Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
11/21.2T8VLF-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
INSOLVÊNCIA
RECUSA OFICIOSA DE HOMOLOGAÇÃO
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE VILA NOVA DE FOZ CÔA DO TRIBUNAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 20.º E 215.º DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESA (DL N.º 53/2004, DE 18 DE MARÇO).
Sumário: O artigo 215.º do C.I.R.E. deve ser interpretado no sentido de que o juiz não tem o poder de recusar oficiosamente a homologação do plano de recuperação com o fundamento de que o processo revela algumas das situações previstas no artigo 20.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, não tendo o juiz, concomitantemente, o dever de averiguar a verificação de algumas dessas situações.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A… CRL, cooperativa de responsabilidade limitada, com sede na …, número único de pessoa colectiva e de matrícula …, manifestou o propósito de iniciar negociações conducentes à sua revitalização por meio da aprovação de um plano de recuperação, em conformidade com o disposto nos artigos 17.º-A e 17.º-C, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

A administradora judicial apresentou lista provisória de créditos.

Em tal lista era reconhecido a P… um crédito no montante de € 553 531,80, que compreendia capital (482 140,24 €) e juros (71 391,56).

A requerente impugnou o montante do crédito.

Por despacho proferido em 26/03/2021, foi julgada parcialmente procedente a reclamação e, em consequência, foi reconhecido a P… um crédito no montante de € 453 531,80, sendo € 382 140,24 de capital e € 71 391,56, de juros.

No mesmo despacho foram decididas outras impugnações contra a relação de créditos, sem relevância para o presente recurso de apelação.

Findo o prazo das negociações foi apresentado plano de revitalização.

A credora P… declarou que se pronunciava desfavoravelmente quanto ao plano de revitalização inicial.

F… requereu a correcção do plano no sentido de que do mesmo constasse expressamente o modo e o tempo de pagamento dos credores subordinados.

A requerente depositou nova versão do plano, a qual foi objecto de publicação no Portal Citius (1-7-2021).

No decurso do prazo de votação do plano, a credora P… declarou que se pronunciava desfavoravelmente quanto ao plano de revitalização corrigido

O plano foi votado por credores titulares de créditos no montante de € 1 392 410,42, que representam 95,899 % dos créditos reconhecidos (€ 1 451 949,30].

Dos votos emitidos, foram considerados validamente emitidos os de credores titulares de créditos no montante de € 1 344 049,50 (92,568%).

Foram considerados nulos os votos de credores titulares de créditos no montante de 48 360,93, correspondentes a 3,90% dos votos emitidos. 

Votaram a favor do plano credores titulares de créditos no montante de € 890 517,70, os quais representam 66,256% dos votos validamente emitidos.    

Votou contra o plano o credor P… titular de um crédito montante de € 453 531,80, que representa 33,74% dos votos validamente emitidos.

Votaram favoravelmente o plano credores titulares de créditos subordinados, no montante de € 4073,40, os quais representam 0,303% dos votos validamente emitidos.

O plano foi homologado por sentença proferida em 7-08-2021.

P… interpôs recurso de apelação contra a decisão que homologou o plano de recuperação, pedindo se revogasse a decisão e se não homologasse o plano de revitalização apresentado e se declarasse a imediata insolvência da devedora.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
(…)


*

Síntese das questões suscitadas pelo recurso:

Saber se a decisão de homologação do plano deve ser substituída por decisão que recuse a homologação do plano e que declare a imediata insolvência da devedora.


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Os factos relevantes para a decisão do recurso são os narrados no relatório deste acórdão e ainda os seguintes relativos ao conteúdo de revitalização com relevância para os autos:

Plano de regularização:
1. Desnecessidade da depreciação dos créditos, comuns e/ou garantidos, assumindo-se o pagamento do valor de 100% do capital em dívida, mas com perdão dos juros de mora vincendos;
2. Pagamento dos créditos comuns/fornecimentos nos termos do quadro infra vencendo-se a primeira no fim do primeiro mês após o trânsito em julgado da sentença homologatória de aprovação do Plano de Revitalização,

