Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
382/08.6TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO
RESOLUÇÃO
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
INTERPRETAÇÃO
INSPECÇÃO JUDICIAL
Data do Acordão: 02/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 227º, 762º E 1083º DO C. CIVIL; 615º CPC.
Sumário: 1. À luz do NRAU são requisitos gerais da resolução do contrato: a) O incumprimento da outra parte, que se presume culposo, nos termos do art.º 799º; b) Que tal incumprimento contratual seja grave e altere o equilíbrio da relação locatícia; c) E que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.

2. Daí que, para a apreciação da relevância do fundamento da resolução do contrato de arrendamento, deva ponderar-se o acto em si - que pode ou não constar do elenco do nº 2 do art. 1083º do C. Civil - caracterizador de incumprimento, inserindo-o na dinâmica de toda a relação contratual para, depois, apurar se pela sua gravidade ou consequências - e em certos casos reiteração - compromete irremediavelmente a manutenção do vínculo, não sendo exigível à outra parte que continue obrigada.

3. A interpretação da declaração negocial constitui por princípio matéria de direito, só sendo matéria de facto quando feita de harmonia com a vontade real do declarante.

4. Nessa actividade deve atender-se a todos os coeficientes ou elementos que um declaratário normalmente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário, teria tomado em conta, devendo ainda ser considerados os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo - e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento -, a finalidade prosseguida pelo declarante, as negociações prévias, as precedentes relações negociais entre as partes, os hábitos dos declarantes - de linguagem ou outros -, os usos da prática, em matéria terminológica, sendo mesmo de considerar também os modos de conduta por que posteriormente se prestou observância ao negócio concluído.

5. Acresce ainda, que nesta actividade hermenêutica, tem o tribunal de considerar que, conforme impõe a lei, quer nos preliminares, quer momento da celebração do contrato - art.º 227º do Código Civil -, quer no seu cumprimento - art.º 762º do Código Civil -, devem as partes proceder de boa-fé, sendo certo que os ditames da boa-fé são princípios a atender na integração da declaração negocial.

6. O art.º 615º do CPC impõe que da diligência de inspecção seja lavrado auto em que se registem todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa, podendo o juiz determinar que se tirem fotografias para serem juntas ao processo.

Se a inspecção judicial for realizada no decurso da audiência de discussão e julgamento, não é necessário que seja lavrado um auto específico, mas os elementos úteis para o exame e decisão da causa a que se reporta o citado artº 615º devem ser consignados na respectiva acta de audiência de julgamento.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por óbito de F…, nos Autos de Acção de Despejo (Ordinária) à margem referenciados que move contra O…, Lda., não se conformando com a Sentença proferida pelo Tribunal da 1.º instância que a julgou totalmente improcedente, dela vem interpor recurso de Apelação para este Tribunal.

A ré, O…, Ldª apresenta recurso subordinado, direcionando-o, tão só, quanto à decisão da matéria de facto do quesito 11.º da BI – Ponto 14.º da matéria assente na sentença recorrida -.

Os termos do processo:

 Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de F…, com residência na …, instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário contra O…, Ldª, com sede na Rua …, pedindo a condenação desta a ver resolvido o contrato e a despejar de imediato o locado, melhor identificado na p.i, entregando-o à autora livre de pessoas e bens e nas exactas condições que antes se encontrava antes de executar as obras, bem como nos prejuízos que se vierem a apurar em execução de sentença provenientes destas e ainda em custas e procuradoria condigna.

Para tanto, alegou, em síntese, que a ré adquiriu o direito ao arrendamento e trespasse do locado no âmbito de um processo de execução fiscal movido contra R...

Este havia celebrado com F… um contrato de arrendamento, em 10 de Fevereiro de 1967, tendo por objecto todo o rés-do-chão e pátio a sul do seu prédio urbano destinado a comércio e indústria, sito na Rua ...

Nos termos de tal contrato, o inquilino foi autorizado a fazer obras de adaptação no pátio ao fim a que se destinava, sendo necessária a autorização do senhorio para obras futuras.

A ré, sem qualquer autorização da autora, procedeu de Outubro a Dezembro de 2007 à destruição de toda a fachada principal do edifício e respectivos pilares, destruiu as instalações interiores onde funcionava o posto de abastecimento, destruiu as oficinas de manutenção e lavagem de veículos, bem como o parqueamento público pago e apoio administrativo e as instalações sanitárias do pessoal que ali laborava. Por outro lado, executou outras obras quer neste local, quer no rés-do-chão do edifício, as quais alteram profunda e substancialmente a fisionomia quer interna quer externa do locado e impossibilitam a normal reposição do prédio ao seu estado anterior.

            Devidamente citada, contestou a ré reconhecendo a existência do contrato de arrendamento, alegando, no entanto, que do mesmo resulta apenas a necessidade de autorização para a realização de obras no interior do prédio, obras essas que a ré não fez.

Admite ter efectuado obras que decorreram de 22 de Setembro a final de Novembro de 2007, as quais se destinaram a possibilitar o desenvolvimento da actividade explorada pela ré e a prosseguir a finalidade do contrato de arrendamento, designadamente dar cumprimento às normas legais vigentes aplicáveis ao ramo de actividade a que se dedica.

2.O Objecto da instância de recurso;

Nos termos do art. 684° e 685.º-A do CPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente.

São as seguintes as conclusões que apresenta a recorrente:

...

A ré respondeu e apresentou as suas alegações, concluindo:

3. As questões a decidir são:

I. O Ponto 16 – obras impossibilitam a normal reposição do prédio – terá de ser dado como provado?

II. A matéria de facto do Ponto 21 – autorização de obras - deverá ser considerada como não provada?

III. A matéria de facto do Ponto 11 deverá ser considerada como não provada?

IV. As obras efectuadas justificam a resolução do contrato de arrendamento?

A 1.ª instância fixou a seguinte matéria de facto:

I. Da reapreciação da prova.

Autora e ré requerem, quanto aos pontos 11, 16 e 21 da Base Instrutória, a reapreciação da prova, com fundamento em erro na sua apreciação pela 1.ª instância.

