Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
477/22.3GAPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRA GUINÉ
Descritores: AMNISTIA
REFERÊNCIA A CONDENADOS
INTERPRETAÇÃO DO ART. 7º DA LEI 38-A/2023
Data do Acordão: 01/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE PORTO DE MÓS)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 4º E 7º DA LEI N.º 38-A/2023, DE 2.8; ART. 292º DO CÓDIGO PENAL.
Sumário:
I- Não obstante no artigo 7.º n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, o Legislador ter usado o vocábulo «condenado», a letra da Lei terá de ser interpretada de forma coerente com o processo legislativo, com o elemento histórico e com a unidade do sistema jurídico.
II- Não se encontra amnistiado o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal, relativamente ao qual o agente não foi ainda julgado.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I–RELATÓRIO

Nos autos de processo sumaríssimo a correr os seus termos no Tribunal Judicial de Leiria - Juízo Local Criminal ... sob o n.º 477/22.... foi proferido despacho, declarando amnistiado o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal, de cuja prática o arguido AA se encontra acusado, atenta a moldura abstrata aplicável ao crime, e ao abrigo do disposto no artigo 4.º da  Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, conjugado com o disposto nos artigos 127.º, n.º1 e 128.º, n.º2 ambos do Código Penal, e, por conseguinte, extinto o procedimento criminal.

Inconformado, recorreu o Ministério Público apresentando as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«A. Nos presentes autos o arguido AA, nascido em .../.../1995, foi acusado pela prática em 31-12-2022, do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal;

B. Em 01.09.2023 entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto que consagra no seu artigo 2.º, n.º 1 que “estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º”; e no seu artigo 4.º que “são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa”;

C. O crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas encontra-se previsto no artigo 292.º do Código Penal que consagra no seu n.º 1 que “Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”

D. Ora, considerando-se a data dos factos: 31-12-2022, logo anteriores a 19.06.2023, e a idade do arguido à data da prática dos mesmos: 27 anos de idade, o Tribunal a quo decidiu que por Despacho proferido em 29.09.2023 que “Por todo o exposto, atenta a moldura abstrata aplicável ao crime sub judice, e ao abrigo do disposto no artigo 4.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, conjugado com o disposto nos artigos 127.º, n.º1 e 128.º, n.º2 ambos do Código Penal, declaro amnistiado o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal, de cuja prática o arguido AA se encontra acusado nos presentes autos e, por conseguinte, extinto o presente procedimento criminal.”;

E. Salvo melhor entendimento, não se antolhe arrimo a este entendimento porquanto ainda que em face da excecionalidade deste direito de graça/clemência não se possa ‘lançar mão’ de uma interpretação analógica, extensiva ou restritiva, a verdade é que desde logo o artigo 9.º do Código Civil impõe-se ao Aplicador da Lei efetuar uma correta interpretação declarativa das normas, e não bastar-se com a mera letra da lei;

F. Foi no artigo 7.º da referida Lei que o Legislador elencou os crimes que considerou incluídos na criminalidade muito grave, e entre eles está o crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias     psicotrópicas, previsto     no     artigo     292.º     do     Código     Penal,  mais concretamente no n.º 1, alínea d), ii);

G. É certo que o Legislador consagrou nesta norma o seguinte texto: “1 - Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei: (…) d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por: (…) ii) Crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal” (sublinhados nossos), mas em nosso entendimento o vocábulo ‘condenados’ usado no texto legal não poderá ser lido de forma meramente literal, desenquadrado de todo o demais texto legal, preâmbulo e exposição de motivos;

H. O artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto foi «decalcado» da Lei n.º 9/2020, de 10.04, que fixou o regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, o qual apenas visou a aplicação de perdão, e não de amnistia, e aquando da ‘transcrição’ da Lei de 2020 para a Lei de 2023 o Legislador ‘descuidou’ a adaptação do vocábulo, não o alterando, o que desde logo também é visível pela leitura da ‘Informação de Redação Final’ do projeto de Decreto, no âmbito do processo legislativo da Lei n.º 38-A/2023, de       02 de Agosto          –            disponível     em https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063484d364c79396 8636d356c6443397a6158526c63793959566b786c5a79394562324e3162575675644 7397a5357357059326c6864476c32595339695a4445325a446c6d5a4330794e6a457 a4c54526d4e5449744f546c6c5a69316c4e7a45775932457a4e544d794e6d45756347 526d&fich=bd16d9fd-2613-4f52-99ef-e710ca35326a.pdf&Inline=true            onde  se

escreveu “informamos que remeteremos apenas o texto do projeto de decreto AR com as respetivas sugestões de aperfeiçoamento devidamente realçadas, que, na maioria dos casos, se cingem à confirmação de remissões e referências legislativas, e à correção de lapsos que foi possível detetar (…) Destacamos as seguintes sugestões:     Artigo 7.º ‐ Alínea l) do n.º 1 Considerando que as restantes alíneas do presente número referem sujeitos (condenados, reincidentes, funcionários, membros das forças armadas, das forças policiais e de segurança):