Valores em dívida/€ Plano de pagamento:
· Entre 000,01 e 10.000,00: 90 pagamentos mensais;
· Superior a 10.000,01: 144 pagamentos mensais.
3. os credores detentores de créditos subordinados terão o pagamento dos mesmos nos termos do quadro infra vencendo-se a primeira no fim do vigésimo-quarto mês após o trânsito em julgado da sentença homologatória de aprovação do Plano de Revitalização. Valores em dívida / € Plano de pagamento
· entre 000,01 e 10.000,00 90 pagamentos mensais;
· Superior a 10.000,01 120 pagamentos mensais;
4. Os credores do sector bancário e financeiro verão o pagamento dos seus créditos satisfeitos em doze (12) anos, na cadência de cento e quarenta e quatro prestações mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira no fim do primeiro mês subsequente ao mês do trânsito em julgado da sentença homologatória da aprovação do Plano de Revitalização.
5. Relativamente aos credores do sector bancário e financeiro, a taxa de juro aplicável aos juros vincendos desde a data da apresentação ao PER será indexada aos juros emergentes das respectivas operações activas de crédito contratadas.


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Descritos os factos, passemos à resolução das questões suscitadas pelo recurso.

A recorrente pede a revogação da sentença de homologação do plano de recuperação e a substituição dela por decisão que recuse tal homologação e que declare a imediata insolvência da devedora com base no essencial nas seguintes razões:
1. A situação da recorrente ao abrigo do plano de revitalização é menos favorável do que a resultaria na ausência de qualquer plano de recuperação;
2. O plano viola o princípio da igualdade dos credores;
3. A devedora encontra-se em situação de insolvência.

Pelas razões a seguir expostas, estes argumentos não valem contra a sentença.

Vejamos, em primeiro lugar, as razões pelas quais não procede contra a sentença a alegação de que era dever do Meritíssimo juiz do tribunal a quo recusar a homologação do plano por a situação do ora recorrente ao abrigo dele (plano) ser previsivelmente menos favorável do que a interviria na ausência de qualquer plano.

A recusa de homologação do plano com o fundamento ora em apreciação está prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 216.º do CIRE. Apesar de este preceito estar incluído nas disposições reguladoras do processo de insolvência, ele é aplicável com as necessárias adaptações à recusa de homologação do plano de recuperação aprovado no processo especial de revitalização, por remissão da parte final do n.º 7 do artigo 17.º-F do CIRE.

Resulta do preceito em causa que o juiz não homologará o plano quando se verificarem cumulativamente as seguintes condições:

Primeira: se o credor tiver manifestado oposição ao plano;

Segunda: se o credor tiver requerido a não homologação do plano em momento anterior à aprovação do plano, mais precisamente, segundo o n.º 3 do artigo 17.º-F do CIRE, dentro do prazo de votação do plano. Este requisito tem as seguintes implicações: em primeiro lugar, não cabe ao juiz indagar oficiosamente, tendo em vista a decisão sobre a homologação do plano, se a situação do credor ao abrigo do plano é pior, melhor ou igual à situação em que ficaria na ausência de plano. Em segundo lugar, está vedado ao credor solicitar a juiz a não homologação depois de decorrido o prazo de votação do plano;

Terceira: se o credor demonstrar em termos plausíveis que a sua situação ao abrigo do plano é menos favorável do que a interviria se não houvesse plano. A demonstração em termos plausíveis significa, para usarmos as palavras de Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2.ª Edição, Almedina, página 292, “um juízo de probabilidade”. Como é bom de ver, este ónus de demonstração pressupõe que o credor alegue os factos indispensáveis à formulação do juízo de que a situação dele ao abrigo do plano é menos favorável do que a interviria na ausência de plano. Assim, vamos supor que, ao abrigo do plano, o montante do crédito é reduzido em determinada percentagem. Se o credor se quiser opor à homologação do plano com o fundamento ora em apreciação cabe-lhe demonstrar em termos plausíveis que, no caso de haver liquidação do património do devedor, ele (credor) receberá mais do que recebe ao abrigo do plano.

