Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
165/08.3TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CALVÁRIO ANTUNES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
MULTA
COIMA
Data do Acordão: 05/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO CRIMINAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 8º Nº 7 DO RGIT E 29º, N.º 5, DA C.R.P.
Sumário: A norma do art. 8º, nº 7, do RGIT é inconstitucional, por violação do art. 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, quando aplicada a administrador ou gerente igualmente condenado pela prática do crime pelo qual foi condenada a sociedade, por consubstanciar uma dupla valoração do mesmo facto.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da 4ª Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

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No processo supra identificado, em que são arguidos,

Restaurante “A..., Ldª,

B..., e

C..., todos melhor identificados a fls. 265,

por sentença de 14 de Dezembro de 2010 e transitada em julgado, foi decidido:

a) Condenar a arguida " A ..., Ldª", como co-autora material de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 7.º/1, 12.º/3, 107.º/1 e 105.º/1 do regime Jurídico das Infracções Tributárias – Lei n.º 15/2001, de 5/6 –, 26.º, 30.º/2 e 79.º do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 10 [dez euros (cfr. artigo 47.º/2 do Código Penal e 12,º do R.G.I.T.)], ou seja, na multa de € 1.500 (mil e quinhentos euros);

b) Condenar o arguido B ... como co-autor material de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 107.º/1 e 105.º/1 do Regime Jurídico de Infracções Tributárias – Lei n.º 15/2001, de 5/6 –, 26.º, 30.º/2 e 79.º do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 8 [oito euro (cfr. artigo 47.º/2 do Código Penal e 12,º do R.G.I.T.)], ou seja, na multa de € 800 (oitocentos euros), fixando-se em 66 (sessenta e seis) dias a respectiva pena de prisão subsidiária (artigo 49.º/1 do Código Penal);

c) Condenar a arguida C ... como co-autora material de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 107.º/1 e 105.º/1 do Regime Jurídico de Infracções Tributárias – Lei n.º 15/2001, de 5/6 -, 26.º, 30.º/2 e 79.º do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 8 [oito euro (cfr. artigo 47.º/2 do Código Penal e 12,º do R.G.I.T.)], ou seja, na multa de € 800 (oitocentos euros), fixando-se em 66 (sessenta e seis) dias a respectiva pena de prisão subsidiária (artigo 49.º/1 do Código Penal);


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PARTE CÍVEL:

Condenar solidariamente (artigo 497.º/1 do Código Civil) os demandados " A ..., Ldª", B ... E C ..., a pagarem ao demandante Instituto de Gestão Financeira Segurança Social a quantia global de € 16.132,85 (dezasseis mil, cento e trinta e dois mil euros e oitenta e cinco euros) – sendo € 11.948,56 (onze mil, novecentos e quarenta e oito euros e cinquenta e seus euros) referentes a quotizações em dívida e o demais juros de mora, contados até Janeiro de 2010 –, acrescida de juros vencidos e vincendos sobre o montante contributivo em dívida de € 11.948,56 (onze mil, novecentos e quarenta e oito euros e cinquenta e seus euros) até integral e efectivo pagamento.


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Notificada para o efeito, a sociedade arguida não procedeu ao pagamento da pena de multa, não sendo possível o pagamento coercivo da mesma por não ter sido encontrado património em seu nome.

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Mais tarde, veio o Ministério Publico requerer que os arguidos B ... e C ..., fossem solidariamente condenados no pagamento da multa aplicada à sociedade e por aquela não paga (fls.455).

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Na sequência de tal requerimento foi proferido o despacho (fls. 456), ora recorrido, no qual se decidiu considerar solidariamente responsáveis pelo pagamento da pena de multa em que a sociedade arguida foi condenada nestes autos os co-arguidos B ... e C ....

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Inconformados com tal, recorreram os arguidos B ... e C ..., tendo formulado as seguintes conclusões:

“1. O presente recurso vem interposto de douto despacho que considerou solidariamente responsáveis pelo pagamento da multa em que foi condenada a arguida « A ..., Lda.», no montante de 1.500,00 €, os co-arguidos B ... e C ....

2. Todavia, não podem os recorrentes conformar-se com os termos do douto despacho, porquanto face ao direito aplicável, não poderão ser solidariamente responsáveis pela multa em que foi condenada a arguida « A ..., Lda.».

