Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1090/12.9TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: ÁGUAS
PRÉDIO
USUCAPIÃO
JANELAS
CONCEITO JURÍDICO
Data do Acordão: 05/07/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU – 2º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1389º, 1390º, 1360º E 1363º DO C. CIVIL.
Sumário: 1. Enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária, por lei ou negócio jurídico, as águas são partes componentes dos respectivos prédios e quando desintegradas adquirem autonomia e são consideradas de per si imóveis.

2. A separação e desintegração das águas do domínio do prédio pode verificar-se na sequência de título de aquisição do direito à água - ou ao uso da água - a favor de terceiro, desde logo porque o art.º 1389º do C. Civil depois de reconhecer ao proprietário do prédio a faculdade de se servir da água de fonte ou nascente nela existente e dela dispor livremente, ressalva as restrições previstas na lei “e os direitos que terceiro haja adquirido ao uso da água por título justo”.

3. Por isso, o ónus de alegação e prova pertence ao não proprietário do terreno onde se encontra a água a reivindicar, a partilhar, a usar através do direito de servidão ou por destinação de pai de família.

4. Todavia, para que a usucapião possa conduzir à aquisição de um direito sobre a água de uma nascente existente em prédio alheio é necessário que seja “acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio” – artigo 1390º, nº 2 do CC.

5. Captação e posse estas que devem, obviamente, radicar na pessoa do terceiro que invoca o direito sobre a água existente em prédio alheio.

6. O art.º 1360º, nº 1 do Código Civil não define o que seja uma "janela", mas o conceito desta é-nos dado por exclusão de partes, com base no disposto no artigo 1363º, o qual caracteriza as aberturas de tolerância, ou seja, as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar - estas, com as reduzidas dimensões e os efeitos que lhes são peculiares, destinar-se-ão apenas a permitir a entrada da luz e do ar - ao passo que as janelas têm uma função mais ampla - estas, sendo aberturas maiores que aquelas, além de permitirem a entrada da luz e do ar, também possibilitam, em regra, caso não seja gradada, a vista e a saída de objectos com ocupação e devassamento do prédio vizinho. 7. Por janelas devem entender-se as aberturas que não só permitam a entrada de ar e luz, mas ainda a devassa do prédio vizinho, por permitirem a introdução da cabeça humana e, consequentemente o debruçar sobre o prédio alheio.

8. Existindo uma abertura – que o tribunal e a partes consideram como janela - já desde há cerca de 45 anos, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, mesmo que a autora a tenha alterado nas suas medidas, era aos réus que incumbia a alegação e prova das anteriores dimensões da abertura, que a 1.ª instância configura correctamente como janela, pedindo a sua redução aos limites pré–existentes às obras efectuadas pela autora, o que não fizeram.

Decisão Texto Integral: 1. Relatório

 A autora A… deduziu a presente acção declarativa, com forma de processo sumário, contra os réus G… e esposa M…, alegando, em síntese, ser dona e possuidora de um prédio urbano, sito em …, onde mantém a sua casa de habitação, adquirido por sucessão mortis causa e usucapião.

Que os réus são donos do prédio que confronta a nascente com o prédio da autora, no qual existe um poço, construído há mais de 50 anos pelo pai da autora e do réu marido, e por mais duas outras pessoas.

Ainda em vida da mãe da autora e do réu-marido, o direito ao uso da respectiva água foi partilhado em termos de igualdade, passando a autora a utilizar essa água nas suas culturas, o que vem fazendo desde a construção do poço, de forma pacífica.

 Daí que a autora afirme que adquiriu o direito ao uso da água desse poço por usucapião. Direito esse que foi violado pelos réus no ano passado, impedindo a autora de utilizar a referida água, mediante a remoção da mangueira e o desferrar do motor.

Por outro lado, sustenta a autora que a sua casa de habitação dispõe, há mais de 40 anos, de uma janela que deita directamente para o dito prédio dos réus, utilizando-a de forma pacífica, contínua, e pública. Assim sendo, invoca a autora ter adquirido, por usucapião, o direito de servidão de vistas, que foi entretanto violado pelos réus, por via da edificação de um muro, pouco antes do Natal passado.

