Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
83940/18.3YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ENTRE SOCIEDADES COM SÓCIOS COMUNS
NEGÓCIO CONSIGO MESMO
INTERPOSTA PESSOA
NULIDADE
“TRUST”
Data do Acordão: 01/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 64., 1, B) E 397.º, 2, DO CSC
ARTIGO 614.º, 2, DO CPC
ARTIGO 579.º, 2, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - Relativamente aos negócios celebrados por uma sociedade com outras sociedades das quais os seus administradores são sócios, não é suficiente que um dos administradores da sociedade seja sócio maioritário da contraparte, para que se entenda que esse administrador é um participante indireto nesse negócio.
II - Apesar de, atenta a sua qualidade de sócio ele poder vir a ser reflexamente beneficiado com o contrato celebrado pela “sua” sociedade com a sociedade da qual é administrador e de se encontrar numa posição em que, atenta a sua qualidade de sócio maioritário, tem o poder de influenciar a vontade negocial da “sua” sociedade, é necessário que se demonstre que essa intervenção resultou duma utilização abusiva da pessoa coletiva sociedade como um autêntico alter ego desse administrador, funcionando aquela como um mero veículo de intervenção negocial, ou seja como “interposta pessoa”.

III - Só quando se justifique a utilização do instituto do levantamento ou desconsideração da personalidade coletiva quando esta intervêm como testa de ferro, com o intuito de esconder a participação e o interesse do sócio maioritário na realização do negócio com a sociedade da qual é administrador, é que poderemos afirmar que esse administrador interveio no negócio por “interposta pessoa”.

IV - E a justificação para a desconsideração da personalidade coletiva resultará do facto da intencionalidade que preside à atribuição dessa personalidade não se verificar em concreto, devendo imputar-se ao sócio a autoria dos atos negociais formalmente praticados pela pessoa coletiva.

Decisão Texto Integral: Relator: Sílvia Pires
Adjuntos: Fernando Marques da Silva
                 Henrique Antunes


Autora: A... S.A.

Ré: B... S.A.

                                                           *
   Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A Autora requereu, usando o procedimento de injunção, a notificação da Ré para pagar-lhe a quantia de € 256.603,11 de capital, € 11.910,10 de juros, € 153,00 de taxa de justiça inicial e € 50,00 ao abrigo do disposto no art.º 7º do Decreto-Lei nº 62/2013 de 10 de maio e os juros de mora vincendos até efetivo pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese, ter fornecido bens e prestado serviços à Ré, tendo emitido as faturas respetivas, correspondentes ao período entre julho de 2017 a outubro de 2017, e notas de crédito no valor de € 1.610,00 € 196,31, € 729, 05 e € 215,25, permanecendo em dívida o valor de € 256.603,11 acrescido dos juros de mora vencidos, e vincendos, que a Ré, apesar de interpelada não pagou.

A Ré contestou, invocando a nulidade dos contratos de prestação de serviços celebrados entre as partes, atento o disposto no art.º 397º, n.º 2, do CSC já que o detentor e beneficiário da Autora, sendo o seu administrador de facto, era AA o qual também era o administrador da Ré, no período em que foram celebrados os invocados contratos de fornecimento de bens e prestação de serviços, não tendo em momento algum sido autorizados pelo Conselho de Administração da Ré nem tendo obtido parecer favorável do conselho fiscal.
Impugnou ainda os factos alegados na petição inicial e deduziu pedido reconvencional, pedindo que a ação fosse julgada improcedente, ou caso fosse julgada procedente a compensação com o crédito que alegou deter sobre a Autora.

A Autora apresentou réplica, alegando que sendo a sua administradora casada com AA existiam relações comerciais entre ambas as sociedades, atendendo à complementaridade das respetivas produções e ao facto de operarem no mesmo mercado., sendo certo que AA nunca foi seu administrador, quer de facto ou de direito, e que é detida pela A... Group S.A. a qual nunca foi detida pelo referido AA.
Conclui pela validade do contrato, pela improcedência da reconvenção e pela procedência da ação.

Em 06 de Março de 2019 a Ré apresentou articulado, pedindo a redução do pedido reconvencional e juntando documentos.

A Autora respondeu, apresentando novo articulado no qual pediu a condenação da Ré como litigante de má-fé.

No despacho saneador, foi proferida decisão que absolveu a Autora do pedido reconvencional.

Veio a ser proferida sentença que julgou a ação pela seguinte forma:
Julgo totalmente procedente a presente acção e consequentemente:
i- condeno a R. B... S.A. a pagar à A. A... S.A. a quantia de € 268.553,21 (duzentos e sessenta e oito mil quinhentos e cinquenta e três euros e vinte e um cêntimos), acrescido dos juros de mora à taxa de juros comerciais, a contar de 19 de Julho de 2018 e até efectivo pagamento, sobre o capital de € 256.603,11 (duzentos e cinquenta e seis mil seiscentos e três euros e onze cêntimos)