Relembramos as respostas dadas pela 1.ª instância:

...

Como é sabido, para que a 2.ª instância se possa imiscuir na fixação da matéria de facto feita pela 1.ª instância, as partes terão de cumprir alguns requisitos:

Nos termos do art.º. 712ºn.º 1 al. a) do Código do Processo Civil – será o diploma a citar sem menção da sua origem - a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:

“Se do processo constarem todos os elementos de prova, que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 690º-A, a decisão com base neles proferida.”

Dispõe o art. 685º-B do CPC, que tem por epígrafe “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, que “1 – Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida. ...”.

Esta norma reproduz, em grande parte, o art. 690º-A do mesmo diploma - revogado pelo DL. 303/2007 de 24.08 - que foi aditado pelo DL. 39/95 de 15.02, que previu e regulamentou a possibilidade de documentação ou registo das audiências de julgamento, gravando-se a prova nelas produzida, tendo em vista, desse modo, criar um 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes a possibilidade de reacção contra eventuais erros do julgador na apreciação da prova e na fixação da matéria de facto relevante para a decisão de mérito.

Como escreve o Conselheiro Abrantes Geraldes - in “Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, pág. 267 -, “Para que este poder de reapreciação possa ser amplamente utilizado, é necessário que todos os elementos de prova de que o tribunal recorrido fez uso constem do processo - o sublinhado é nosso.

Se algum dos que ficaram expostos na motivação da decisão que concretamente incidiu sobre o ponto de facto impugnado não estiver acessível a Relação ficará inibida nos seus poderes de reapreciação”.

Diz o artº 612º, nº 1 que o tribunal, sempre que o julgar conveniente, pode, por sua iniciativa, ou a requerimento das partes, e com ressalva da intimidade da vida privada e familiar e da dignidade humana, inspeccionar coisas ou pessoas, a fim de se esclarecer sobre qualquer facto que interesse à decisão da causa, podendo deslocar-se ao local da questão ou mandar proceder à reconstituição dos factos, quando a entender necessária.

A prova por inspecção tem por fim a percepção directa de factos pelo tribunal - artº 390º do Código Civil - e o seu resultado é livremente apreciado pelo tribunal  - artº 391º do mesmo diploma -.

A prova por inspecção é, pois, uma prova directa - no sentido em que coloca o julgador em contacto imediato com o facto a averiguar - e é uma prova livre, não vinculada - na medida em que o seu resultado é de livre apreciação pelo tribunal - -  Alberto dos Reis, CPC Anotado, IV, págs. 308, 321 e 322, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 602 e Lebre de Freitas, CPC Anotado, 2º, 2ª ed., págs. 559 e 560.

O art.º 615º impõe que da diligência de inspecção seja lavrado auto em que se registem todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa, podendo o juiz determinar que se tirem fotografias para serem juntas ao processo.

Se a inspecção judicial for realizada no decurso da audiência de discussão e julgamento, não é necessário que seja lavrado um auto específico, mas os elementos úteis para o exame e decisão da causa a que se reporta o citado artº 615º devem ser consignados na respectiva acta de audiência de julgamento.

A consignação desses elementos tem por finalidade permitir ao Tribunal da Relação o efectivo exercício dos poderes de controle da decisão sobre a matéria de facto que lhe são conferidos pelo artº 712º - Acórdãos da Relação do Porto de 04.04.90, 12.02.01, 17.10.02 e 4.2.2010, todos retirados do site www.dgsi.pt. -.

A omissão da consignação daqueles elementos na acta de audiência de julgamento constitui uma irregularidade susceptível de ter influência na decisão da causa no caso de a inspecção judicial vir a ser um dos meios de prova em que o juiz fundamente a decisão sobre a matéria de facto.

Se tal suceder, a irregularidade cometida produz uma nulidade secundária, atípica ou inominada, aplicando-se-lhe o regime dos artºs 201º, 203º e 205º.

É no decurso da audiência de julgamento que o juiz deve fazer consignar na acta respectiva os elementos recolhidos durante a inspecção judicial, tendo as partes o direito de sugerirem a inclusão de determinados elementos ou de reclamarem contra a inclusão ou omissão doutros pelo juiz.

Como escreveu Alberto dos Reis - CPC Anotado, IV, pág. 321 -, é ao juiz que cabe avaliar se tal ou tal averiguação é útil para a decisão da causa; mas não pode negar-se às partes o direito de pedir que determinado facto ou determinada observação seja consignado no acto.

A nulidade é, pois, cometida no decurso da própria audiência de julgamento, pelo que, se a parte aí estiver presente, por si ou por mandatário, tem de arguir a nulidade durante a própria audiência, enquanto esta não terminar.

Se não estiver, pode argui-la no prazo de 10 dias a contar do dia em que, depois de cometida a nulidade, interveio em qualquer acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência. É o que resulta do disposto no artº 205º, nº 1.

Tem-se defendido, doutrinal e jurisprudencialmente que, sempre que a violação das normas processuais esteja coberta por decisão judicial que ordenou, sancionou ou autorizou o acto ou omissão (mesmo que de modo implícito), pode reagir-se contra tal violação através de recurso da decisão.

Assim, só no caso de a parte apenas ter tido conhecimento da nulidade com a notificação da sentença final - v. g., por não ter estado presente no acto da inspecção judicial nem na leitura da decisão sobre a matéria de facto -, poderia vir arguir a mesma em sede de recurso daquela sentença – porque, embora, a decisão que sancionou a nulidade seja a decisão sobre a matéria de facto, esta não é recorrível, apenas podendo ser impugnada no recurso da sentença final nos termos do artº 712º.

No caso, tal não aconteceu, sendo que consta apenas da acta da audiência de discussão e julgamento - a fls. 214-A - que a M.ª Juiz a quo “…procedeu à inspecção ao local”, não se tendo consignado na acta quaisquer elementos recolhidos na diligência.