3. A questão jurídica em causa nos autos reconduz-se a saber se a norma do n.º 7 do art. 8.° do RGIT permite ou não responsabilizar solidariamente/subsidiariamente pelo pagamento de multa penal aplicada em processo-crime a pessoa colectiva ou equiparada as pessoas singulares que tenham colaborado dolosamente na prática de infracções tributárias, no caso, os recorrentes.

4. Ora, dúvidas não há que em matéria de crime rege o princípio da responsabilidade e da penalização individual.

5. E, o art. 30º da CRP, por seu turno, é taxativo ao determinar que a responsabilidade penal é insusceptível de transmissão – art. 30.°, n.°3 da CRP.

6. Assim, a eventual responsabilização das pessoas singulares referidas no artigo 8.° do RGIT por actos pelos quais foi igualmente responsabilizada a sociedade incumpridora, não pode nunca determinar a sua responsabilização subsidiária/solidária por uma sanção que foi imposta a terceiro (no caso à pessoa colectiva), sob pena de total subversão do princípio constitucional supra mencionado.

7. É que a pena cujo cumprimento subsidiário/solidário se determina não é a sanção oportunamente imposta a um agente pessoa singular, mas sim a pena originariamente atribuída à sociedade – logo, a outrem – por um acto ilícito.

8. Ora, esse acto atributivo de responsabilidade penal, é um acto de substituição de transferência, de transmissão da responsabilidade que à sociedade pertencia, para outro co-arguido, que já viu a sua actuação punida.

9. Ora, parece seguro poder-se concluir que o princípio constitucional da intransmissibilidade da responsabilidade penal acolhido no art. 30.º, n.º3 da CRP, integra necessariamente o princípio da individualidade ou personalidade da responsabilidade penal, no sentido em que ninguém pode ser responsabilizado por ilícito penal no qual não tenha participado.

10. Por outro lado, é o condenado quem deve cumprir a pena que lhe foi aplicada, em nome dos fins das penas, não podendo ser substituído por outro, quer se trate de pena privativa da liberdade, quer, em princípio, de pena não privativa da liberdade.

11. Daqui se conclui que a obrigação solidária do pagamento da multa aplicada ao ente colectivo, que o art. 8.°, n.º 7 do RGIT faz impender sobre os seus órgãos ou representantes é violadora do princípio constitucional da intransmissibilidade da responsabilidade criminal.

12. Acresce que, acham-se igualmente violados os princípios da culpa e da proporcionalidade, bem como a proibição do ne bis in idem.

13. Efectivamente, a responsabilidade solidária do órgão ou representante pelo pagamento da multa aplicada ao ente colectivo, pode configurar-se como uma segunda sanção pela participação no mesmo ilícito pelo qual foi condenado em pena própria.

14. Assim, para além de se violar irremediavelmente o princípio da proporcionalidade coloca-se ainda em perigo o princípio da culpa.

15. Mais, os limites legais do quantitativo diário para as pessoas colectivas e para singulares sempre foi diferenciado, por exemplo, nos artigos 12.° e 15.° do RGIT os limites legais do quantitativo diário para as pessoas colectivas representam o quíntuplo e o décuplo, respectivamente, dos previstos para as pessoas singulares.

16. Na verdade, a pena concreta a aplicar ao ente colectivo tem de ser sopesada em função da sua capacidade económica e não da do seu órgão ou representante, para além de ter de se considerar para a pena do ente colectivo a sua motivação para a prática do crime e a medida da vantagem que pretende alcançar, avaliada em função do seu interesse.

17. Assim, a responsabilização da pessoa singular pela sanção aplicada ao ente colectivo, mais concretamente, pelo pagamento aos cofres públicos da pena de multa aplicada à pessoa colectiva de acordo com as particularidades da culpa desta e da sua situação económica e mesmo social, não respeita o princípio da culpa.

18. Sendo certo que, tem sempre de se respeitar as diversas dimensões do princípio constitucional da culpa por facto ilícito enquanto limite intransponível e inegociável da responsabilidade exigível ao agente do crime.

19. Acresce que, também o princípio da proporcionalidade se mostra violado, uma vez que os limites da sanção aplicável ao ente colectivo são demasiados elevados para a pessoa singular, em virtude de estes limites não serem estabelecidos, abstratamente, em função da pessoa singular mas sim do ente colectivo.

