Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
498/13.7TBTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
DIREITO DE PERSONALIDADE
RELAÇÃO DE VIZINHANÇA
COLISÃO DE DIREITOS
Data do Acordão: 03/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - TONDELA - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 70, 335, 1346 CC
Sumário: 1.- Ocorrendo uma colisão de direitos, de um lado relativos à personalidade e, do outro, relativos à propriedade e economia, apesar da aparente prevalência dos primeiros, far-se-á sempre uma avaliação concreta dos factos da situação.

2.- Importa averiguar se a prevalência dos direitos relativos à personalidade não resulta numa desproporção intolerável.

3.- Numa comunidade rural de trinta pessoas, em que quase todas as famílias possuem uma ou duas vacas, são aceitáveis algumas restrições provocadas por estas ao direito da personalidade, especialmente quando elas já ocorrem há muitos anos.

Se o titular do direito de personalidade apenas é incomodado com as moscas e o cheiro mais intenso em certos momentos, ambiente que sempre foi o seu, sem ser posto em causa o seu direito ao descanso e saúde, justifica-se que o seu direito ceda perante o direito de terceiro à economia de duas vacas em parte da sua propriedade vizinha.

Decisão Texto Integral:

            Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

O (…) e marido, F (…), C (…) e mulher, F (…) intentaram ação contra A (…) e mulher, M (…), pedindo a condenação dos Réus:

a) Reconhecer que os primeiros autores são legítimos donos e possuidores do prédio identificado nos artigos 1º e 3º da petição;

b) A retirar do logradouro dos primeiros autores, definido nos artigos 12º e 13º da petição, as pedras e estrumes aí aludidos, abrindo mão dele e entregando-o aos primeiros autores;

c) A retirar os animais, estercos e excrementos que se encontram na casa dos réus, referida no artigo 7º da petição, e fazer a limpeza de forma a cessar a emissão de cheiros e de insectos lesivos da saúde dos autores e impedidos de continuar a dar a tal casa o referido fim;

d) Indemnizar os primeiros autores pelos prejuízos aludidos nos artigos 26º da petição, no montante que vier a liquidar-se no decurso do processo ou em execução de sentença;

e) Reconhecer que os segundos autores são legítimos donos e possuidores do prédio identificado nos artigos 4º a 6º da petição;

f) Indemnizar os segundos autores no valor de € 100,00, resultante da destruição do muro, referido nos artigos 27º a 30º da petição;

g) Absterem-se de, no futuro, praticar quaisquer actos iguais ou similares que impeçam o acesso ao prédio dos segundos autores através do logradouro dos primeiros autores em direcção ao portal referido no artigo 27º da petição.

Para tanto, alegaram os Autores, em síntese:

Os primeiros autores são donos do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, com o logradouro descrito no artigo 3º, por o haverem adquirido por usucapião.

Os segundos autores são donos e legítimos possuidores do prédio identificado no artigo 4º da petição, por o haverem adquirido também por usucapião.

Os réus são donos da casa descrita no artigo 7º da petição.

Apenas a 2,20 metros da casa dos primeiros autores fica o prédio dos réus.

Os réus mantêm neste prédio quatro vacas, em piso térreo e no interior as paredes à vista. Os animais ficam por sobre o mato que se transforma em estrume e esterco, que exala cheiros que afectam a saúde pública.

De há dois anos para cá, aproveitando uma altura em que aí não existiam

lenhas dos primeiros autores, os réus depositaram estrumes no logradouro dos primeiros autores, a nascente da casa destes e por baixo de duas das suas janelas, e depositaram em tal logradouro enormes pedras.

Os estercos ficam no meio do aglomerado urbano da povoação de Jueus.

Os estrumes exalam cheiros nauseabundos e contribuem para a abundante produção de moscas e mosquitos que invadem constantemente a casa dos primeiros autores, principalmente no verão, o que é prejudicial para a saúde e bem estar dos habitantes da casa.

Os primeiros autores são obrigados a manter as janelas e as portas sempre fechadas para minorar aqueles efeitos, não podendo secar roupas no exterior da casa porque ficam sujas pelas moscas e mosquitos e impregnados de maus cheiros derivados do interior e exterior do barracão.

Com a prática de tais actos estão os primeiros autores desgostosos, incomodados e vexados, prejuízos que irão continuar até à resolução de tais situações.

Sobre o referido logradouro e a favor do prédio rústico dos 2ºs autores existe um acesso a pé no sentido nascente-poente, com o leito de 70 cm, e em direcção ao portal com igual largura.

Há cerca de dois anos, os réus colocaram no início do acesso pedras que, além de ocuparem o terreno dos 1ºs autores, impedem o acesso ao prédio dos 2ºs autores. E, com isso, destruíram parcialmente o muro dos 2ºs autores, cuja reparação importa em € 100,00.

Contestaram os réus, em síntese:

A autora (…) apenas adquiriu uma parte dividida e demarcada do prédio constante da escritura identificada na petição.

Nas partilhas verbais após a morte de seu pai, (…), ocorrida em 1971, a casa e releixo foram atribuídos além dela aos irmãos, (…).
A (…) comprou aos irmãos (…) as suas partes.
A (…) vendeu a sua parte a (…).
O (…) já em 2000 possuía há mais de 25 anos uma loja no rés-do-chão da casa e uma parte no releixo adjacente.