Assim, pede a condenação dos réus no reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o seu prédio, no reconhecimento do seu direito à referida água, restabelecendo o seu acesso à mesma, e no reconhecimento da existência da aludida servidão de vistas, recuando o muro que construíram para distância não inferior a 1,5 metros, e na abstenção de perturbarem o uso e fruição desses direitos.

Citados pessoal e regularmente para o efeito, os réus contestaram impugnando a factualidade alegada pela autora, negando que esta tenha qualquer direito à água do poço que existe no seu prédio, recusando ainda a existência da invocada servidão de vistas.

Daí que os réus entendam que a sua actuação é legítima, pelo que solicitam a improcedência da acção, com a sua absolvição dos pedidos.

A final, pela Sr.ª Juiz da 1.ª instância, foi proferida a seguinte decisão:

“Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a presente acção, e, em consequência, declaro a autora A… proprietária do prédio urbano, inscrito na matriz respectiva sob o artigo …, identificado no ponto 5.1. dos factos provados, e condeno os réus G… e esposa M… no reconhecimento desse direito.

Absolvo os réus dos demais pedidos formulados pela autora.

2.O Objecto da instância de recurso;

A apelante A… apresenta as seguintes conclusões:

            Os apelados réus, não concordando com as razões que motivam o recurso apresentado pela autora, a ele respondem desta forma:

3. São as seguintes as questões que importa resolver:

I.A 1.ª instância falhou na fixação da matéria de facto no tocante aos Pontos 7º, 8º, - dando-se os mesmos como provados, com a especificação de que os quatro irmãos contribuíram não para a realização da obra mas para a sua reparação, além de que os quatro haviam utilizado em vida da mãe a água do poço em termos de igualdade, respectivamente – e Ponto 9º - deve ser dado como provado irrestritivamente, considerando-se que a A. sempre utilizou a água até à data em que os RR. removeram a mangueira e desferraram o motor -.

II.A autora adquiriu o direito de compropriedade da água do poço existente no prédio dos réus por usucapião?

III.O prédio dos réus encontra-se onerado com uma servidão de vistas que serve o prédio da autora, constituída por usucapião?

IV.A atitude dos réus impediu a autora de exercer o seu direito de compropriedade da água, e violou o seu direito à servidão de vistas?

A. 1.ª instância fixou a seguinte matéria de facto:

4. Direito

Com o presente pleito, a autora pretende fundamentalmente o reconhecimento de dois direitos: o direito de compropriedade da água do poço existente no prédio dos réus e o direito de servidão de vistas sobre o prédio dos réus.

I. Quanto ao pedido da alínea B) – compropriedade da água do poço:

Para fundamentar tal pedido, diz a autora que no prédio dos ora RR., onde edificaram a sua habitação, existe um poço, construído há cerca de 50 anos pelo pai da A. e do R. marido e pelo seu irmão J... e …

Acresce que, o direito ao uso da água de tal poço foi partilhado em termos de igualdade por todos aqueles irmãos, ainda em vida de sua mãe, sendo que, tal água sempre foi utilizada por aquela nas suas culturas, desde a construção daquele poço, o que sempre fez sem oposição de quem quer que fosse, na convicção de exercer um direito próprio.

Invoca, pois, o direito de usucapião para a sua aquisição.

A respeito ao direito de propriedade sobre a água os Profs. Pires de Lima e A. Varela – no seu Código Civil Anotado e relativamente ao art.º 1390.º do Código Civil, que será o diploma a citar sem menção de origem -, depois de afastarem a doutrina que o Professor Guilherme Moreira havia sustentado no seu estudo sobre as Águas ( II nº3 ) e que fez escola  -  no sentido de que o direito a uma água que nasce em prédio alheio é sempre um direito de propriedade e nunca um direito de servidão (ver  anotação do Prof. Pires de Lima , ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 24.5.1940, na RLJ ano 73º , pág. 300) - consideram que “ o direito à água que nasce em prédio alheio, conforme o título da sua aquisição, pode ser um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações inerentes, por conseguinte, às necessidades deste.