                                                           *

A Ré interpôs recurso de apelação desta decisão, formulando as seguintes conclusões:
A. Vem o presente recurso interposto da Sentença Recorrida, nos termos da qual se julgou totalmente procedente o pedido da Recorrida, condenando-se a Recorrente a pagar-lhe a quantia de € 268.553,21, acrescido de juros de mora à taxa de juros comerciais, a contar de 19 de julho de 2018 e até efetivo pagamento, sobre o capital de € 256.603,11.
B. Todavia, atenta a matéria de facto considerada provada na Sentença Recorrida, encontram- se reunidos todos os pressupostos de aplicação da previsão do art.º 397.º, n.º 2 do CSC, impondo-se a declaração de nulidade dos contratos de onde emergem os créditos de que a Recorrida se arroga titular no caso sub judice e, consequentemente, a improcedência do pedido da Recorrida e a absolvição da Recorrente do pedido.
C. Resulta da matéria dada como provada que, à data da celebração e execução dos Contratos Controvertidos, AA era: (i) administrador de direito da Recorrente e das demais sociedades do Grupo C...; e, ao mesmo tempo, (ii) dono e beneficiário efetivo e administrador de facto da Recorrida.
D. Impunha-se, por isso, a conclusão de que os Contratos Controvertidos se encontram feridos de nulidade, ao abrigo do disposto no art.º 397.º, n.º 2 do CSC, por terem sido materialmente celebrados entre a Recorrente e AA, que era, à data, dono e beneficiário efetivo da Recorrida,
E. Sem que para tanto tivesse sido obtido o consentimento do Conselho de Administração da Recorrente ou um parecer favorável do seu Conselho Fiscal.
F. É, assim, manifesto que a Sentença Recorrida incorreu num erro na qualificação jurídica dos factos, em prejuízo da Recorrente, porquanto a conclusão de que os Contratos Controvertidos são nulos é uma dedução lógica dos factos considerados como provados.
DA MATÉRIA DE FACTO CONSIDERADA PROVADA
G. Dos factos considerados provados n.ºs 8 e 9 da Sentença Recorrida, resulta a conclusão de que AA era dono e beneficiário efetivo da Recorrida, na medida em que: (i) a Recorrida era detida pela A... Group; (ii) a A... Group era detida pelo D... (em concreto, 95% do capital social da A... Group); (iii) de que, por sua vez, AA e BB eram os primeiros beneficiários.
H. Se dúvidas existissem em torno dos factos considerados provados n.ºs 8 e 9 da Sentença Recorrida, as mesmas ficam dissipadas com a fundamentação apresentada na Sentença Recorrida para se ter considerado que os mesmos se encontravam cabalmente demonstrados nos presentes autos, da qual resulta que AA tem «interesse direto nos destinos daquela sociedade».
I. Pelo que, da matéria de facto considerada como provada – e da sua fundamentação – resulta a evidente conclusão de que AA é dono e beneficiário efetivo da Recorrida através do D....
J. Esta conclusão não é, modo algum, prejudicada pela natureza do D..., pois, tratando-se aquele de um trust (i.e., um veículo-fiduciário), o mesmo (i) é constituído no exclusivo interesse dos seus beneficiários, (ii) sendo estes os titulares de direitos sobre os bens que o integram.
K. Isto mesmo tem vindo a ser afirmado, de forma pacífica, pela nossa doutrina e pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores que se têm pronunciado sobre a natureza e regime dos denominados trusts – vide compilação de doutrina e jurisprudência referida supra no ponto 20.
L. Por conseguinte, dúvidas não podem existir de que, atendendo à natureza jurídica do D... e à qualidade de beneficiário do mesmo de AA, é por demais evidente que AA tem um interesse direto nos resultados da atividade da Recorrida, sendo AA beneficiário efetivo da Recorrida.
M. Mas resulta também dos factos considerados provados que AA era administrador de facto da Recorrida, nomeadamente «dando ordens em nome desta mormente ao que se refere à parte operacional de tal entidade» (cfr. facto considerado provado n.º 11 da Sentença Recorrida), ao mesmo tempo que era administrador de direito da Recorrente (cfr. facto considerado provado n.º 13 da Sentença Recorrida).
N. Apesar desta factualidade, a Sentença Recorrida – por manifesto lapso no enquadramento jurídico dos factos – considerou não ser possível concluir pela nulidade dos fornecimentos aqui em discussão, porquanto, na sua ótica, não existiu um benefício direto ou mesmo indireto de AA, tal como é, no entendimento que ficou consignado na Sentença Recorrida, exigido pelo art.º 397.º, n.º 2 do CSC.
DA APLICAÇÃO AO CASO SUB JUDICE DO DISPOSTO NO ART.º 397.º, N.º 2 DO CSC
O. Entende a Recorrente que a Sentença Recorrida incorreu numa incorreta qualificação jurídica da factualidade considerada como provada, desconsiderando aquela que é a ratio legis e o âmbito de aplicação do n.º 2 do art.º 397º do CSC – a tutela da sociedade e dos seus stakeholders perante potenciais situações de conflito de interesses.
P. A atuação de AA representa um evidente conflito de interesses: atua enquanto representante dos interesses da Recorrente numa situação em que o seu interesse pessoal se encontra alinhado com os interesses da contraparte dos Contratos Controvertidos – a Recorrida, da qual AA era dono e beneficiário efetivo.
Q. Relativamente a estas situações, o legislador, consciente do sério risco de violação dos deveres de lealdade do administrador perante a sociedade (art.º 64.º, n.º 1, al. b) do CSC) resultantes da situação de conflito de interesses em que se encontra, atribui primazia aos interesses da sociedade e dos seus stakeholders através da tutela antecipatória prevista no art.º 397.º, n.º 2 do CSC.
R. Com efeito, os negócios jurídicos celebrados neste quadro de conflito de interesses só serão válidos perante a validação dos mesmos pelo conselho de administração (com impedimento de voto do administrador em conflito de interesses) e pelo órgão de fiscalização da sociedade, com isto se visando limitar, ao máximo, a atuação em conflito de interesses, em prejuízo da sociedade administrada.
S. Resulta dos factos não provados que: (i) não houve qualquer autorização prévia por parte do Conselho de Administração da Recorrente; (ii) nem houve qualquer parecer favorável do Conselho Fiscal da Recorrente.
T. Mais: não foi sequer alegado ou provado que alguma vez AA tivesse comunicado ao Conselho de Administração e ao Conselho Fiscal da Recorrente que era dono e beneficiário efetivo da Recorrida – pelo contrário, ficou cabalmente demonstrado nos presentes autos que AA atuou em conflito de interesses de forma oculta.
U. Pois bem, é de concluir que Sentença Recorrida terá desconsiderado o facto de o núcleo essencial do art.º 397.º, n.º 2 do CSC apenas exigir que o administrador seja também, direta ou indiretamente, a contraparte do negócio por si celebrado, i.e., ser, de algum modo, beneficiário ou destinatário das vantagens auferidas pela Recorrida resultantes dos Contratos Controvertidos.
V. Não valorando o facto de AA ser dono e beneficiário efetivo da Recorrida implicar, por si só, que estejamos perante um negócio consigo mesmo strictu sensu, tal como o legislador visou proibir através do art.º 397.º, n.º 2 do CSC, de forma a inviabilizar a sua evidente atuação em conflito de interesses e em violação dos seus deveres de lealdade enquanto administrador da Recorrente (art.º 64.º, n.º 1, al. b) do CSC).
W. De facto, ao contrário do que ficou consignado na Sentença Recorrida no que respeita aos pressupostos de aplicação do disposto no art.º 397.º, n.º 2 do CSC, não é necessário que AA tenha intervindo na negociação e celebração dos negócios jurídicos do lado da Recorrida, bastando que seja materialmente contraparte da Recorrente nas transações por si celebradas, ainda que por interposta pessoa - o que foi manifestamente o caso, dado que os seus interesses se encontram alinhados com os interesses da Recorrida, por ser dela dono e beneficiário efetivo.
X. Tudo isto em prejuízo do interesse primário a que, por força da lei e das suas funções, AA estava vinculado a prosseguir na qualidade administrador de direito – os interesses da Recorrente.
Y. Pelo que, qualquer decisão que legitime ou viabilize as vantagens que a Recorrida pretende obter com o putativo crédito resultante dos Contratos Controvertidos constitui, inevitavelmente, um branqueamento dos deveres de lealdade dos administradores das sociedades comerciais e das regras fundamentais de proibição de conflito de interesses no âmbito do direito societário.
Z. Não obstante, a Sentença Recorrida cingiu a análise do mérito do caso sub judice à problemática atinente ao tema da dupla representação – saber se o AA agiu em representação da Recorrente e da Recorrida na celebração dos Contratos Controvertidos.
AA. Nela se tendo concluído que os Contratos Controvertidos não padecem de qualquer nulidade por terem sido celebrados entre sociedades e não entre uma sociedade e um administrador, ainda que de ambas, acrescido do facto de não ter sido alegado que AA tenha deles retirado qualquer proveito pessoal.
BB. Salvo o devido respeito, a Sentença Recorrida, ao limitar deste modo o escopo de aplicação do disposto no art.º 397.º, n.º 2 do CSC, contraria aquela que foi a intenção do legislador, vai contra a interpretação seguida pela doutrina e, além disso, vai contra a jurisprudência dos tribunais superiores nesta matéria – vide compilação de doutrina e jurisprudência referida supra no ponto 50.
CC. Sem prejuízo do enquadramento jurídico descortinado infra, reitera-se, conforme tem vindo a ser exposto, que os Contratos Controvertidos não foram celebrados entre a Recorrente e a Recorrida, mas antes entre a Recorrente e AA, desta sorte através da Recorrida.
DD. Assim, e conforme supra descrito, a matéria de facto considerada provada na Sentença Recorrida impõe a aplicação do art.º 397.º, n.º 2 do CSC, ou seja, a improcedência total do pedido da Recorrida e a consequente absolvição da Recorrente do pedido, por força da nulidade dos Contratos Controvertidos.
DA TELEOLOGIA DO ART.º 397.º, N.º 2 DO CSC
EE. O caso sub judice constitui um caso-escola de nulidade na modalidade de negócio consigo mesmo stricto sensu, nos termos do art.º 397.º, n.º 2 do CSC.
FF. Tal como analisámos supra, os Contratos Controvertidos foram celebrados entre a Recorrente (a sociedade) e AA (administrador da sociedade), tendo por interposta pessoa a Recorrida, sendo esta uma situação de negócio consigo mesmo em sentido estrito, porquanto AA atua enquanto administrador de direito da Recorrente e com um interesse negocial próprio, por ser simultaneamente dono e beneficiário efetivo da Recorrida.
GG. Pelo que se identifica uma clara situação de conflito entre: (i) os interesses próprios de AA que se confundem com os interesses da Recorrida; e (ii) os interesses da Recorrente, que AA se encontra legalmente obrigado a prosseguir e salvaguardar na qualidade de seu administrador de direito.
HH. Nas situações de negócio consigo mesmo, o risco de atuação em conflito de interesses é tão elevado, que o legislador optou por afetar a validade dos negócios jurídicos celebrados, sem a necessidade de prova da existência de uma efetiva atuação prejudicial, nem da ocorrência de um dano.
II. A intenção do legislador nas situações de negócio consigo mesmo foi clara: consagrar uma antecipação da tutela nas situações em que o risco de atuação do administrador em conflito de interesses é mais elevado. Dada a suspeição e a gravidade da celebração de tais negócios jurídicos, a invalidade dos mesmos é necessária e natural.
JJ. A doutrina de referência nesta matéria acompanha aquela que foi a intenção do legislador – vide compilação de doutrina referida supra nos pontos 62 e 65 a 69.
KK. Assim, dado o risco extremamente elevado de uma atuação censurável e danosa, a invalidade dos negócios consigo mesmo é encarada como necessária e natural. Trata-se de um mecanismo de proibição de atuação em conflito de interesses, de prevenção de prejuízos.
LL. Com efeito, o elemento histórico interpretação do instituto do negócio consigo mesmo indica claramente que a sua função está na prevenção de situações de conflito de interesses entre o representante e o representado – vide compilação de jurisprudência e doutrina referida supra nos pontos 76 a 80.
MM. A isto acresce a qualificação da relação jurídica de administração como uma relação fiduciária, o que torna evidente que os deveres de lealdade adquirem particular destaque, tendo a sua consagração legal no art.º 64.º, n.º 1, al. b) do CSC.
NN. Ora, uma das concretizações do dever de lealdade é a proibição de conflito de interesses, constituindo esta proibição um dos núcleos fundamentais dos deveres de lealdade dos administradores das sociedades comerciais.
OO. Deste modo, é evidente que o regime societário veda ou limita as situações em que o administrador da sociedade comercial possa vir a atuar livremente em conflito com os interesses da sociedade comercial.
PP. O núcleo proibitivo dos deveres de lealdade está na inadmissibilidade de o administrador dar primazia aos interesses próprios em detrimento dos interesses da sociedade e dos seus stakeholders - sendo esta a manifestação do elemento teleológico do art.º 397.º, n.º 2 do CSC -, não podendo admitir o legislador – em especial, no âmbito do direito societário - atuações em que o administrador tenha de optar necessariamente entre a prossecução do seu interesse próprio e o interesse da sociedade da qual é administrador.
QQ. Donde resulta igualmente o enquadramento sistemático deste preceito: o art.º 397.º, n.º 2 do CSC é uma das concretizações do dever de lealdade previsto no art.º 64.º, n.º 1, al. b) do CSC, devendo, assim, ser interpretado à sua luz.
RR. É, assim, suficiente o mero risco de atuação em conflito de interesses, não sendo necessária a prova da existência de um dano resultante do negócio celebrado em conflito de interesses.
SS. E a proibição contemplada no art.º 397.º, n.º 2 do CSC aplica-se independentemente da prova de um comportamento censurável por parte do administrador, apenas sendo necessário que ocorra uma situação objetiva de conflito de interesses nos termos do n.º 2 do art.º 397º do CSC.
TT. Naturalmente, esta nulidade será afastada quando a sociedade aprova a transação, por intermédio do conselho de administração e do conselho fiscal – vd. art.º 397.º, n.º 2, parte final do CSC –, pois, nesse caso, deixa naturalmente de existir o mencionado risco de atuação do administrador em conflito de interesses.
UU. Atento o exposto, constata-se que é desnecessária a prova de que o preço dos Contratos Controvertidos era desequilibrado ou se existia racional económico para a Recorrente nos negócios celebrados; basta, antes, a prova do risco de atuação em conflito de interesses – ou seja, basta a prova de que o AA era o dono e beneficiário efetivo da Recorrida.
VV. Em bom rigor, a situação aqui em discussão integra o núcleo essencial do art.º 397.º, n.º 2 do CSC, que é composto pelos casos em que o administrador é, direta ou indiretamente (por interposta pessoa), contraparte no negócio jurídico, independentemente de atuar ou não em representação da sociedade. Ou seja, o que releva é o facto de o administrador ser a contraparte no negócio jurídico.
WW. Temos assim, em rigor, duas modalidades de negócio consigo mesmo que constituem o núcleo essencial do art.º 397.º, n.º 2 do CSC: (i) o negócio consigo mesmo stricto sensu, em que o administrador atua em nome da sociedade e é, direta ou indiretamente (por interposta pessoa), contraparte nesse negócio jurídico; e (ii) a co-representação, em que o administrador, apesar de não atuar em nome da sociedade (pois é um outro administrador que age em nome da sociedade), é, direta ou indiretamente (por interposta pessoa), contraparte no negócio jurídico.
XX. Distinta destas situações é a chamada dupla representação, em que o administrador surge de ambos os lados do negócio jurídico, por agir em representação de ambas as partes, mas em que não é de todo contraparte no negócio jurídico - casos estes que não cabem na letra do art.º 397.º, n.º 2 do CSC, mas apenas na letra do art.º 261.º do CC.
YY. De facto, o AA era, de forma oculta, detentor e beneficiário efetivo da Recorrida. Logo, sendo dono da Recorrida, era contraparte no negócio jurídico em causa, ainda que o fosse indiretamente.
ZZ. Com a devida vénia, a Sentença Recorrida incorreu num evidente lapso de enquadramento jurídico, concluindo pela dupla representação – afirmando que o AA agiu simultaneamente em representação da Recorrente e da Recorrida – colidindo, seguramente por mero lapso, com a jurisprudência firmada neste Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17.12.2018.
DO CONCEITO LEGAL DE “INTERPOSTA PESSOA”
AAA. Não existem dúvidas de que o princípio da proibição da celebração de negócios entre o administrador e a sociedade, previsto no art.º 397.º, n.º 2 do CSC, abarca os negócios jurídicos celebrados entre a sociedade e o administrador, seja diretamente, seja indiretamente – por interposta pessoa.
BBB. A inclusão pelo legislador dos casos de interposição de pessoas visa evitar, claro está, a fraude à lei.
CCC. Se, historicamente, a interposição de pessoas era essencialmente operada através de familiares, hoje joga-se sobretudo através da utilização de trusts, sociedades comerciais e outras pessoas coletivas.
DDD. Ora, quer umas, quer outras, são relevantes para efeitos de interpretação do conceito de “por pessoa interposta” previsto no art.º 397.º, n.º 2 do CSC.
EEE. Efetivamente, a doutrina tem defendido, de forma unânime, que o conceito de interposta pessoa deve incluir todos os entes jurídicos que o sujeito possa influenciar diretamente, isto é, deverá incluir, entre outros, os trusts, as sociedades e outras pessoas coletivas que o administrador domine ou de que, por outras palavras, seja sócio maioritário – vide compilação de doutrina referida supra nos pontos 115 e 116.