20. Assim, tem forçosamente de se reconhecer a inconstitucionalidade da norma do n.º 7 do art. 8.° do RGIT, por violação dos princípios da culpa (art. 1° e 27.º, n.º 1 da CRP), da igualdade (art. 13.° da CRP) e da proporcionalidade (arts. 2.° e 18.°), razão pela qual não se pode aplicar o referido normativo, em cumprimento, aliás, do disposto no art. 204.° da CRP.

Termos em que, deve dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o douto despacho recorrido e reconhecer-se a inconstitucionalidade do n.º 7 do art. 8.° do RGIT, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, assim se fazendo A SEMPRE E ACOSTUMADA JUSTIÇA! ”


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Na resposta o Ministério Público sustenta (fls. 481/485) que deve ser negado provimento ao recurso interposto, devendo o despacho recorrido ser mantido na íntegra, tendo formulado as seguintes conclusões:

“1ª – A responsabilidade solidária pela multa estabelecida no artigo 8º, nº7 do Regulamento Geral das Infracções Tributárias é de natureza meramente civil e não penal, pelo que, tal norma não viola nenhum princípio constitucional em matéria penal, nomeadamente os invocados pelos recorrentes – Neste sentido cfr. Ac. TRC de 9/5/2012 e Ac. TRP de 23/6/2010 in www.dgci.pt.

2ª – O recurso dos arguidos não merece provimento.

V. EXªS., NO ENTANTO, FARÃO JUSTIÇA”.


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Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu douto parecer, no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso.

Foram colhidos os vistos legais.


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Cumpre decidir.

Vejamos o despacho recorrido (por transcrição):

“De acordo com o disposto no artigo 8.°/6 do RGIT, a responsabilidade dos legais representantes estende-se à obrigação de pagamento, entre outras, das multas de natureza criminal pelas quais a pessoa colectiva que representam seja condenada, obrigação essa que resulta "ope legis".

Assim, face àquele normativo considero solidariamente responsáveis pelo pagamento da pena de multa em que a sociedade arguida foi condenada nestes autos os co-arguidos B ... e C ....

D.N.”.


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  Apreciando.

        

O Direito.

            São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, (Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98), sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

Assim sendo, temos como,   

Questão a decidir: 

Saber se os arguidos/recorrentes B ... e C ...são solidariamente responsáveis pelo pagamento da pena de multa no valor de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) a que a sociedade Restaurante “ A ..., Ldª, foi condenada pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelo artigo previsto e punido pelo artigo 107.°, n° 1 e 2, por referência ao artigo 105.°, n.º1 e 4, do RG.I.T., ou seja, se deve ser mantido ou alterado o despacho recorrido, sendo certo que, por manifesto lapso, o despacho se refere ao nº 6 do artº 8 quando queria referir e transcreve o nº 7.


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Vejamos então.

1. A questão essencial em apreciação nos autos prende-se com a diferenciação da responsabilidade emergente da prática de infracções tributárias, quando ocorram condenações em pena de multa de vários arguidos entre os quais, de pessoa colectiva, e esta não proceda ao respectivo pagamento.

No âmbito dos ilícitos tributários, a responsabilidade penal das pessoas colectivas é estabelecida, em paralelo, com a responsabilidade penal dos seus agentes [o mesmo sucede já para a generalidade dos crimes, nos termos do art. 11º, do C. Penal, na redacção da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro]. Assim, a este propósito rege o artigo 7º n.º 1do RGIT que dispõe: “As pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesses colectivo”. O seu nº 3 estabelece, por sua vez que, “A responsabilidade criminal das entidades referidas no n.º 1 não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes”.

Mas, por outro lado, optou o legislador por, em certas situações, ao lado da responsabilidade penal da pessoa colectiva, ou para além dela, criar uma fonte de responsabilidade civil, tendo por objecto a quantia monetária que, em cada caso, consubstancia a coima ou multa com que foi sancionada a pessoa colectiva, quando por esta não seja paga.

Assim, no art.8º do RGIT, sob a epigrafe de “Responsabilidade civil pelas multas e coimas” [que temos por tecnicamente incorrecta pois, como é sabido, não existe responsabilidade civil por multas e coimas, sendo manifesto que o legislador deveria ter antes referido, pelos montantes correspondentes a multas e coimas], estipula-se que:

“1 – Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis:

a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;

b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.