Onde se lê: «l) No âmbito das contraordenações, as que forem praticadas sob influência de álcool (…)» Sugere‐se: «l) Os responsáveis pelas” (sublinhados nossos) denota que a única preocupação foi a de que o artigo 7.º falasse de sujeitos e daí decorre, inclusive a alteração à alínea l).

I. Assim, tendo o Legislador optado por não considerar perdoáveis nem amnistiáveis os crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, ao escrever no artigo 7.º, n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto “Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei”, entendemos que “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, conforme expressamente já foi decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de Fixação de Jurisprudência de 25.10.2001, no processo 00P3209, disponível em www.dgsi.pt;

J. Pelo exposto, entendemos que a única leitura possível dos artigos 4.º e 7.º da referida Lei de 2023, quanto aos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto no artigo 292.º do Código Penal é a de que o Legislador não pretendeu amnistiar ou perdoar estes crimes;

K. Não se pode restringir a leitura do artigo 7.º, n.º 1, alínea d), ii) da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto à interpretação de que nos casos em que já há uma sentença (ou quando esta já transitou em julgado) que condena o arguido pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto no artigo 292.º do Código Penal, este crime não é perdoável, nem amnistiável, mas que já é amnistiável o mesmo crime nos casos em que o processo ainda não foi julgado e ainda não há uma condenação, meramente com assento na leitura do vocábulo ‘condenado’;

L. Entendemos que o que seria violador do princípio da igualdade seria amnistiar os crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas que ainda não foram julgados, ou cujas sentenças ainda não transitaram em julgado, e não amnistiar os crimes, nem perdoar as penas dos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas já julgados e, portanto que já têm sentença, transitada em julgado, ou não;

M. In casu, sendo certo que o arguido à data da prática dos factos, ocorridos em 31-12- 2022, tinha 27 anos de idade – porquanto nasceu em .../.../1995 –, entendemos que não poderia ter sido declarado amnistia o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal, de cuja prática se encontra acusado nos presentes autos e, por conseguinte, extinto o presente procedimento criminal, por ser ato contrário à Lei;

N. Pelo que deveria o Tribunal a quo ter procedido à prolação do Despacho imposto pelos artigos 395.º e 396.º do Código de Processo Penal;

O. Nestes termos teremos sempre que concluir que o Tribunal a quo ao decidir como decidiu violou o disposto nos artigos 4.º e 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, no artigo 9.º do Código Civil, e consequentemente nos artigos 127.º, n.º 1 e 128.º, n.º 2 e 292.º do Código Penal, porquanto este se encontra excluído do beneficio da amnistia consagrada pela supra referida Lei.

Nestes termos e nos demais de Direito deve o Despacho recorrido ser       revogado, e, consequentemente, ser     substituído     por     outro     que aprecie      a responsabilidade      criminal       do arguido, procedendo-se à prolação do Despacho imposto pelos artigos 395.º e 396.º do Código de Processo Penal, julgando o recurso ora interposto          procedente e alterando a Decisão proferida pelo Tribunal a quo, com as demais e as ulteriores consequências legais».

Notificado, respondeu o arguido não respondeu.

Nesta Relação, o Digno Procurador Geral Adjunto apôs o seu visto.

Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido exercido o contraditório.

Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

ÂMBITO DO RECURSO

Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.

Encontra-se, ainda, o tribunal obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como sejam, as nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos art.º s 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).

No caso em apreço é questão a resolver a de saber se o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p., nos termos do art.º 292.º n.º 1 do Código Penal, se encontra amnistiado ao abrigo do disposto no art.º 4.º da Lei n.º 38.º-A/2023, por o arguido ainda não ter sido condenado por sentença transitada em julgado.


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II. Despacho Recorrido (transcrito na parte ora relevante)

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«A Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, Lei do Perdão de penas e amnistia de infrações, entrou em vigor no recente dia 01 de Setembro de 2023.