No primeiro caso, a figura constituída é a da propriedade da água…”

Também, tal como o proprietário, o comproprietário goza de modo pleno e exclusivo os direitos de uso e fruição da coisa objecto do domínio conjunto, apenas limitado pelos correspondentes direitos dos consortes. Ao ser afectado na integralidade do objecto do direito, ainda que por acto ou actividade de outro comproprietário, ele é directamente atingido por um facto ilícito que de alguma maneira o priva do seu direito”… no segundo, é a de servidão.

A constituição dum direito de (com) propriedade depende da existência de um título capaz de a transferir; a constituição de uma servidão da existência de um dos meios referidos no art.º 1547.º - contrato, testamento, usucapião, destinação do pai de família, sentença e decisão administrativa –“.

E acrescentam os citados Autores “foi esta a doutrina que acabou por ser legislativamente consagrada, ao prever-se expressamente a possibilidade de constituição de qualquer dos dois direitos na parte final do nº1”.

Escreveu-se no Acórdão do STJ de 31.05.2011 acessível in www.dgsi.pt que “ enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária, por lei ou negócio jurídico, as águas são partes componentes dos respectivos prédios “ e “ quando desintegradas adquirem autonomia e são consideradas de per si imóveis “.

A separação e desintegração das águas do domínio do prédio pode verificar-se na sequência de título de aquisição do direito à água (ou ao uso da água) a favor de terceiro, desde logo porque o art.º 1389º depois de reconhecer ao proprietário do prédio a faculdade de se servir da água de fonte ou nascente nela existente e dela dispor livremente , ressalva as restrições previstas na lei “ e os direitos que terceiro haja adquirido ao uso da água por título justo”.

E a respeito dos títulos de aquisição estatui o art.º 1390º, nº 1” considera-se título justo de aquisição da água das fontes e nascentes conforme os casos, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões.”

Impõe-se, então, no caso em apreço, averiguar se concorrem os requisitos da aquisição do direito de da água pela via da usucapião, conforme alega a autora.

O que nos mostram os autos.

A autora é proprietária de um prédio urbano, inscrito na matriz respectiva sob o artigo ...

A edificação mencionada no ponto anterior foi construída há mais de 45 anos;

Os réus G… e esposa M… são donos do prédio que confronta a nascente com o prédio da autora.

No prédio dos réus existe um poço, construído há mais de 50 anos pelo pai da autora e do réu-marido que, nos respectivos trabalhos, foi auxiliado por J...

Que, ainda em vida da mãe, a água do poço foi utilizada pela autora e pelo réu. A autora utilizou aquela água na cozinha da habitação onde vivia com a sua mãe, e onde continuou a viver após a morte desta, o que sempre fez sem oposição de ninguém e na convicção de exercer um direito próprio.

Mas, perguntamos nós, que direito?

Os poços, com os engenhos de extracção de água que lhe estão adstritos, são partes integrantes dos prédios rústicos a que estão afectos, por a eles estarem ligados, como construção e coisa móvel, com carácter de permanência, de harmonia com o disposto no artigo 204.º, nº 1, al.ª d) e nº 3 do Código Civil.

A respectiva posse e propriedade estabelece-se, assim, por simples inerência à posse e propriedade da coisa imóvel, ou seja do prédio, em que se inserem.

O princípio geral a respeito de todas as águas particulares é o de que o proprietário do prédio em que elas se encontrem pode delas utilizar-se e dispor como lhe aprouver, salvo os direitos que terceiro a elas tenha adquirido legitimamente.

Por isso, o ónus de alegação e prova pertence ao não proprietário do terreno onde se encontra a água a reivindicar, a partilhar, a usar através do direito de servidão, ou, por destinação de pai de família.

Aqui, não poderemos de deixar de acompanhar os apelados quando, a dado momento das suas alegações, afirmam:” Alega a autora que adquiriu sobre a Água um direito próprio, não esclarecendo que direito (artigo 16º da PI):

No artigo 17º parece aludir a um direito de propriedade mas já no artigo 18º se refere a mera fruição da água.

