Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
9521/18.8T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIRECÇÃO EFECTIVA DO VEÍCULO
Data do Acordão: 05/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JL CÍVEL – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.503 CC
Sumário: 1.- Para efeitos de determinação da direção efetiva do veículo, nos termos e para os efeitos do art.º 503.º, n.º 1, do Código Civil, devemos atender aos poderes de facto concretamente exercidos pelos implicados e à sua incidência na esfera do risco envolvida no acidente.

2.- Se o proprietário contratou a limpeza do veículo e, por não estar disponível a esperar, solicita à funcionária que o estacione depois no parque, entregando-lhe as chaves daquele, a sua direção ainda se mantém no proprietário, quem assume o risco para a limitada manobra.

Decisão Texto Integral:

Apelação nº 9521/18.8T8CBR.C1

            Sumário:

Para efeitos de determinação da direção efetiva do veículo, nos termos e para os efeitos do art.º 503.º, n.º 1, do Código Civil, devemos atender aos poderes de facto concretamente exercidos pelos implicados e à sua incidência na esfera do risco envolvida no acidente.

No demais contexto do caso, se o proprietário contratou a limpeza do veículo e, por não estar disponível a esperar, solicita à funcionária que o estacione depois no parque, entregando-lhe as chaves daquele, a sua direção ainda se mantém no proprietário, quem assume o risco para a limitada manobra.

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

L (…), instaurou ação contra A (…), pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 12.185,15, acrescida de juros de mora.

A Autora alega, em síntese:

Celebrou com E (…), Lda., um contrato de seguro do ramo automóvel nos termos do qual assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo com a matrícula PS (...).

No dia 10 de março de 2017, cerca das 10h15, o veículo seguro na autora interveio num acidente de viação no parque de estacionamento do Hospital da Universidade de Coimbra.

No local existe uma oficina de lavagem à data propriedade e explorada pela ré.

Por indicação da proprietária do veículo seguro, o seu funcionário entregou o veículo nas instalações da ré, para que esta procedesse à sua lavagem.

A funcionária da Ré, após ter concluído tal tarefa, conduziu o veículo para o exterior das instalações, com o intuito de o estacionar, vindo a causar o acidente.

Do embate resultaram danos em vários veículos, indemnizados por si.

Entre a Ré e a segurada da autora foi celebrada uma empreitada.

A Ré contestou, em síntese:

Depositado o veículo no espaço de lavagem pelo sócio da sociedade proprietária daquele, por solicitação do mesmo, por nisso ter interesse e lhe ser conveniente, a funcionária ficou encarregada, por obsequiosidade, de guiar o veículo para o parque de estacionamento próximo, onde o primeiro iria mais tarde buscá-lo.

A Ré dedica-se à atividade de apoio à pessoa com deficiência mental, ministrando programas de formação profissional para pessoas com deficiência ou incapacidade.

A Lavagem Auto é um desses locais de formação profissional, no qual a Ré coloca os seus formandos para aí receberem formação prática nessa área.

O serviço contratado por quem lá se desloque é o de mera lavagem automóvel.

O procedimento padrão é o seguinte: o cliente chega com o veículo ao local de lavagem e, caso não esteja nenhum outro veículo a ser lavado, coloca o carro para lavar e aguarda a conclusão do serviço. Findo o serviço, o proprietário do veículo retira o carro. Caso a lavagem já esteja ocupada por outro veículo, o cliente aguarda a sua vez. Porém, acontece que, ou porque já se encontra um veículo a ser lavado ou porque sendo os clientes da empresa de lavagem muitas vezes funcionários do hospital, que vão permanecer no hospital algum tempo, estes questionam a funcionária da Ré se podem deixar o veículo, entregando-lhe as chaves, para que esta depois proceda à sua lavagem.

No caso, o proprietário do veículo seguro, médico nos HUC, dirigiu-se à lavagem explorada pela ré e depositou o veículo para que se procedesse à respetiva lavagem. Porque ia trabalhar, entregou as chaves à funcionária, tendo-lhe pedido que, após a conclusão do serviço, colocasse o veículo no estacionamento.

Esta colocação do veículo no estacionamento só acontece a pedido expresso feito no interesse e conveniência do proprietário.

Os funcionários da ré, se o fizerem, fazem-no apenas por cortesia e para atender a um pedido do cliente, extravasando as funções que desempenham para a ré.

Na lavagem está em causa um contrato de prestação de serviços inominado e não,

como alega a autora, um contrato de empreitada, incluindo um depósito durante o período em que decorre a limpeza. O lugar da restituição é o local do depósito.

Só por conveniência e interesse do proprietário, este não fez o levantamento do veículo no Centro, solicitando expressamente à funcionária que lhe fizesse o favor de o colocar noutro local.


*

Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar a ação improcedente, absolvendo a Ré do pedido.

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Inconformada, a Autora recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

I. A Recorrente L (…), S.A.” interpôs o presente recurso por entender que a Meritíssima Juiz a quo não efetuou uma correta apreciação da prova produzida, nem efetuou uma correta aplicação do direito.

II. A Recorrente não concorda com a resposta dada à matéria de facto constante dos pontos 13 e 47 da sentença, designadamente ao julgar provado a existência de uma solicitação ou pedido de favor por parte do representante da proprietária do veículo PS para estacionar o veículo no pós-lavagem.

