Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1/22.8GAOLR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
REMISSÃO PARA DESPACHO DE ARQUIVAMENTO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA SERTÃ)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ARTS. 97º, N.º 5, 308º, N.º 2, 283º, N.º 3, 118º, N.º 2, 123º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
Sumário: I- A mera remissão no despacho de não pronúncia para os fundamentos constantes do despacho de arquivamento do Ministério Público equivale à sua total falta de fundamentação.
II- A decisão de não pronúncia deve conter a narração dos factos que o juiz considera indiciados e dos factos que considera não indiciados

III- Tais irregularidades influem na decisão da causa, sendo de conhecimento oficioso e suscetíveis de reparação pelo tribunal recorrido.


Sumário elaborado pela Relatora
Decisão Texto Integral: ****

Acordam em Conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I.

RELATÓRIO


1. Decisão recorrida:

Em 18 de outubro de 2023, no processo de instrução n.º 1/22...., do Juízo de Competência Genérica ..., comarca ..., na sequência de requerimento de abertura da instrução deduzido pelo assistente AA, foi proferida decisão de não pronúncia do arguido BB pela prática de um crime de falsidade informática, p. e p. pelo 3º, n.º 1, da Lei n.º 109/2009, de 15.9.


*


2. Recurso do assistente AA (conclusões que se transcrevem integralmente):
A) O despacho de não pronuncia, ora recorrido, não contem qualquer fundamentação sobre a sindicância das alegações constantes no requerimento de abertura de instrução por referência ao despacho de arquivamento e prova contida no inquérito.
B) (…)

*

3. Respondeu ao recurso o Ministério Público, pugnando pela improcedência do recurso interposto.

*


4. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-geral Adjunta pronunciou-se no sentido do provimento parcial do recurso, referindo o seguinte:

De acordo com o artigo 205º da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais, que não sejam de mero expediente, são fundamentadas na forma prevista na lei – cf. artigo 97º, nº 5, do código de processo penal.

No que respeita às decisões instrutórias, estatui o artigo 283º, n.º 3, alínea b), por remissão do artigo 308º, nº 2, do mesmo código, que deve conter "a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada".

A fundamentação da sentença - mutatis mutandis, falando nós aqui de decisão instrutória - deve permitir o convencimento do arguido, em particular, e da comunidade jurídica, em geral, relativamente à bondade da decisão, tornando-a transparente e apreensível, permitindo ainda a sua controlabilidade em sede de recurso, designadamente no que respeita à validade da prova, à sua valoração, e à impugnação da matéria de facto - cf. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2ª ed, p. 206, Almedina. ´

É certo que “A fundamentação não tem de não tem de ser uma espécie de assentada em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética, não sendo necessária uma referência discriminada a cada facto provado e não provado» - cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26/03/2008, proc. 07P4833.

Mas é exigível - mantendo-se a adaptação do que segue escrito às decisões instrutórias – que contenha “os elementos que, em razão da experiência ou de critérios lógicos, construíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse num sentido, ou seja, um exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido”, ou seja, que o tribunal explicite o percurso cognitivo que o levou a determinada decisão sobre a matéria de facto e, designadamente, que justifique o convencimento a que chegou efetuando a avaliação e valoração dos depoimentos ouvidos, dando a conhecer as razões de ciência respetivas- cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 23/02/2011, proc. 241/08.2GAMTR.P1.S. e do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10/11/2020, proc. 9/18.8GBALM.L1-5.

No entanto, a falta de fundamentação - de facto e de direito - de uma decisão só ocorre falta quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial. Só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade.

Na linha do exposto, e conforme decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, uma decisão instrutória deve conter a narração dos factos que fundamentam a respetiva decisão, ou seja, é fundamental que a decisão instrutória de não pronúncia, tal como a de pronúncia, descreva os factos que em concreto foram determinantes do juízo de levar ou não alguém a julgamento, para que desse modo o conjunto de factos que se consideraram indiciados e os não indiciados, possam garantir os direitos de defesa do arguido, mormente para que o tribunal de recurso possa avaliar se efetivamente existem ou não os necessários pressupostos para submeter o agente a julgamento. - in acórdão de 9/11/2022, processo 5735/19.1FJFLSB.L1-3, acessível em www.dgsi.pt.