Conclui depois no artigo 21º que tem direito à água do poço, parecendo de novo retomar que se trata de um direito de propriedade sobre a totalidade dessa água.

Não se descortina em que medida possa haver nesta alegação matéria de facto que possa consubstanciar a aquisição pela autora do direito de propriedade da água do poço ou um direito de servidão, tendo por objecto a água do poço (quanto este direito de servidão por falta de identificação do prédio dominante).

Relativamente à aquisição do direito de propriedade sobre a água, também não existem factos que possam suportar tal conclusão.

Na verdade, existe um poço no prédio dos réus aberto pelo Pai da autora com ajuda do réu e outro irmão.

Mas esta indefinição e insuficiência de matéria factual, desde logo seria suficiente para que a acção fosse julgada improcedente nesta parte, por maioria de razão essa solução se impõe face à resposta que mereceram os pontos 7, 8 e 9 da base instrutória…” e que a autora não logrou alterar nesta instância.

Como se escreve na 1.ª instância “…Todavia, para que a usucapião possa conduzir à aquisição de um direito sobre a água de uma nascente existente em prédio alheio é necessário que seja “acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio” – artigo 1390º, nº 2 -. Captação e posse estas que devem, obviamente, radicar na pessoa do terceiro que invoca o direito sobre a água existente em prédio alheio – a aqui autora, no caso em apreço -.

Sucede que no caso sub iudice não se apurou a existência dessas obras, visíveis e permanentes, no prédio dos réus, que permitissem revelar a captação ou posse da água, pela autora. A simples existência de uma mangueira – até pela natureza móvel da mangueira utilizada pela autora, adiantamos nós - e de um motor não traduzem, na nossa perspectiva, a edificação de uma obra, sendo ainda certo que não se apurou em que prédio se encontrava o motor (no prédio da autora ou no prédio dos réus).

Além disso, também não se apurou o prazo legal mínimo da aquisição originária desse direito (de compropriedade sobre a água do poço) por usucapião – artigo 1299º -.

E é indiscutível que o ónus de alegação e prova de tais factos recaía sobre a autora, que invoca o correspondente direito – artigo 342º, nº 1, CC…”.

De facto, a exigência, no caso da permanência e visibilidade das obras ou sinais equiparados, justifica-se pela possibilidade de, assim, presumir no dono do imóvel a renúncia ao direito de propriedade da água ou assunção de conduta consentânea com a constituição de correspondente servidão e, bem assim, na necessidade de salvaguardar a boa-fé do comércio jurídico relativamente a eventual adquirente nos termos em que a lei pretende tutelá-la – neste preciso sentido, A. Varela, na RLJ Ano 115º /222 -.

Temos para nós que a expressão “construção de obras” só é atendível para efeitos da usucapião quando tais obras derivem de facto humano, quando sejam executadas pela mão do homem e sejam visíveis e permanentes.

Isto para dizer que o adquirente do direito de propriedade sobre águas provenientes de nascentes em prédio alheio por usucapião deve, para além disso, alegar e demonstrar também a posse das obras, visíveis e permanentes nesse prédio reveladoras da captação e condução de água para o seu prédio.

Ora, no caso, como não se fez prova de que o construtor do poço, pai da autora e do réu marido, tenha feito quaisquer obras que atestem a utilização das águas que pertencem ao prédio dos réus, no prédio que pertence agora à autora.

Então não pode concluir-se pela aquisição da propriedade das águas por usucapião.

Poderemos estar, eventualmente, perante a existência de servidão predial “por destinação de pai de família” a favor do prédio que hoje é da autora e sobre o prédio onde existe o poço, relativamente ao aproveitamento das águas desse poço, nos termos dos artºs 1549º, conjugado com o disposto no art.º 1390º, nº 3.