FFF. O critério de imputação deverá, assim, ser a detenção de uma participação social que possibilite o controlo da sociedade, trust ou pessoa coletiva.
GGG. Por conseguinte, AA seria sempre o verdadeiro beneficiário dos negócios jurídicos entre a Recorrente e a Recorrida, porquanto era ele que estava, ocultamente, por detrás da Recorrida, influenciando-a diretamente, recebendo os dividendos e outras vantagens resultantes desses negócios.
HHH. Em síntese, estamos perante uma situação ostensiva de interposição de pessoas, ocultada propositadamente por AA, através de uma sociedade holding – a A... Group – que detinha 100% do capital social da Recorrida, sendo 95% do capital social daquela, por sua vez, integrado num trust constituído por AA e BB – o D... -, sendo AA seu beneficiário principal.
III. Sendo evidente, de tudo o que se tem vindo a expor, que a situação de conflito de interesses no caso sub judice resulta pura e simplesmente do facto de AA ter celebrado os Contratos Controvertidos enquanto administrador de direito da Recorrente, tendo como contraparte a Recorrida, sociedade da qual é dono e beneficiário efetivo.
JJJ. Ora, correspondendo o D... a um trust e sendo AA, além de fundador (settlor), também um dos beneficiários principais do D..., é evidente que este será beneficiário efetivo da Recorrida, visto que a administração dos bens integrados no D... pela E... (trustee) é toda ela efetuada no exclusivo interesse dos beneficiários, entre os quais se encontra AA – vide compilação de doutrina sobre o trust referida supra no ponto 126.
KKK. Resulta da estrutura acionista da Recorrida, bem como das cadeias de detenção das suas participações sociais, que AA é, por interposta pessoa, o seu dono e beneficiário efetivo.
DISTINÇÃO FACE AOS CASOS DE DUPLA REPRESENTAÇÃO (E DE MEROS ADMINISTRADORES COMUNS)
LLL. Com o devido respeito, a Sentença Recorrida não se apercebeu que estamos perante um caso nuclear de aplicação do art.º 397.º, n.º 2 do CSC nos moldes supra mencionados, na medida em que o AA era, de forma indireta (por interposta pessoa – através da Recorrida), contraparte nos Contratos Controvertidos celebrados pela Recorrente,
MMM. Na dupla representação, o administrador age como representante da sociedade e simultaneamente como representante da contraparte no negócio jurídico, mas não é ele próprio, direta ou por interposta pessoa, a dita contraparte no negócio jurídico.
NNN. Ora, no caso sub judice não há apenas uma mera dupla representação, mas antes um caso evidente de negócio consigo mesmo stricto sensu e de co-representação, i.e., um caso em que o representante (AA) é igualmente contraparte do negócio, direta ou indiretamente, por interposta pessoa (a Recorrida).
OOO. E diga-se, também, que, ao contrário do que en passant a Sentença Recorrida parece dar a entender, não estamos perante uma situação de meros administradores comuns (interlocking directors) entre a Recorrente e a Recorrida, que afastaria a aplicação do art.º 397.º, n.º 2 do CSC.
PPP. Haverá meros administradores comuns quando é celebrado um negócio jurídico entre duas sociedades, em que ambas têm um administrador em comum, sem que: (i) esse administrador comum aja como representante da sociedade e simultaneamente como representante da outra sociedade, caso em que estaremos perante uma situação de dupla representação; (ii) esse administrador seja indiretamente a contraparte no negócio jurídico, por ser dono e beneficiário efetivo da outra sociedade, caso em que estaremos perante uma situação nuclear de negócio consigo mesmo.
QQQ. Ora, no presente caso não há meros administradores comuns, pois AA era indiretamente a contraparte no negócio – pelo que estamos perante uma situação nuclear de negócio consigo mesmo, e não de dupla representação.
DA ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO ART.º 397.º, N.º 5 DO CSC PELA SENTENÇA RECORRIDA
RRR. No art.º 397.º, n.º 5 do CSC prevê-se um desvio à proibição dos negócios consigo mesmo “quando se trate de ato compreendido no próprio comércio da sociedade e nenhuma vantagem especial seja concedida ao contraente administrador”, constituindo, assim, o referido preceito uma exceção face à regra base enunciada no n. º 2 do art.º 397º do CSC.
SSS. Por ser uma exceção ao disposto no n. º 2 do art.º 397º do CSC, o ónus de prova cabe à parte que contesta a sanção da invalidade do negócio jurídico.
TTT. Com a consagração do n.º 5 do art.º 397º do CSC, o legislador teve em vista única e exclusivamente os casos nítidos e óbvios em que o negócio não poderia nunca conceder ao contraente administrador uma “vantagem especial”.
UUU. Atendendo a este racional, o legislador abre uma exceção para as situações em que a natureza da transação exclui a possibilidade de atuação em conflito de interesses – cfr. art.º 397.º, n.º 5 do CSC.
VVV. Neste âmbito será de incluir, tipicamente, os casos em que os preços são tabelados ou divulgados junto do público; mas já não os casos em que os preços são negociados, como acontece no presente caso – vide compilação de doutrina referida supra nos pontos 158 e 159.
WWW. Ora, como bem se vê, o caso dos presentes autos não é subsumível ou equiparável a qualquer um dos referidos exemplos, porquanto, não só os preços das matérias-primas e dos serviços fornecidos e prestados pela Recorrida não eram tabelados (nem a Recorrida o alegou ou disso fez prova), pois oscilavam em função de cada cliente e de cada processo negocial, como havia negociações entre as partes para a fixação do preço, estando AA dos dois lados das relações comerciais.
XXX. No caso concreto, devido à ocultação do conflito de interesses, o risco de prejuízo para a sociedade, por via do risco de os preços negociados serem desvantajosos para a Recorrente e vantajosos para a Recorrida, é ainda mais elevado do que na generalidade das situações subsumíveis ao n.º 2 do art.º 397º do CSC.
YYY. Tudo o que fica exposto confirma, assim, a conclusão de que os Contratos Controvertidos não se enquadram no âmbito da exceção (ou contra exceção) à proibição de negócio consigo mesmo prevista no n.º 5 do art.º 397º do CSC.
ZZZ. Em acrescento ao que se acabou de referir, uma leitura sistemática de ambos os preceitos (n.º 2 e 5 do art.º 397º do CSC) permite concluir que o n.º 5 do art.º 397º do CSC constitui uma contra norma face à norma do n.º 2 do mesmo art.º - ou seja, o art.º 397.º, n.º 5 do CSC é uma exceção face à norma constitutiva da nulidade do n.º 2 do mesmo art.º (ou, caso a nulidade tenha sido invocada através de uma exceção perentória, o art.º 397.º, n.º 5 do CSC será uma contra exceção face ao art.º 397.º, n.º 2 do CSC – o que acontece no caso concreto).
AAAA. Ora, de acordo com as mais elementares regras relativas ao ónus de alegação (cfr. art.º 5.º do CPC) e prova (cfr. art.º 342.º do CC), é sobre quem se pretende prevalecer dos efeitos favoráveis resultantes de uma determinada norma que impende o ónus de alegação e prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos que a compõem.
BBBB. Ora, a Recorrente alegou (e provou) os factos constitutivos da nulidade invocada, ao abrigo do n.º 2 do art.º 397º do CSC, a saber: (i) tratar-se de um contrato celebrado “entre a sociedade e os seus administradores, diretamente ou por interposta pessoa”, (ii) não ter o mesmo sido previamente autorizado por deliberação do conselho de administração, e (iii) não ter o mesmo recolhido o parecer favorável do conselho fiscal ou da comissão de auditoria.
CCCC. Impendia, assim, sobre a Recorrida o ónus de alegar e provar que a nulidade dos Contratos Controvertidos estava afastada, para tanto demonstrando que os requisitos da exceção (ou, como é o caso, contra exceção) ínsita no n.º 5 do art.º 397º do CSC se encontravam verificados e que, designadamente, não advieram daí vantagens especiais para AA.
DDDD. Não podendo, naturalmente, a Recorrente ser onerada com o ónus de alegar e provar a não aplicabilidade da contra exceção ao preceito cuja aplicabilidade invoca.
EEEE. Mais, o entendimento da Sentença Recorrida quanto à distribuição do ónus de prova não só colide com o art.º 342.º do CC e a teoria das normas formulada por ROSENBERG, como é absolutamente incompatível com a ratio legis e o sentimento de Justiça subjacentes à proibição de negócio consigo mesmo consagrada no art.º 397º do CSC, tal como foi expressamente demonstrado supra na análise do seu elemento sistemático e teleológico.
FFFF. Transformar a exceção na regra seria, no final do dia, desonerar os administradores da proibição de celebração de negócios consigo mesmo, imanente no art.º 397.º, n.º 2 do CSC.
GGGG. Significaria que a sociedade apenas poderia, excecionalmente, impugnar a celebração de negócios consigo mesmo, se provasse a existência de um prejuízo para si, de uma vantagem especial para o administrador desleal. Na dúvida (ou seja, em situações de non liquet), os tribunais permitiriam a celebração de negócios numa situação de conflito de interesses objetivo entre a sociedade e os seus administradores.
HHHH. Consabidamente, não é essa a teleologia do art.º 397.º, n.º 5 do CSC, nem tampouco a ratio da sua inserção sistemática atento o conteúdo dos deveres de lealdade dos administradores perante a sociedade comercial, nos termos consagrados no art.º 64.º, n.º 1, al. b) do CSC.
IIII. Concluindo, não impende sobre a Recorrente qualquer ónus de alegação e de prova de factos concretos relacionados com a verificação de uma vantagem especial para AA para que possam ser considerados nulos os negócios jurídicos celebrados entre as partes, por via do n.º 2 do art.º 397º do CSC, em conformidade com o entendimento aduzido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de setembro de 2020.
DOS EFEITOS DA DECISÃO DE NULIDADE DOS CONTRATOS CONTROVERTIDOS
JJJJ. No que toca aos efeitos da eventual declaração de nulidade, ficou consignado na Sentença Recorrida que “mesmo a concluir-se pela nulidade haveria que chamar à colação as regras do art.º 289º do Código Civil, devendo as partes restituir tudo o que tiver sido prestado, ou, se a restituição não for possível em espécie, o valor correspondente. E a R., em momento algum (apenas em sede de contra-alegações) referiu como na prática pretenderia devolver o que lhe foi prestado, o que se presume ser impossível atento aquilo que lhe foi vendido e os serviços dispensados, tão pouco então qual o valor correspondente que entendia ser devido à A.”
KKKK. Com todo o respeito, discorda-se, frontalmente, de tal argumentação.
LLLL. As dificuldades de execução dos efeitos jurídicos resultantes da aplicação do Direito não podem ser fundamento ou sequer ter influência no sentido das decisões sobre a tutela dos direitos ou interesses legalmente protegidos.
MMMM. Tal consideração colocaria diretamente em causa os valores do Estado de Direito e o princípio da tutela jurisdicional efetiva (art.ºs 20.º da Constituição da República Portuguesa e art.º 2.º, n.º 2 do CPC), assim como a instrumentalidade do direito processual civil face ao direito material, porquanto se invocaria como fundamento de oponibilidade à declaração de nulidade dos Contratos Controvertidos as dificuldades de apuramento (leia-se liquidação) dos valores a serem restituídos à Recorrida.
NNNN. É o resultado do corolário do processo civil de que “a cada direito corresponde uma ação”.
OOOO. Com efeito, não pode, em caso algum, a putativa dificuldade de apuramento das quantias a restituir vir a ser considerada um argumento juridicamente atendível ou admissível para definir o sentido decisório da decisão, porquanto a pretensão da Recorrente se encontra fundamentada na lei substantiva.
PPPP. Não sendo possível determinar o valor a restituir, correspondente à medida do enriquecimento da Recorrente (art.º 289.º, n.º 2 in fine do CC), existem mecanismos legais ao dispor da Recorrida com vista a obter as ditas quantias, nomeadamente por via do instituto do enriquecimento sem justa causa.
QQQQ. Do exposto resulta, assim, que o facto de não ser viável a restituição das matérias-primas fornecidas pela Recorrida à Recorrente em nada contende com a procedência da exceção perentória extintiva de nulidade dos Contratos Controvertidos, sendo o valor relevante concretizável em qualquer caso, e em sede própria, numa ação de enriquecimento sem causa.
RRRR. Assim, não obsta, evidentemente, à declaração de nulidade dos Contratos Controvertidos as dificuldades de determinação do quantum a restituir à Recorrida atendendo à impossibilidade de se proceder à restituição natural de tudo o que foi prestado.
SSSS. Pelo que nenhuma razão existe para que não se dê provimento à exceção perentória extintiva de nulidade com fundamento no art.º 397.º, n.º 2 do CSC, nos termos supra demonstrados.
A TÍTULO SUBSIDIÁRIO - DO ADITAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA
TTTT. Sem conceder, mas precavendo a hipótese de o Tribunal ad quem considerar que, por qualquer razão (que a Recorrente não consegue equacionar), da matéria de facto dada como provada não resulta evidente a qualidade de AA como beneficiário primário e efetivo da Requerida, vem a Recorrente, subsidiariamente e nos termos deste capítulo, requerer que o referido facto seja aditado à matéria de facto dada como provada nos presentes autos.
UUUU. O facto atinente à titularidade da Recorrida por AA encontra-se cabalmente demonstrado por documentos, nomeadamente pelos Documentos n.ºs 3, 5, 6 e 7 juntos com a Oposição da Recorrente (referência Citius 22814067) e pelo Documento n.º 6 junto pela Recorrente no requerimento por si apresentado em 19.09.2019 (referência Citius 6162451),
VVVV. Dos quais resulta que (i) a Recorrida é detida pela A... Group (ii) e que 95% do capital social desta era detido pelo D... desde 14.09.2012, (iii) sendo AA beneficiário principal do referido trust.
WWWW. Relembre-se, em particular, a declaração de património dirigida por AA à E..., na qual o próprio se declarou como “indirect shareholder” da Recorrida (Documento n.º 7 acima referido junto com a Oposição da Recorrente).
XXXX. Também a prova testemunhal produzida nos presentes autos aponta na mesma direção: a de que AA é o dono e beneficiário efetivo da Recorrida. Principie-se por notar que as testemunhas CC e DD e, bem assim, o representante legal da Recorrente, EE, confirmaram o teor dos documentos a que se acabou de fazer referência, tendo referido que com base neles chegaram à conclusão de que AA era o dono e beneficiário efetivo da Recorrida. Também do depoimento de FF resultou claro que todos os funcionários da Recorrida reconheciam AA como o dono e beneficiário efetivo daquela – vide excertos de transcrições referidos supra nos pontos 208 a 209.
YYYY. De todo o modo, diga-se que, em bom rigor, o facto cujo aditamento é aqui requerido é uma mera decorrência lógica dos factos provados n.ºs 8 e 9 da Sentença Recorrida, que confirmam, precisamente, que a Recorrida era detida pela A... Group que, por sua vez, era detida pelo D..., do qual AA era beneficiário.
ZZZZ. Mas é ainda uma consequência lógica do que ficou consignado, em matéria de direito, na Sentença Recorrida, na parte em que se refere que “(…) a A. era detida por uma empresa de direito Luxemburguês, que por seu turno era detida por um veículo fiduciário - o D... - desde 14.09.2012, o que permitia que AA ainda que de forma não visível fosse um dos detentores deste grupo empresarial”.
AAAAA. Pelo que, em face da prova ora elencada e do que ficou consignado na própria Sentença Recorrida, deve o Tribunal ad quem alterar a matéria de facto da Sentença Recorrida, no sentido de passar a constar como provado o seguinte facto: “ É uma decorrência dos factos provados 8 e 9 que AA era, ao tempo da celebração dos Contratos Controvertidos, dono e beneficiário efetivo da Autora”.
DA GRAVIDADE DO ILÍCITO PRATICADO POR AA
BBBBB. Os factos essenciais deste processo e que foram considerados provados pela Sentença Recorrida foram ocultados por AA aos restantes administradores da Recorrente e das demais sociedades do Grupo C... (com exceção da sua filha GG) e, sobretudo, à Justiça.
CCCCC. Estamos perante um caso grave de interposição oculta de pessoas, tendo tais factos já sido considerados provados e censurados por várias decisões dos tribunais – vide decisões judiciais referidas supra nos pontos 215 e 216.
DDDDD. A Justiça terá, assim, que sancionar novamente este comportamento levado a cabo por um antigo administrador desleal da Recorrente que, utilizando um grupo empresarial por si criado e gerido, prejudicou gravemente os interesses e o património da Recorrente, dos seus acionistas e seus credores em benefício desse grupo empresarial paralelo, no qual se inclui a Recorrida.
EEEEE. Se existe caso que necessita da proteção dada pelo instituto do negócio consigo mesmo, e das suas consequências ao nível da validade do negócio, previsto no art.º 397.º, n.º 2 do CSC, é o caso dos presentes autos, do qual resulta não só um elevadíssimo risco de conflito de interesses – que por si só já levaria à aplicação da nulidade dos Contratos Controvertidos – mas, também, um conflito de interesses efetivo, que prejudicou a Recorrente em favor da Recorrida e do seu detentor e beneficiário efetivo - AA.
FFFFF. Ao não punir o negócio consigo mesmo celebrado entre a Recorrente e a Recorrida, nos moldes explicitados supra, a Justiça estaria a proteger o infrator, permitindo que AA continue a retirar um proveito do seu próprio ilícito.
Conclui pela procedência do recurso.