No entanto, a ilustre Magistrada da 1.ª instância fundamentou a decisão sobre a matéria de facto, além do mais, na referida inspecção judicial, conforme despacho que está a fls. 239 a 245.

A própria ré invoca, no corpo das suas alegações – para alterar a resposta dada ao Ponto 11 da Base Instrutória – a motivação por parte do julgador, dessa inspecção judicial.

É certo que a este Tribunal não está limitada ou condicionada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida, devendo expressar a sua própria convicção, mas tal só pode ser feito a partir da análise dos depoimentos e demais elementos de prova aludidos pelos recorrentes - na parte respeitante aos pontos de facto impugnados -, e pela ponderação do valor probatório de cada um, com explicitação dos resultados desse escrutínio e afirmação, devidamente justificada, da existência ou inexistência de erro de julgamento da matéria de facto quanto a esses impugnados pontos de facto.

Assim, não pode este Tribunal fazer tal “escrutínio”, valendo a convicção e decisão do tribunal de 1ª instância – em relação aos Pontos 11 e 16 da Base Instrutória -, o que só não aconteceria se se verificasse alguma das situações previstas nas als. b) e c) do nº 1 do art. 712º, o que não se verifica.

Improcede, pois, a apelação nesta parte.

No entanto, vamos – porque a isso não impede o supra decidido uma vez que não foi produzida qualquer outra prova a este facto – debruçarmo-nos sobre a melhor interpretação a dar ao contrato de arrendamento - importa distinguir quais os casos em que a interpretação da declaração negocial resultou directamente da prova produzida nas instâncias, por se haver directamente demonstrado que o declaratário conhecia a vontade real do declarante – matéria de facto –, daqueles casos em que a interpretação negocial decorreu com recurso à teoria da impressão do declaratário normal, ao abrigo do disposto no art. 236.º, n.º 1, do Código Civil, ou em violação de outras normas cogentes, relativas à interpretação dos contratos, como as limitações decorrentes do art. 238.º do CC – matéria de direito - e, em consequência, à matéria constante do Ponto 21 da Base Instrutória - corresponde ao Ponto 16 da decisão da 1.ª instância -.

O STJ em Acórdão de 2006.05.09 – retirado do site www.dgsi.pt -, com expressas referências aos ensinamentos de CASTANHEIRA NEVES e VAZ SERRA, - na RLJ, 111.º, p. 380 e 112.º, p. 154 -, diz que “a interpretação da declaração negocial constitui por princípio matéria de direito, só sendo matéria de facto quando feita de harmonia com a vontade real do declarante.”

A 1.ª instância respondeu assim:” Provado que a ré estava autorizada a fazer na parte arrendada do prédio todas as obras de adaptação ao fim a que se destina, especialmente vedar, dividir e cobrir o pátio, podendo fazer paredes e fachadas de harmonia com a planta que lhe for aprovada, mas tudo de modo a não faltar ou prejudicar a devida segurança e estética nessas obras, não podendo, no interior do prédio, fazer quaisquer obras, mormente o corte de paredes ou simples rasgos, substituição de divisórias ou outras modificações, sem consentimento escrito do senhorio”.

Pode ler-se no contrato de arrendamento:” Quarto - Fica o inquilino autorizado a fazer na parte arrendada do prédio todas as obras de adaptação ao fim a que se destina, especialmente, vedar, dividir e cobrir o pátio, podendo fazer paredes e fachadas de harmonia com a planta que lhe for aprovada, mas tudo de modo a não faltar ou prejudicar a devida segurança e estética nessas obras. No interior do prédio não poderá fazer quaisquer obras, mormente o corte de paredes ou simples rasgos, substituição de divisórias ou outras modificações, sem consentimento escrito do senhorio, o qual permitirá desde que tecnicamente lhe seja comprovado ou garantido que dessas obras não resultarão prejuízos de segurança ou outros equivalentes e bem assim para a sua estética e, no caso de serem aprovadas, não servem de base para modificações ou alterações de rendas ou outras exigências. Todas as obras indicadas que são feitas exclusivamente à custa do arrendatário, serão levadas em consideração nos termos da alínea d) do artº 9º do Decreto-Lei 37021, bem como outras que venha a fazer, no caso de futura avaliação para fixação de rendas pois expressamente se declara que o pátio era amplo e sem vedação e muros, digo todas as obras que agora vão ser feitas ou aquelas que devidamente autorizadas, venham a sê-lo, são exclusivamente da conta da arrendatário, que em tempo algum poderá pedir por elas qualquer indemnização ou alegar o direito de retenção. Contudo, declara-se que o pátio é amplo, apenas vedado com muros e um portão do lado poente e que as beneficiações ora feitas não contam para avaliações e fixação de novas rendas.           Declarou o segundo outorgante que aceita o arrendamento exarado”.

No entender da Recorrente, a cláusula contratual em que enformou o Mmo Juiz a quo a sua decisão deverá ser interpretada no sentido de que “se de início o notário redigiu o texto com uma orientação, ela foi claramente alterada, pretendendo-se de forma clara dar autorização para as obras que se iriam fazer no pátio, ficando elas a fazer parte do imóvel, sem direito a indemnização ou retenção pelo rendeiro, e sem que o senhorio pudesse aumentar a renda por elas”.

A recorrida, naturalmente, tem outro entendimento.

Como todos sabemos, tal declaração tem de ser interpretada de acordo com as regras da hermenêutica negocial - a actividade destinada a fixar o sentido e alcance decisivo das declarações negociais -, ou seja, de acordo com a teoria da impressão do destinatário, estabelecida no art.º 236º, nº 1, segundo a qual a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.

Nessa actividade deve atender-se a todos os coeficientes ou elementos que um declaratário normalmente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário, teria tomado em conta, devendo ainda ser considerados os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo - e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento -, a finalidade prosseguida pelo declarante, as negociações prévias, as precedentes relações negociais entre as partes, os hábitos dos declarantes - de linguagem ou outros -, os usos da prática, em matéria terminológica, sendo mesmo de considerar também os modos de conduta por que posteriormente se prestou observância ao negócio concluído – sobre esta questão ver Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 2ª edição actualizada, págs. 448 e 449, citando Manuel de Andrade e Rui de Alarcão -.