Vista a decisão instrutória, concordamos que a mesma peca por ausência de fundamentação. Ainda que nela se refira o despacho de arquivamento do Ministério Público, para o qual parece remeter, inarredavelmente se tem de concluir que da sua leitura é impossível perceber que factualidade está em causa, que prova adicional resultou da que foi produzida em instrução, sendo que o tribunal sequer se debruçou sobre o que está suficientemente indiciado e sobre o que não ficou demonstrado, e, a partir daí, sobre a configuração ou não dos ilícitos-típicos apontados no libelo acusatório do assistente.

E também não discorreu sobre a argumentação contida no requerimento para abertura de instrução.

Nesta conformidade, e em conclusão, concordando com a motivação apresentada no que respeita à ausência de fundamentação da decisão instrutória, somos de parecer que o recurso deve ser julgado parcialmente procedente, declarando-se nula a decisão de não pronúncia, com reenvio do processo ao juiz de instrução para que fundamente a decisão em conformidade com as exigências legais.


*

II.

QUESTÕES A DECIDIR


O objeto do recurso está limitado às conclusões apresentadas pelo recorrente [cfr. Ac. do STJ, de 15/04/2010: “É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”], sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95).

São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso. Se estas ficam aquém, a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões, e se vão além da motivação também não devem ser consideradas, porque são um resumo da motivação e esta é inexistente ([1]).

Assim, objeto do recurso são as seguintes questões:

a) Nulidade da decisão por falta de fundamentação;

(…)


*

III.

FUNDAMENTAÇÃO


1. Transcrição da decisão de primeira instância:

«Declaro encerrada a instrução.

§1 Sob a ref.ª 34956407 o Digno MP determinou o arquivamento dos autos concluindo em tal despacho não existirem elementos indiciários que permitissem a aplicação de uma pena, desde logo pela comissão de fatos integradores da comissão do crime de falsidade informática, p. e p. no art. 3, nº 1 da Lei 109/2009 de 15-09 denunciado nos autos.

§2 Inconformado, veio o Assistente AA requerer a abertura da fase da instrução.

§3 Foi admitida a abertura da fase de instrução.

§4 Por despacho ref.ª 35524842 foram apreciadas as diligências requeridas e, por via da abertura de tal fase constituído arguido BB.

§5 Procedeu-se à realização das diligências de instrução tidas por relevantes.

§6. Findas estas procedeu-se à realização de debate instrutório com observância do legal formalismo, como se alcança da respetiva ata. 

§7 O Tribunal é competente e o processo é o próprio.

§8Não existem nulidades, exceções nem questões prévias ou incidentais das quais cumpra, neste momento conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

§9 Cumpre, pois, apreciar e decidir.

§10. Atento o disposto no n.º 1 do art. 308.º do Código de Processo Penal cumpre averiguar se, face aos elementos carreados para os autos em sede de inquérito e, posteriormente, em sede de instrução se poderão ter por verificados os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido, em sede de julgamento de uma pena, ponderando, para o efeito, todos os elementos disponíveis.

§11 Consabido é que a fase de instrução não pode constituir um novo inquérito, antes a ponderação da, neste case inexistência de indícios que permitam a imputação ao constituído arguido, BB.

§12 A resposta é negativa, dado que na fase de instrução nada foi trazido aos autos que abalasse a convicção expressa pelo MP inerente ao arquivamento dos autos.

§13 Pautou-se a fase da instrução pela vacuidade[2], imprecisão e falta de concretização fática da putativa imputação.

§14 Donde, o óbvio, a prolação de despacho de não pronúncia do arguido BB pela comissão de crime de falsidade informática, p. e p. no art. 3, nº 1 da Lei 109/2009 de 15-09.

§15 Custas da instrução a cargo do Assistente que se fixam em 2 Ucs – sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

§16 Notifique.

§ Deposite.

§17 Transitado, arquive.


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2. Conhecimento do recurso

- DA NULIDADE POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO

Após ser proferido o despacho de não pronúncia transcrito, a 18.10.2023, o assistente invocou a 24.10 a sua nulidade, concluindo da seguinte forma:

“Termos em que, sem prejuízo de recurso tempestivo sobre o despacho que antecede (despacho de não pronuncia), se vem expressamente arguir a nulidade do mesmo, nos termos do art. 120 e ss. do CPP, na medida em que o mesmo viola o dever constitucional de fundamentação contido nos artigos 205 CRP, 97 nº 5 do CPP, artigos 283 nº 3 e 308 nº 2 ambos do CPP, carecendo o despacho identificado de fundamentação que sustente a não pronuncia por referencia aos fundamentos elencados no requerimento de abertura de instrução por contraposição ao despacho de arquivamento e conteúdo do inquérito/ instrução, com prejuízo para os princípios da legalidade e do processo equitativo.