No caso, a ora recorrente opôs-se ao plano de recuperação. Não pediu, no entanto, ao Meritíssimo juiz do tribunal a quo a não homologação dele com o fundamento de que a sua situação ao abrigo do plano era previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.

Considerando esta circunstância e o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 216.º do CIRE, é de afirmar que não cumpria ao Meritíssimo juiz recusar a homologação com o fundamento de que a situação do ora recorrente ao abrigo do plano era previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.


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Vejamos, de seguida, as razões pelas quais também não procede contra a sentença a alegação de que o plano violava o princípio da igualdade dos credores.

A recorrente alega que o plano viola o citado princípio com a seguinte linha argumentativa:
1. Que o plano inexplicavelmente e desconhecendo-se qualquer ratio, jurídica ou económico-financeira por detrás da decisão, consta do PER aprovado um tratamento diferenciado entre os credores, consoante o seu crédito seja ou não superior a € 10.000,00;
2. Que para os credores comuns com um crédito inferior a € 10.000,00 haveria um ressarcimento em 90 prestações, já para os credores comuns com um crédito superior a € 10.000,00, o montante em divida seria liquidado em 144 mensalidades.

Como se vê, os credores que, segundo a recorrente, foram objecto de tratamento diferenciado, sem justificação, foram os credores comuns.

Resulta da alínea c) do n.º 4 do artigo 47.º do CIRE, combinada com as alíneas a) e b) do mesmo preceito, que crédito comum é aquele que não é nem garantido, nem privilegiado, nem subordinado. Ora, como bem observa a recorrida, na resposta ao recurso, o crédito da recorrente não é comum. É um crédito garantido, vista a noção de crédito garantido constante da primeira parte da alínea a) do n.º 4 do artigo 47.º do CIRE e o facto de beneficiar de hipoteca. De resto, foi assim que foi classificado na lista provisória de créditos.

Tendo em conta a regra enunciada na 2.ª parte do n.º 2 do artigo 608.º do CPC, segundo a qual o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, sobre este tribunal recai o dever de responder apenas à questão de saber se o plano de recuperação viola o princípio da igualdade dos credores comuns.

A resposta é negativa.

A sujeição do conteúdo do plano de recuperação ao princípio da igualdade dos credores é afirmada na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 194.º do CIRE, aplicável com as devidas adaptações ao plano de recuperação aprovado no processo especial de revitalização, por remissão do n.º 7 do artigo 17.º-F, do mesmo diploma.

A 2.ª parte do n.º 1 do artigo 194.º e o n.º 2 deste preceito admitem, no entanto, derrogações ao princípio da igualdade. Assim:
· A 2.ª parte do n.º 1 do artigo 194.º admite diferenciações dos credores por razões objectivas. A favor desta interpretação citam-se, a título de exemplo, as seguintes decisões judiciais: o acórdão do STJ proferido no processo n.º 1783/12.0TYLSB, em 25-11-2014; o acórdão do STJ proferido no processo n.º 863/14.2T8BRR, em 3-11-205; o acórdão do STJ proferido no processo n.º 700/13.5TBTVR, em 24-11-2015; o acórdão do STJ proferido no processo n.º 212/14.0TBACN, em 24-11-2015; o acórdão proferido pelo tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo n.º 338/13.7TBOFR; o acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no processo n.º 2438/14.7T8OAZ, todos publicados no sítio www.dgsi.pt. No sentido de que, em caso de tratamento diferenciado dos credores, o princípio da igualdade dos credores implica que o plano contenha as razões desse tratamento diferenciado, cita-se o acórdão do STJ proferido em 24-11-2015, no processo n.º 212/14.0TBACN, publicado no sítio www.dgsi.pt. onde se afirmou expressamente “efectivamente, e como resulta do nº 2 do art. 195º do CIRE, o plano deve conter todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz”.
· O n.º 2 do preceito admite que o plano trate de maneira mais desfavorável um credor em relação a outros em idêntica situação se o credor afectado der o seu consentimento, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável.