III. De facto, e tendo por referência a prova testemunhal produzida, conjugada com as regras da experiência comum, impõe-se a alteração da decisão da matéria de facto vertida nesses pontos, já que as respostas enfermam de erro de julgamento na apreciação da prova, impondo-se alteração da decisão.

IV. A decisão recorrida viola o disposto no artigo 483.º, no n.º 1 do artigo 503.º, nos artigos 798.º e 1207.º, todos do Código Civil, impondo-se, pois, a solução oposta.

V. Com interesse para a presente questão, foram considerados assentes, entre outros, os factos 10, 11, 12, 35, 36, 37, 38, 39 e 40 da matéria de facto provada.

VI. A Meritíssima Juiz de 1.ª instância considerou – entendimento com o qual não concordamos – que resultou demonstrado que a condução do veículo PS para fora das instalações da Ré foi feita: “13. […] por solicitação do sócio da sociedade proprietária do

veículo, autorizada para o efeito, no interesse e por conveniência daquele (substituindo-se-lhe) e por mera cortesia; 47. Porque ia trabalhar, entregou as chaves à funcionária (…), tendo-lhe pedido expressamente que, após a conclusão do serviço, colocasse o veículo no estacionamento;”

VII. Salvo melhor opinião, atendendo à prova produzida nos autos (testemunhal), impõe-se, naturalmente, a alteração da resposta à matéria de facto constante dos pontos 13 e 47 da sentença proferida e, consequentemente, a revogação da sentença recorrida e substituição por outra que faça uma correta apreciação da prova produzida.

VIII. Os referidos pontos referem-se à questão da titularidade da direção efetiva do veículo, nomeadamente da alegada solicitação ou cortesia adotada por parte da testemunha (…) em relação ao representante/sócio da proprietária do automóvel PS, bem como da posterior qualificação jurídica dos atos ou função exercida em concreto pela Ré no mencionado Centro de Lavagem auto.

IX. Relativamente à alegada solicitação do representante da proprietária do veículo para, após a finalização do serviço, a funcionária (…) colocar o veículo no parque de estacionamento, verificamos que o Tribunal a quo formou a sua convicção quanto à matéria, quase exclusivamente, tendo por base o depoimento da aludida testemunha (…), o qual se revelou interessado, insuficiente e incongruente com as regras da experiência comum e do normal acontecer.

X. Interessado porque a testemunha é funcionária da Ré há 32 anos, ao que acresce o facto de a mesma ser a condutora do veículo que despoletou todo o acidente em discussão nos autos, não lhe sendo de todo indiferente o desfecho da causa; Insuficiente porque o Tribunal a quo dá como provada a alegada solicitação sem recorrer ao testemunho e confirmação de tal por parte do alegado solicitador, para uma efetiva apreensão do facto; Incongruente porque a afirmação que a tarefa de retirar veículos do Centro de Lavagem e estacionar os mesmos não faz parte das funções da funcionária, tratando-se de um mero favor, não se coaduna com a lógica resultante da experiência comum e do normal acontecer, uma vez que tal pressuporá à inexequibilidade das tarefas que a mesma prossegue, colocando a Ré na dependência de instruções dos seus clientes para prestar o seu serviço.

XI. No que respeita à alegada solicitação, houve sempre a “preocupação” da testemunha em realçar que a remoção de veículos do espaço de lavagem não consta das suas tarefas nem faz parte do contratualizado pela Ré, sem tal lhe ser diretamente questionado, denotando falta de espontaneidade e interesse em dirigir o depoimento para aspetos em particular.

XII. O Tribunal a quo, analisando o depoimento da testemunha (…), refere que um médico dos HUC dirigiu-se ao espaço da Ré para que lhe procedessem à limpeza do veículo PS, tendo colocado o veículo no espaço de lavagem da Ré e questionando, alegadamente, se no final da mesma poderia colocar o veículo no estacionamento dos HUC, afirmação que nos deixa perplexos, pois se a arrumação do veículo constitui um mero favor ou cortesia, mal se compreende como poderá a Ré laborar na eventualidade de não haver solicitação para remoção do veículo no pós lavagem, ficando o veículo imobilizado até o seu proprietário dar ordem em contrário.

XIII. Se a tarefa de remoção de automóveis do interior do Centro de Lavagem não fizesse parte das tarefas da Ré, a mesma estaria objetivamente impedida de lavar e limpar outros carros e prosseguir a sua atividade, o que atenta contra as regras da experiência comum, pois estas não permitem extrair aquele facto, por desconforme à realidade reiterada, de verificação muito frequente e, por isso, verosímil.

XIV. A Ré dedica-se à limpeza, aspiração e higienização manual de viaturas automóveis, explorando um Centro de Lavagem para o efeito, cujas instalações servem para execução dos trabalhos a um automóvel de cada vez, permitindo desde logo concluir, – uma vez que nos encontramos perante um contrato de empreitada, ao contrário do considerado na sentença – que para além das obrigações principais advenientes da relação contratual, resultam igualmente deveres acessórios, como retirar o veículo do espaço de

limpeza e lavagem, e entregar o mesmo sem vícios ao respetivo dono ou proprietário, só deste modo cumprindo integralmente a sua obrigação para com os clientes.