A Autora apresentou resposta e requereu a ampliação do objeto do recurso, apresentando as seguintes conclusões:
RETIFICAÇÃO DE LAPSO MATERIAL
A. A sentença recorrida contém dois lapsos de escrita.
B. No ponto 13 dos factos provados, o Tribunal a quo faz referência à Autora por lapso, quando pretende referir a Ré, conforme se confirma pelo sentido da sua fundamentação.
C. Deve por isso, ao abrigo do disposto no art.º 614.º CPC a redação do ponto 13 ser:
13- AA foi administrador da R. desde 1975, tendo sido lavrado em 02 de Outubro de 2017, registo de cessação de funções como membro do conselho de administração da R. e na qualidade de vice presidente, tendo por causa “destituição” na sequência de deliberação da assembleia geral da R. datada de 29 de Setembro de 2017.
D. Na exposição da fundamentação do facto 11.º é feita referência por lapso às testemunhas da Ré, quando se pretendia referir as testemunhas Autora e vice-versa, conforme verifica pela exposição que se segue na sentença recorrida.
E. Assim, deve a sentença ser alterada nesta parte, também ao abrigo do disposto no art.º 614.º do CPC, passado para:
As testemunhas arroladas pela A. negam tal facto ao contrário das testemunhas arroladas pela R.
DA MATÉRIA DE FACTO CONSIDERADA PROVADA
F. Não foi considerado provado pela sentença recorrida que AA tivesse sido dono e beneficiário efetivo da Recorrida.
G. As decisões judiciais citadas pela Recorrida no decurso da primeira instância e em sede de recurso não produzem quaisquer efeitos nos presentes autos, pois a Recorrida não foi parte nos mesmos e o caso julgado não se estende aos fundamentos ou à matéria de facto considerada provada e não provada.
H. Da matéria de facto considerada provada na sentença recorrida, nomeadamente dos factos 8 e 9, resulta apenas que entre 2014 e 2017:
a) a Recorrida era detida pela A... Group SA
b) 95% do capital da A... Group SA era detido pelo D... - criado em 2012, com uma contribuição em dinheiro de €5.000 por parte de AA e 95% das ações da A... Group por parte de BB;
c) AA e BB eram os primeiros beneficiários (fundadores) e os seus filhos os beneficiários finais.
DA ALEGADA ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO ART.º 397.º, N.º 2 E 5 DO CSC
I. Quanto ao enquadramento jurídico dos factos, para que um contrato seja nulo nos termos do disposto no art.º 397.º, n.º 2 do CSC é necessário que o administrador da sociedade tenha, só por si, poder de controlo ou de domínio sobre a “pessoa interposta” de modo a criar um risco de conflito de interesses, que o legislador procura evitar através da nulidade.
J. Relativamente a esta questão, a Recorrente sempre reconheceu ao longo de toda a sua defesa que o casamento entre AA e BB era de conhecimento público e nunca lhe atribuiu qualquer relevância ou alegou qualquer facto com ele relacionado para efeitos de arguição de nulidade, o que se traduz na sua consideração de que AA não tinha qualquer poder de domínio sobre a Recorrida através do casamento com BB.
K. Como tem sido esclarecido entre a doutrina e a jurisprudência, não basta que o mesmo administrador seja de alguma forma interveniente em ambas as sociedades contraentes, pois na base do art.º 397.º, n.º 2 do CSC está a necessidade de o representante ter poder de controlar e vincular ambas as partes envolvidas na relação jurídica e assim poder controlar a sua vontade, de modo a criar o risco provável de prejuízo.
L. Sem este poder de domínio de ambas as partes não há o risco de conflito de interesses e, portanto, o art.º 397.º, n.º 2 do CSC não tem aplicabilidade.
M. AA não tem, nem nunca teve qualquer poder de domínio, de vinculação ou representação da Recorrida.
N. A Recorrente procura deliberadamente confundir o facto de ter sido considerado provado que AA foi um dos administradores de facto da Recorrida, com a sua tese de que este é seu dono e beneficiário e que tem o poder de sozinho controlar e vincular a Recorrida.
O. Sucede que a sentença recorrida não considerou provado que AA fosse o dono e beneficiário efetivo da Recorrida.
P. Pelo contrário, da matéria de facto considerada provada resulta de forma clara que AA era um mero administrador comum da Recorrida, do qual nem era o único.
Q. Não basta que estejamos perante um mero administrador comum a ambas as sociedades, porque nesse cenário, o negócio jurídico não é nulo.
R. Ainda que fosse dono e beneficiário efetivo da Recorrida – o que se aduz por mera cautela, - tal não permitiria só por si que os contratos em causa fossem nulos ao abrigo do disposto no art.º 397.º, n.º 2 do CSC.
S. Pois, a ser dono, teria de ser dono maioritário, para poder ter o poder de controlo necessário para criar o risco de conflito de interesses – o que seguindo a tese da Recorrente não seria possível, porque AA era apenas um de cinco beneficiários do trust.
T. Se se entendesse que AA foi beneficiário da Recorrida, por intermédio do D..., o facto de ser um mero beneficiário não lhe permite ter qualquer poder de domínio ou controlo sobre a Recorrida e como tal, não há a possibilidade de a utilizar como um alter ego seu, que lhe permita celebrar contratos consigo próprio, que de outra forma não poderia.
U. Ao longo de todo o processo, a Recorrente não alegou e consequentemente, não provou que AA fosse de facto beneficiário da Recorrida por esta via.
V. Resulta da matéria de facto provada, mais precisamente do ponto 1, que não foi objeto de recurso, que os contratos aqui em causa foram celebrados entre a Recorrente e a Recorrida.
W. Impõe-se por isso, para que a nulidade possa operar, que a Recorrida seja considerada interposta pessoa.
X. Para tal, seria necessário que a Recorrida fosse uma entidade que AA pudesse influenciar diretamente ou dominar – o que não foi considerado provado.
Y. A Recorrente e a Recorrida são pessoas coletivas com personalidade jurídica própria e distinta.
Z. A Recorrida é uma sociedade comercial constituída há mais de 80 anos, que sempre pertenceu à família de BB, muito antes do seu casamento com AA e da qual este nunca fez parte.
AA. Não se trata de uma sociedade criada ou utilizada para servir os interesses de AA, nem de um mero veículo para as suas relações comerciais com a Recorrente.
BB. A Recorrente e a Recorrida colaboram na atividade comercial uma da outra há vários anos e sempre o fizeram de forma pública, com conhecimento e à vista de todos.
CC. É do conhecimento público que a Recorrente pertence à família de AA e a Recorrida à família de BB, e que estes foram casados entre si.
DD. Da matéria de facto considerada provada resulta que a Recorrente solicitou a prestação de serviços e fornecimento de bens junto da Recorrida e esta cumpriu as suas obrigações contratuais, tendo fornecido os bens encomendados e prestado os serviços solicitados, para os quais a Recorrente não pagou o respetivo preço.
EE. Não há dúvidas de que há verdadeiramente uma relação jurídica entre as partes, na qual atuam em nome próprio.
FF. Ainda que assim não fosse e que se entendesse que AA tinha poder de sozinho influenciar diretamente ambas as partes, a prestação de serviços e os fornecimentos em causa são atos compreendidos no próprio comércio da sociedade – cfr. pontos 1 a 3 dos factos provados - aos quais se aplicaria o disposto no art.º 397.º, n.º 5 do CSC, que derroga o n.º 2 do mesmo art.º e que exige prova de que o contrato não foi celebrado no interesse da Recorrente e da Recorrida, mas exclusivamente para proporcionar uma vantagem a AA, causando prejuízo à Recorrente, que não contrataria nos mesmos termos com pessoa diversa da Recorrida, que estivesse em situação contratual análoga.
GG. Esta prova cabe, nos termos do art.º 342.º, n.º 2 do CC, à Recorrente, porque é quem invoca a nulidade, como facto impeditivo.
HH. Contudo, a Recorrente nada alegou a este respeito, conforme consta na página 18 da sentença recorrida, que não foi objeto de recurso.
II. Não merece por isso a sentença recorrida qualquer reparo.
DOS ALEGADOS EFEITOS DA DECISÃO DE NULIDADE DOS CONTRATOS CONTROVERTIDOS
JJ. O Tribunal a quo não fundamentou a sua decisão na dificuldade de apuramento das quantias a restituir em caso de nulidade.
KK. Como tal, também aqui não merece censura.
DO PEDIDO DE ADITAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
LL. A hipótese de AA ser ou não dono e beneficiário efetivo da Recorrida, não assume qualquer relevância, pelos motivos já expostos.
MM. Como tal, não deve ser objeto de análise e discussão, indeferindo-se o pedido da Recorrente.
Caso assim não se entenda, dos factos provados 8 e 9, assim como da documentação que esteve na base da sua prova, não resulta que AA seja ou tenha sido dono e beneficiário efetivo da Recorrida.
NN. Da referida documentação resulta tão só o que está elencado nos factos provados 8 e 9.
OO. As ações da A... Group foram objeto de contribuição no D..., por parte de BB.
PP. Após a dissolução, as ações não foram distribuídas por AA.
QQ. Durante a vigência do trust, os bens objeto das contribuições foram transmitidos para o trustee e não para os seus fundadores ou beneficiários.
RR. O trustee por sua vez, não tem qualquer vínculo obrigacional com os fundadores nem os beneficiários do trust, não podendo estes dar-lhe quaisquer ordens.
SS. A qualidade de beneficiário de um trust não significa só por si, que lhe seja distribuído algum benefício ou património.
TT. No caso concreto, a Recorrente não alegou em primeira instância que AA tivesse de facto tido algum benefício concreto com a sua qualidade de beneficiário do trust.
UU. Mesmo que se considerasse que AA poderia ser dono da Recorrida, pela sua qualidade de beneficiário do D..., então nunca poderia ser considerado o seu único dono, nem o dono maioritário, pois o trust tinha como beneficiários também BB, os seus três filhos e demais descendentes.
VV. Do mesmo modo, por ter sido beneficiário do trust não se pode concluir que foi beneficiário da Recorrida, porquanto não ficou demonstrado, nem foi sequer alegado nos presentes autos que AA tivesse recebido algum benefício por parte da Recorrida.
WW. Pelo que, deve improceder o pedido de aditamento da matéria de facto provada apresentado pela Recorrente.
DA AMPLIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
XX. A Recorrida requer a ampliação do âmbito do recurso, ao abrigo do disposto no art.º 636.º, n.º 2 do CPC pois, não obstante a sentença recorrida ter condenado a Recorrente ao pagamento do valor peticionado, considerou provado no ponto 11 dos factos provados da sentença recorrida, que AA é um administrador de facto da Recorrida, e em sede de aplicação do Direito concluiu que o D... permitia que ele fosse um dos detentores da Recorrida, o que não é, cumprindo por isso proceder à sua reapreciação, uma vez que foi produzida prova suficiente para se concluir que o AA não é um dos detentores da Recorrida e que também não é, nem nunca foi seu administrador de facto.
YY. Nenhuma das testemunhas da Recorrente concretizou atos que fossem do seu conhecimento pessoal, e que efetivamente pudessem demonstrar a administração de facto por AA.
ZZ. Todos os depoimentos foram conclusivos e genéricos, não tendo sido enumerado em momento algum, um facto que permitisse demonstrar que algum deles tivesse recebido ordens de AA enquanto administrador da Recorrida e não da Recorrente.
AAA. Ainda que tivesse sido feita tal concretização, as testemunhas que eram à data funcionárias da Recorrida atestaram que nunca receberam ordens de AA, muito menos relacionadas com a Recorrida.
BBB. Ora, a ter sido administrador de facto da Recorrida na parte operacional, não deveria este ter dado ordens aos funcionários da Recorrida, nomeadamente ao encarregado geral desta, HH, que coordena todos os seus serviços operacionais?
CCC. É que aos funcionários da Recorrente é normal que desse ordens, pois era seu administrador.
DDD. Dos depoimentos de todas as testemunhas da Recorrida, HH, II e JJ, verifica-se que todos eles negaram de forma convicta, alguma vez ter recebido ordens de AA.
EEE. A testemunha HH, encarregado geral da parte operacional da Recorrida, esclareceu que nunca recebeu ordens de AA.
FFF. Falava com AA sobre os negócios entre a Recorrida e a Recorrente e outros temas que pudessem ser do interesse de ambas as sociedades, tendo dado como exemplo, o facto de quando abria serventias para acessos a barreiros da Recorrida, que fossem contínuos com barreiros da Recorrente, tentava saber se nesse ano a Recorrente também iria aceder ao barreiro contínuo, para dessa forma colaborarem na abertura de serventias que servissem os interesses de ambas as partes.
GGG. Mais referiu ainda esta testemunha, que sempre que tinha dúvidas relativas ao seu trabalho, falava com BB e não com AA.
HHH. O que foi confirmado pela testemunha II.
III. Acresce que, as visitas de AA às instalações da Recorrida para falar com BB, não são demonstrativas da sua pretensa administração de facto.
JJJ. É normal, num mundo real, que o marido apareça nas instalações da empresa administrada pela sua mulher, sobretudo quando esta lá está.
KKK. Estranho seria se o marido, ao longo de todos estes anos em que estiveram casados (desde os anos 80), nunca se tivesse deslocado às instalações da sociedade em que a sua mulher era administradora e trabalhava.
LLL. Da documentação junta aos autos resulta tão só que a Recorrida é detida integralmente pela A... Group SA.
MMM. 95% das ações da A... Group SA foram detidas pelo fundo D... entre 14.08.2012 e 2017 (datas de constituição e dissolução do fundo).
NNN. O D... teve como BB e AA, os quais, eram casados entre si, no regime da comunhão de adquiridos.
OOO. AA nunca foi titular da A... Group ou mesmo da Recorrida, nem tirou qualquer benefício na repartição das ações na data da dissolução do fundo de investimento.
PPP. Como tal, do mesmo modo que por esta via não é possível considerar que AA seja administrador de facto da Recorrida, também não é possível concluir que seja seu detentor.
QQQ. As testemunhas demonstraram inclusivamente a autonomia existente entre as duas sociedades e a sua relação comercial de anos.
RRR. A Recorrente não fez prova de que AA fosse um dos detentores ou administradores da Recorrida.
SSS. Não obstante, se dúvidas existem, estamos perante um facto impeditivo, e como tal, era à Recorrente que incumbia a prova da administração de facto e detenção da Recorrida por AA, conforme art.º 342.º, n.º 2 do CC.
TTT. Em caso de dúvida, a questão é decidida contra a parte a quem o facto aproveita, conforme art.º 414º do CPC.
UUU. Face ao supra exposto, deve ser alterada a resposta dada ao ponto 11 dos factos provados, passado este a constar no elenco de factos não provados.
VVV. Mais, não constando como facto provado que AA fosse detentor da Recorrida, deve ser eliminada a conclusão no início da página 16 da sentença “Repare-se que a A. era detida por uma empresa de direito Luxemburguês, que por seu turno era detida por um veículo fiduciário - o D... - desde 14.09.2012, o que permitia que AA ainda que de forma não visível fosse um dos detentores deste grupo empresarial.”
WWW. É necessário destacar que a Recorrida nada tem que ver com a destituição de AA e a sua conduta enquanto administrador da Recorrente.
XXX. Quaisquer eventuais danos por má gestão apenas podem ser imputáveis à própria administração da Recorrente e nunca à Recorrida, nem a qualquer outro terceiro.
YYY. Motivo pelo qual, a Recorrida nem foi parte na ação de destituição.
Termos em que:
a) Deve ser admitido o pedido de retificação de lapso material;
b) Deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente e mantida, na íntegra, a decisão recorrida;
c) Na eventualidade de obter vencimento o fundamento do presente recurso, requer-se desde já que seja admitida a ampliação do âmbito do recurso, devendo ser reapreciada a matéria de facto elencada no ponto 11 dos factos considerados provados, alterando-se para não provada e mantendo-se a condenação da Recorrente, assim que AA era um dos detentores da Recorrida.

