decisão da causa e ficando mesmo obrigado a tal apreciação, caso se verifique a situação prevista no nº2, ainda que, nessa parte, a decisão não produza efeitos fora do processo (cfr. nº 2 da norma citada).

De qualquer forma, ainda que esteja em causa uma faculdade que o juiz pode ou não exercer, a suspensão decretada ao abrigo da norma citada pressupõe necessariamente a existência de uma questão prejudicial que seja da competência do tribunal criminal ou do tribunal administrativo e é isto que a Apelante entende não existir.

Refira-se que a questão prejudicial, para efeitos da norma que estamos a analisar, não corresponde a causa ou acção prejudicial, já que, para efeitos de suspensão ao abrigo do art. 92º, não é necessário que se encontre pendente, no tribunal competente (criminal ou administrativo) uma qualquer causa ou acção que tenha como objecto essa questão; o que releva, para efeitos de funcionamento da norma citada, é a mera existência de uma questão que deva ser qualificada como prejudicial e que esta seja da competência do tribunal criminal ou administrativo; verificada esta situação, pode o juiz sobrestar na decisão, remetendo as partes para o tribunal competente, onde deverão requerer a resolução da questão (caso ainda não o tenham feito) no prazo de um mês (porquanto, não o fazendo nesse prazo, a suspensão fica sem efeito e a questão será apreciada pelo juiz da acção, embora com eficácia limitada a esse processo – cfr. nº 2 da norma citada).

Ora, salvo o devido respeito e ao contrário do que se considerou na decisão recorrida, não nos parece que exista aqui uma qualquer questão prejudicial que seja da competência do tribunal criminal.

Na perspectiva da decisão recorrida, a questão prejudicial que seria do conhecimento do tribunal criminal corresponde à determinação da origem e autoria do incêndio que é invocado nos autos como causa de pedir e à eventual existência de actos dolosos (fogo posto) por parte da própria Autora que seriam susceptíveis de excluir a responsabilidade da Ré/seguradora.

Ora, sendo evidente que a responsabilidade criminal eventualmente decorrente desses factos é da competência do tribunal criminal, a verdade é que a existência ou não de crime e a inerente responsabilidade criminal não é condição necessária para a decisão da presente causa. Aquilo que releva para a decisão da causa é a ocorrência do incêndio, enquanto sinistro coberto pelo seguro, os danos dele emergentes e a eventual existência de actos dolosos da própria Autora/segurada (relativamente à origem do incêndio) que sejam susceptíveis de excluir a responsabilidade da seguradora nos termos do contrato de seguro que foi celebrado entre as partes; no entanto, ainda que esses factos possam ser passíveis de integrar um tipo legal de crime e de implicar responsabilidade criminal, na óptica da presente acção (de natureza cível), essa responsabilidade criminal não é condição necessária para a respectiva decisão, porquanto o que está aqui em causa é a valoração daqueles factos na lógica do contrato que foi celebrado entre as partes e, portanto, numa perspectiva diferente daquela que está subjacente à responsabilidade criminal. Em suma, dir-se-á que, para a decisão da presente causa, o que importa é o apuramento daqueles factos e a sua integração e valoração à luz do contrato e não a circunstância de eles poderem vir a ser qualificados como crime e de poderem vir a desencadear responsabilidade criminal.

Temos como certo, portanto, que os factos em questão, enquanto pressupostos do direito invocado pela Autora ou de exclusão da responsabilidade da Ré são da competência do tribunal cível. É certo que esses mesmos factos poderão, em teoria, corresponder à prática de actos que a lei penal tipifica como crime e tal qualificação, bem como a aplicação de uma pena de natureza criminal, é da competência do tribunal criminal. Todavia – reafirma-se – para a decisão da presente causa é indiferente que aqueles factos sejam efectivamente qualificados como crime, porquanto o que aqui interessa são as consequências deles emergentes à luz do contrato e da lei civil.

A ser de outro modo, teríamos que concluir que em todas as acções cíveis destinadas a efectivar a responsabilidade civil emergente de facto ilícito existiria uma questão prejudicial da competência do tribunal criminal sempre que o facto ilícito em causa correspondesse a um facto que, em abstracto, fosse susceptível de corresponder a um ilícito criminal e, em conformidade, todas essas acções cíveis poderiam – ou deveriam – ser suspensas para que tal questão fosse decidida no tribunal competente. E não nos parece, de facto, que assim deva ser entendido, porquanto o tribunal cível tem competência para apurar a existência do facto ilícito e para dele extrair as necessárias consequências ao nível da responsabilidade civil, independentemente da responsabilidade criminal que dele também possa advir.

Concluimos, portanto, que não existe qualquer questão prejudicial que, por ser da competência do tribunal criminal, pudesse justificar a suspensão da instância, ao abrigo do citado art. 92º.

Analisemos agora a questão na perspectiva do disposto no art. 272º do CPC.

Dispõe o nº 1 da norma citada que: “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.