XV. Da transcrição do depoimento prestado no dia 3 de Outubro de 2019 em Audiência de Julgamento pela testemunha (…), segundo o número de ficheiro 20191003141320_2810907_2870725, no tempo de gravação: 00:00:15 a 00:05:07, 00:06:37 a 00:08:53 e 00:10:28 a 00:20:28, resulta demonstrada a sua longa e intrínseca ligação à Ré, desde o ano de 1988, a preocupação em referir sempre que a remoção do veículo era um mero favor prestado ao cliente, não fazendo parte das mencionadas funções, denotando pouca espontaneidade no depoimento mas mencionando, sem dúvida alguma, que o representante da proprietária do veículo PS tinha

solicitado a remoção do veículo do Centro de Lavagem no pós-serviço, pese embora não se lembrar da pessoa em questão em termos de feições físicas e de nome.

XVI. Todo este procedimento atinente à lavagem e demais serviços prestados e relatado pela testemunha é anómalo e estranho, pois os atos de limpeza, lavagem e higienização pressupõem sempre manuseamento do ou no veículo, sendo inverosímil e impraticável que qualquer pessoa que explore um centro de lavagens ou estação de serviço tenha de deter a autorização ou solicitação do proprietário do veículo sempre que necessite de remover ou mexer no mesmo.

XVII. O mecânico não necessita da autorização do proprietário do veículo para experimentar o veículo fora da sua oficina de mecânica, pois o interesse no manuseamento do automóvel é seu enquanto explorador de uma atividade lucrativa, não podendo ser desvalorizado o facto de, neste exemplo, o mecânico estar a exercer a sua profissão e deter um interesse direto e muito forte na boa execução do contrato, exemplo que, fruto da sua semelhança, tem analogia com a dos autos.

XVIII. Para além do mais, o depoimento da testemunha (…) não foi sujeito ao contraditório, nomeadamente através da inquirição do interlocutor da testemunha, o sócio ou representante da Segurada da Recorrente, médico, que terá solicitado os serviços de limpeza à Ré, bem como o alegado favor de remover o veículo do Centro de Lavagem, resultando do seu teor a narração da tese que fez vencimento a qual, não obstante, não pode ser dada como confirmada ou adquirida.

XIX. A censura dirigida pela Recorrente à convicção do julgador não visa só atacar ou demonstrar que o que foi dito deve ser interpretado ou valorado diferentemente do efetuado por parte do Tribunal, importando referir e demonstrar que aquela convicção

assenta precisamente na violação dos passos para a sua formação, designadamente por violação dos princípios para a aquisição dos dados objetivos, desde logo por os mesmos atentarem contra as regras da experiência comum e a tese em questão repousar exclusivamente no depoimento de uma testemunha claramente comprometida com o desfecho da causa.

XX. O Tribunal a quo fundamenta a sua convicção socorrendo-se igualmente dos depoimentos testemunhais de (…) nos tempos de gravação, respetivamente, 20191003144242_2810907 _2870725 entre o minuto 00:00:05 e 00:07:33 e 20191003145122_2810907_2870725 entre o minuto 00:00:03 e o 00:09:52, referindo a sentença que: “Para além disso, foi também considerado o depoimento da testemunha (…), psicóloga, coordenadora do curso da A (…) que, apesar de não ter presenciado o acidente, deslocou-se ao local logo após o mesmo ter ocorrido. Confirmou, corroborando as declarações prestadas pela testemunha (…) que no caso concreto, o cliente pediu para colocar o veículo PS no estacionamento após a lavagem do mesmo, sendo que tal tarefa não faz parte das funções da A (…)” (sublinhados nossos) referindo, que o (…) “Confirmou que tal espaço só permite a lavagem de um veículo de cada vez, pelo que os clientes da ré ou esperam que o seu veículo seja lavado e retiram-no do local ou deixam a chave do veículo e pedem que, após a lavagem, o automóvel seja estacionado no parque de estacionamento dos HUC, o que constitui um favor.”.

XXI. Os depoimentos destas duas testemunhas nada podem ajudar à formação da convicção do Tribunal a quo uma vez que não têm qualquer conhecimento direto dos factos em causa, não tendo presenciado o acidente, nem o diálogo alegadamente mantido entre a testemunha A (…) e o representante da segurada da Recorrente, embora deles se possa retirar que normalmente os veículos são entregues à Ré antes do período normal de trabalho dos funcionários do Hospital e não ao longo do dia, pelo que essa situação não é compatível com a alegação da Ré que manobrar os veículos era um mero favor.

XXII. Enquanto facto extintivo do direito invocado pela Autora ora Recorrente que se apresentou nesta Acão como credora, a existência de uma alegada solicitação que permita a conclusão de que o veículo estava a ser utilizado no interesse do proprietário integra ou constitui exceção perentória, impendendo sobre a Recorrida, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil, o ónus da prova de que esse facto impeditivo do direito da Recorrente efetivamente ocorreu ou se verificou, o que não logrou alcançar.