A Ré respondeu à ampliação do objeto do recurso, defendendo a sua improcedência.

                                               *

1. Do objeto do recurso
Tendo em consideração as conclusões das alegações das partes e o conteúdo da decisão recorrida são as seguintes as questões que integram o objeto do presente recurso:
- Devem ser retificados os lapsos materiais da sentença recorrida apontados pela Autora, na resposta às alegações de recurso?
- Os contratos celebrados entre a Autora e a Ré são nulos, ao abrigo do disposto no art.º 397º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais, por terem sido materialmente celebrados entre a Ré, da qual era administrador AA, e a Autora, da qual o mesmo AA era, à data, dono e beneficiário?
- Recaía sobre a Autora o ónus da prova das circunstâncias que, conforme o disposto no art.º 397º, n.º 5, do Código das Sociedades Comerciais, obstam a que estejam feridos de nulidade os negócios referidos no n.º 2 do mesmo número?
- As dificuldades em determinar os efeitos da declaração de nulidade daqueles negócios não obsta a que a mesma seja decretada?
Subsidiariamente, para a hipótese do recurso com base na factualidade julgada provada improceder:
- Deve ser aditada à matéria de facto provada que é uma decorrência dos factos provados 8 e 9 que AA era, ao tempo da celebração dos Contratos Controvertidos, dono e beneficiário efetivo da Autora.
Subsidiariamente, para a hipótese de o recurso proceder com base na factualidade julgada provada:
- O conteúdo do ponto 11 da matéria de facto provada deve ser considerado não provado?

                                                           *

2. Os factos
2.1. Retificação de lapsos materiais
A Autora na resposta às alegações requereu a correção dos seguintes lapsos de escrita constantes da sentença recorrida:
- No ponto 13 dos factos provados, o Tribunal a quo faz referência à Autora por lapso, quando pretende referir a Ré, conforme se confirma pelo sentido da sua fundamentação.
- Na exposição da fundamentação do facto 11º é feita referência por lapso às testemunhas da Ré, quando se pretendia referir as testemunhas Autora e vice-versa, conforme se verifica pela exposição que se segue na sentença recorrida.
Tem razão a Autora, resultando, com evidência os lapsos apontados do contexto, pelo que importa proceder à sua correção, nos termos do art.º 614º, n.º 2, do C. P. Civil, devendo passar a constar:
- Do facto provado n.º 13 que AA foi administrador da Ré desde 1975, tendo sido lavrado em 02 de Outubro de 2017, registo de cessação de funções como membro do conselho de administração da R. e na qualidade de vice-presidente, tendo por causa “destituição” na sequência de deliberação da assembleia geral da Ré datada de 29 de Setembro de 2017.
- Da fundamentação do facto 11 que as testemunhas arroladas pela Autora negam tal facto ao contrário das testemunhas arroladas pela Ré.