Acresce ainda, que nesta actividade hermenêutica, tem o tribunal de considerar que, conforme impõe a lei, quer nos preliminares, quer momento da celebração do contrato - art.º 227º do Código Civil -, quer no seu cumprimento - art.º 762º do Código Civil -, devem as partes proceder de boa-fé, sendo certo que os ditames da boa-fé são princípios a atender na integração da declaração negocial.

A boa-fé, como é sabido, consiste numa relação específica entre as partes, fonte de uma específica relação de confiança, ou pelo menos de uma legítima expectação de conduta - Prof. Dr. Orlando de Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil, Centelha, Coimbra, 1981, pág. 55 e 56 -, ou no dizer de Diez-Picaso - citados por A. Varela, Das Obrigações em Geral, II Vol., 4ª edição, pág. 13 -, é um arquétipo de conduta social: a lealdade nas relações, o proceder honesto, esmerado, diligente, pois que a relação criada entre as partes faz surgir uma legítima expectação de conduta correcta da contraparte.

A interpretação negocial parte das declarações produzidas pelas partes - é esta a sua base -, devendo depois ser considerada a normal sagacidade e inteligência dos contratantes, atendidos os interesses em jogo, as negociações prévias, informações eventualmente prestadas por uma à outra, a actuação posterior das partes na execução do acordo, etc., tudo isto filtrado pelas regras do proceder honesto, correcto e leal - a legítima expectação de conduta em que se traduz a boa fé -.

No caso dos autos, importa atender, que decorre do aludido contrato – para um declarante e declaratário normais – que a recorrida pretendeu arrendar, utilizar determinado espaço, que abrange o rés-do-chão e a parte do páteo do lado sul e destina-se a exploração de oficina de reparação de veículos ligeiros e pesados, estação de serviço com lavagens e lubrificações, venda de óleos e carburantes, stand de venda e exposição de veículos e acessórios, recolhas e escritórios, podendo o arrendatário vir a explorar outro ramo desde que ele se coadune com a estruturação e acabamentos do edifício e não obrigue a quaisquer obras.   

Como supra referimos, a prova dessa interpretação ficou necessariamente agarrada ao que se escreveu no contrato – nenhuma outra prova se produziu, nomeadamente prova testemunhal -, da qual, no entender do julgador da 1.ª instância, não resulta o entendimento da Recorrente, mas sim que “estipulando aquele contrato de arrendamento no seu ponto quatro, que o inquilino fica autorizado a fazer na parte arrendada do prédio todas as obras de adaptação ao fim a que se destina, sempre as mesmas estariam autorizadas, posto que se tratassem de obras que visassem a prossecução daquele fim ”.

Salvo o devido respeito, a recorrente na sua interpretação ignora a restante letra da cláusula, o contexto sistemático em que a mesma se insere e da finalidade prática gizada pelas partes.

Resulta de tal clausulado que, apenas no interior do prédio a Recorrida “não poderá fazer quaisquer obras, mormente o corte de paredes ou simples rasgos, substituição de divisórias ou outras modificações, sem consentimento escrito do senhorio, o qual permitirá desde que tecnicamente lhe seja comprovado ou garantido que dessas obras não resultarão prejuízos de segurança ou outros equivalentes e bem assim para a sua estética (…)”.

A cláusula contratual consagra então procedimentos distintos para a realização de obras no locado: as realizadas no interior do prédio carecem de autorização do senhorio, ao passo que as executadas no seu exterior não necessitam de consentimento se visarem a adaptação do prédio ao fim do contrato de arrendamento.

Seguimos, muito de perto, a interpretação da recorrida.

“De facto, nessa mesma cláusula estabelece-se adiante que o arrendatário não poderia pedir qualquer indemnização ou alegar o direito de retenção e, bem assim, que as beneficiações feitas não contavam para avaliação e fixação de novas rendas.

Ora é neste seguimento que se refere “digo todas as obras que agora vão ser feitas ou aquelas que devidamente autorizadas, venham a sê-lo”.

Desconstruindo com recurso aos critérios interpretativos acima enunciados, não se pode de boa-fé retirar que “se de início o notário redigiu o texto com uma orientação, ela foi claramente alterada, pretendendo-se de forma clara dar autorização para as obras que se iriam fazer no pátio, ficando elas a fazer parte do imóvel, sem direito a indemnização ou retenção pelo rendeiro, e sem que o senhorio pudesse aumentar a renda por elas”.

Ao invés, tal inscrição, na senda da restante declaração negocial, apenas distingue, no que respeita à expressão “todas as obras”, as realizadas no exterior do edifício com o fim de adaptação ao fim do contrato de arrendamento – que não carecem da autorização – e as realizadas no interior do edifício – que não podiam ser realizadas sem o consentimento do senhorio.

Ora, o contexto e a finalidade prática do contrato era a de que o prédio não se encontrava habilitado ao fim comercial convencionado entre as partes – a exploração de oficina de reparação de veículos ligeiros e pesados, estação de serviço com lavagens e lubrificações, venda de óleos e carburantes, stand de venda e exposição de veículos acessórios, recolhas e escritórios.

Considerando isto, convencionaram as partes que o arrendatário estava autorizado a fazer na parte arrendada do prédio todas as obras do fim a que se destina, de modo a não faltar ou prejudicar a devida segurança e estética nessas obras, excluindo-se daqui as obras realizadas no interior do edifício.

E, estando autorizada para tanto, a Recorrida fez as obras necessárias a garantir as condições de segurança no locado, nos termos previstos na legislação aplicável, em particular, as atinentes às condições de segurança, higiene e salubridade” – fim de citação.

Não o poderia ser de outra forma, atenta a exploração comercial em causa e o extremo rigor e exigências colocadas pelas entidades administrativas nas questões de segurança e que, seguramente as partes, quando lavraram o contrato o não poderiam olvidar. 