2 – A responsabilidade subsidiária prevista no número anterior é solidária se forem várias as pessoas a praticar os actos ou omissões culposos de que resulte a insuficiência do património das entidades em causa.

3 – As pessoas referidas no n.º 1, bem como os técnicos oficiais de contas, são ainda subsidiariamente responsáveis, e solidariamente entre si, pelas coimas devidas pela falta ou atraso de quaisquer declarações que devam ser apresentadas no período de exercício de funções, quando não comuniquem, até 30 dias após o termo do prazo de entrega da declaração, à Direcção-Geral dos Impostos as razões que impediram o cumprimento atempado da obrigação e o atraso ou a falta de entrega não lhes seja imputável a qualquer título.

4 – As pessoas a quem se achem subordinados aqueles que, por conta delas, cometerem infracções fiscais são solidariamente responsáveis pelo pagamento das multas ou coimas àqueles aplicadas, salvo se tiverem tomado as providências necessárias para os fazer observar a lei.

5 – O disposto no número anterior aplica-se aos pais e representantes legais dos menores ou incapazes, quanto às infracções por estes cometidas.

6 – O disposto no n.º 4 aplica-se às pessoas singulares, às pessoas colectivas, às sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e a outras entidades fiscalmente equiparadas.

7 – Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso.

8 – Sendo várias as pessoas responsáveis nos termos dos números anteriores, é solidária a sua responsabilidade.”

A razão de ser deste regime de responsabilidade civil, nuns casos, subsidiária, noutros, solidária, resulta, além do mais, da necessidade sentida pelo legislador de acautelar o pagamento das sanções pecuniárias aplicadas aos arguidos pessoas colectivas, dada a sua própria natureza e maior volatilidade, mas não lhe é alheio um pretendido efeito preventivo.

Na parte em que agora releva, a responsabilidade civil pelo pagamento de multas e coimas é:

- Subsidiária, relativamente a administradores, gerentes, incluindo os de facto, e técnicos oficiais de contas, nos casos previstos nos nºs 1 e 3 do art. 8º, mas solidária entre estas pessoas (nºs 2 e 3 do mesmo artigo);   

- Solidária, relativamente a quem colabore dolosamente na prática da infracção, independentemente da sua própria responsabilidade penal ou contra-ordenacional (nº 7 do mesmo artigo).

A responsabilidade subsidiária prevista no art. 8º, nºs 1 e 3, do RGIT, funda-se em factos anteriores ou posteriores à aplicação da multa ou da coima à pessoa colectiva, praticados culposamente pelo administrador ou gerente, que a tenham colocado numa posição patrimonial de incapacidade de pagamento da sanção. Trata-se portanto, de uma responsabilidade civil por facto próprio, que não prescinde da verificação deste pressuposto.

Diferentemente se passam as coisas relativamente à responsabilidade solidária prevista no art. 8º, nº 7, do RGIT. Aqui, a responsabilidade civil do administrador ou do gerente decorre da sua comparticipação, a qualquer título, na prática da infracção tributária o que significa que, quando tenha também sido condenado a título pessoal pela prática do crime ou da contra-ordenação tributárias, esta responsabilidade civil deriva apenas e tão só da conduta que determinou aquela condenação. A respeito do art. 8º do RGIT, escreveu o Prof. Germano Marques da Silva: «Enquanto que o n.º 1 segue o disposto no art. 24.º da LGT, já o nº 6 [nº 7 actual] se afasta desse regime, embora se trate ainda de responsabilidade também por dívida de outrem, mas agora a responsabilidade é solidária porque o administrador colaborou dolosamente na prática da infracção e, por isso, vai responder solidariamente com os co-responsáveis pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua própria responsabilidade, porque foi o seu comportamento ilícito causa da multa, foi o seu comportamento a causa da multa aplicada à pessoa colectiva pela prática do facto ilícito penal. Tenha-se, porém, presente que a responsabilidade de que trata o n.º 6 [n.º 7 actual] do artigo 8.º do RGIT se refere exclusivamente às consequências decorrentes da prática do crime enquanto o artigo 24.º se reporta às consequências decorrentes do não pagamento do imposto devido» (Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus Administradores e Representantes, pág. 443).