Sobre este requerimento incidiu despacho no dia imediato (25.10.2023), cujo teor é o seguinte:

Nulidade alguma ocorre, nada foi trazido aos autos que impusesse decisão diversa da já constante dos autos, não constituindo a fase de instrução um novo inquérito.

Notifique.

O recurso da decisão instrutória foi interposto a 7.11.2023 (sendo, pois, tempestivo).

O recorrente invoca a nulidade do despacho recorrido por “ostensiva ausência de fundamentação/total ausência de pronúncia (nem mesmo genéricas), em relação à totalidade dos argumentos vertidos no requerimento para abertura de instrução por referência ao conteúdo do inquérito e despacho de arquivamento”, em violação do disposto nos arts. 283º, n.º 3, 308º, n.º 2, 97º, n.º 5, do Código de Processo Penal e 205º da Constituição da República Portuguesa.

Desde logo, não oferece dúvida que a decisão instrutória é um ato decisório do juiz, nos termos do art. 97º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, sujeito ao dever genérico de fundamentação estatuído n.º 5 do mesmo preceito.

De um ponto de vista endoprocessual, a exigência de fundamentação das decisões judiciais constitui uma garantia de imparcialidade do juiz e de controlo da legalidade da decisão em fase de recurso, tendo a decisão de ser clara e compreensível para os seus destinatários.

A fundamentação implica, em geral, um processo argumentativo de justificação da decisão, quer ao nível dos factos quer do direito que aos mesmos se aplica, devendo enumerar e explicar as razões de facto e de direito determinantes da correção do sentido da decisão. Assim, argumentação contida na decisão judicial deve conseguir convencer os destinatários e a comunidade em geral das razões que conduziram o julgador a optar por determinado acervo factual em lugar de outro, bem como que a solução legal corresponde ao direito aplicável.

Por outro lado (vertente extraprocessual), as exigências de fundamentação constituem um mecanismo de legitimação democrática dos próprios Tribunais e da administração da justiça ([3]), nos seguintes termos: “A consagração constitucional do princípio da fundamentação das decisões judiciais é uma garantia do processo judicial, no sentido de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito. Mas é sobretudo o reconhecimento de que os tribunais, constitucionalmente investidos do poder de julgar, em nome do povo, têm de dar conta do modo como exercem esse poder através da fundamentação das suas decisões, assim se legitimando a sua própria função” ([4]).

O dever de fundamentação confere imparcialidade às decisões judiciais, impedindo a arbitrariedade, assegurando-se por essa via o respeito dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados – arts. 20º, n.ºs 4 e 5, sº, 13º e 18º da Constituição da República Portuguesa.

Assim, dispõe o n.º 5 do art. 97º do Código de Processo Penal: “Os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.

Ou seja, a fundamentação abrange quer a decisão de facto e a decisão de direito, podendo mostrar-se cumprido de forma mais ou menos exigente e aprofundado, dependendo da complexidade da questão a decidir. Deste modo, “se, em face da simplicidade da questão, ou da ausência de controvérsia em torno dela e por razões de urgência, de observância de prazos curtos, portanto, de economia processual e de ponderação equilibrada entre o dever de fundamentação das decisões judiciais e o princípio da proibição da prática de atos inúteis, de harmonia com a geometria variável do dever de fundamentação, se imponha ou justifique que a mesma seja concisa cumprirá as exigências legais:” ([5]).

No caso, a fundamentação da decisão incidente sobre um requerimento de abertura de instrução resume-se ao seguinte:

§12 A resposta é negativa, dado que na fase de instrução nada foi trazido aos autos que abalasse a convicção expressa pelo MP inerente ao arquivamento dos autos.

§13 Pautou-se a fase da instrução pela vacuidade, imprecisão e falta de concretização fática da putativa imputação.

Nada mais.

Limita-se, pois, a decisão a remeter para a fundamentação do despacho de arquivamento elaborado pelo Ministério Público que, não sendo prática proibida ([6]), terá de permitir que se extraia da decisão judicial em causa que esta obedece ao princípio da reserva do juiz. Este desiderato só se obtém quando o juiz “subjetiva” a fundamentação, de modo a deixar patente aos olhos de todos que se trata de uma decisão pessoal do juiz, única forma de o responsabilizar pela decisão. Ora, tal só sucede quando o juiz enuncia, ele próprio, os motivos de facto da decisão que tomou, em lugar de remeter para as razões invocadas pelo Ministério Público ([7]).