Aliás, foi isso mesmo que se alegou e provou nos autos – “As obras efectuadas pela ré destinaram-se a tornar o local conforme à legislação referente às condições de segurança a que deviam obedecer a construção e exploração de postos de abastecimento de combustíveis destinados ao abastecimento de veículos rodoviários” - Ponto 15 dos factos ordenados na decisão em crise.

Até porque, como se escreve nas contra alegações, “…em caso de dúvida…dispõe o artigo 237.º do C.C. que nos negócios onerosos o sentido da declaração será “o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações”.

 Ora, nos presentes autos a solução que inegavelmente representa um maior equilíbrio nas prestações é a de se considerar que se encontram autorizadas todas as obras no locado tendentes à sua adaptação ao fim a que o arrendamento se destina, com excepção das realizadas no interior do prédio.

Pelo que estava a Recorrida autorizada a executá-las ao abrigo do contrato de arrendamento.

Sendo esta a melhor interpretação a dar ao documento que possibilitou a existência do presente contrato, mantemos a matéria de facto fixada pela 1.ª instância.

 4.Do Direito

Na presente acção a autora, Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por óbito de F… pretende que se reconheça o seu direito à resolução do contrato de arrendamento, com fundamento na realização de obras pelo inquilino, no local arrendado, que alteram a estrutura interna do prédio não autorizadas pelo senhorio.

Alega que, a ré, sem qualquer autorização da autora, procedeu de Outubro a Dezembro de 2007 à destruição de toda a fachada principal do edifício e respectivos pilares, destruiu as instalações interiores onde funcionava o posto de abastecimento, destruiu as oficinas de manutenção e lavagem de veículos, bem como o parqueamento público pago e apoio administrativo e as instalações sanitárias do pessoal que ali laborava. Por outro lado, executou outras obras quer neste local, quer no rés-do-chão do edifício, as quais alteram profunda e substancialmente a fisionomia quer interna quer externa do locado e impossibilitam a normal reposição do prédio ao seu estado anterior.

A presente acção foi instaurada em 9.1.2009.

O NRAU – Lei 06/2006 de 27/02 – entrou em vigor em 27 de Junho de 2006.

O art. 59ºn.º 1 deste diploma, sob a epígrafe “Aplicação no Tempo”, passou a dispor:

“O novo regime do arrendamento urbano aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam dessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.”

O nº3 do mesmo preceito prevê: “As normas supletivas contidas no novo regime do arrendamento urbano só se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da presente lei quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que é essa a norma aplicável.”

No caso dos autos, o contrato foi celebrado em 10 de Fevereiro de 1967, portanto em data muito anterior à entrada em vigor do novo regime do arrendamento.

Como se refere no Acórdão do STJ de 08.04.2010, retirado do site www.dgsi.pt: “ … em matéria de fundamentos da resolução do contrato, deverá aplicar-se o regime em vigor à data da propositura da acção, sendo esse o momento temporal decisivo para apurar se os factos invocados têm eficácia constitutiva do direito invocado, posto que se trata de saber se, nessa data, assistia ao senhorio o direito que se arroga.”

Nos presentes autos temos provado que as obras realizadas pela ré e que a autora alega para justificar o pedido de resolução ocorreram após o Verão de 2007. Significa assim que, tendo o facto que fundamenta o pedido de resolução do contrato ocorrido após a entrada em vigor do NRAU, é à luz deste diploma que os pedidos terão que ser apreciados, com as restrições acima referidas.

Como é sabido, o contrato de arrendamento urbano é o contrato pelo qual uma das partes concede à outra o gozo temporário de um prédio urbano, no todo ou em parte, mediante retribuição – art. 1022º e 1023º do Código Civil -.

Considera-se realizado para comércio ou indústria o arrendamento de prédios ou parte de prédios urbanos ou rústicos tomados para fins directamente relacionados com uma actividade comercial ou industrial.

Dispõe o artº 1083º nº 1 que qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte.

O nº 2, por sua vez, dispõe que é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, enunciando depois a título meramente exemplificativo, várias situações que conferem ao senhorio o direito de resolver o contrato.

Como se verifica, apesar de nº 1 da citada norma legal, se admitir a resolução com base nos termos gerais de direito, da análise do nº 2 resulta que não é qualquer incumprimento que permite a resolução do contrato, mas apenas aquele que pela sua gravidade ou consequências torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.

Assim, à luz do NRAU são requisitos gerais da resolução do contrato: a) O incumprimento da outra parte, que se presume culposo, nos termos do art.º 799º; b) Que tal incumprimento contratual seja grave e altere o equilíbrio da relação locatícia; c) E que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.

Verifica-se, deste modo, comparativamente ao regime do RAU que enumerava taxativamente as causas de resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio, que actualmente qualquer incumprimento, mesmo que não referido nas diversas alíneas do nº 2 do artº 1083º poderá ser causa da resolução do contrato, posto que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.

Assim, e não obstante o artº 1083º nº 2 não fazer qualquer alusão à realização de obras não autorizadas por parte do locatário, tal não significa que tal comportamento não constitua causa de resolução pelo senhorio. Poderá sê-lo, desde que a realização das mesmas constitua uma infracção contratual de tal modo grave que torne inexigível ao senhorio manter o contrato de arrendamento.

E é precisamente, este ponto, que temos de solucionar.

Sobre a concreta causa de resolução pelo senhorio respeitante à realização no locado, pelo arrendatário sem autorização do primeiro, de obras que alterem substancialmente a estrutura externa ou a disposição interna das divisões, referem Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge – no seu Arrendamento Urbano”, 2ª ed., 2007, pág. 293 -, no âmbito do NRAU: “(...) a inexistência de norma correspondente na enumeração feita no nº 2 do art. 1083 do C.C. não significa que tais situações tenham deixado de constituir fundamento de despejo. Com efeito, a violação do dever de manutenção do locado previsto no art. 1043 do C.C. poderá fundamentar a resolução do contrato quando, «pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível» ao senhorio a manutenção do arrendamento. (...) Concordamos que a realização pelo arrendatário de obras não facultadas pelo contrato ou que não tenham sido autorizadas, por escrito, pelo senhorio pode constituir fundamento de resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio, embora não olvidando que a análise de cada situação terá sempre de ser feita à luz da cláusula geral enunciada no nº 2”.