XXIII. Conforme resulta dos últimos dois depoimentos transcritos, as aludidas testemunhas deslocaram-se ao local apenas após a produção do acidente, tendo relatado ao Tribunal apenas aquilo que ouviram de terceiros, pelo que nenhum conhecimento direto sobre os factos detêm, muito menos um conhecimento que permita dar como provada a solicitação e utilização do veículo no interessa da sua proprietária, impondo-se, por essa razão, a resposta negativa aos pontos 13 e 47 referidos na matéria de facto provada da sentença, com a consequente revogação das conclusões vertidas na sentença e a procedência do pedido.

XXIV. Considerada a matéria de facto provada, e sendo procedente o pedido de reapreciação da prova no que diz respeito aos pontos 13 e 47 da sentença, nos termos invocados no presente recurso, entende a Recorrente que deverá a Recorrida ser condenada no pedido, tendo por consideração o disposto nos artigos 483.º, n.º 1 do artigo 503.º, artigo 798.º e artigo 1207.º, todos do Código Civil, uma vez que entende que a sentença recorrida não fez a correta aplicação do direito.

XXV. Ou seja, face aos factos provados nos pontos 10, 11 e 40, temos assente que a Ré se dedica, com regularidade e onerosamente, à prestação de serviços de limpeza e lavagem automóvel, no Centro de Lavagem explorado para o efeito junto às Instalações do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.

XXVI. Estes factos trazem à tona a discussão jurídica acerca do detentor da direção efetiva dos veículos que ali se deslocam, pressupondo esta, conforme jurisprudência pacífica, como o poder real (de facto) sobre um veículo automóvel, não se confundindo com o poder jurídico sobre uma coisa.

XXVII. Verifica-se, atenta a matéria de facto constante daqueles pontos, que na altura do acidente a Ré prestava serviços à proprietária do veículo PS, nomeadamente serviços de limpeza e lavagem.

XXVIII. Refere o n.º 1 do artigo 503.º do Código Civil que “Aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”.

XXIX. Cabe indagar nesta sede se durante o tempo de execução dos trabalhos de limpeza existe algum interesse por parte da Ré, bem como se a direção efetiva do PS se encontrava transferida para a mesma.

XXX. A resposta é duplamente afirmativa, uma vez que o PS era utilizado no interesse da Ré, obviamente para o limpar e lavar a fim de oportunamente obter a respetiva remuneração pelo serviço, não se desvanecendo o mesmo a partir do momento em que a limpeza cessa, ou o material ou materiais de lavagem e limpeza (vg. Mangueiras) são desligados ou arrumados.

XXXI. No caso dos autos, o interesse juridicamente relevante da Ré mantém-se até ao momento em que ao representante da proprietária do veículo PS é devolvida a chave de ignição, pois a Ré tem todo o interesse em devolver o automóvel ao seu proprietário em bom estado, uma vez que só assim cumpre a sua obrigação para com o mesmo (artigo 798.º do Código Civil), pelo que nenhum sentido faz considerar que no momento em que o veículo é removido da garagem, pós-limpeza, o interesse se transfere

imediatamente para o proprietário.

XXXII. O interesse da Ré aqui presente decompõe-se em dois segmentos, nomeadamente o interesse em, por um lado, devolver o veículo ao seu proprietário devidamente limpo e, por outro lado, o interesse em remover o mesmo do local de lavagem a fim de iniciar a execução de outro serviço de limpeza e, nessa medida, prosperar e lucrar com a sua atividade.

XXXIII. O que a lei pretende ao referir a utilização no próprio interesse é abranger os casos em que é justo impor a responsabilidade a um conjunto de pessoas a quem especialmente incumbe, pela situação de facto em que se encontram investidas, tomar as providências necessárias para que o veículo funcione sem causar danos a terceiros, sendo manifesto que quem, na hipótese dos autos, se encontra nessa situação é a Ré e não a proprietária do PS que, de facto, não beneficiava das respetivas vantagens enquanto o veículo se mantivesse confiado à Ré para proceder à sua limpeza e higienização.

XXXIV. Considerou a sentença recorrida que o contrato celebrado entre a proprietária do PS e a Ré é um contrato de prestação de serviços na modalidade de depósito e não um contrato de empreitada, referindo que “De facto, a prestação do serviço contratado esgota-se na lavagem do veículo PS, independentemente do resultado, pelo que estamos perante um contrato de prestação de serviços que se caracteriza pela mera atividade de limpeza do veículo e um contrato de depósito, uma vez que durante o período em que decorre a prestação do serviço de lavagem a guarda e responsabilidade pelos danos que surjam no veículo recai sobre o depositário”.

XXXV. Discorda-se da subsunção jurídica efetuada pelo Tribunal a quo, pois a afirmação de que o resultado do contrato em questão nos autos é indiferente colide, mais uma vez, com as regras da experiência comum, para além do facto de o serviço em questão

não se reconduzir ao mero estacionamento de veículos, qual parque automóvel.

XXXVI. A colocação de um automóvel num Centro de Lavagem, para o homem médio, normal e de inteligência mediana, pressupõe, ao contrário do defendido na sentença, a verificação de um resultado – a devolução do veículo limpo, higienizado e aspirado, em condições diferentes daquelas em que se encontrava quando foi deixado na

esfera da Ré, pelo que se verifica a existência de um dos pressupostos legais do contrato de empreitada.