Na verdade, a decisão instrutória proferida não efetua qualquer ponderação dos factos, das provas produzidas em instrução e do conteúdo do requerimento de abertura de instrução. Limita-se a afirmar não ter o assistente levado nada aos autos que abalasse a convicção do Ministério Público, como se fosse esta a convicção que importava considerar e que se sobreporia a qualquer outra… O juiz tem de adquirir uma convicção própria no final da fase de instrução, examinando e ponderando de forma equitativa os argumentos esgrimidos no requerimento de abertura de instrução, não se encontrando vinculado aos argumentos do despacho de arquivamento do Ministério Público.

Em suma, para ser conforme ao dever de fundamentação exigido pelos arts. 97º, n.º 5, e 308º do Código de Processo Penal, a decisão de não pronúncia tem de conter uma discussão dos indícios ([8]).

Não há como não concluir que a decisão sob recurso não contém qualquer fundamentação.

Mais:

Para além da discussão dos indícios, a decisão de não pronúncia deve conter a narração dos factos que o juiz considera indiciados e dos factos que considera não indiciados, uma vez que o n.º 2 do art. 308º do Código de Processo Penal determina a aplicação ao despacho de não pronúncia do disposto no art. 283º, n.ºs 2, 3 e 4 do mesmo Código.

É que o despacho de não pronúncia transitado em julgado forma caso julgado (formal e material) sobre a relação material controvertida, impedindo que o arguido seja posteriormente perseguido criminalmente por aqueles mesmos factos ([9]). Como balizar o caso julgado se o despacho não contiver os factos que estiveram em discussão, tomando sobre os mesmos posição (indiciação ou não)?

Certo é que o despacho sob recurso não contém a narração de qualquer facto, indiciado ou não, incorrendo também por esta razão numa ausência de fundamentação ([10]).

Ora, só com a menção expressa aos factos que se consideram indiciados e que se não consideram indiciados descritos no requerimento de abertura de instrução, acompanhados de uma apreciação crítica das provas, o tribunal cumpre o dever de fundamentação exigido, possibilitando ao tribunal de recurso efetuar uma valoração lógica da relevância, intensidade e concordância dos indícios. Na verdade, o tribunal de recurso tem de compreender o raciocínio do juiz a quo que determinou a tomada de decisão, só assim se garantindo o efetivo direito ao recurso.

Cumpre agora retirar as consequências jurídicas da ausência de fundamentação do despacho de não pronúncia recorrido.

Estabelece o art. 118º do Código de Processo Penal:

1- A violação ou inobservância das disposições da lei do processual penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei.

2- Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular”.

O art. 308º do mesmo Código, sob a epígrafe «Despacho de pronúncia e de não pronúncia», manda aplicar o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do art. 283º ao despacho a que se refere o n.º 1, cujo teor é o seguinte: “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.”.

Ora, o n.º 3 do art. 283º do Código de Processo Penal comina com a nulidade o despacho de acusação que não contiver os elementos que descreve nas várias alíneas, que consubstanciam a estrutura da acusação. Manifestamente tal estrutura não se aplica ao despacho de arquivamento, nem ao despacho de não pronúncia, onde não tem cabimento a enunciação da quase totalidade dos elementos referidos na norma legal em causa.

A remissão para aquele n.º 3 do art. 283º só opera, desta forma, para o despacho de pronúncia – efetuando-se nesta medida uma interpretação restritiva do n.º 2 do art. 308º do Código de Processo Penal, único modo de obter a harmonia na conjugação das normas legais em causa.

A violação do comando imposto pelo art. 97º, n.º 5, do Código de Processo Penal não integra qualquer das nulidades expressamente previstas nos arts. 119º (nulidades insanáveis) ou 120º, n.º 2 (nulidades dependentes de arguição), nem existe norma que comine tal falta com a nulidade. Assim, o ato que viola o dever de fundamentação legalmente imposto encontra-se ferido de irregularidade, nos termos dos arts. 118º, n.º 2, e 123º do Código de Processo Penal ([11]).

Estabelece esta norma:

1- Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguido pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado.

2- Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se possa tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado.”