No caso é exacta a alegação de que o plano não trata os credores comuns em plano de igualdade. Com efeito, em relação aos créditos comuns até € 10 000,00, estabeleceu o pagamento em 90 prestações mensais; quanto aos créditos comuns de montante superior a € 10 000,00 estabeleceu o pagamento em 144 prestações mensais. É inegável, pois, que aqueles créditos têm um tratamento mais favorável do que estes no que diz respeito ao prazo de pagamento.

Estas diferenciações foram, no entanto, justificadas e aceites. Vejamos. 

Em primeiro lugar, o plano indicou as razões pelas quais os créditos comuns até 10 000 euros seriam pagos em 90 prestações e os mesmos créditos de montante superior seriam pagos em 144 prestações. Segundo o plano, os prazos de reembolso mais curtos procuravam compensar a existência de descontos, os prazos de reembolso mais alargados estavam relacionados com a ausência de descontos.

Em segundo lugar os credores comuns que obtiveram tratamento mais desfavorável, quanto ao prazo de pagamento [titulares de créditos superiores a 10 mil euros], ao votarem a favor do plano, consentiram tacitamente em tal tratamento.

Em consequência do exposto, não havia fundamento para recusar a homologação do plano com fundamento na violação do princípio da igualdade em relação aos credores comuns.


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O terceiro argumento de que se socorre a recorrente para pedir a revogação da sentença e a substituição dela por decisão que recuse a homologação do plano de recuperação é constituído pela alegação de que a devedora está em situação de insolvência.

Para o efeito alegou:
1. Que havia uma desproporção entre o activo da devedora e o valor dos créditos reclamados;
2. Que a devedora deixou de cumprir as suas obrigações para com a recorrente desde Junho de 2017 e não obstante as diversas diligências de cobrança encetadas pela recorrente, o valor em dívida não foi liquidado e a dívida avoluma-se de dia para dia;
3. Que a devedora deixou igualmente de cumprir as suas obrigações para com outros credores em momento muito anterior á sua apresentação a processo especial de revitalização;
4. Que a incapacidade generalizada para satisfazer as obrigações vencidas e não pagas caracteriza a situação de insolvência da requerente;
5. Que o artigo 17.º-A do CIRE determina que o processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir, com estes, acordo conducente à sua revitalização. 

Apreciação do tribunal:

Este fundamento do recurso é de julgar improcedente.

Resulta do n.º 7 do artigo 17.º-F do CIRE, na parte em que manda aplicar à decisão sobre a homologação do plano de insolvência, as regras previstas nos artigos 215.º e 216.º, também do CIRE, o seguinte sobre a recusa de homologação do plano:
1. Do artigo 215.º resulta que o juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de recuperação no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não s verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação;
2. Do artigo 216.º resulta que o juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor caso não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que:
a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas;
b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.

Sendo nestas regras que estão condensados os fundamentos de recusa da homologação do plano aprovado, a alegação da recorrente suscita a questão de saber se o juiz tem o poder de recusar oficiosamente a homologação do plano ao abrigo do artigo 215.º do CIRE quando o devedor se encontrava em situação de insolvência quando recorreu ao processo especial de revitalização.  

O acórdão do STJ proferido em 3 de Novembro de 2015, no processo n.º 1690/14.2TJCBR.C1 e o acórdão do mesmo tribunal proferido em 27-10-2016, no processo n.º 741/16.0T8LRA-A.C1.S1, ambos publicados em www.dgsi.pt, responderam à questão, decidindo que a situação de insolvência do devedor pode constituir fundamento de recusa oficiosa de homologação do plano. No mesmo sentido se pronunciaram o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 5 de Maio de 2015, no processo n.º 996/15.8T8CRA, e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17 de Dezembro de 2015, processo n.º 3245/14.2T8GMR, ambos publicados em www.dgsi.pt.