                                                           *

2.2. Os factos provados e não provados
Os factos provados neste processo são, pois, os seguintes:
1- Desde data não concretizada, entre a Autora, que se dedica à extração e exploração de argilas especiais, comercialização de matérias-primas para cerâmicas, compra e venda de imóveis, bem como prestação e serviços de transporte rodoviário nacional e internacional, e a Ré que tem por objeto a prospeção, pesquisa, exploração e comercialização de depósitos minerais especialmente argilas destinadas à indústria cerâmica e venda de energia elétrica, foram estabelecidas relações de natureza comercial no âmbito das respetivas atividades.
2- Por conta da relação indicada em 1, a Autora forneceu à Ré durante o ano de 2017 matérias primas e prestou-lhe serviços de mistura de matérias primas e serviços de transporte.
3- Nessa sequência e por conta do referido em 2, a Autora emitiu e enviou à Ré que os recebeu, os documentos que suportavam aqueles fornecimentos e prestações de serviços, a saber:
i- fatura nº ...30 emitida em 08 de Julho de 2017 e com data de vencimento a 06 de Outubro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 10.793,25;
ii- fatura nº ...31 emitida em 08 de Julho de 2017 e com data de vencimento a 06 de Outubro de 2017, referente a acertos de carga das argilas, com o valor total de € 4.27,70;
iii- fatura nº ...49 emitida em 15 de Julho de 2017 e com data de vencimento a 13 de Outubro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 11.584,59;
iv- fatura nº ...50 emitida em 15 de Julho de 2017 e com data de vencimento a 13 de Outubro de 2017, referente a transportes de resíduos, com o valor total de € 181,07;
v- fatura nº ...51 emitida em 15 de Julho de 2017 e com data de vencimento a 13 de Outubro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 10.595,54;
vi- fatura nº ...67 emitida em 21 de Julho de 2017 e com data de vencimento a 19 de Outubro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 4.970,21;
vii- fatura nº ...68 emitida em 21 de Julho de 2017 e com data de vencimento a 19 de Outubro de 2017, referente a transportes de resíduos, com o valor total de € 184,38;
viii- fatura nº ...76 emitida em 24 de Julho de 2017 e com data de vencimento a 22 de Outubro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 3.100,26;
ix- fatura nº ...85 emitida em 31 de Julho de 2017 e com data de vencimento a 29 de Outubro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 9.632,67;
x- fatura nº ...93 emitida em 31 de Julho de 2017 e com data de vencimento a 29 de Outubro de 2017, referente a vários tipos de argilas, e misturas de produtos, com o valor total de € 9.166,76;
xi- fatura nº ...94 emitida em 31 de Julho de 2017 e com data de vencimento a 29 de Outubro de 2017, referente a transportes de resíduos, com o valor total de € 562,29;
xii- fatura nº ...02 emitida em 31 de Julho de 2017 e com data de vencimento a 29 de Outubro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 1.746,22;
xiii- fatura nº ...19 emitida em 04 de Agosto de 2017 e com data de vencimento a 02 de Novembro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 8.382,57;
xiv- fatura nº ...22 emitida em 07 de Agosto de 2017 e com data de vencimento a 05 de Novembro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 2.817,54;
xv- fatura nº ...33 emitida em 11 de Agosto de 2017 e com data de vencimento a 09 de Novembro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 5.819,72;
xvi- fatura nº ...40 emitida em 24 de Agosto de 2017 e com data de vencimento a 22 de Novembro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 13.372,63;
xvii- fatura nº ...41 emitida em 24 de Agosto de 2017 e com data de vencimento a 22 de Novembro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 8.800,04;
xviii- fatura nº ...42 emitida em 24 de Agosto de 2017 e com data de vencimento a 22 de Novembro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 16.114,38;
xix- fatura nº ...55 emitida em 25 de Agosto de 2017 e com data de vencimento a 23 de Novembro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 6.023,09;
xx- fatura nº ...56 emitida em 25 de Agosto de 2017 e com data de vencimento a 23 de Novembro de 2017, referente a transportes de resíduos, com o valor total de € 175,00;
xxi- fatura nº ...63 emitida em 25 de Agosto de 2017 e com data de vencimento a 23 de Novembro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 4.263,13;
xxii- fatura nº ...66 emitida em 31 de Agosto de 2017 e com data de vencimento a 29 de Novembro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 6.343,77;
xxiii- fatura nº ...67 emitida em 31 de Agosto de 2017 e com data de vencimento a 29 de Novembro de 2017, referente a argila, com o valor total de € 1.667,93;
xxiv- fatura nº ...79 emitida em 31 de Agosto de 2017 e com data de vencimento a 29 de Novembro de 2017, referente a vários tipos de argilas, doseamentos e misturas, com o valor total de € 22.410,71;
xxv- fatura nº ...80 emitida em 31 de Agosto de 2017 e com data de vencimento a 29 de Novembro de 2017, referente a transportes de resíduos, com o valor total de € 195,71;
xxvi- fatura nº ...92 emitida em 31 de Agosto de 2017 e com data de vencimento a 29 de Novembro de 2017, referente a argila, com o valor total de € 98,15;
xxvii- fatura nº ...03 emitida em 07 de Setembro de 2017 e com data de vencimento a 06 de Dezembro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 4.727,33;
xxviii- fatura nº ...15 emitida em 08 de Setembro de 2017 e com data de vencimento a 07 de Dezembro de 2017, referente a vários tipos de argilas, doseamentos e misturas, com o valor total de € 16.364,20;
xxix- fatura nº ...16 emitida em 08 de Setembro de 2017 e com data de vencimento a 07 de Dezembro de 2017, referente a transportes de resíduos, com o valor total de € 355,52;
xxx- fatura nº ...38 emitida em 15 de Setembro de 2017 e com data de vencimento a 14 de Dezembro de 2017, referente a transportes de resíduos, com o valor total de € 298,80;
xxxi- fatura nº ...45 emitida em 19 de Setembro de 2017 e com data de vencimento a 18 de Dezembro de 2017, referente a vários tipos de argilas e transportes, com o valor total de € 7.053,02;
xxxii- fatura nº ...46 emitida em 19 de Setembro de 2017 e com data de vencimento a 18 de Dezembro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 2.792,22;
xxxiii- fatura nº ...64 emitida em 23 de Setembro de 2017 e com data de vencimento a 22 de Dezembro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 6.032,26;
xxxiv- fatura nº ...65 emitida em 23 de Setembro de 2017 e com data de vencimento a 22 de Dezembro de 2017, referente a vários tipos de argilas, doseamentos e misturas, com o valor total de € 11.610,77;
xxxv- fatura nº ...66 emitida em 23 de Setembro de 2017 e com data de vencimento a 22 de Dezembro de 2017, referente a transportes de resíduos, com o valor total de € 297,72;
xxxvi- fatura nº ...87 emitida em 30 de Setembro de 2017 e com data de vencimento a 29 de Dezembro de 2017, referente a vários tipos de argilas, doseamentos e misturas, com o valor total de € 10.904,97;
xxxvii- fatura nº ...88 emitida em 30 de Setembro de 2017 e com data de vencimento a 29 de Novembro de 2017, referente a argila, com o valor total de € 1.317,35;
xxxviii- fatura nº ...89 emitida em 30 de Setembro de 2017 e com data de vencimento a 29 de Dezembro de 2017, referente a vários tipos de argilas, com o valor total de € 5.601,84;
xxxix- fatura nº ...01 emitida em 06 de Outubro de 2017 e com data de vencimento a 04 de Janeiro de 2018, referente a vários tipos de argilas, doseamentos e misturas com o valor total de € 8.523,83;
xl- fatura nº ...02 emitida em 06 de Outubro de 2017 e com data de vencimento a 04 de Janeiro de 2018, referente a transportes de resíduos, com o valor total de € 107,89;
xli- fatura nº ...20 emitida em 13 de Outubro de 2017 e com data de vencimento a 11 de Janeiro de 2018, referente a vários tipos de argilas, doseamentos e misturas com o valor total de € 7.422,90;
xlii- fatura nº ...21 emitida em 13 de Outubro de 2017 e com data de vencimento a 11 de Janeiro de 2018, referente a transportes de resíduos, com o valor total de € 91,52;
xliii- fatura nº ...43 emitida em 20 de Outubro de 2017 e com data de vencimento a 18 de Janeiro de 2018, referente a transportes de resíduos, com o valor total de € 217,38;
xliv- fatura nº ndv ...4 emitida em 31 de Julho de 2017 e com data de vencimento a 29 de Outubro de 2017, referente a transportes de resíduos, com o valor total de € 778,58;
xlv- fatura nº ndv ...7 emitida em 30 de Setembro de 2017 e com data de vencimento a 29 de Dezembro de 2017, referente a transportes de resíduos, com o valor total de € 659,12;
xlvi- fatura nº ndv ...9 emitida em 20 de Outubro de 2017 e com data de vencimento a 18 de Janeiro de 2018, referente a transportes de resíduos, com o valor total de € 218,59.
4- Por conta da relação comercial estabelecida entre Autora e Ré e acima aludida, a primeira emitiu a favor da segunda os seguintes documentos:
i- nota de crédito ncv ...7 no valor de € 1.610,02;
ii- nota de crédito ncv ...3 no valor de € 196,31;
iii- nota de crédito ncv ...7 no valor de € 729,05;
iv- nota de crédito ncv ...8 no valor de € 215,25;
5- A Ré após vencimento das indicadas faturas, e interpelada para o efeito não pagou à A. os montantes a que se alude no facto 4º.
6- AA à data dos factos indicados em 1 a 4 era casado no regime de comunhão de adquiridos com BB.
7- No período compreendido entre 2014 e 2017 constavam inscritos no registo comercial como administradores da Autora:
- BB - presidente;
- KK - vogal;
- LL – vogal.
8- A Autora era detida naquele período - 2014/2017 - pela A... Group S.A. sociedade de direito Luxemburguês.
9- Por seu turno, 95% do capital da entidade referida em 8 era detido naquela data por um veículo fiduciário - D... - desde 14 de Setembro de 2012, com uma contribuição em dinheiro de € 5.000,00 por parte de AA e por 95% das ações da A... Group S.A. por parte da sua mulher, fundo este do qual AA e BB eram os primeiros beneficiários (fundadores), sendo os seus filhos beneficiários finais.
10- Extinto o fundo em 2017, 95% das ações da A... Group e detidas pelo mesmo passaram a ser detidas por BB, MM, MM e NN.
11- AA agiu no período a que se alude em 8 como administrador de facto da Autora, dando ordens em nome desta, mormente ao que se refere à parte operacional de tal entidade.
12- Para o triénio 2015/2017, constam na certidão do registo comercial da Ré como seus administradores:
- OO – presidente
- PP, QQ, RR, SS, EE e TT, todos eles vogais.
13- AA foi administrador da Ré desde 1975, tendo sido lavrado em 02 de Outubro de 2017, registo de cessação de funções como membro do conselho de administração da Ré e na qualidade de vice-presidente, tendo por causa a “destituição”, na sequência de deliberação da assembleia geral da Ré datada de 29 de Setembro de 2017.
14- A Ré pertence a um grupo empresarial da indústria da cerâmica portuguesa e internacional – o denominado “Grupo C...” –, que é liderado pela sociedade holding C..., S.A. (“C...”).
15- Até 2013 AA era o único sócio da C..., o que deixou de ser a partir daquela data já que a C... foi objeto de uma Restruturação Financeira, protagonizada pelo Fundo de Reestruturação Empresarial, FCR (“FRE”), que se dedica à reestruturação de empresas endividadas e que, através de uma sociedade por si detida, a F..., SGPS, S.A. (“F...”), adquiriu 50% do capital social da C....
16- Por sua vez, a C... é titular de 71,12% do capital social da Ré.
17- No instrumento de Distribuição, Cessação e Indemnização de D..., referido em 10, e subscrito por G... (...) Limited, na qualidade de Sociedade Fiduciária e por BB, Dr. AA, LL, GG e KK, na qualidade de Beneficiários consta o seguinte, além do mais:
A. O presente instrumento é suplementar a:
(i) Um contrato Fiduciário, com data de 14 de agosto de 2012 e celebrado entre a Sociedade Fiduciária, BB e Dr. AA, como Fundadores (“Instrumento Fiduciário”) pelo qual foi estabelecido um fundo fiduciário conhecido por D... (“Fundo”);
(ii) Um instrumento de Contribuição com data de 14 de agosto de 2012 e celebrado entre o Dr. AA na capacidade de Contribuinte e a Sociedade  Fiduciária;
(iii) Um contrato de Compra e Venda de Ações com data de setembro de 2012 e celebrado entre a BB como vendedora e pela sociedade Fiduciária como compradora; e
todos os documentos a ele anexos.
B. A sociedade fiduciária é a atual e única fiduciária do Fundo.
C. Nos termos da alínea (q) da cláusula 1 (1) e do Anexo I do Instrumento Fiduciário, os Beneficiários são os beneficiários do Fundo.
D Nos termos da alínea (a) da cláusula 5(1) do Instrumento Fiduciário, a Sociedade Fiduciária tem o poder de pagar, transferir ou aplicar a totalidade ou parte(s) do capital do Fundo Fiduciário a ou em benefício de um ou mais Beneficiários nas partes e em proporções e geralmente de forma que a Sociedade Fiduciária, na sua discrição absoluta, considere apropriada (“Poder de Distribuição”)
 (...)
2. Distribuição
2.1. No exercício do Poder de Distribuição, pelo presente instrumento a Sociedade Fiduciária distribui o Fundo Fiduciário dos Beneficiários da seguinte forma:
(a) 1.488.553 ações da A... Group, S.A., uma sociedade constituída de acordo com a lei do Luxemburgo (“A...”), para BB;
(b) 58.375 ações da A... para GG;
(c) 58.375 ações da A... para KK; e
(d) 58.375 ações da A... para LL.
2.2. A sociedade Fiduciária confirma pelo presente instrumento que o Fundo será extinto a partir de agora [1].

Os factos não provados neste processo são os seguintes:
a) Os factos elencados em 2 e 3 corporizados nos negócios comerciais entre A. e R. foram autorizados por deliberação do conselho de administração e obtiveram parecer favorável do órgão de fiscalização.