XXXVII. A natureza dos atos exercidos pela Ré no mencionado Centro de Lavagem corresponde a uma atividade remunerada, conforme foi atestado pelas diversas testemunhas.

XXXVIII. Subjacente ao contrato de empreitada, nos termos do disposto no artigo 1207.º do Código Civil, está o requisito de, conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª edição, pág.787, realização de uma obra, que não a prestação de trabalho.

XXXIX. Os mencionados Autores consideram que “Por realização de uma obra deve entender-se não só a construção ou criação, como a reparação, a modificação ou a demolição de uma coisa. Do que não pode prescindir-se é dum resultado material, por ser esse o sentido usual, normal, do vocábulo obra e tudo indicar que é esse o sentido do artigo 1207.º” (ob. Citada, pág. 788) (sublinhados nossos).

XL. O contrato de empreitada, como refere Pedro Romano Martinez, in Contrato de Empreitada, Almedina, pág., 102 “[…] poderá ter por objeto a realização de coisas corpóreas, materiais (p. ex., construir uma casa, ou imateriais (p. ex., reparar um automóvel), mas não de coisas incorpóreas, mesmo que materializáveis”.

XLI. A limpeza e higienização de um veículo automóvel deve ser considerada, face aos critérios acima expostos, como obra, pois não será de todo indiferente para a proprietária do PS se o mesmo vem limpo ou não, se foi lavado, ou pelo contrário vem sujeito ainda a lama ou pó adveniente da sua circulação, pagando por um serviço cujo contraprestação é o alcançar de um resultado, recebendo o veículo em melhores condições do que aquelas com que o deixou, nomeadamente limpo, aspirado, lavado e, quiçá, perfumado, atividade que pressupõe e obriga à manipulação e imobilização do veículo.

XLII. A atividade de limpeza e o modo de execução é totalmente alheia à proprietária do veículo PS, uma vez que a Ré detém autonomia no modo como presta o seu serviço de limpeza, não se encontrando adstrita a qualquer ordem ou subordinação jurídica perante os seus clientes, pelo que, a aceitar-se a tese vertida na sentença, qualquer

obra de reparação/limpeza, seja num edifício, numa ponte, etc., também não seria de qualificar como sendo de empreitada, o que não é aceitável.

XLIII. Constituindo o contrato dos autos um contrato de empreitada, para além dos deveres de limpeza, sobre a Ré impende, igualmente, a realização de certos deveres acessórios de conduta ou deveres laterais, deveres de cuidado e de proteção, independentemente dos deveres primários de prestação, impostos pela boa-fé, e que as partes devem observar, os quais se destinam a proteger a pessoa ou os bens da contraparte, cuja violação originará responsabilidade contratual ou o cumprimento defeituoso (artigo 798.º do Código Civil)

XLIV. Esta disposição legal estabelece uma presunção de culpa da Ré pelo incumprimento definitivo da obrigação de devolver o veículo à legítima proprietária, uma vez que a presunção de culpa estabelecida pelo n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil é também aplicável à possibilidade de cumprimento a que alude o n.º 1 do artigo 801.º do mesmo diploma.

XLV. O acidente em questão deu-se por culpa da funcionária da Ré, condutora do veículo PS, conforme se retira da matéria de facto provada nos pontos 3, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21.

XLVI. Pelo que o incumprimento contratual, nos termos do disposto no artigo 799.º do Código Civil, só pode recair sobre a Ré, que, por culpa de uma funcionária sua, não devolveu, como lhe competia, o veículo PS à sua proprietária, limpo, sem estragos e sem danos causados a terceiros.

XLVII. Assim tem decidido a Jurisprudência, nomeadamente o Tribunal da Relação de Guimarães, no âmbito do processo 4704/15.5T8GMR, em cuja fundamentação, em caso semelhante ao presente, vem referido: “Sempre é de referir que a direção efetiva do veículo pertenceu à ré que, no exercício da sua profissão, detinha e experimentava o veículo em plena execução dum contrato de empreitada, ou seja, era o garagista o detentor do poder de facto sobre o veículo e do correlativo interesse profissional em repará-lo – como referem alguns arestos do Supremo Tribunal de Justiça,

essa direção efetiva radica na plena autonomia no processo de reparação (entre outros, cf. os ac. de 06.02.1991, 20.01.2004, 28.06.2007, 21.04.2009 e de 05.07.2007; no mesmo sentido Vaz Serra, no estudo publicado no BMJ, n.º 90, e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I-pág. 486”.

XLVIII. O Tribunal a quo refere ainda que a Autora ora Recorrente, com a presente ação, pretende exercer o seu direito de regresso contra o autor do acidente e produtor de danos a terceiros, mencionando não ter a mesma logrado alegar ou provar qualquer dos circunstancialismos previstos nas várias alíneas do artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, pelo que teria sempre a ação de soçobrar.

XLIX. O que está em causa nos autos, ao contrário do que afirma a sentença recorrida, é uma situação em que há aplicação do instituto jurídico da sub-rogação, que não de direito de regresso, pelo que não tinha a ora Recorrente de alegar ou provar qualquer factualidade conducente àquelas alíneas.