No sentido de que o art. 8º, nº 7, do RGIT trata da mera responsabilidade civil solidária dos co-autores e cúmplices de infracções tributárias relativamente às sanções aplicadas aos seus co-arguidos, cumulativamente com a sua própria responsabilidade, pronunciaram-se os Conselheiros Lopes de Sousa e Simas Santos (Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 2003, págs. 96 e ss.), Isabel Marques da Silva (Regime Geral das Infracções Tributárias, Cadernos IDEFF, nº 5, pág. 61) e Tolda Pinto e Reis Bravo (Regime Geral das Infracções Tributárias e Regimes Sancionatórios Especiais Anotados, pág. 51). Também vinha sendo uniforme a jurisprudência desta Relação (cfr. Acs. de 9 de Maio de 2013, Proc. nº 98/07.1IDACB-A.C1, de 21 de Março de 2012, Proc. nº 73/08.8IDCBR.C2, de 17 de Outubro de 2012, Proc. nº 665/07.2TAMGR.C1 e de 17 de Outubro de 2012, Proc. nº 142/08.4TACNT.C1, todos in www.dgsi.pt.). E outras Relações haviam também seguido a mesma orientação (cfr. Acs. da R. do Porto de 10 de Outubro de 2012, Proc. nº 336/05.4TAVNF-B.P1 e de 23 de Junho de 2010, Proc. nº 248/07.7IDPRT-A.P1, da R. de Évora de 11 de Outubro de 2011, Proc. nº 26/07.3TAAVS.E1 e da R. de Guimarães de 21 de Novembro de 2011, Proc. nº 1453/07.1TAVCT.G2, todos in www.dgsi.pt).  

Já o Acórdão da R. de Évora de 20 de Março de 2012, proferido no Proc. nº 213/09.0TAETZ.E1 (in www.dgsi.pt), se pronunciou no sentido de ser materialmente inconstitucional o art. 8º, nº 7, do RGIT, ao consagrar a responsabilidade solidária do gerente da pessoa colectiva que colabore dolosamente na prática de crime tributário e que por isso, é condenado individualmente e dá causa à condenação da pessoa colectiva, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade. E o muito recente Acórdão desta R. de Coimbra de 24 de Abril de 2013, proferido no Proc. nº 54/08.1IDVIS-B.C1 (in www.dgsi.pt), quebrando aquela unanimidade – e seguindo de perto o Acórdão do Tribunal Constitucional que referiremos – decidiu no sentido de que na mesma situação – isto é, a da responsabilidade solidária do gerente da pessoa colectiva que colabore dolosamente na prática de crime tributário e que por isso, é condenado individualmente e dá causa à condenação da pessoa colectiva – a norma do art. 8º, nº 7, do RGIT antes viola o princípio ne bis in idem, previsto no art. 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.   

Também a Conselheira Maria João Antunes, convocando embora o art. 30º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, entende serem censuráveis disposições legais que consagram a responsabilidade “subsidiária” e “solidária” de terceiros pelo pagamento de penas de multa, ainda que tal ocorra no domínio da responsabilidade criminal de pessoas colectivas e equiparadas (Consequências Jurídicas do Crime, Lições, 2010-2011, pág. 16 e ss.), e em sentido idêntico se pronunciou Nuno Brandão (Revista do CEJ, 1ª Semestre 2008, Número 8 (Especial), Jornadas sobre a revisão do Código Penal, págs. 50 e ss.).      

O Tribunal Constitucional pronunciou-se repetidamente sobre as normas do art. 8º, nº 1, a) e b), do RGIT [bem como sobre a norma equivalente do art. 7º-A do RJIFNA] na parte respeitante à responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes de sociedades tendo, depois de alguma divergência, o Plenário firmado o entendimento de que a responsabilidade ali prevista é uma responsabilidade civil subsidiária por facto próprio, diverso do facto típico, e que consiste numa conduta adequada à produção do dano, o não recebimento da coima aplicada à sociedade, através da colocação desta sociedade em situação patrimonial que impossibilita o pagamento da sanção, razão pela qual não ocorre transmissão da responsabilidade contra-ordenacional nem violação dos princípios da culpa e da proporcionalidade (Acórdãos nº 437/2011 e nº 561/2011). Por sua vez, o Acórdão nº 249/2012 estendeu este entendimento aos casos de responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes prevista nas normas do art. 8º, nº 1, a) e b), do RGIT, pelas penas de multa aplicadas às sociedades em processos crime.  