E cumpre, desde já, realçar as alterações verificadas nos regimes legais que se sucederam no tempo, quer quanto à resolução do arrendamento, quer quanto ao fundamento que iremos tratar.

Enquanto no RAU as causas de resolução do contrato pelo senhorio eram taxativas (o art. 64.º dispunha no n.º 1 que "o senhorio só pode resolver o contrato... ", seguindo-se o elenco das causas resolutivas) na NRAU a resolução é possível "nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte".

Agora, o fundamento de resolução será, o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.

Daí que, para a apreciação da relevância do fundamento da resolução do contrato de arrendamento, deva ponderar-se o acto em si - que pode, ou não constar do elenco do n.º2 do art. 1083º- caracterizador de incumprimento, inserindo-o na dinâmica de toda a relação contratual para, depois, apurar se pela sua gravidade ou consequências - e em certos casos reiteração - compromete irremediavelmente a manutenção do vínculo, não sendo exigível à outra parte que continue obrigada.

Estas regras visam sancionar a violação, por parte do arrendatário, do direito de transformação do imóvel, que pertence ao proprietário -  a ratio do preceito é impedir que o arrendatário avoque e faça seus, poderes que cabem exclusivamente ao proprietário, e que a lei não tolera sejam exercidos por outrem -, justificando-se, por isso, que o senhorio possa pôr termo ao contrato se o arrendatário o faz, procedendo à transformação da coisa locada e destruindo o equilíbrio contratual que é pressuposto do contrato de arrendamento.

Ao arrendatário apenas cabe o gozo temporário do locado e, por isso, quando ele pratica actos de transformação, está a invadir a esfera patrimonial do dono do prédio, o que a lei sanciona com o despejo, por em causa estar uma grave perturbação na economia contratual, em que o inquilino se arroga poderes próprios do domínio.

Assim, a ratio do preceito é a de impedir que o arrendatário avoque e faça seus poderes que cabem exclusivamente ao proprietário e que a lei não tolera sejam exercidos por outrem: se o faz, procedendo à transformação da coisa locada e destruindo o equilíbrio contratual que é pressuposto do contrato de arrendamento, justifica-se que se confira ao senhorio a faculdade de pôr termo ao contrato.

A transformação ou alteração da coisa locada não é conforme, não se acomoda aos fins da locação. O locatário que pratica actos que excedem os seus poderes de fruição ofende o direito de propriedade do proprietário, infringindo uma cláusula essencial do contrato.

No entanto, como se escreve no Acórdão do STJ de 8.4.2010, retirado do site www.dgsi.pt, “…A relevância resolutiva decorrente da verificação de uma alteração substancial na disposição interna das divisões do locado deve ser afastada, tornando ineficaz essa alteração substancial, se tal for imposto pela articulação do princípio ou regra geral da boa-fé com a finalidade do contrato…é o que sucede se, arrendado, há 25 anos, um andar para aí ser instalado um estabelecimento comercial de café-bar, cervejaria, confeitaria e pastelaria, o arrendatário, dono do estabelecimento, efectua agora, na sequência de inspecção feita pelos serviços de fiscalização competentes, as obras impostas por esses serviços, necessárias para adequar as instalações às exigências legais em matéria de estruturas, instalações e equipamento dos estabelecimentos de restauração ou de bebidas e para evitar as sanções legais que, no limite, podiam conduzir ao encerramento do estabelecimento – obras cuja necessidade comunicou ao senhorio e que este recusou autorizar. Resultando de tal recusa do senhorio a frustração do fim contratual, já que sem as obras o andar em causa não podia continuar a assegurar o fim para que foi arrendado, a correcção imposta pelo princípio da boa-fé com a finalidade do contrato sempre implicaria negar às obras efectuadas – mesmo que traduzindo uma alteração substancial da disposição interna das divisões do locado – relevância resolutiva, por serem essenciais ao fim do arrendamento…”- fim de citação.

Também, por Acórdão de 29.3.2012 – recolhido na Col. Jur. Ac/STJ, Ano XX, Tomo I, pág.293 -, O STJ decidiu que “…embora em abstracto, as obras realizadas pelos réus no locado possam consubstanciar violação contratual, elas perdem relevo resolutivo se, tendo em conta o destino previsto no contrato, são admissíveis à luz das regras da boa-fé…”

Pensamos que esta temperança das regras através do destino/fim do contrato deverá ser aplicada, também, a estes autos, até, porque se mostra nos autos que o locado não tinha as condições adequadas para o fim pretendido pelas partes – não podemos olvidar que a figura da resolução do contrato de arrendamento, por banda do senhorio, se acha admitida em termos algo restritivos, que estão longe do carácter amplo com que a resolução contratual é, em geral, admitida nos arts. 432º e seguintes do Código Civil -.

Mostra-se provado (Ponto 15) que “ As obras efectuadas pela ré destinaram-se a tornar o local conforme à legislação referente às condições de segurança a que deviam obedecer a construção e exploração de postos de abastecimento de combustíveis destinados ao abastecimento de veículos rodoviários, e que (Ponto 16) “A ré estava autorizada a fazer na parte arrendada do prédio todas as obras de adaptação ao fim a que se destina, especialmente vedar, dividir e cobrir o pátio, podendo fazer paredes e fachadas de harmonia com a planta que lhe for aprovada, mas tudo de modo a não faltar ou prejudicar a devida segurança e estética nessas obras, não podendo, no interior do prédio, fazer quaisquer obras, mormente o corte de paredes ou simples rasgos, substituição de divisórias ou outras modificações, sem consentimento escrito do senhorio”.