L. A sub-rogação, na esteira de Antunes Varela in Das Obrigações em Geral, Vol. II, refere que a sub-rogação “[…] sendo uma forma de transmissão das obrigações, coloca o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito (conquanto limitado pelos termos do cumprimento) que pertencia ao credor primitivo.”

LI. A Autora ora Recorrente, intentou a presente ação após transmissão do direito que competia à sua segurada pelos danos provocados pela Ré no veículo PS e em terceiros, tendo este crédito sido transmitido desta para a Recorrente por efeito do cumprimento subjacente às garantias do contrato de seguro acionadas.

LII. Não está em causa qualquer direito de regresso nos autos, nem a ação foi desenhada sob o prisma do aludido instituto jurídico, constituindo a aplicação do direito de regresso uma má aplicação do direito ao caso, que contribuiu para a improcedência da ação, o que se pretende alterar com o presente recurso, mediante revogação da sentença da 1.ª instância.

LIII. A decisão recorrida viola, desta forma, para além do próprio artigo 483.º do Código Civil, o disposto no n.º 1 do artigo 503.º, 798.º e 1207.º, todos do Código Civil, devendo ser revogada por outra que, aplicando devidamente o direito ao caso, dando como não provada a matéria de facto constante dos pontos 13 e 47 da sentença proferida, condene a Recorrida no pedido contra si formulado.


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            Não foram apresentadas contra-alegações.

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Questões a decidir:

A reapreciação da matéria de facto;

As consequências desta reapreciação, incluindo definir a natureza do contrato e a direção efetiva do veículo. Importa ainda apurar se o proprietário tem um direito contra a Ré, direito que a Seguradora agora quer exercer.


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Os factos considerados provados pelo tribunal recorrido são os seguintes:

1. A autora é uma sociedade que se dedica à atividade seguradora;

2. No exercício da sua atividade, a autora celebrou com E (…), Lda., um contrato de seguro, do ramo automóvel, titulado pela apólice nº (…), nos termos da qual assumiu a responsabilidade emergente da circulação do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula PS (...), bem como as coberturas resultantes de choque, colisão ou capotamento;

3. No dia 10 de março de 2017, cerca das 10h15, o veículo seguro na autora interveio num acidente de viação no Parque de Estacionamento do Hospital da Universidade de Coimbra, em Coimbra, com os veículos de matrícula DD (...), propriedade de R (…), RF (...), propriedade de S (…), DP (...), propriedade de R (…) e KA (...), propriedade de A(…);

4. No local, para além do parque de estacionamento, existe um espaço de lavagem, à data propriedade da ré;

5. Junto ao referido espaço, a via apresenta uma inclinação no sentido Norte-Sul;

6. O piso, em betuminoso, encontrava-se em bom estado de conservação e seco;

7. A via tem dois sentidos de trânsito, encontrando-se dividida em duas hemi-faixas de rodagem, destinando-se cada uma delas ao trânsito de veículos em cada um dos sentidos;

8. No local do acidente, a faixa de rodagem tem 15 metros de largura, destinando-

se aos dois sentidos de trânsito;

9. No local existe sinalização vertical que limita a velocidade máxima a 30 km/h;

10. No dia 10 de março de 2017, um funcionário da proprietária do veículo seguro

na autora entregou o veículo PS nas instalações da ré para que esta procedesse à sua lavagem;

11. A lavagem do veículo PS ficou a cargo da funcionária da Ré, A (…)

12. Esta, imediatamente após ter concluído tal tarefa, conduziu o veículo para o exterior das instalações da Ré, com o intuito de o estacionar num dos lugares disponíveis no parque de estacionamento;

13. Fê-lo por solicitação do sócio da sociedade proprietária do veículo, autorizada

para o efeito, no interesse e por conveniência daquele (substituindo-se-lhe) e por mera cortesia;

14. Já no exterior das instalações da ré, quando efetuava uma manobra de marcha atrás, e em virtude da inclinação da via no local, o veículo PS ganhou velocidade;

15. Ato contínuo, a sua condutora perdeu o seu controlo;

16. Este prosseguiu a sua marcha desgovernada;

17. Embatendo, lateralmente, na traseira do veículo DD que se encontrava estacionado no aludido parque de estacionamento, tendo este, por sua vez, sido projetado contra um outro veículo, de matrícula KA (...), que se encontrava estacionado à sua frente;

18. Adquirindo nova trajetória face a esse embate;

19. O veículo PS prosseguiu a sua marcha desgovernada e embateu na frente esquerda do veículo RF, que também se encontrava ali estacionado;

20. Tendo prosseguido a marcha, desgovernada, até embater na traseira do veículo

DP;

21. Onde se imobilizou;

22. Tal acidente foi participado à Autora, pela sua segurada, ao abrigo da cobertura de danos próprios;

23. Do embate resultaram danos na lateral direita e traseira do veículo de matrícula

PS (...), nomeadamente no para-choques, guarda-lamas, painel lateral, portas, luzes da bagageira, entre outras, cuja reparação foi orçamentada em € 5.465,95;

24. A autora pagou a reparação do aludido veículo, deduzido da franquia, à entidade reparadora F (…), Lda., no montante de € 4.535,97;