Mas, tal pedido não foi formulado nem se encontra ancorado por factos suficientes, encontrando-se a esta instância de recurso vedado tal conhecimento - desde que determinada medida de tutela jurisdicional não tenha sido oportunamente pedida, o princípio dispositivo, pedra angular do processo civil e que assegura à parte circunscrever o “thema decidendum”  - art.º 264º do Cód. Proc. Civil -, obsta a que o tribunal dela conheça - art.º 661º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil - e a decrete -.

II. Quanto ao pedido da alínea C) – servidão de vistas.

Neste particular, alega a autora:

“Que no seu terreno está edificado um barracão, com cozinha, onde esta reside.

Que junto a este, os ora RR. construíram um muro (com cerca de 1 metro e 90 centímetros de altura) pouco antes do Natal do ano passado, a uma distância da construção da A. que, no seu ponto máximo, atinge cerca de 50 centímetros.

Conforme foi mencionado, a referida edificação, propriedade da A., foi construída há mais de 40 anos.

Tem, e sempre teve, uma abertura, que deita directamente para o prédio dos RR.

Tal abertura, pelas suas dimensões (1 metro de largura e 95 centímetros de altura, construída a cerca de um metro do solo) e pelos fins a que se destina (fruição de vistas, luz e arejamento) é uma janela, susceptível de instrumentalizar uma servidão de vistas, nos termos do disposto no artº. 1362º do C.C..

Na verdade, a A. mantém aberta no seu prédio a referida janela, que deita directamente para o prédio dos RR., desde há cerca de 45 anos, de forma pacífica, contínua, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém...”

Conclui que, adquiriu o direito de servidão de vistas em virtude de usucapião.

Preceitua o artigo 1362.º que:

“1 - A existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião.

2 - Constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras mencionadas no n.º 1 o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras.”

O benefício que esta servidão confere não consiste na possibilidade de olhar em direcção ao prédio vizinho, gozar as vistas, mas sim facultar luz e ar ao prédio dominante.

Cunha Gonçalves, no seu Tratado de Direito Civil, Vol. XII, Coimbra Editora, 1938, pág. 87 - referia que “A inacção do proprietário vizinho, porém, dá lugar unicamente à servidão de ar e de luz”.

O mesmo sustenta Pires de Lima, ao dizer que “…o proprietário vizinho pode em qualquer altura levantar edificação, ainda que com ela tape as vistas ao prédio vizinho; o que não pode é tirar o ar ou vedar a luz porque estas ficam constituindo verdadeiras servidões” - Lições de Direito Civil (Direitos Reais), coligidas por Elísio Vilaça e David A. Fernandes. Coimbra: Atlântida Livraria Editora, 1933, pág. 229/230 -.

O teor deste artigo tem de ser conjugado com o disposto no artigo 1360.º - abertura de janelas, portas, varandas e obras semelhantes -, que determina que, “1. O proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio.

2. Igual restrição é aplicável às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela.

3. Se os dois prédios forem oblíquos entre si, a distância de metro e meio conta-se perpendicularmente do prédio para onde deitam as vistas até à construção ou edifício novamente levantado; mas, se a obliquidade for além de quarenta e cinco graus, não tem aplicação a restrição imposta ao proprietário”.

Por conseguinte, nos termos do n.º 2, do artigo 1362.º, constituída a servidão de vistas, ao proprietário vizinho, no caso os réus, só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras que importam a servidão de vistas o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras - o proprietário do prédio serviente pode, apesar da existência da servidão, construir no seu prédio, desde que não ofenda esta servidão.

Mas, pergunta-se, a autora constituiu tal servidão de vistas?

Mostram-nos ao autos que:

No terreno referido no ponto 5.1. está edificado um barracão, com cozinha, onde a autora reside.

Que existe um muro, construído pelos réus no seu prédio, com cerca de 1,90m, pouco antes do Natal do ano passado. Tal muro foi construído a uma distância da construção da autora que no seu ponto máximo atinge cerca de 50 cms.

Tal construção tem e sempre teve uma abertura que deita directamente para o prédio dos réus, distando menos de 1,5 m. do referido muro.

Abertura essa que tem 1 m. de largura e 85 cms. de altura, e que se encontra construída a cerca de 1 metro do solo, que permite avistar através da mesma, bem como a passagem de luz e ar.