Mas no que respeita à norma do art. 8º, nº 7, do RGIT, temos apenas notícia do recente Acórdão nº 1/2013 – tirado no recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional interposto do citado Acórdão da R. de Évora de 20 de Março de 2012, e seguido pelo citado Acórdão desta R. de Coimbra de 24 de Abril de 2013 – que se pronunciou pela inconstitucionalidade, por violação do art. 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, da norma do art. 8º, nº 7, do RGIT quando aplicável a gerente de uma pessoa colectiva que foi também condenado a título pessoal pela prática da mesma infracção tributária.

Posto isto.

2. Apesar do relativo laconismo do despacho recorrido, não se suscita dúvida sobre a bondade da interpretação aí feita quanto à natureza da responsabilidade prevista no art. 8º, nº 7, do RGIT [ressalva-se o lapso, já referido, da identificação da norma aplicada] no sentido de se tratar de responsabilidade civil solidária dos recorrentes, enquanto gerentes da sociedade co-arguida, pela pena de multa a esta aplicada.   

Resulta evidente do que atrás se deixou dito, a diferença entre a responsabilidade civil subsidiária, prevista no art. 8º, nºs 1, a) e b) e 3, do RGIT, e a responsabilidade civil solidária, prevista no nº 7 do mesmo artigo.

No primeiro caso prevê-se, como se lê no já citado Acórdão do Tribunal Constitucional nº 561/2011, uma forma de responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes, que resulta do facto culposo que lhes é imputável de terem gerado uma situação de insuficiência patrimonial da empresa, que tenha sido causadora do não pagamento da multa ou da coima que era devida, ou de não terem procedido a esse pagamento quando a sociedade ou a pessoa colectiva foi notificada para esse efeito ainda durante o período de exercício do seu cargo. Portanto, para a sua verificação exige-se uma conduta culposa do administrador ou gerente causadora da situação de insuficiência económica da sociedade para pagar a multa criminal ou a coima a esta aplicadas, traduzindo-se o dano sofrido pelo Estado no não recebimento da quantia que consubstancia aquelas sanções. Esta conduta nada tem a ver com a conduta preenchedora do crime tributário ou da contra-ordenação que deram origem àquela pena de multa ou coima, da mesma forma que o dano que o seu pagamento configura, nada tem a ver com o dano decorrente daquele crime ou contra-ordenação [em regra, o não recebimento pelo Estado da receita fiscal devida]. 

No segundo caso prevê-se uma forma de responsabilidade civil solidária dos administradores e gerentes fundada, na parte em que agora releva, apenas e directamente, na sua condenação pela prática do crime tributário pelo qual foi igualmente condenada a sociedade. Aqui, não se distingue, nem é pressuposto da responsabilidade a separação, no tempo, entre a condenação da sociedade na pena de multa e a conduta culposa do administrador ou gerente que conduz à impossibilidade de aquela efectuar o respectivo pagamento. A responsabilidade solidária do administrador ou do gerente tem como único pressuposto a sua colaboração dolosa na prática do crime tributário pelo qual veio a sociedade a ser condenada, nascendo a respectiva obrigação com o trânsito da sentença que condena a sociedade. Nas palavras do Prof. Germano Marques da Silva, já citadas, o administrador ou o gerente é responsável solidário pelo pagamento porque foi o seu comportamento ilícito causa da multa, foi o seu comportamento a causa da multa aplicada à pessoa colectiva pela prática do facto ilícito penal.     

Desta forma, temos por certo que os fundamentos invocados pelo Tribunal Constitucional quando, em Plenário, se pronunciou sobre a constitucionalidade do art. 8º, nº 1, a) e b), do RGIT não são transponíveis para os casos subsumíveis à previsão do nº 7 do mesmo artigo [assim o entendeu também o Acórdão nº 1/2013, do Tribunal Constitucional]. 

3. Como já foi aflorado anteriormente, o fim visado pela norma do art. 8º, nº 7, do RGIT é apenas o de assegurar o recebimento pelo Estado das receitas a que correspondem as penas de multa aplicadas às sociedades, à custa dos patrimónios, mas apenas destes, dos devedores solidários. Não estão portanto, em causa, os fins das penas assinalados no art. 40º do C. Penal.