A prática do ilícito objeto da Acusação deduzida reporta-se a 31.12.2022 e o arguido AA, nascido em .../.../1995, tinha entre 16 e 30 anos àquela data – cfr. o artigo 2.º, n.º1: «estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º».

O Arguido foi acusado da prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal, correspondendo-lhe a moldura abstrata aplicável de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.

Com relevância para o presente caso, há que ter presente que «são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa» (cfr. o artigo 4.º).

Por outro lado, «não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei: (…) d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por: ii) Crimes de (…) condução de veículo em estado de embriaguez (…), previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal» (cfr. o artigo 7.º, n.º1, d)).

Uma vez notificados a pronunciarem-se por este Tribunal, o Arguido pugnou, em requerimento de 22.09.2023, pela aplicação do regime jurídico mais favorável e, ao invés, a Digna Magistrada do Ministério Público verteu entendimento segundo o qual, “atento o estabelecido e consagrado nos artigos 4.º e 7.º, n.º 1, alínea d) ii) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, entendemos que o crime em causa não foi objeto de amnistia”.


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In casu, atenta a moldura abstrata aplicável ao crime sub judice, o crime objeto dos presentes autos é elegível para ser alvo da amnistia prevista no artigo 4.º da Lei sob apreço.

Da leitura do, também, citado artigo 7.º, em concreto do seu n.º1, d), ii), decorre a exclusão dos «condenados» pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

Em caso, como o dos presentes autos, em que o Arguido se encontra, ainda, e apenas, acusado da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, entender que não pode haver lugar à amnistia da infração por força daquela exceção exige – salvo melhor entendimento, que se admite e respeita, tanto mais no quadro de uma Lei recente como é esta –, uma interpretação contra a própria letra da lei, senão mesmo contra o seu espírito, que se refere, explicitamente, a «condenados».

Uma tal interpretação – contra, pelo menos, a própria letra da lei, senão também contra o seu espírito –, poderá ser defendida argumentando que a ideia do Legislador foi excluir de todo o crime de condução de veículo em estado de embriaguez das medidas de graça concedidas por esta Lei, e que a menção a «condenados» se tratou, por isso, de um lapso de escrita.

Contudo, uma tal interpretação – contra a letra da lei, senão também contra o seu espírito – parece olvidar a diferença entre estas duas medidas de graça – a amnistia e o perdão –, na sua natureza e nas suas consequências.

Deste modo, em sentido contrário a uma tal interpretação, pode contrapor-se que, justamente, foi intenção do Legislador, relativamente ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, amnistiar as situações em que não há, ainda, uma condenação transitada em julgado, porém já não admitir o perdão das penas aplicadas por uma sentença transitada em julgado.

Nesta ordem de ideias, a menção a «condenados» foi pretendida pelo Legislador, que, então, admitiu, diante do plasmado no artigo 4.º, a amnistia da condução de veículo em estado de embriaguez quando ainda não tenha havido uma condenação transitada em julgado.

Afinal, é princípio constitucionalmente consagrado que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação» (cfr. o artigo 32.º, n.º2 da C.R.P.).

Por conseguinte, uma tal interpretação contrária à (letra e espírito desta) Lei – que se refere apenas e expressamente a «condenados» – afigura-se-me, com o devido respeito por opinião diversa, ser, igualmente, contrária e, mesmo, violadora daquele princípio constitucional, porquanto implica um tratamento dos (presumidos) inocentes como se de condenados (por sentença transitada em julgado) já se tratassem.

Por todo o exposto, atenta a moldura abstrata aplicável ao crime sub judice, e ao abrigo do disposto no artigo 4.º da  Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, conjugado com o disposto nos artigos 127.º, n.º1 e 128.º, n.º2 ambos do Código Penal, declaro amnistiado o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal, de cuja prática o arguido AA se encontra acusado nos presentes autos e, por conseguinte, extinto o presente procedimento criminal».


*

III. Apreciando e decidindo

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Insurge-se o Ministério Público contra o despacho recorrido que, atenta a moldura abstrata aplicável ao crime e ao abrigo do disposto no artigo 4.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, declarou amnistiado o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. no 292.º, n.º 1 do Código Penal, por cuja prática o arguido se encontra acusado, declarando, em consequência extinto o procedimento criminal.