Ao contrário do que acontece com a situação prevista no art. 92º, o que está aqui em causa já não é – pelo menos necessariamente – uma questão prejudicial que seja da competência de um tribunal administrativo ou criminal, mas sim uma questão que já se encontra autonomizada como objecto de uma outra causa que se encontra pendente. Ou seja, o que está subjacente à suspensão prevista no art. 92º é a circunstância de o tribunal da causa ser, em princípio, incompetente em razão da matéria (porque essa competência está legalmente atribuída aos tribunais criminais ou aos tribunais administrativos) para decidir uma questão cuja resolução é necessária para a decisão da causa, por isso se permitindo ao juiz da causa que determine a suspensão para que as partes promovam, junto do tribunal competente, a resolução dessa questão; o que está subjacente à suspensão prevista no art. 272º já não é a incompetência do tribunal para apreciar uma questão de natureza criminal ou administrativa, mas sim a mera circunstância de estar já pendente uma outra acção onde se discute uma determinada questão (independentemente da sua natureza e independentemente de ela se integrar ou não no âmbito de competência do tribunal da causa) da qual depende o julgamento que aqui importa efectuar. Em suma, e como refere o Prof. Alberto dos Reis[1], na situação prevista no art. 92º, “…o juiz reconhece-se incompetente em razão da matéria para conhecer da questão prejudicial…”, ao passo que, na situação prevista no art. 272º, “…não é por uma razão de incompetência que o juiz suspende a instância, é por uma razão de conveniência. Uma vez que está pendente a causa prejudicial, julga-se conveniente aguardar que ela seja decidida. O juiz da causa subordinada pode ser normalmente competente para decidir a causa prejudicial; mas como esta está proposta e o julgamento dela pode destruir a razão de ser da outra causa, considera-se razoável a suspensão da instância subordinada”.

Para que a suspensão possa ser decretada, ao abrigo da primeira parte do art. 272º, é necessário, em primeiro lugar, que exista uma outra causa/acção pendente e é necessário, em segundo lugar, que exista entre ambas as acções uma relação de dependência ou prejudicialidade.

Nas palavras do Prof. José Alberto dos Reis, “uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão da primeira pode destruir ou modificar o fundamento ou a razão da segunda…[2], referindo ainda que “sempre que numa acção se ataca um acto ou facto jurídico que é pressuposto necessário de outra acção, aquela é prejudicial em relação a esta[3].

Em termos gerais, podemos afirmar a existência de prejudicialidade quando a decisão de uma causa possa afectar e prejudicar o julgamento de outra, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser, o que acontece, designadamente, quando “…na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem que ser considerada para a decisão do outro pleito, quando a decisão de uma acção - a dependente - é atacada ou afectada pela decisão ou julgamento emitido noutra[4] ou quando “…numa acção já instaurada se esteja a apreciar uma questão cuja resolução tenha que ser considerada para a decisão da causa em apreço[5].

Entende-se, assim, por causa prejudicial aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia.

Mas – retomando o que dissemos supra – para que seja legítima a suspensão da instância com fundamento na pendência de causa prejudicial, é necessário que se encontre já instaurada e pendente uma outra causa/acção, já que, não sendo esse o caso, será, naturalmente, o tribunal da causa que irá apreciar todas as questões das quais depende a sua decisão, sem prejuízo de poder decretar a suspensão, ao abrigo do disposto do art. 92º, caso a decisão pressuponha a resolução de uma determinada questão para cuja apreciação seja competente o tribunal criminal ou o tribunal administrativo.

Ora, sendo certo que, como referimos, não existia aqui uma questão prejudicial da competência do tribunal criminal que pudesse justificar a suspensão ao abrigo do art. 92º, também nos parece inexistir qualquer acção/causa pendente que possa justificar a suspensão ao abrigo do disposto no art. 272º.

Com efeito, a causa prejudicial que foi invocada pela decisão recorrida para fundamentar a suspensão corresponde a um inquérito que corre termos no Ministério Público (inquérito que, aliás, já havia sido arquivado e que foi recentemente reaberto a requerimento da Ré, não havendo notícia da constituição de arguidos).

Ora, salvo o devido respeito, o aludido inquérito não corresponde a qualquer causa/acção para os efeitos previstos no art. 272º, tanto mais que, ao que resulta dos autos, tal inquérito nem sequer corre termos contra pessoa determinada.

Com efeito, e como decorre do disposto no CPP, o inquérito é uma fase preliminar da acção penal que, nos termos do art. 262º, “…compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação” e que, como tal, não configura uma causa judicial para os efeitos previstos no citado art. 272º.

Assim tem decidido, aliás, a nossa jurisprudência, como se comprova com os seguintes acórdãos:

O Acórdão do STJ de 22/11/1995 (proc. nº 085576)[6], em cujo sumário se lê que “o inquérito feito pelo Ministério Público não pode ser considerado como uma causa penal susceptível de fundamentar a suspensão da instância, por prejudicialidade”;

O Acórdão da Relação de Lisboa de 22/06/1995[7] (proc. nº 0102672) em cujo sumário se lê que “a decisão final do inquérito crime não é um acto jurisdicional, pelo que este processo não pode considerar-se prejudicial em relação a uma acção cível”;

O Acórdão da Relação de Lisboa de 09/07/1992[8] (proc. nº 0061982) em cujo sumário se lê: “A simples participação ao Ministério Publico ou a Policia Judiciária não reveste, para fins do artigo 279 do Codigo de Processo Civil, a natureza de causa e, muito menos a de causa "já proposta"…Não é de suspender a instância na acção cível, imediatamente antes da organização da especificação e do questionário, se ainda não tiver sido instaurada a acção penal considerada prejudicial e estando apenas a correr processo de inquérito, pois os prejuízos da suspensão superam as vantagens”.