Segundo o acórdão do STJ proferido em 3 de Novembro de 2015, “…, se o processo revelar inequivocamente que o devedor se encontra efetivamente numa situação de insolvência atual, então o juiz não pode deixar de recusar oficiosamente a homologação, por isso que, nestas circunstâncias, estamos perante uma violação não negligenciável das regras procedimentais e da norma legal basilar (a que define em que situações é admitido o PER) que permite a realização ou preenchimento do seu conteúdo. Ademais, numa tal situação, estamos bem perante um uso ilegal e abusivo do procedimento, o que implica a nulidade do negócio jurídico subjacente (art. 280º nº 1 do CCivil) e, inclusivamente, a sua neutralização por excesso manifesto dos limites impostos pelo fim económico do direito (art. 334º do CCivil). Neste último caso, o fim económico para que o direito é concedido é precisamente o de, a bem da economia e do interesse público, potenciar a recuperação para o tecido económico dos recursos ainda produtivos, não dos exauridos (estes apenas servirão para comprometer o bom funcionamento da economia). E a ser assim, como é, à soberania da vontade dos credores não deve poder atribuir-se uma inevitabilidade tal que lhe associe direitos cujos pressupostos a lei precisamente lhe denega. Digamos, em síntese, que os credores gozam de grande liberdade e autonomia na composição da lide desenvolvida no confronto do seu devedor, mas têm que o fazer dentro do pressuposto de o devedor não estar já insolvente. E, apesar de um tal pressuposto poder e dever ser equacionado pelos credores nas suas negociações com o devedor, o juízo acerca da verificação ou não da situação de insolvência meramente iminente ou da situação económica difícil não pode deixar de ser visto, para os fins em causa (homologação ou não homologação), como um juízo jurídico-conclusivo em definitivo da competência do tribunal”.

Não vemos razões para nos afastarmos da interpretação do artigo 215.º do CIRE no sentido de que o juiz deve recusar oficiosamente a homologação do plano no caso de resultar do processo que o devedor, quando recorreu ao processo especial de revitalização, estava inequivocamente em situação de insolvência. Com efeito, resultando com clareza do n.º 1 do artigo 17.º-A do CIRE que as empresas em situação de insolvência estão excluídas do recurso ao processo especial de revitalização, é de concluir que a regra é violada sempre que uma empresa em situação de insolvência recorre a tal processo.

A interpretação do artigo 215.º do CIRE no sentido acima exposta é concordante com o entendimento de que o requerimento que dá início ao processo especial de revitalização é de indeferir liminarmente quando for manifesto que o devedor está em situação de insolvência. Cita-se a título exemplificativo em abono deste entendimento Catarina Serra, em Lições de Direito da Insolvência, Almedina, página 384.

Importa, porém, precisar que, no entender deste tribunal, só se pode afirmar que o devedor está inequivocamente em situação de insolvência quando já tenha sido proferida sentença declaratória de insolvência. Se ainda não tiver sido proferida decisão neste sentido não se pode dizer que o devedor está inequivocamente em situação de insolvência. Nesta hipótese, podem, é certo, resultar do processo especial de revitalização factos que se ajustem a alguma das situações tipificadas nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE, ou seja, factos que indiciem ou façam presumir a situação de insolvência do devedor.

Sucede que não cabe ao juiz, no momento em que profere decisão sobre a homologação do plano de recuperação, proceder à indagação oficiosa de factos que, segundo o n.º 1 do artigo 20.º do CIRE, revelam ou indiciam situação de insolvência do devedor.

Esta interpretação do artigo 215.º do CIRE está de harmonia com o n.º 6 do artigo 17.º-E do CIRE, com o n.º 8 do artigo 17.º-F e com os números 2 a 4 do artigo 17.º-G e com as disposições do processo de insolvência sobre a legitimidade para apresentar o pedido de insolvência (artigos 18.º e 20.º do CIRE) e sobre a tramitação do processo de insolvência baseada nalguma das situações tipificadas no n.º 1 do artigo 20.º do CIRE. Vejamos.

Segundo o n.º 6 do artigo 17.º-E, os processos de insolvência em que anteriormente haja sido requerida a insolvência da empresa suspendem-se na data da publicação no portal Citius do despacho a que se refere o n.º 4 do artigo 17.º-C, desde que não tenha sido proferida sentença declaratória de insolvência, extinguindo-se logo que seja aprovado e homologado o plano de recuperação.