25. Do acidente resultaram danos na traseira, lateral e frente direitas do veículo DD, nomeadamente, para-choques, portas, luz traseira, chapa de matrícula, entre outras, cuja reparação foi orçamentada em € 722,83;

26. A autora pagou a reparação do veículo de matrícula DD (...), à entidade reparadora C (…), S.A., no referido montante de € 722,83;

27. Do acidente resultaram também danos na frente esquerda do veículo RF, nomeadamente no para-choques, friso de proteção, guarda-lamas, capot, porta, entre outros, cuja reparação foi orçamentada em € 1.663,32,

28. A reparação do veículo RF era tecnicamente não aconselhável e economicamente inviável, pelo que o mesmo foi considerado perda total;

29. Atento o estado de conservação do veículo RF (...), o seu valor venal, anteriormente ao acidente, era de € 1.900,00;

30. A autora pagou, após negociação, à proprietária do veículo RF (...) o montante de € 1.490,00, como indemnização pela perda total do aludido veículo;

31. Do acidente resultaram danos no veículo DP, nomeadamente no para-choques, luzes, painel lateral, proteção de plástico, porta, entre outros, cuja reparação foi orçamentada em € 4.670,06;

32. A autora pagou a reparação do veículo de matrícula DP (...) à entidade reparadora (…), no montante de € 4.670,06;

33. A autora despendeu a quantia de € 766,29 com as despesas de peritagem e regularização do sinistro;

34. No dia 24.08.2018, a autora enviou à ré a carta com o teor do documento de fls. 82;

35. A ré A (…) de Coimbra é uma Instituição Particular de Solidariedade Social que se dedica à atividade de apoio à pessoa com deficiência mental, promovendo a sua dignificação, normalização e inclusão na sociedade;

36. Na prossecução do seu fim social, a Ré ministra programas de formação profissional para pessoas com deficiência ou incapacidade;

37. A Lavagem Auto é um desses locais de formação profissional, no qual a ré coloca os seus formandos para aí receberem formação prática nessa área;

38. Os grupos de formandos na lavagem auto estão sempre acompanhados por um

monitor/formador, funcionário da Ré, à data dos factos, a colaboradora A (…)

39. A lavagem auto situa-se no recinto dos Hospitais da Universidade de Coimbra, num edifício que lhe foi afeto pelos HUC;

40. O serviço contratado por quem lá se desloque é o de mera atividade de lavagem automóvel feita pelos formandos da Ré, com ajuda e supervisão do funcionário da Ré que lá se encontre;

41. O procedimento padrão é o seguinte: o cliente chega com o veículo ao local de lavagem e, caso não esteja nenhum outro veículo a ser lavado, coloca imediatamente o veículo para lavar e aguarda a conclusão do serviço;

42. Findo o serviço, o proprietário do veículo retira o carro;

43. Caso a lavagem esteja ocupada por outro veículo, o cliente aguarda a sua vez;

44. Muitos dos clientes da empresa de lavagem são funcionários do hospital ou visitas, que vão permanecer no hospital algum tempo;

45. Quando se encontra algum veículo a ser lavado, tais clientes, por vezes, questionam a funcionária da ré se podem deixar o veículo, entregando-lhe as chaves para que esta depois proceda à sua lavagem;

46. Na manhã do dia 10 de março de 2017, o proprietário do veículo seguro na autora, médico nos HUC, dirigiu-se à lavagem explorada pela ré e depositou o veículo para que se procedesse à respetiva lavagem;

47. Porque ia trabalhar, entregou as chaves à funcionária A (…), tendo-lhe pedido expressamente que, após a conclusão do serviço, colocasse o veículo no estacionamento;

48. No local referido em 9 existe sinalização de proibição de estacionamento no sítio onde dois dos veículos foram embatidos;

49. O veículo PS (...) ficou confiado à guarda e responsabilidade da ré, no período em que decorreu a prestação de serviço de lavagem contratualizada.


*

A reapreciação da matéria de facto.

A Recorrente questiona os factos assentes em 13 e 47.

A recorrente invoca a insuficiência das declarações de (…)

A prova disponível, a reconsiderar, está sujeita à livre apreciação do julgador.

Na reapreciação dos factos, o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.662, nº1, do Código de Processo Civil).

Este tribunal forma a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos impugnados. (Abrantes Geraldes, Recursos, 3ªedição, 2010, Almedina, pág.320.)

Lembremos, porém, que a aplicação do regime processual em sede de modificação da decisão da matéria de facto conta necessariamente com a circunstância de que existem fatores ligados aos depoimentos que, sendo passíveis de influir na formação da convicção, não passam nem para a gravação nem para a respetiva transcrição. É a imediação da prova que permite detetar diferenças entre os depoimentos, tornando possível perceber a sua maior ou menor credibilidade.

Reapreciada a prova pessoal concretizada, a nossa convicção manifesta-se no mesmo sentido do decidido, não encontrando razões para alterar a decisão sobre a matéria de facto, julgando assim improcedente a impugnação feita pela Recorrente.

Vejamos:

Ocorre falta de escrito de suporte do acordo, o que, em termos probatórios, pode ser prejudicial a uma e outra parte, pela maior dependência da prova pessoal.