A irregularidade cometida influi, necessariamente, na decisão da causa, impedindo no caso concreto o conhecimento e decisão do recurso interposto – donde decorre ser inclusive de conhecimento oficioso, nos termos do n.º 2 do preceito transcrito ([12]).

Deverá, assim, ser sanada pelo tribunal a quo.

Face ao exposto, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões recursivas suscitadas.

*

V.
DECISÃO
              Pelo exposto, na procedência do recurso interposto pelo assistente AA, julga-se inválida a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que sane as omissões da discussão dos indícios e da ausência de especificação (enumeração) dos factos indiciados e/ou não indiciados, por referência aos descritos no requerimento de abertura de instrução.

            Sem tributação.

Coimbra, 21 de fevereiro de 2024

            Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora – processei e revi)

            Isabel Valongo (1ª adjunta)

Maria Alexandra Guiné (2ª adjunta)


[1] neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336

[2] A vaguidade (de notório interesse nos últimos quinze anos, cfr., ultimamente Vagueness and Law – Philosophical and Legal Perspectives, ed. GEERT KEIL/RALF POSCHER, Oxford University Press, 2016, assinalando-se para o que aqui importa o “paper” de RALF POSCHER sobre individualização e o valor da vaguidade p. 83 e 88, e MICHAEL MOORE sobre a objectividade, p. 149) convoca o paradoxo de “sorites” (formula o seguinte problema: em que altura um monte de areia deixa de ser monte de areia?) e tem muito a ver com o conceito de fronteiras do discurso (cfr. WITTGENSTEIN, L., Investigações Filosóficas, 3ª ed., FCG, §69 (p. 230-31)).

[3] - Cf. o Ac. da Relação de Lisboa de 20.11.2019, rel. Cristina Almeida e Sousa, em www.dgsi.pt
[4] Mouraz Lopes, “Gestão Processual: Tópicos para um incremento da qualidade da decisão judicial”, Revista Julgar, n.º 10, jan-abril de 2010, pág. 143. Veja-se ainda a extensa doutrina citada a propósito no Ac. referido na nota anterior.
[5] Ac. referido na nota 3.
[6] Remete-se para os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 396/2003, 391/2015 e 684/2015.
[7] Cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 391/2015 e 684/2015, no site deste Tribunal.
[8] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., págs. 803-804.
[9] Cf. Acórdão desta Relação de Coimbra de 7.12.2021, rel. Maria José Nogueira, proc. 4818/19.2T9CBR.C1, em www.dgsi.pt, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., pág. 804; no sentido da formação do caso julgado apenas formal, cf. Germano Marques da Silva, “Direito Processual Penal Português – Do Procedimento”, ed. UCP, págs. 183-184.
[10] - No mesmo sentido, para além do aresto referido na nota anterior, cfr. os Acórdãos da Relação de Lisboa de 29.9.2021, proc. 5819/17.0T9LSB.L1-3, de 28.9.2017, proc. 2633/15.1TDLSB.L2-9, de 18.3.2015, proc. 884/10.4JDLSB-A.1-3, da Relação de Coimbra de 16.6.2015, proc. 12/11.9GTLRA.C1, da Relação do Porto de 6.5.2015, proc. 367/13.0PAOVR.P1, de 15.4.2015, proc. 938/13.5TAVFR.P1, de 10.12.2014, proc. 281/12.7TAVLG.P1, de 21.1.2015, proc. 9304/13.1TDPRT.P1, de 25.2.2015, proc. 401/12.1TDPRT.P1, da Relação de Guimarães de 23.10.2017, proc. 781/14.4GBGMR.G1, de 27.5.2019, proc. 134/17.2T9TMC.G1, de 10.9.2018, proc. 117/16.0GAVLF.G1, entre outros.
[11] Não ignoramos as diferentes opções que a jurisprudência vem tomando quanto a esta qualificação, que ora aplica ao despacho de não pronúncia o n.º 3 do art. 283º, cominando a falta de fundamentação ora como nulidade secundária (cf., p. ex., o Ac. da Relação de Lisboa de 29.9.2021, cit.), ora como irregularidade suscetível de afetar o valor do ato (cf., p. ex., o Ac. da Relação de Coimbra de 7.12.2021, cit., recorrendo-se a jurisprudência recente). Entendemos, no entanto, que o princípio da legalidade que vigora no regime das nulidades em processo penal não permite uma extensão das nulidades previstas expressamente na lei.
[12] No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., pág. 805 (em anotação ao art. 309º).