Como escreve a 1.ª instância”… É bom de ver que estas obras nada têm que ver com as deteriorações do locado, nem são obras destinadas a assegurar o conforto e comodidade da ré. Por outro lado, não se tratou de obras urgentes, nem exigidas pelo município, tratando-se sim de obras de transformação do locado, obras dotadas de alguma envergadura, e que, por isso não estão previstas nos normativos acima referidos.

Deste modo, para a sua realização a ré necessitava de consentimento escrito do senhorio, salvo se as mesmas estivessem previstas no contrato, como determina o artº 1074º nº 2.

Sabendo nós que a autora não autorizou a realização de quaisquer obras, percorrendo o contrato, poderemos concluir que as mesmas são enquadráveis no clausulado constante daquele documento?

O locado é parte integrante de um edifício composto de rés do chão e quatro andares, abrangendo o rés do chão e o pátio que lhe fica a sul. Resulta do ponto quatro do contrato de arrendamento que no interior do prédio não poderia o arrendatário fazer quaisquer tipo de obras, sem consentimento escrito do senhorio, a significar que na parte do rés-do-chão, nunca a ré poderia realizar quaisquer obras sem aquele consentimento.

No entanto, temos provado que retirou parte das madeiras do tecto em talha dourada e construiu uma parede no local onde anteriormente existia uma porta que permitia o acesso do rés-do-chão ao pátio, não tendo as mesmas sido autorizadas, nem estando previstas no contrato, são obras ilícitas. Resta saber se a sua realização implica necessariamente a resolução do contrato de arrendamento, assunto que abordaremos infra.

Quanto às obras efectuadas no pátio, este à data em que o contrato foi outorgado, era amplo, apenas vedado com muros e um portão do lado poente, e permitiu-se ao arrendatário fazer todas as obras de adaptação ao fim a que se destinava e que, segundo a cláusula terceira era a exploração de oficina de reparação de veículos ligeiros e pesados, estação de serviço com lavagens e lubrificações, venda de óleos e carburantes, stand de venda e exposição de veículos e acessórios, recolhas e escritórios. Exemplificativamente foi referido que o arrendatário poderia vedar, dividir e cobrir o pátio, podendo fazer paredes e fachadas de harmonia com a planta que lhe for aprovada.

Ora, sendo o pátio amplo aquando da celebração do contrato de arrendamento, necessariamente as instalações demolidas pela ré na zona que correspondia ao mesmo, foram instalações construídas após aquela celebração e que expressamente no contrato foram autorizadas pelo senhorio, o que resulta da redacção, não muito feliz é certo, da parte final do ponto quatro.

E quanto às obras futuras naquela zona do pátio? Necessitava a ré para a sua realização de qualquer autorização ou esta já resulta do contrato?

Entendemos que, estipulando aquele no seu ponto quatro, que o inquilino fica autorizado a fazer na parte arrendada do prédio todas as obras de adaptação ao fim a que se destina, sempre as mesmas estariam autorizadas, posto que se tratassem de obras que visassem a prossecução daquele fim.

E com efeito, temos provado que as obras efectuadas pela ré se destinaram a tornar o local conforme à legislação referente às condições de segurança a que deviam obedecer a construção e exploração de postos de combustíveis destinados ao abastecimento de veículos rodoviários.

Estipula o artº 4º nº 4 da Portaria 131/2002 de 9 de Fevereiro que os postos de abastecimento devem ser localizados a céu aberto ou em local com abrigo simples, com garantia de altura livre não inferior a 5 metros do pavimento, sendo que no nº 1 da mesma disposição legal se proíbe a localização de postos de abastecimentos em qualquer tipo de edificação.

O artº 9º nº 1, por sua vez, preceitua que as entradas e saídas dos postos de abastecimento devem ser efectuadas directamente da via pública.

Concretamente, sabemos que a ré procedeu à demolição das instalações onde funcionava o posto de abastecimento, destruiu as instalações de lavagem de veículos, destruiu o parqueamento, bem como a fachada do prédio, incluindo a estrutura existente na extensão da sua confrontação com a rua, com que confina pelo lado poente.

Por força destas obras foi criado um espaço aberto e não fechado preenchido com uma pala com apoio central, sem qualquer suporte na envolvente, com uma área de 300 m2 na qual foram construídas as ilhas de abastecimento.

Verifica-se que estas obras estão em consonância com as normas legais citadas, visando a adaptação da actividade de estação de serviço a tal legislação.

Posto isto, porque as obras realizadas, sendo obras de adaptação ao fim a que se destinava o locado, estavam expressamente previstas no contrato, a sua realização não configura qualquer incumprimento contratual que justifique a resolução daquele pela autora…” – fim de citação -.

Carecendo o locado das referidas obras, o mesmo não ficou, de modo algum, desvalorizado, pois, ao invés do que alega a Recorrente, mostra-se actualizado no ramo comercial a que pertence - actividade de estação de serviço -. São as regras administrativas e de mercado a funcionar, a evolução natural do negócio começado no longínquo Fevereiro de 1967 e a acomodação do contrato aos novos tempos.

Não podemos deixar de concordar com a 1.ª instância quando escreve que “… desta perspectiva de lesão dos interesses materiais da autora, apesar de os factos trazidos aos autos não serem abundantes, não vemos como possa ela ter sido prejudicada com a realização das obras. É certo que as mesmas assumem alguma envergadura, mas voltamos a sublinhar as mesmas mostravam-se necessárias à prossecução do fim do arrendamento, a significar que se não tivessem sido realizadas, o local em causa não teria qualquer utilidade locativa, ou pelo menos, não a teria na dimensão que a realização das obras o permite, razão pela qual nunca a autora, em termos patrimoniais ficou afectada com a sua realização.

Em suma, ainda que as obras em causa fossem ilícitas, a sua realização nunca seria de tal modo grave que tornasse inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento.

O mesmo se diga das obras realizadas no interior do rés-do-chão que, como já referido, para as mesmas carecia a ré de autorização do senhorio para a sua realização.

Por isso, não podia a ré ter retirado parte das madeiras em talha dourada que se encontravam no tecto da loja sita no rés-do-chão, nem poderia ter construído uma parede em local onde anteriormente se situava uma porta que permitia o acesso do prédio à zona do pátio.