Resulta deste preceito que o despacho que dá seguimento ao processo especial de revitalização tem os seguintes efeitos:
1. Determina a suspensão dos processos em que anteriormente haja sido requerida a insolvência da empresa, salvo se já tiver sido proferida sentença declaratória de insolvência;
2. Obsta à instauração de processos de insolvência. Observe-se que este efeito embora não resulte expressamente da letra do preceito, está contido no seu espírito.

Ora não faria sentido, do ponto de vista da unidade das normas do processo especial de revitalização, que de acordo com uma delas (n.º 6 do artigo 17.º-E) o despacho que dá seguimento a este processo impedisse que o processo próprio e adequado para se conhecerem dos factos que indiciam ou fazem presumir a situação de insolvência (processo de insolvência) se iniciasse ou continuasse os seus termos, mas que de acordo com outra (artigo 215.º) o juiz, aquando da decisão sobre a homologação do plano, já pudesse conhecer oficiosamente de tais factos.

Por sua vez segundo o n.º 8 do artigo 17.º-F do CIRE, caso o juiz não homologue o acordo, aplica-se o disposto nos n.ºs 2 a 4 do artigo 17.º-G.

A aplicação do n.º 4 significa que cabe ao administrador judicial provisório emitir parecer sobre se a empresa se encontra em situação de insolvência e, em caso afirmativo, requerer a respectiva insolvência.

Ora, também não faria sentido, do ponto de vista da unidade das normas do processo especial de revitalização, que de acordo com uma delas (n.º 4 do artigo 17.º-G), em caso de não homologação do acordo competisse ao administrador judicial emitir parecer sobre se a empresa se encontrava em situação de insolvência e, em caso afirmativo, requerer a respectiva insolvência, e que de acordo com outra (artigo 215.º do CIRE) se permitisse ao juiz declarar oficiosamente a situação de insolvência do devedor sem a emissão de tal parecer.

Por fim, resulta do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE que o juiz não tem o poder de declarar oficiosamente a insolvência de um devedor com fundamento nalguma das situações nele previstas.

E resulta dos artigos 29.º e 30.º do CIRE que, quando o pedido de insolvência tiver por fundamento alguma das situações tipificadas nas alíneas do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE, o devedor tem a faculdade de se opor ao pedido, com a alegação de que não existe a situação de insolvência (n.º 3 do artigo 30.º).

Também não faria sentido, do ponto de vista da unidade do sistema jurídico, que o processo especial de insolvência não permitisse ao juiz declarar oficiosamente a  insolvência com fundamento nas situações tipificadas no n.º 1 do artigo 20.º nem lhe permitisse decidir sobre a insolvência sem dar ao devedor a oportunidade de se pronunciar sobre o pedido de insolvência, mas que uma disposição do processo especial de revitalização (artigo 215.º do CIRE) permitisse ao juiz declarar oficiosamente a situação de insolvência do devedor sem que ele tivesse a oportunidade de deduzir oposição.

Recorde-se que o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do n.º 4 do artigo 17.°-G do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, quando interpretada no sentido de o parecer do administrador judicial provisório que conclua pela situação de insolvência equivaler, por força do disposto no artigo 28.º – ainda que com as necessárias adaptações –, à apresentação à insolvência por parte do devedor, quando este discorde da sua situação de insolvência, por violação do artigo 20.º, números 1 e 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa [acórdão n.º 675/2018, proferido em 18 de Dezembro de 2018, publicado no DR I Série n.º 16/2019, de 23-01-2019].

Em suma, o artigo 215.º do CIRE é de interpretar no sentido de que, no momento da decisão sobre a homologação do plano, o juiz nem tem o dever de averiguar oficiosamente a verificação de alguma das situações tipificadas no n.º 1 do artigo 20.º do CIRE, nem tem o poder de recusar oficiosamente a homologação do plano com o fundamento de que o processo revela alguma dessas situações.

Assim, ainda que no caso se verificasse alguma dessas situações, as mesmas não constituiriam motivo de recusa do plano ao abrigo do artigo 215.º do CIRE.


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Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de a recorrente ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma no pagamento das custas do recurso.

Coimbra,