Abertura essa que existe desde há cerca de 45 anos, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

 A casa de habitação da autora tem uma área total de 44 m2.

 O barracão mencionado no ponto 5.10. confronta com o prédio dos réus.

Tal barracão destina-se a arrumos agrícolas, tais como lenhas e utensílios agrícolas.

Há pelo menos sete ou oito anos, a autora transformou tal barracão numa cozinha, com WC e quarto.

 A autora alargou a janela anterior, que anteriormente tinha largura e altura cuja grandeza não foi possível determinar, para a actual dimensão, referida no ponto 5.14.

A janela referida no ponto anterior deita directamente para a parte do prédio dos réus onde está o poço supra mencionado.

O art.º 1360º, nº 1 não define o que seja uma "janela", mas o conceito desta é-nos dado por exclusão de partes, com base no disposto no artigo 1363.º, o qual caracteriza as aberturas de tolerância, ou seja, as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar - estas, com as reduzidas dimensões e os efeitos que lhes são peculiares, destinar-se-ão apenas a permitir a entrada da luz e do ar - ao passo que as janelas têm uma função mais ampla - estas, sendo aberturas maiores que aquelas, além de permitirem a entrada da luz e do ar, também possibilitam, em regra, caso não seja gradada, a vista e a saída de objectos com ocupação e devassamento do prédio vizinho - por janelas devem entender-se as aberturas que não só permitam a entrada de ar e luz, mas ainda a devassa do prédio vizinho, por permitirem a introdução da cabeça humana e, consequentemente o debruçar sobre o prédio alheio -.

Assim sendo, são de considerar janelas todas as aberturas na parede que não possam considerar-se frestas, seteiras ou óculos para a luz e ar e, claro está, maiores que estas últimas - neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, Volume III, segunda edição, 223; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Boletim do Ministério da Justiça 203; 169; acórdão da Relação do Porto, Colectânea de Jurisprudência, 1988, T1, 198 -.

Pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 7.12.2006, retirado do site www.dgsi.pt – que “Do cotejo dos artigos 1360º, 1363 e 1364º, todos do Código Civil, resulta existirem três tipos de aberturas:2.1- Janelas: aberturas mais ou menos amplas, com pelo menos mais de 15 cm numa das suas dimensões, onde, no dizer tradicional, cabe uma cabeça humana, munidas de sistemas que podem abrir-se e fechar-se, permitindo a entrada de ar e luz, e ainda o debruçamento das pessoas nos seus parapeitos e gozo de vistas, sendo ainda possível, através delas, sacudir-se o pó de tapetes, verter líquidos e arremessar objectos, devassando, portanto o prédio vizinho, se circunstâncias ou regulamentos especiais a tal não obstarem.

2.1.1- E dentro destas, as janelas gradadas: aberturas, com pelo menos mais de 15 cm numa das suas dimensões, situadas a mais de um metro e oitenta centímetros do solo ou do sobrado, com grades fixas de ferro ou outro metal, de secção não inferior a um centímetro quadrado e cuja malha não seja superior a cinco centímetros.

2.2- Frestas, seteiras ou óculos (aberturas de tolerância): aberturas que têm até 15 cm numa das suas dimensões e que se situam a um metro e oitenta centímetros ou acima de um metro e oitenta centímetros de altura, a contar do solo ou do sobrado, destinadas à entrada de ar e luz.

2.3 - Aberturas irregulares: aberturas abaixo da altura de 1,80 metros e/ou fora das medidas previstas no artigo 1363º, n.º2, ou seja, não toleradas por lei.

3º- São de qualificar como aberturas irregulares, as aberturas, situadas a 82 cms do sobrado, com a largura de 1,55m e a altura de 1,06m, constituídas por uma estrutura em alumínio e vidro martelado fosco, dividido, de cada um dos lados, por três prumos ou barras de alumínio, com intervalos superiores a 5 cms, só permitindo a entrada directa de luz, de ar e avistar, de frente, o prédio vizinho através de uma abertura central móvel, com 61 cm. de largura e 52 cm. de altura, dividida por prumos de alumínio com intervalos de 14 cms, onde estão colocados vidros martelados foscos, situada a 42 cm. dos limites laterais, a 49 cm. do limite inferior e a 1,37/1,38 cm. do sobrado, mas que não permite o debruçamento sobre o prédio vizinho.