Por outro lado, é inquestionável que a lei qualifica como responsabilidade civil, a prevista no art. 8º, nº 7, do RGIT, com a consequente subordinação aos princípios da solidariedade passiva designadamente, a exclusão do benefício da divisão (cfr. arts. 512º, nº 1 e 518º, do C. Civil) e o direito de regresso (cfr. art. 524º, do C. Civil) ou seja, como se lê no citado Acórdão da Relação de Évora de 20 de Março de 2012, o legislador perspectiva a multa apenas como dívida do Estado, pretendendo garantir os cofres do Estado pelo seu pagamento (…), tudo se passando, afinal, como se a pena de multa, transitada a decisão condenatória, se transformasse num direito de crédito do Estado.

Porém, a circunstância de se tratar de responsabilidade civil solidária não significa, por si só, a conformidade da norma com a Lei Fundamental. 

Estabelece o art. 30º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa que, a responsabilidade penal é insusceptível de transmissão. O núcleo fundamental do princípio da pessoalidade da pena, aqui consignado, é o de que ninguém pode ser sancionado por crime em que não tenha participado.

Pois bem, encontramo-nos no campo específico da responsabilidade penal das pessoas colectivas, cuja vontade, como se sabe, é juridicamente ficcionada, por via do mecanismo da representação. A vontade da sociedade é actuada pela vontade das pessoas singulares que são o suporte físico dos seus órgãos estatutários – administração ou gerência – e só estas são capazes de actuarem censuravelmente portanto, com culpa. Por isso, quando o administrador ou o gerente, com a sua conduta, preenchem o tipo de um crime tributário pelo qual são condenados, em consequência, o próprio e a sociedade, não pode dizer-se que a sua responsabilização solidária pelo pagamento da multa aplicada à sociedade consiste numa transmissão de responsabilidade penal alheia. Na verdade, o administrador ou gerente são co-autores do crime, e é apenas e só por causa da sua conduta que a sociedade é também sancionada.

Assim, não se vê que a responsabilização dos recorrentes, enquanto gerentes, pelo pagamento da multa aplicada à sociedade, pela prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social por que foram, todos, condenados, declarada nos termos do art. 8º, nº 7, do RGIT viole o art. 30º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa.

4. Já não assim, relativamente ao princípio ne bis in idem.

Dispõe o art. 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa que, ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime. Apesar da letra da lei proibir apenas o duplo julgamento, entende-se que também está abrangida pela proibição a dupla penalização o que significa que o princípio tem carácter processual e carácter substantivo (cfr. Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, págs. 497 e ss.).

Como vimos, a responsabilidade solidária prevista no art. 8º, nº 7, do RGIT, pressupõe a participação e condenação do administrador ou gerente, na prática do crime pelo qual a sociedade foi também condenada, o que significa que, à mesma e única conduta típica, praticada pelo administrador ou pelo gerente, a lei faz corresponder duas diferentes consequências, a pena – prisão ou multa – aplicada individualmente, e a responsabilidade solidária pelo pagamento da pena de multa aplicada à sociedade o que, como se lê no Acórdão nº 1/2013 do Tribunal Constitucional que seguimos, traduz objectivamente uma dupla valoração jurídico-criminal de um mesmo facto, com uma consequência negativa para o agente, que é assim tido como um condevedor da prestação, independentemente de a Administração Fiscal optar por exigir ou não o pagamento e o agente poder vir a exercer ulteriormente o direito de regresso contra o coobrigado.  

Desta forma, concluímos que a norma do art. 8º, nº 7, do RGIT é inconstitucional, por violação do art. 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, quando aplicada a administrador ou gerente igualmente condenado pela prática do crime pelo qual foi condenada a sociedade, por consubstanciar uma dupla valoração do mesmo facto.

Sendo precisamente esta a situação de facto objecto do recurso, impõe-se não aplicar a mencionada norma, com as demais consequências.

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Decisão:

Pelos fundamentos expostos, decidem os juízes da 4ª Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra, conceder provimento ao recurso interposto pelos arguidos, desaplicando a norma do art. 8º, nº 7, do RGIT, por inconstitucional por violação do art. 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.

Em consequência, mais decidem revogar o despacho recorrido.

 Sem tributação.

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 (Calvário Antunes - Relator)

 (Vasques Osório)