No entender do Tribunal a quo, a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto ao dispor no seu art.º 7.º que «1 - Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei: (…) d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por: (…) ii) Crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal”» (sublinhado nosso), não pretendeu abranger as pessoas que ainda não estavam condenadas (por sentença transitada em julgado).

Em sentido contrário, alega o recorrente que o art.º 7.º n.º 1 al. d) da referida Lei deve ser interpretado por forma a não excluir aqueles que se encontram indiciados ou acusados (como o arguido) pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

Conclui o recorrente que o despacho em crise deve ser revogado e substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos, procedendo-se à prolação do despacho imposto pelos art.ºs 395.º e 396.º do Código de Processo Penal.

Temos, portanto, que, no caso em apreço é questão a resolver a de saber se o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p., nos termos do art.º 292.º n.º 1 do Código Penal, se encontra amnistiado ao abrigo do disposto no art.º 4.º da Lei n.º 38.º-A/2023, por o arguido ainda não ter sido condenado por sentença transitada em julgado.

Vejamos.

A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto (Perdão de Penas e Amnistia da Infrações) «estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude» (art.º 1.º).

Estão abrangidas «as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4» (art.º 2.º n.º 1).

«São amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa» (art.º 4.º).

E o crime dos autos (de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p., nos termos do art.º 292.º n.º 1 do Código Penal) é punível com pena de prisão até um ano de prisão ou com pena de multa não superior a 120 dias.

Acontece que dispõe o art.º 7.º n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023 que:

«Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:

(…)

d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por:

(…)

ii) Crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal» (sublinhado nosso).

Numa interpretação puramente literal, pareceria que a exclusão da amnistia, relativamente ao crime de condução de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. nos termos do art.º 291.º n.º 1 do Código Penal, suporia que o arguido tivesse sido condenado (por sentença transitada em julgado).

Foi este o entendimento do Tribunal recorrido.

Ora, não desconhecemos que a amnistia é um direito de graça «que subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe.

Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «excepção», revestindo-se de «excepcionais» todas as normas que o enformam» - v. Fundamentação do Acórdão de Fixação da Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 25.10.2001.

E é pela natureza excecional de tais normas que é pacífico o entendimento jurisprudencial e doutrinal de que se encontra afastada a analogia, e mesmo a interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que o que queria) ou restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que o que queria).

Tal como pode ler-se na Fundamentação do Acórdão Unificador da Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2023, sob o título D - Excecionalidade da norma e suas questões hermenêuticas):

«Atendendo à excecionalidade que caracteriza as leis de amnistia e de perdão, a interpretação das mesmas deverá, pura e simplesmente, conter -se no texto da respetiva lei, adotando -se uma interpretação declarativa em que “não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo»

Não esqueçamos, contudo, que, toda a fonte necessita de interpretação que desvele a regra que encerra.

Ora, em sede de interpretação de normas há que ter em conta o que se dispõe no artigo 9.º do Código Civil:

«1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados».

Portanto, além do teor verbal hão-de ser considerados «a coerência interna do preceito, o lugar em que se encontra e as suas relações com outros preceitos» (ou seja, a interpretação lógico-sistemática), assim como «a situação que se verificava anteriormente à lei e toda a evolução histórica», bem assim «a história da génese do preceito», que resulta particularmente dos trabalhos preparatórios, e finalmente o «fim particular da lei ou do preceito em singular» (ou seja, a interpretação teleológica)» - cf. Karl Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, 3.ª ed., p. 111».

Tal como salienta o recorrente, pode ler-se na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª, in DAR II série A n.º 245, 2023.06.19, que esteve na origem da Lei n.º 38-A/2023, de 2.8:

 «Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina. Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação. Adicionalmente, é fixado um regime de amnistia, que compreende as contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda € 1.000, exceto as que forem praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, as infrações disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar e as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de multa».

E, foi no artigo 7.º da referida Lei que o Legislador elencou os crimes que considerou incluídos na criminalidade muito grave.

Entre eles encontra-se o crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto no artigo 292.º do Código Penal (cf. art.º 7.º n.º 1 al. d) ii).

Ademais, tal como se escreve na motivação do recurso:

«não poderemos deixar de fazer a referência de que o artigo 7.º parece ser ‘decalcado’ da anterior Lei n.º 9/2020, de 10.04 – que fixou o regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19 –, a qual apenas visou a aplicação de perdão, e não de amnistia, não tendo o Legislador tido o devido cuidado - e não intenção – de alterar o vocábulo que usou nesta Lei quando fez a ‘transferência’ para a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto.