4º A construção e uso das “aberturas irregulares” não conduz à constituição, por usucapião, da servidão de vistas a que alude o art.º 1362º, nº. 1 do C. Civil, posto que tal servidão está reservada, pelo citado artigo, às janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes.

5º- A construção e uso das “aberturas irregulares” pode conduzir à constituição, por usucapião, de uma servidão atípica (de vista, luz e ar), que confere ao respectivo titular não só o direito de manter tais aberturas, mas também o direito à manutenção das vistas e de luz e do ar, pelo que não pode deixar de se lhe reconhecer o direito de impedir que o proprietário do prédio vizinho as vede ou tape bem como o direito de impor a este a observância do disposto no nº2 do artigo 1362º do C. Civil.

6º- Daí o proprietário de prédio vizinho não poder, à frente de cada “abertura irregular”, construir edifício a menos de metro e meio”.

Escreve assim a 1.ª instância:

“Importa não esquecer que a abertura ou janela que anteriormente existia, há mais de 40 anos, no barracão da autora - cfr. pontos 5.3. e 5.13. dos factos provados -, foi entretanto alterada, bem como a própria estrutura do edifício, como resulta dos factos provados nos pontos 5.19. a 5.21.

O edifício e a janela actualmente existentes no prédio da autora, sendo distintos dos que os precederam, têm não mais de 8 anos, pelo que não se mostra ainda decorrido o prazo legal mínimo da aquisição originária desse direito - de servidão de vistas - por usucapião – cfr artigo 1296º, CC”.

Com todo o respeito pela ilustre magistrada da 1.ª instância, não podemos concordar com esta conclusão.

De facto, tal abertura existe já desde há cerca de 45 anos, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

É certo que as suas dimensões foram alteradas - a autora alargou a janela anterior, que anteriormente tinha largura e altura cuja grandeza não foi possível determinar para a actual dimensão, referida na resposta dada ao artigo 15º -, sendo que essa construção, que já existe há décadas, mas há cerca de 7/8 anos foram alteradas por ampliação as dimensões dessa abertura e a construção, que antes era um simples barracão agrícola, foi transformada numa cozinha, hall e WC, tendo passado a ser habitação da autora.

Ou seja, existirá um agravamento da servidão, mas que existe há pelo menos 7 anos, sendo que só agora os réus construíram o muro, com cerca de 1 metro e 90 centímetros de altura, a uma distância da construção da A. que, no seu ponto máximo, atinge cerca de 50 centímetros.

Pensamos que era aos réus que incumbia a alegação e prova das anteriores dimensões da abertura, que a 1.ª instância configura correctamente como janela, pedindo a sua redução aos limites pré – existentes às obras efectuadas pela autora, o que não fizeram nestes autos.

Violam, assim, o preceitua o artigo 1362.º n.º 2 cujo texto – aqui relembramos – ordena que constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras mencionadas no n.º 1 o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras.

Assim, neste particular terá de proceder a apelação,

Só um pequeno apontamento sobre o abuso de direito.

Nos termos do art.º 334º “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Como sublinha José Alberto González - In “ Restrições de Vizinhança (de interesse particular)”, pág. 84 -, o abuso de direito continua a ser um princípio regulador dos conflitos de vizinhança, especialmente nas situações típicas do “exercício inútil danoso” ou da “desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto prelo exercício de outrem”.

Assim, o abuso do direito verifica-se "quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, todavia no caso concreto aparece exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça" - Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 3.ª Edição, pág. 63 -.

Por isso, o abuso do direito deve funcionar como limite ao exercício de direitos quando a atitude do seu titular se manifeste em comportamento ofensivo do sentido ético-jurídico da generalidade das pessoas em termos clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correcção imperantes na ordem jurídica.