E a mesma posição foi adoptada pelo Acórdão da Relação de Lisboa de 21/10/93 e pelo Acórdão da Relação de Coimbra de 22/06/2010, proferidos nos processos nºs 0079632 e 163/07.4TBIDN-A.C1, respectivamente[9].

Mas ainda que se entendesse que o aludido inquérito configura uma causa prejudicial, não se justificaria a suspensão da instância.

Com efeito, e como decorre do disposto no art. 272º, nº 2, parte final, não obstante a existência de uma causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.

Ora, salvo o devido respeito, é isso que aqui acontece.

De facto, a presente acção estava prestes a ser discutida e julgada, sendo que a suspensão da instância foi requerida e decretada escassos dias antes da data designada para a realização de julgamento; por outro lado, a pretensa causa prejudicial (a acção penal) está em fase de inquérito (inquérito que já havia sido arquivado e que recentemente foi reaberto a pedido da Ré) sem que existam arguidos constituídos e sem que exista sequer (ao que nos é dado conhecer) qualquer pessoa determinada sobre a qual recaia a suspeita da prática de um crime. É certo, portanto, que, ainda que o inquérito viesse a desembocar numa acusação (e nada nos permite considerar essa possibilidade como provável, uma vez que o inquérito já havia sido arquivado), o julgamento da acção penal ainda estaria longe de ser efectuado e, nessas circunstâncias, parece-nos que os prejuízos decorrentes da suspensão (por tempo indeterminado e que poderia ser muito longo) superam claramente as suas vantagens, sendo certo que não existe qualquer obstáculo legal (ao nível, designadamente, da competência do tribunal) a que aqueles factos (que poderiam ser objecto da acção penal e que têm relevância para os presentes autos) sejam aqui alegados e sejam aqui objecto de discussão e julgamento.

Assim, em face do exposto, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o normal prosseguimento dos autos.


******

SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – A suspensão da instância, ao abrigo do disposto no art. 92º, nº 1, do CPC, pressupõe a existência de uma questão que, constituindo um pressuposto necessário da decisão de determinada causa (questão prejudicial), seja da competência do tribunal criminal ou do administrativo.

II – Ao contrário do que acontece com a situação prevista no art. 92º, nº 1 – em que a mera constatação da existência de uma questão prejudicial, que seja da competência do tribunal criminal ou administrativo, legitima o juiz a sobrestar na sua decisão para que as partes promovam, junto do tribunal competente, a resolução dessa questão –, a suspensão da instância, ao abrigo do disposto no art. 272º, nº 1, 1ª parte, do CPC pressupõe que já se encontre pendente uma outra acção onde se discute uma determinada questão da qual depende a decisão da causa, independentemente da natureza dessa questão e independentemente de ela se integrar ou não no âmbito de competência do tribunal da causa.

III – Discutindo-se nos autos a responsabilidade de uma seguradora pelos danos causados por um incêndio e a eventual exclusão da sua responsabilidade por acto doloso da Autora/segurada, relativamente à origem do incêndio, não se configura a existência de qualquer questão prejudicial que seja da competência do tribunal criminal e que legitime a suspensão da instância ao abrigo do art. 92º do CPC, porquanto a eventual responsabilidade criminal que possa advir desses factos (e só esta questão seria da competência do tribunal criminal) não é condição necessária para a decisão da presente causa à qual apenas interessa o apuramento daqueles factos e a sua integração e valoração à luz do contrato do seguro e da lei civil, independentemente da circunstância de eles poderem vir (ou não) a ser qualificados como crime e de poderem vir (ou não) a desencadear responsabilidade criminal.

IV – Um inquérito que corre termos nos Serviços do Ministério Público com vista à averiguação das circunstâncias e autoria do incêndio em causa nos autos – inquérito que nem sequer corre contra pessoa determinada e que até já havia sido arquivado, tendo sido agora reaberto a pedido da Ré – não constitui causa prejudicial que possa legitimar a suspensão da instância ao abrigo do disposto no art. 272º, nº 1, 1ª parte, do CPC.


/////

IV.
Pelo exposto, concedendo-se provimento ao presente recurso, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o normal prosseguimento dos autos.
Custas a cargo da Apelada.
Notifique.

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Des. Adjuntos: Maria Domingas Simões

                        Nunes Ribeiro


[1] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, pág. 268.
[2] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, págs. 268 e 269.
[3] Ob. cit., pág. 206.
[4] Cfr. Ac. do STJ de 29/09/93, processo nº 084216, em http://www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Ac. do STJ de 06/07/2005, processo nº 05B1522, em http://www.dgsi.pt.
[6] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[7] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[8] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[9] Disponíveis em http://www.dgsi.pt.