*

3. O direito aplicável

3.1. A nulidade dos contratos
Na presente ação, com origem em processo de injunção, em que a Autora pretende que a Ré seja condenada a pagar-lhe o preço em dívida de diversos fornecimento de produtos e de prestação de serviços, suscita-se a questão de saber se os contratos celebrados entre a Autora e a Ré, no cumprimento dos quais aqueles fornecimentos de bens e prestações de serviços foram realizados, são nulos, nos termos do art.º 397º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, não sendo exigível o pagamento do respetivo preço.
A sentença recorrida entendeu que estes negócios não eram nulos porque os mesmos foram feitos no âmbito das atividades normais da A. e da R. e não foi alegado sequer que AA tivesse deles retirado pessoalmente qualquer vantagem, além de que os efeitos da nulidade nunca seriam operacionais.
A Recorrente sustentou que tendo AA, administrador da Ré o domínio por “interpostas pessoas”, da Autora, se verificava uma situação enquadrável no n.º 2, do art.º 397º do Código das Sociedades Comerciais, pelo que os negócios celebrados entre as sociedades eram nulos.
A realização de negócios entre os representantes de uma sociedade e a própria sociedade representada é potencialmente geradora de um conflito de interesses, pelo que, desde cedo, se procurou estabelecer restrições à licitude desses negócios, de modo a proteger a sociedade, cujos interesses, face à liberdade de gestão dos seus administradores, poderiam ser preteridos em detrimento dos interesses destes.
Entre nós, a Lei das Sociedades Anónimas de 1867 já dispunha no art.º 19.º que era expressamente proibido aos mandatários destas sociedades negociar por conta própria direta ou indiretamente, com a sociedade, cuja gerência lhes estiver confiada, salvos os casos de especial autorização, concedida expressamente em assembleia geral, o que foi reafirmado no § 3.º, do art.º 173.º, do Código Comercial de 1888.
No art.º 397º do Código das Sociedades Comerciais, densificando o dever de lealdade dos administradores consagrado no art.º 64º, n.º 1, b), do mesmo diploma, procurou estabelecer-se uma teia de mecanismos de controle dos negócios que a sociedade possa celebrar com os seus administradores, direta ou indiretamente.
Assim, depois de se estabelecer no n.º 1 uma proibição absoluta de serem realizados determinados tipos de negócios entre a sociedade e os seus administradores, determinou-se no n.º 2 que são nulos os contratos celebrados entre a sociedade e os seus administradores, diretamente ou por pessoa interposta, se não tiverem sido previamente autorizados por deliberação do conselho de administração, na qual o interessado não pode votar, e com o parecer favorável do conselho fiscal ou da comissão de auditoria.
Os negócios proibidos por este dispositivo são aqueles que são celebrados pela sociedade, independentemente do administrador que a representa nesse negócio, diretamente com um qualquer seu administrador [2], ou indiretamente com este, outorgando no contrato, uma interposta pessoa, salvo se esses negócios tiverem sido previamente autorizados por deliberação do conselho de administração [3], sem a participação do administrador interessado no negócio, com o parecer favorável do conselho fiscal ou da comissão de auditoria.
Estamos perante uma proibição de uma conduta de perigo abstrato, não sendo necessário provar que esse negócio beneficiou direta ou indiretamente o administrador da sociedade, nem que esta foi prejudicada com esse negócio. Constata-se apenas uma situação de conflito de interesses, existindo o risco, que importa prevenir através de exigência da autorização, de serem preteridos os interesses da sociedade em favor dos interesses do administrador desta, que é a contraparte (direta ou indiretamente) nesse negócio.
No presente caso, foram partes nos contratos cuja nulidade é invocada pela Ré B... S.A., ela própria, na qualidade de compradora de bens e beneficiária de serviços, e a Autora, A... S.A., na qualidade de vendedora e prestadora desses serviços.
Efetivamente, AA, na época da celebração dos contratos em causa, era um dos administradores da Ré e esta alega que esse mesmo Administrador era a contraparte indireta desses contratos, uma vez que era ele quem, na altura da realização dos negócios aqui em causa, tinha o “domínio” da A... S.A.
A determinação das situações em que ocorre uma “intervenção” indireta do administrador de uma sociedade, através de “interposta pessoa”, nos negócios com outra sociedade, atrás da qual se “esconde” aquele administrador, e que o art.º 397º, n.º 2, do Código das Sociedade proíbe, por se tratarem de uma fraude a este dispositivo, revela algumas dificuldades [4].
Uma leitura expansiva deste preceito, por um lado, irá gerar um elevado grau de insegurança quanto à validade dos negócios celebrados pela sociedade, podendo atingir injustamente terceiros desconhecedores do vício que afetava o negócio, mas, por outro lado, incentiva uma boa prática de aprovação dos negócios da sociedade pelo conselho de administração, em casos de dúvida quanto às relações de algum dos seus administradores com a contraparte.
Coutinho de Abreu propõe que se considere que o negócio é celebrado pelo administrador “por interposta pessoa”, na posição da contraparte, não só nos casos referidos no art.º 579º, n.º 2, do C. Civil [5], a propósito da proibição de cessão de créditos litigiosos a juízes, magistrados do Ministério Público, funcionários de justiça e mandatários judiciais  - cônjuge do inibido, pessoa de quem ele seja herdeiro presumido ou pessoa com ele tenha acordado retransmitir-lhe os benefícios que resultaram do negócio -, mas também quando o interveniente no negócio é pessoa que o administrador pode influenciar diretamente, dando como exemplo uma sociedade em que ele é sócio maioritário [6].
Esse exemplo é também apontado, por José Ferreira Gomes [7].
Já João Sousa Gião [8] estende o âmbito da proibição do n.º 2, do art.º 397º, a todas as situações em que haja uma interposição de interesses dos administradores, não sendo necessário que o administrador da sociedade tenha uma intervenção direta ou indireta no negócio, sendo suficiente que dele resulte a satisfação de um seu interesse pessoal.
Pedro Caetano Nunes [9], admitindo o recurso à casuística do n.º 2, do art.º 579º, do Código Civil, para preencher o conceito de interposta pessoa utilizado no art.º 397.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, entende que a extensão a outras situações da nulidade do negócio jurídico só deve ser efetuada nos casos em que há uma elevada probabilidade de existir um conflito de interesses, pelo que, quando o negócio é entre sociedades, este só necessitará de ser autorizado quando um dos administradores de uma das partes outorgantes tiver uma posição dominante na estrutura social da contraparte.
Alexandre Sobral Martins [10] é mais restritivo, exigindo que a contraparte que negoceia com a sociedade não tenha um interesse próprio no negócio, sendo um mero “testa de ferro” - interposição fictícia - ou mandatário sem representação - interposição real - de um dos administradores da sociedade, servindo-se para tanto da noção de “interposta pessoa” adiantada por Beleza dos Santos [11]: dizem-se interpostas pessoas as que figuram nos negócios jurídicos como simples intermediários entre aqueles a quem esses atos interessam diretamente e sem terem qualquer interesse próprio nos atos que realizam. O seu fim é apenas permitir que se efetuem indiretamente, por seu intermédio, os negócios jurídicos que se não querem ou não podem diretamente realizar.
Daí concluindo que não é possível dizer que o negócio é realizado por “interposta pessoa” quando apenas se apura que o administrador da sociedade retira uma vantagem pessoal indireta da realização desse negócio, nomeadamente, quando é sócio dominante da contraparte.
No acórdão de 10.9.2020 do S. T. J. [12], após se ter recenseado as diferentes posições doutrinas sobre o âmbito de aplicação do impedimento previsto no art.º 397º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, numa posição próxima da sustentada por Alexandre Soveral Martins, entendeu-se o seguinte:
Sem dúvida que nele se incluem, com as devidas adaptações, as pessoas indicadas no art.º 592º, nº 2, do CC (norma que define o que seja pessoa interposta para efeitos da proibição da cessão de direitos litigiosos: “o cônjuge do inibido, a pessoa de quem este seja herdeiro presumido e o terceiro, de acordo com o inibido, para o cessionário transmitir a este a coisa ou direito cedido”). Mas, para além destas, não se pode deixar de incluir nesse conceito outras hipóteses em que os interesses do administrador inibido se identificam ou se (con)fundem com os interesses da pessoa (ou entidade) com a qual a sociedade por ele administrada contrata;
Ainda que não seja fácil concretizar todas as hipóteses em que isso pode suceder, afigura-se indubitável ser relevante – para efeitos de qualificação como interposta pessoa – aquela situação em que um negócio é celebrado entre a sociedade administrada e outra sociedade totalmente dominada, direta ou indiretamente, pelo sujeito inibido, desde que, cumulativamente, se verifique que esse mesmo sujeito utiliza a sociedade que domina como um autêntico alter ego.
Já o acórdão do S. T. J. de 10.5.2021[13], preferiu a posição sustentada por Coutinho de Abreu, entendendo que a nulidade, que afeta os negócios celebrados entre a sociedade e um dos seus administradores, estende-se, pois, aos negócios celebrados por interposta pessoa, considerando-se como tal as pessoas referidas no art.º 579º, n.º 2, do CC, e, de acordo com aquela que consideramos ser a melhor doutrina, todas as outras pessoas, singulares ou coletivas, que o administrador possa influenciar directamente. Estará neste caso, conforme defende Coutinho de Abreu, uma sociedade de que o administrador seja sócio maioritário.
No acórdão do S. T. J. de 16.11.2021 [14], que se pronunciou sobre a nulidade de outros negócios outorgados precisamente por esta mesma Autora com outra sociedade, da qual AA também era seu administrador, apesar de se ter subscrito a posição e fundamentação do anterior acórdão do mesmo Tribunal de 10.9.2020, entendeu-se que embora a doutrina (que atrás se citou) não preveja especificamente a hipótese do controlo da sociedade autora (interposta pessoa) pelo administrador da ré, através do cônjuge, que detém a posição maioritária dessa sociedade (aludindo, como se viu, separadamente, à figura do cônjuge como pessoa interposta ou à sociedade contraparte detida maioritariamente pelo administrador da ré), tendemos a concordar com a posição da Relação que figura como pessoa interposta a sociedade controlada pelo cônjuge do administrador da ré, uma vez que também aqui o administrador pode condicionar a administração da sociedade através da influência que exerce sobre o seu cônjuge, detentor da maioria do capital da sociedade interposta. A possibilidade de influenciar a pessoa interposta também aqui se verifica (porventura, de forma menos nítida e mais atenuada).
Ao conferir relevo ao poder de influência do administrador sobre a contraparte, também este aresto acaba por aderir à tese adiantada por Coutinho de Abreu.
Independentemente de qual seria a solução mais aconselhável de iure condendo, o art.º 397º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, apenas fulmina com a drástica sanção da nulidade os negócios jurídicos não autorizados feitos pela sociedade em que um dos seus administradores é a contraparte ou, apesar de nele não intervir diretamente, é ele o verdadeiro interessado na realização desse negócio, sendo a sua vontade que, em concordância com a vontade da sociedade da qual é administrador, o determinaram. A interposição simulada - simulação relativa subjetiva - ou real de pessoas - relação fiduciária entre o administrador e a “pessoa interposta”, como o mandato sem representação - não evita a necessidade de o negócio jurídico ter que ser autorizado por todo o conselho de administração.
Não é, pois, suficiente a existência de um potencial conflito de interesses entre a sociedade e um dos seus administradores, em resultado dos efeitos do negócio jurídico celebrado poderem vir a repercutir-se reflexamente na esfera jurídica deste último, para que a autorização do conselho de administração seja exigível, sob pena de criarmos uma extensa e insuportável área de incerteza que afetaria quer a sociedade, quer o terceiro que com ela negociava, sobre a validade dos negócios jurídicos acordados, por desconhecimento de todos os interesses de todos os administradores da sociedade. 
Revela-se também excessiva a extensão do conceito de “interposta pessoa” a todos aqueles sobre os quais os administradores da sociedade têm um poder de influência, proposta por Coutinho de Abreu, com fundamento numa aplicação analógica inicial do disposto no art.º 579º, n.º 2, do C. Civil, que ao proibir a cessão de créditos litigiosos a juízes, magistrados do Ministério Público, funcionários de justiça e mandatários judiciais, mesmo quando estes intervêm por interposta pessoa, estabelece a presunção legal iuris et iure que o cônjuge do inibido, a pessoa de quem ele seja herdeiro presumido são “interpostas pessoas”, além da pessoa com ele tenha acordado retransmitir-lhe os benefícios que resultaram do negócio [15].
Se a aplicação analógica, do disposto no n.º 2, do art.º 579º do Código Civil, pelo paralelismo das situações, se revela admissível, considerando-se interposta pessoa presumida o cônjuge do administrador e a pessoa de quem ele seja herdeiro [16], por presunção legal, atendendo não só à natural proximidade dessas pessoas, mas também à comunicação atual - a comunhão conjugal - ou futura - a transmissão mortis causa - de patrimónios, já a extensão a todos os casos em que os administradores têm um poder de influência sobre a contraparte da sociedade, se permite o funcionamento de presunções judiciais nos casos concretos, quanto à existência de um caso de interposição real ou fictícia de pessoas, não permite generalizar a presunção legal iuris et iure, analogicamente aplicável aos negócios entre a sociedade e os seus administradores, por interposta pessoa, a todas as situações em que exista uma relação de influência entre qualquer um desses administradores e a contraparte negocial da sociedade. Também essa generalização seria insuportável para a segurança e certeza dos negócios jurídicos.
Assim, relativamente aos negócios celebrados pela sociedade com outras sociedades das quais os seus administradores são sócios, hipótese que se encontra em equação neste caso, em concordância com a opinião de Alexandre Soveral Martins e o citado acórdão do S. T. J. de 10.9.2020, não é suficiente  que um dos administradores da sociedade seja sócio maioritário da contraparte, para que se entenda que esse administrador é um participante indireto nesse negócio [17]. Apesar de, atenta a sua qualidade de sócio ele poder vir a ser reflexamente beneficiado com o contrato celebrado pela “sua” sociedade com a sociedade da qual é administrador e de se encontrar numa posição em que, atenta a sua qualidade de sócio maioritário, tem o poder de influenciar a vontade negocial da “sua” sociedade, é necessário que se demonstre que essa intervenção resultou duma utilização abusiva da pessoa coletiva sociedade como um autêntico alter ego desse administrador, funcionando aquela como um mero veículo de intervenção negocial, ou seja como “interposta pessoa”. Só quando se justifique a utilização do instituto do levantamento ou desconsideração da personalidade coletiva [18] quando esta intervêm como testa de ferro, com o intuito de esconder a participação e o interesse do sócio maioritário na realização do negócio com a sociedade da qual é administrador, é que poderemos afirmar que esse administrador interveio no negócio por “interposta pessoa” [19]. E a justificação para a desconsideração da personalidade coletiva resultará do facto da intencionalidade que preside à atribuição dessa personalidade não se verificar em concreto, devendo imputar-se ao sócio a autoria dos atos negociais formalmente praticados pela pessoa coletiva [20].
Mas será que está provado, sequer, que AA tinha o “domínio” da A..., S.A., tal como pretende a Ré?
Quanto a este aspeto provou-se o seguinte:
- AA à data da celebração dos negócios em causa era casado no regime de comunhão de adquiridos com BB.
- A A..., S.A., era detida naquele período pela A... Group S.A., sociedade de direito Luxemburguês.
- Por seu turno, 95% do capital da A... Group S.A. era detido naquela data (desde 14 de setembro de 2012) por um veículo fiduciário neozelandês - D... -, constituído com uma contribuição em dinheiro de € 5.000,00, por parte de AA e por 95% das ações da A... Group S.A., por parte da sua mulher, fundo este do qual AA e BB eram os primeiros beneficiários (fundadores), sendo os seus filhos beneficiários finais.
- Extinto o fundo em 2017, 95% das ações da A... Group S.A., que eram detidas por esse Fundo, passaram a ser detidas:
- 1.488.553 ações por BB;
- 58.375 ações por GG;
- 58.375 ações por KK;
- 58.375 ações por LL.
Destes factos retira-se que, na altura da celebração dos contratos em causa, a única sócia da A..., S.A. era uma outra sociedade luxemburguesa, a A... Group S.A., a qual por sua vez tinha como sócio maioritário (95%) um Trust neozelandês – D..., o qual havia sido constituído precisamente com essas ações, pertencentes a BB, casada com AA, além de € 5.000,00, pertencentes a este último.
Assim, a confirmar-se a tese da Ré, não se verificaria a intervenção de uma só “interposta pessoa”, entre a Autora e o administrador da Ré, mas sim de três “interpostas pessoas” - AA teria o domínio de D... que, por sua vez, dominava a A... Group S.A., que, por seu turno, tinha o domínio da Autora, a qual celebrou os negócios com a Ré, administrada por AA.
Se as duas últimas relações de domínio estão inequivocamente confirmadas pela posição da A... Group, S.A., como única sócia da Autora, e da detenção pela D... de 95% das ações da A... Group, S.A., o alegado domínio de D... por AA, não é evidente.
Esta mesma situação já foi objeto de pronúncia pelo S. T. J., no referido acórdão proferido em 16.11.2021, em que estavam em causa outros negócios celebrados entre Autora e outra sociedade da qual AA também era administrador, tendo aí sido dito:
(...) o trust é “uma figura jurídica, própria do direito anglo-saxónico, que se define, no essencial, como uma relação fiduciária através da qual os bens são transmitidos a uma pessoa (trustee) para que esta os administre em benefício de um terceiro (beneficiário) e em conformidade com o objetivo estabelecido no ato constitutivo” (Ac. R.P. de 28.11.2017, proc. 1050/06.9TVPRT.P1, em www.dgsi.pt).
Porém, se o administrador pode ser designado pelos disponentes (fundadores), a verdade é que as suas obrigações são, em primeiro lugar, estabelecidas no ato constitutivo do trust (Maria João Tomé e Diogo Leite Campos, A propriedade fiduciária, 2014, págs. 43, 97 e 101). Não existe, em regra, um vínculo obrigacional entre o settlor (fundador) e o trustee (administrador): o settlor não pode dar instruções ou ordens ao fiduciário, ficando este apenas obrigado a seguir as diretrizes explanadas no ato constitutivo; mas também não existe um vínculo obrigacional entre o trustee e o beneficiário, pelo que também este sujeito não pode dar ou instruções ao fiduciário, com exceção da imposição da transmissão dos bens para a sua esfera jurídica e apenas nos casos em que semelhante direito lhe seja reconhecido (A. Barreto, Menezes Cordeiro Trust no Direito Civil, 2014, pág. 1018); o administrador pode portanto administrar os bens do trust sem necessidade de obter o consentimento dos beneficiários (Maria João Tomé e Digo Leite Campos, ob. cit. pág. 97).
O settlor (fundador) e os beneficiários perdem, assim, os poderes de administração e de disposição sobre os bens transferidos para o trustee (administrador), sendo que, em regra, o trustee tem o poder de livremente dispor dos bens constituídos em trust ( cfr. ob. cit., págs. 96 e 101).
Neste quadro, se é possível conjeturar a influência direta na administração de uma sociedade terceira (interposta pessoa) cujo capital é maioritariamente (em cerca de 84%) detido pelo cônjuge do administrador da sociedade, já não se mostra tão evidente a influência dos beneficiários na administração do trust, atento o perfil de independência da figura do administrador nem, por essa via, o condicionamento da administração da sociedade autora.
Daí que, atendendo aos traços característicos da figura do trust, competisse à ré alegar e provar que o AA e/ou a mulher - que nem como disponentes ou settlors (fundadores) nem como beneficiários, podiam, em regra, condicionar os atos de administração do trust - tinham a possibilidade de influenciar a administração do trust (relativamente à gestão e à disposição das ações), mediante o ato constitutivo respetivo (que podia prever, por exemplo, a indisponibilidade das ações) ou através da influência direta sobre a pessoa do administrador do trust (que podia ter sido designado pelos beneficiários), em termos de, por essa via, se revelarem com capacidade para condicionar a administração da sociedade relativamente aos seus atos de gestão concreta, designadamente ao da celebração do negócio em causa.
Ora, a ré não demonstrou que, à data do negócio, o administrador da sociedade ré ou o seu cônjuge, apesar da sua posição de beneficiários do trust, pudessem, através desse veículo fiduciário, condicionar a administração do trust e, desse modo, a da sociedade autora.
Tal como não demonstrou que, à data do negócio, AA pudesse influenciar a sociedade autora, através do cônjuge, pelo facto de este deter uma participação maioritária do capital, uma vez que se desconhece a data da transmissão das acções do Fundo para CC e filhos.
Dos elementos colhidos resulta, portanto, que, nas duas situações possíveis (a da titularidade do Fundo ou a da posição maioritária do cônjuge no capital da sociedade autora) a ré não logrou provar o traço comum essencial entre as duas: a possibilidade de condicionamento da administração da sociedade autora através do cônjuge do administrador da ré, como beneficiária do Fundo ou como detentora maioritária do capital da autora
Estas razões que explicam quem tinha o domínio das ações da A... Group, S.A., tal como a insuficiência de prova ali verificada, são perfeitamente transponíveis para este caso, uma vez que estamos a falar do mesmo Trust e das mesmas ações, não sendo, pois, possível afirmar, como pretende a Recorrente, que, quer AA, quer mesmo o seu cônjuge, tinham o “domínio” de D..., em termos de poderem determinar a gestão dos bens que o integravam, sendo apenas os seus settlors e uns dos seus beneficiários.
 Não está, pois, minimamente, demonstrado que AA tivesse o poder de influenciar as decisões negociais da Autora, através de uma cadeia de posições de domínio, assim como não existe qualquer factualidade provada que revele que a Autora tenha contratado com a Ré, como mera “testa de ferro” ou mandatária sem representação de AA, com o intuito de esconder a participação e o interesse pessoal deste na realização de negócios com a Ré, sociedade da qual ele era um dos administradores.
Assim, independentemente da posição mais ou menos expansiva que se tenha relativamente ao âmbito de aplicação da proibição contida no art.º 397º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, não se apuraram factos que permitam enquadrar os negócios em causa no radar dessa proibição, pelo que revela-se correta a decisão recorrida de não considerar nulos tais negócios, embora com fundamentação não inteiramente coincidente.
Tendo-se considerado que a factualidade apurada não preenchia a situação prevista no n.º 2, do art.º 397.º, do Código das Sociedades Comerciais, fica prejudicada a verificação da exceção à proibição contida naquele preceito, prevista no n.º 5 do mesmo artigo, assim como fica prejudicada a apreciação dos efeitos da alegada nulidade.