Impugnando os específicos pontos 13 e 47, a Recorrente não impugna os factos assentes em 40 a 46.

Ora, estes factos não impugnados também se apoiam nas mesmas fontes probatórias.

Sendo a lavagem caraterizada como tal, isto quer dizer que, ao contrário dos casos de oficina/garagem invocados pela Recorrente, aquela não implica necessariamente a entrega das chaves do veículo e a sua eventual circulação, podendo implicar uma espera mais ou menos prolongada do cliente.

A (…), monitora da Ré, teve intervenção no acidente e, naturalmente, demonstra conhecimento direto dos factos em análise. A mesma explicou as funções que desempenha na Ré e que no dia em questão um cliente, médico no Hospital, solicitou a limpeza do veículo, pedindo-lhe para, no final da lavagem, colocar o veículo no estacionamento do Hospital; afirmou que a tarefa de retirar o veículo do “centro de lavagem” não faz parte das suas funções; disse que explicou isso ao cliente e que o que fez, ao aceder ao pedido dele, foi um favor.

Estas declarações não foram infirmadas por outra prova e não se mostram desajustadas à realidade do serviço em causa, como também veremos infra.

Tais declarações são depois relativamente corroboradas pelos depoimentos de (…), psicóloga, coordenadora do curso da Ré, e de (…), diretor administrativo desta entidade.

Apesar de não serem testemunhos diretos da conversa entre o cliente e a funcionária, eles são depoimentos que exteriorizam o procedimento habitual, o que foi assente e não foi impugnado pela Recorrente.

A primeira, acedendo ao local após o acidente, confirma depois com a funcionária que o cliente lhe tinha pedido para colocar o veículo no estacionamento, após a lavagem; também declara que tal tarefa não faz parte das obrigações do “centro de lavagem”.

J (…) não assistiu ao acidente; explicou como funciona o espaço de lavagem de automóveis da Ré, confirmando que os clientes esperam que o seu veículo seja lavado e retiram-no do local ou, como nalguns casos de que ouviu falar, deixam a chave do veículo e pedem para, após a lavagem, o automóvel seja estacionado no parque de estacionamento, o que constitui um favor.

            Neste contexto probatório, apesar das cautelas que se imponham no controle externo de certas declarações, no caso das de A (…), julgamos que é válido o convencimento de que a ação daquela decorre da solicitação do cliente, quem não quer esperar pela lavagem e assume o risco de entregar as chaves e a condução limitada ao estacionamento. Nos limites do serviço da Ré, a ação da funcionária apresenta-se como um favor ao cliente, que o pede porque quer ir trabalhar.

Pelo exposto, julgamos improcedente a impugnação feita pela Recorrente e decidimos manter a matéria de facto como fixada.


*

Conforme a factualidade provada, o contrato celebrado entre a Ré e o cliente é um contrato atípico de prestação de serviços, com depósito e não um contrato de empreitada.

Está em causa um trabalho que se esgota na lavagem/limpeza do veículo, o resultado do mero trabalho manual.

Não está em causa uma obra, como algo que resulte não só do trabalho, mas também da incorporação de outros elementos.

No caso, o serviço implica o depósito durante o período em que decorre a lavagem.

Assim, conforme o procedimento apurado, a partir do momento em que o serviço está concluído, o depositante deverá levantar o veículo onde o depositou. (Cf. art.1195º do Código Civil.)

Este contrato não implica a entrega das chaves do veículo e a circulação deste pelo funcionário que procede à lavagem; ele não implica a perda do poder de facto do proprietário sobre o seu veículo.

Por isso, este contrato não se confunde com os de oficina e reparação automóvel, os de garagistas, bem como das pessoas que exercem uma atividade profissional que os obrigue a utilizar os veículos de outros.

O levantamento do veículo pelo cliente, no momento próprio, não ocorreu por conveniência e interesse do seu proprietário.

O favor da funcionária extravasa as suas funções na Ré e o âmbito contratual assumido por esta.

O interesse na manobra de estacionamento é do cliente, quem não quer esperar pelo fim da lavagem. O cliente prefere assumir o risco inerente à manobra, que parece ser limitada, do que perder a lavagem ou algum tempo de espera.

Seguindo de perto os critérios interpretativos assinalados pelo STJ, nos acórdãos de 26.11.2015, proc. 598/04, e de 29.1.2014, proc. 249/04, em www.dgsi.pt, entendemos que no momento do acidente, a direção do veículo ainda se mantém na pessoa do seu proprietário e não na Ré, alheia ao acordo da funcionária, correndo ele o risco da manobra em questão. O proprietário não perdeu o poder que detinha sobre o veículo. (Cf. o artigo 503º, nº 1, do Código Civil.)

Resulta da factualidade provada que a funcionária da Ré, aquando do acidente, não exercia as funções para as quais foi contratada, circulando no interesse do proprietário do veículo, detendo este a sua direção efetiva, sendo este o responsável pela circulação.

Não tendo o proprietário um direito contra a Ré, relativo à referida circulação, a sua seguradora não tem também o mesmo direito contra a Ré.


*

Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pela Recorrente.

Coimbra, 2020-05-05

Fernando de Jesus Fonseca Monteiro ( Relator )

Ana Vieira

António Carvalho Martins