Aliás, o que seria claramente violador do princípio da igualdade seria amnistiar os crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas que ainda não foram julgados, ou cujas sentenças ainda não transitaram em julgado, e não amnistiar, nem perdoar as penas dos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas já julgados e, portanto já têm sentença, e dos que já têm sentença transitada em julgado».

Não podemos ainda deixar de concordar com o recorrente ao ressaltar que esta interpretação também encontra assento na leitura da ‘Informação de Redação Final’ do projeto de Decreto, no âmbito do processo legislativo da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto – disponível em https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063484d364c793968636d356c6443397  a6158526c63793959566b786c5a79394562324e31625756756447397a5357357059326c6864476c32595

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4e544d794e6d45756347526d&fich=bd16d9fd-2613-4f52-99ef-e710ca35326a.pdf&Inline=true – onde se escreveu:

«Até ao termo da sessão legislativa, considerando o número de textos que se encontram em fase de redação final, a complexidade e extensão de alguns deles e, ainda, a exiguidade do prazo para a sua elaboração, informamos que remeteremos apenas o texto do projeto de decreto AR com as respetivas sugestões de aperfeiçoamento devidamente realçadas, que, na maioria dos casos, se cingem à confirmação de remissões e referências legislativas, e à correção de lapsos que foi possível detetar (…)

Destacamos as seguintes sugestões: Artigo 7.º ‐ Alínea l) do n.º 1 Considerando que as restantes alíneas do presente número referem sujeitos (condenados, reincidentes, funcionários, membros das forças armadas, das forças policiais e de segurança): Onde se lê: «l) No âmbito das contraordenações, as que forem praticadas sob influência de álcool (…)» Sugere‐se: «l) Os responsáveis pelas”, denota que não ocorreu, atrevemo-nos a dizer, a devida cautela na escolha dos termos a usar.

Ou seja, desta leitura extraímos que a única preocupação nessa data, na redação da Lei e no uso dos vocábulos a incluir no referido artigo, foi a de que o artigo 7.º falasse de sujeitos. E daí decorre, inclusive a alteração à alínea l). Pelo que, por esta via, entendemos que nem o argumento de que o Legislador pretendeu distinguir arguido e condenado - pois usou nessa alínea o termo responsável - pode ser tida em linha de interpretação quanto à sua concreta intenção».

Não faria, aliás, qualquer sentido que, nos termos da al. l) do n.º 1 do art.º 7.º da referida Lei, não beneficiassem da amnistia «Os autores das contraordenações praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo», mas que no âmbito dos crimes contra a vida em sociedade (al. d) do n.º 1 do art.º 7.º), entre os quais se encontram os crimes de condução de veículo em estado de embriaguez (ii) se exigisse a condenação (transitada em julgado).

Enfim.

Não obstante no artigo 7.º n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, o Legislador ter usado o vocábulo «condenado», a letra da Lei terá de ser interpretada de forma coerente com o processo legislativo, com o elemento histórico e com a unidade do sistema jurídico.

Não beneficia de amnistia quem tiver praticado crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. no art.º 292.º n.º 1 do Código Penal, podendo, portanto, vir a ser condenado.

Concluímos, assim, que não se encontra amnistiado o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal, de cuja prática o arguido AA se encontra acusado.

Procedendo por inteiro o recurso, determina-se a revogação do despacho em crise, que declarou extinto por amnistia o procedimento criminal, devendo o processo seguir os seus ulteriores termos.

Consequentemente, o despacho recorrido, deve ser substituído por um outro, a rejeitar o requerimento acusatório em processo sumaríssimo e a reenviar o processo para outra forma que lhe caiba (nos termos do art.º 395.º do CPP) ou a ordenar a notificação do arguido e do seu defensor (nos termos do art.º 396.º do CPP).


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IV. Decisão

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Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, em revogar o despacho recorrido, determinando que deve ser substituído por um outro, a rejeitar o requerimento acusatório em processo sumaríssimo e a reenviar o processo para outra forma que lhe caiba (nos termos do art.º 395.º do CPP) ou a ordenar a notificação do arguido e do seu defensor (nos termos do art.º 396.º do CPP).

Sem tributação.


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(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária, sendo ainda revisto pelo segundo e pela terceira signatários, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20-09)


Coimbra, 24.01.2024
Alexandra Guiné (relatora)
Eduardo Martins (adjunto)
Isabel Valongo (adjunta)