3.2. Aditamento à matéria de facto provada
A Recorrente, para a hipótese da sua alegação de direito não ser julgada procedente com base nos factos provados, pediu que fosse aditado a estes que AA era, ao tempo da celebração dos Contratos Controvertidos, dono e beneficiário efetivo da Autora, uma vez que esse “facto” decorre dos factos já julgados provados n.º 8 e 9.
Consta dos factos 8. e 9. da matéria provada:
8- A Autora era detida naquele período - 2014/2017 - pela A... Group S.A. sociedade de direito Luxemburguês.
9- Por seu turno, 95% do capital da entidade referida em 8 era detido naquela data por um veículo fiduciário - D... - desde 14 de Setembro de 2012, com uma contribuição em dinheiro de € 5.000,00, por parte de AA, e por 95% das ações da A... Group S.A., por parte da sua mulher, fundo este do qual AA e BB eram os primeiros beneficiários (fundadores), sendo os seus filhos beneficiários finais.
Se é verdade que a titularidade das ações das referidas sociedades e a posição de AA no referido veículo fiduciário permite apurar a sua relação com a Autora, saber se este era “dono e beneficiário da Autora”, já é um juízo conclusivo com relevo para a decisão da causa, insuscetível de ser incluído na matéria de facto, sob pena daquela decisão se encontrar implicitamente contida na “prova” de um falso facto.
Por essa razão, também não se acolhe este fundamento subsidiário do recurso.

3.3. Da ampliação do objeto do recurso

Para a hipótese de o recurso proceder com fundamento na matéria de facto provada, a Autora requereu a ampliação do objeto do recurso no sentido do facto n.º 11 passar a ser julgado não provado.
Como, pelas razões acima explicadas o recurso não deve proceder, fica prejudicada a apreciação desta questão.

                                                           *
Decisão
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

                                                           *
Custas do recurso pela Ré.

                                                           *
                                                                                              9.1.2024


[1] Facto aditado, nos termos do art.º 662º, n.º 1, do C. P. Civil, por existir acordo tácito das partes sobre o conteúdo do documento 6, junto pela Ré, com a oposição.
[2] Para que exista este impedimento não é necessário que seja o administrador pessoalmente interessado no negócio a representar a sociedade na sua outorga. Neste sentido, Coutinho de Abreu, Responsabilidade Civil dos Administradores da Sociedade, 2.ª ed., Almedina, 2010, p. 28, nota 46, Pedro Caetano Nunes, Jurisprudência sobre o dever de lealdade dos administradores, II Congresso Direito das Sociedades em Revista, Almedina, 2012, p. 199, e Alexandre Soveral Martins, Administração de Sociedades Anónimas e Responsabilidade dos Administradores, Almedina, p. 185

[3] Nas sociedades anónimas com estrutura de governo de matriz germânica, a autorização deve ser dada pelo conselho geral de supervisão, nos termos do art.º 428º do Código das Sociedades Comerciais.
[4] Dando conta destas dificuldades, Mafalda Miranda Barbosa, A Proscrição do Conflito de Interesses no Código Civil, na R.O.A., Ano 79, (2019) n.º I e II, p. 179-184, e Anabela Marques e Patrícia Alves, Negócios dos Administradores com a Sociedade, Julgar Online, fevereiro de 2016, p. 16-21.

[5] O recurso a esta norma do Código Civil que proíbe o exercício pelos gerentes de atividade concorrente com a sociedade, já era sugerido por Raul Ventura, a propósito da proibição de atividade concorrente pelos gerentes, por interposta pessoa, nas sociedades por quotas, em Sociedades por Quotas, vol. III, Almedina, 1991, p. 57,

[6] Em Responsabilidade Civil dos Administradores da Sociedade, cit., p. 27, nota 43, Negócios entre Sociedades e Partes Relacionadas, Direito das Sociedades em Revista, Março 2013, Ano V, n.º 9, p. 15, e Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. VI, Almedina, 2013, p. 327.

[7] Em Conflito de interesses entre acionistas nos negócios celebrados entre a sociedade anónima e o seu acionista controlador, “Conflito de Interesses no Direito Societário e Financeiro”, Almedina, 2010, p. 102-103.

[8] Em Conflito de Interesses entre Administradores e os Acionistas na Sociedade Anónima, “Conflito de Interesses no Direito Societário e Financeiro”, Almedina, 2010, p. 204-205.

[9] Ob. cit. p. 202-205.

[10] A Aplicação do Art.º 397.º SCS às Sociedades por Quotas, “II Congresso Direito das Sociedades em Revista”, p. 559-562, e Administração de Sociedades Anónimas e Responsabilidade dos Administradores, cit., p. 182-185.

[11] Em A Simulação em Direito Civil, vol. I, Coimbra Editora, 1921, p. 290.

[12] Relatado por Maria da Graça Trigo, em www.dgsi.pt.

[13] Relatado por Henrique Araújo, em www.dgsi.pt.

[14] Relatado por António Magalhães, em www.dgsi.pt.
[15] No acórdão do T. R. P. de 05.02.2009, relatado por Pinto de Almeida, em www.dgsi.pt., defendeu-se que só estariam abrangidos pela proibição do art.º 397.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, os negócios em que se provasse que a interposta pessoa se havia comprometido a transmitir para o administrador da contraparte os benefícios que resultassem da celebração do negócio.

[16] A pessoa com quem um dos administradores da sociedade acordou retransmitir-lhe os benefícios que resultaram do negócio, atenta a relação fiduciária existente, independentemente do disposto no art.º 579.º, n.º 2, do Código Civil, está incluída no conceito de “interposta pessoa”.

[17] Assumindo uma posição dúbia neste tipo de situações, o acórdão do T. R. C. de 13.4.2021, relatado por Maria João Areias, em www.dgsi.pt.

[18] Sobre esta instituto e a sua aplicação em casos em que a pessoa coletiva é utilizada como “testa de ferro” do sócio que a controla, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, vol. IV, 5.ª ed., Almedina, 2019, p. 771, Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 9.ª ed., Almedina, 2019, p. 191-193, e Mafalda Miranda Barbosa, Teoria Geral do Direito Civil, Gestlegal, 2021, p. 526-527.

[19] Neste sentido, também o acórdão do T. R. G. de 17.12.2018, relatado por Sandra Melo, em www.dgsi.pt.

[20] Mafalda Miranda Barbosa, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 526-527.