Constituindo o prédio onde se situa esse rés-do-chão um edifício que é uma referência da cidade, a construção da parede impede o acesso do mesmo à zona que agora se situa a céu aberto e onde estão instaladas as ilhas de abastecimento de combustíveis. Quer-nos parecer que a construção da parede, de alguma forma, protege em maior grau o referido edifício dessa zona sita a céu aberto, onde se situa o posto de abastecimento de combustíveis, pelo que não se vê também, onde possam ter sido lesados os interesses patrimoniais da autora.

Quanto à supressão de parte da madeira do tecto em talha dourada, tratando-se, como dissemos, de um edifício de referência e de Autor, tal intervenção constitui uma conduta grave e atentatória do património arquitectónico e por isso mesmo reprovável.

 No entanto, não foram trazidos quaisquer elementos aos autos que nos permitam retirar qualquer conclusão sobre a lesão patrimonial que tal conduta da ré pode configurar.

Por outro lado, na perspectiva global do contrato de arrendamento, o qual tem como objecto não apenas esta loja sita no rés-do-chão, mas todo o pátio que se situa a sul, entendemos que sendo afectada apenas uma parte do locado, admitir a resolução pura e simples do contrato de arrendamento, não é solução que se adeque ao equilíbrio contratual das obrigações de cada uma das partes contratantes, equilíbrio este que sempre haverá que ponderar na integração da cláusula geral resolutiva inserta no artº 1083º nº 2” – fim de citação -.

Aliás, entendimento diverso implicaria uma consequência nefasta e desproporcional: a constituição na esfera da Recorrente o direito potestativo de resolver um contrato de arrendamento que abrange um espaço de centenas de metros quadrados, pela simples retirada de telhas existentes no interior do espaço a que se reporta o rés-do-chão.

Não bastante, os presentes autos revelam ainda que não foram trazidos aos autos quaisquer razões que donde se possa, de boa-fé, concluir que a conduta da Recorrida foi de tal modo grave que torne inexigível à Recorrente a manutenção da relação contratual.

Neste particular, salvo o devido respeito pela opinião da recorrente, entendemos que a solução passará já pela aplicação da norma do artigo 1043ºn.º 1 do Código Civil, estando o arrendatário obrigado a restituir o prédio no estado em que o recebeu – naturalmente quando cessar o contrato que une as partes.

 Não pode é fundamentar a resolução pedida pela autora.

Diz, ainda a recorrente:”Assim, ainda que se entenda – por mera cautela de patrocínio – e não se entende - sempre se dirá que em causa não estão simples obras estruturais, mas sim no caso a que se reportam os autos estamos perante a destruição completa do locado, ou seja, não se procedeu à remodelação, alteração do existente, mas sim completa demolição, e consequente construção de raiz de um novo espaço. Razão porque, estamos perante uma situação de perda do objecto locado, com inerente caducidade do contrato, conforme artº 1051º, al. e) do Cód. Civil. Impõe-se que seja facultado aos senhorios o direito de resolver o contrato de arrendamento e consequentemente ser a R. condenada a despejar o locado”.

Como é sabido, do específico ponto de vista da instância recursiva, tem-se por certo que, sendo os recursos meios de impugnação das decisões judiciais, destinados à reapreciação ou reponderação das matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal a quo e não meios de renovação da causa através da apresentação de novos fundamentos de sustentação do pedido - matéria não anteriormente alegada - ou formulação de pedidos diferentes - não antes formulados -, ou seja, visando os recursos apenas a modificação das decisões relativas a questões apreciadas pelo tribunal recorrido - confirmando-as, revogando-as ou anulando-as - e não criar decisões sobre matéria nova, salvo em sede de matéria indisponível, a novidade de uma questão, relativamente à anteriormente proposta e apreciada pelo tribunal recorrido, tem inerente a consequência de encontrar vedada a respectiva apreciação pelo Tribunal de recurso - art.º 676º do Código do Processo Civil -.

Diremos ainda, que com esta parte da alegação a autora alterava o seu pedido, o que é proibido pela conjugação das normas dos artigos 272.º e 273.º do Código do Processo Civil – relembramos o pedido da autora “A R. violou entre outros o disposto nos Artº 1038º al.d) Artº 1043º, Artº 1074º 2 e Artº 1083º do Cód.Civil. Termos em que deve a presente acção ser julgada procedente por provada e a R. condenada a ver resolvido o contrato e a despejar de imediato o locado identificado no Artº 1º desta p.i., entregando-o à A. livre de pessoas e bens, e nas exactas condições que antes se encontrava antes de executar as obras, bem como nos prejuízos que se vierem a apurar em execução de sentença provenientes destas” -.

Improcede, pois, o recurso.

Sumariando esta decisão:

1.A interpretação da declaração negocial constitui por princípio matéria de direito, só sendo matéria de facto quando feita de harmonia com a vontade real do declarante.

2. Nessa actividade deve atender-se a todos os coeficientes ou elementos que um declaratário normalmente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário, teria tomado em conta, devendo ainda ser considerados os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo - e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento -, a finalidade prosseguida pelo declarante, as negociações prévias, as precedentes relações negociais entre as partes, os hábitos dos declarantes - de linguagem ou outros -, os usos da prática, em matéria terminológica, sendo mesmo de considerar também os modos de conduta por que posteriormente se prestou observância ao negócio concluído.

3. Acresce ainda, que nesta actividade hermenêutica, tem o tribunal de considerar que, conforme impõe a lei, quer nos preliminares, quer momento da celebração do contrato - art.º 227º do Código Civil -, quer no seu cumprimento - art.º 762º do Código Civil -, devem as partes proceder de boa-fé, sendo certo que os ditames da boa-fé são princípios a atender na integração da declaração negocial.

Assim sendo, na improcedência do recurso, mantemos a decisão da 1.ª instância.

Custas a cargo da recorrente.

 (José Avelino - Relator -)

(Regina Rosa)

(Artur Dias)