No abuso do direito a ilegitimidade não resulta da violação formal de qualquer preceito legal concreto, mas da utilização manifestamente anormal, excessiva do direito – o sublinhado é nosso -.

Para haver abuso de direito é necessário a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito" – neste preciso sentido, o Acórdão do STJ de 25.6.98, Jurisprudência Seleccionada de Teoria Geral do Direito Civil I, pág. 340 -.

Ora, nos autos, não transparece que os réus ao actuarem, como o fizeram em relação ao poço e à proibição da autora aí se abastecer, não exercitaram tal direito em termos clamorosamente ofensivos da justiça.

Tê-lo-iam feito, caso não procedesse o pedido da autora, em relação reconhecimento da existência de uma servidão a favor desta e que onera o terreno dos RR., recuando o referido muro aí existente para os limites preditos, abstendo-se de, por qualquer forma ou acto, perturbarem o uso e fruição dos direitos invocados pela autora.

 

Passemos ao sumário:

1. Enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária, por lei ou negócio jurídico, as águas são partes componentes dos respectivos prédios e quando desintegradas adquirem autonomia e são consideradas de per si imóveis.

2. A separação e desintegração das águas do domínio do prédio pode verificar-se na sequência de título de aquisição do direito à água - ou ao uso da água - a favor de terceiro, desde logo porque o art.º 1389º depois de reconhecer ao proprietário do prédio a faculdade de se servir da água de fonte ou nascente nela existente e dela dispor livremente, ressalva as restrições previstas na lei “e os direitos que terceiro haja adquirido ao uso da água por título justo”.

3. Por isso, o ónus de alegação e prova pertence ao não proprietário do terreno onde se encontra a água a reivindicar, a partilhar, a usar através do direito de servidão ou por destinação de pai de família.

4. Todavia, para que a usucapião possa conduzir à aquisição de um direito sobre a água de uma nascente existente em prédio alheio é necessário que seja “acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio” – artigo 1390º, nº 2 -. Captação e posse estas que devem, obviamente, radicar na pessoa do terceiro que invoca o direito sobre a água existente em prédio alheio – a aqui autora, no caso em apreço.

5. O art.º 1360º, nº 1 do Código Civil não define o que seja uma "janela", mas o conceito desta é-nos dado por exclusão de partes, com base no disposto no artigo 1363.º, o qual caracteriza as aberturas de tolerância, ou seja, as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar - estas, com as reduzidas dimensões e os efeitos que lhes são peculiares, destinar-se-ão apenas a permitir a entrada da luz e do ar - ao passo que as janelas têm uma função mais ampla - estas, sendo aberturas maiores que aquelas, além de permitirem a entrada da luz e do ar, também possibilitam, em regra, caso não seja gradada, a vista e a saída de objectos com ocupação e devassamento do prédio vizinho - por janelas devem entender-se as aberturas que não só permitam a entrada de ar e luz, mas ainda a devassa do prédio vizinho, por permitirem a introdução da cabeça humana e, consequentemente o debruçar sobre o prédio alheio.

6.Existindo uma abertura – que o tribunal e a partes consideram como janela - já desde há cerca de 45 anos, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, mesmo que a autora a tenha alterado nas suas medidas, era aos réus, que incumbia a alegação e prova das anteriores dimensões da abertura, que a 1.ª instância configura correctamente como janela, pedindo a sua redução aos limites pré – existentes às obras efectuadas pela autora, o que não fizeram.

5.Decisão

Pelas razões expostas, no parcial provimento do recurso interposto, condenamos os réus ao reconhecimento da existência de uma servidão de vistas a favor da autora e que onera o terreno dos RR., recuando o referido muro aí existente para os limites legais - distância não inferior a 1,5 metros - abstendo-se de, por qualquer forma ou acto, perturbarem o uso e fruição do direito invocado pela autora.

No mais, mantemos a decisão da 1.ª instância.

Custas pela apelante e apelados, na proporção, respectivamente de 1/2.

(José Avelino - Relator -)

(Regina Rosa)

(Artur Dias)