O marido da (…) em Outubro de 1999, pretendeu fazer sua a tal loja, substituindo a porta de acesso, e acabou condenado por crime de usurpação de imóvel.

Após o processo crime, a autora (…) em 31/03/2002, outorgou contrato promessa com o dito (…) e mulher, no qual estes prometeram vender àquela e ela comprar-lhe a dita loja e parte do releixo.

Nessa altura, a (…)e marido demarcaram o seu bocado de releixo da parte que os réus vinham ocupando em exclusividade há mais de 25 anos, fazendo umas cruzes nos estremos da linha de confinância através dos louvados (…).

Poucos meses depois, os referidos autores ampliaram a casa com a nova construção até ao limite do prédio adquirido a (…) e mulher e deixaram livre o releixo demarcado dos réus.

Jueus é uma pequena povoação situada no lado nascente da Serra do Caramulo, onde a criação de gado bovino se faz tradicionalmente nos baixos das casas de habitação, o que representa para muitas famílias um complemento muito importante para o seu rendimento.

Não têm uma vacaria, mas antes uma criação doméstica de duas vacas. No logradouro, os réus depositam unicamente matos (tojo, carqueja, urze, feno e palhas) sem qualquer curtimento e transformados estes em estrume no curral das vacas, com frequência os retiram directamente para o tractor e o transportam dali para o cultivo das terras, não advindo daí cheiros nauseabundos e pestilentos ou insalubridade.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar a ação parcialmente procedente e a condenar os réus a reconhecer que os autores (…) são donos e legítimos possuidores do prédio identificado no ponto 1) da factualidade provada e a reconhecer que os autores (…) são donos e legítimos possuidores do prédio identificado noponto 3) da factualidade provada.

A sentença absolveu os réus dos demais peticionado.


*

Inconformados, os Autores recorreram e apresentam as seguintes conclusões:

(…)

            Os Réus contra-alegaram, defendendo o bem fundado da decisão recorrida.

*

            As questões a decidir são as seguintes:

            1ª Reapreciação da matéria de facto.

            2ª Demonstração ou não de que o logradouro é dos primeiros Autores.

            3ª Demonstração ou não do acesso dos segundos Autores.

            4ª Justifica-se a retirada dos animais e a cessação da respetiva atividade?

            5ª Justificam-se os pedidos indemnizatórios?


*


Na reapreciação dos factos, o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.662, nº1, do Código de Processo Civil).

Este tribunal forma a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos impugnados. (“Se a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro, deve proceder à modificação da decisão, fazendo jus ao reforço dos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante o 2º grau de jurisdição em matéria de facto.” (A.Geraldes, Recursos, 3ªedição, 2010, Almedina, pág.320.)

É ainda pertinente ter em mente, como assinala o acórdão de 3.12.2013, desta Relação, no processo 194/09.0TBPBL.C1, em www.dgsi.pt, “quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas – nomeadamente prova testemunhal -, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado.

Reapreciadas as provas documental e testemunhal, a nossa convicção segue no essencial no mesmo sentido expresso pelo tribunal recorrido.

(…)


*


            São então os seguintes os factos provados:

1 – Na Conservatória do Registo Predial de Tondela, encontra-se descrito sob o nº 1301 o prédio urbano, freguesia de (...) , com a área de 65,5 m2, composto de casa de habitação de dois pavimentos, a confrontar do norte J (...) , do sul e nascente herdeiros de G (...) , do poente de J (...) , inscrito na matriz sob o artigo 280º.

2 - Pela apresentação 02 de 19/08/03, encontra-se inscrita a aquisição do prédio aludido em 1), a favor de O (…) e marido F (…) por usucapião.

3 - Na Conservatória do Registo Predial de Tondela, encontra-se descrito sob o n º1797 o prédio rústico, freguesia de (...) , com a área de 150 m2, composto de terra de semeadura, a confrontar do norte e nascente com caminho, do sul com G (...) , do poente com M (...) , inscrito na matriz sob o artigo 2092º.

4 - Pela apresentação 2234 de 08/09/2010, encontra-se inscrita a aquisição do prédio aludido em 3), a favor de C (…) , casado no regime da comunhão de adquiridos com F (…), por compra.

5 – Serviu de base ao registo aludido em 1) e 2) a escritura pública intitulada de “Justificação” outorgada no dia 26 de Maio de 2003 no Cartório Notarial de Oliveira de Frades, exarada de fls. 75 a 76 verso do Livro de Notas para escrituras diversas n º 177-C, na qual intervieram na qualidade de primeiros outorgantes os autores O (…) e F (…), os quais declararam que “(…) com exclusão de outrem, são donos e legítimos possuidores do prédio urbano composto de casa de habitação, com dois pavimentos no primeiro com duas lojas e dois vãos e no segundo com uma divisão e quatro vãos, com a área de 65,50 m2, sito no lugar de Jueus, a confrontar do norte com J (...) , sul e nascente com herdeiros de G (...) e do poente com herdeiros de J (...) , inscrito na respectiva matriz no ano de 1937 em nome de G (...) sob o artigo 280 (…)”.

6 – Serviu de base ao registo aludido em 3) e 4) a escritura pública intitulada de “Compra e Venda”, outorgada no Cartório Notarial de Tondela em 8 de Setembro de 2010, na qual intervieram como primeiros outorgantes (…) e como segundo outorgante (…)sendo que, declararam os primeiros “Que por esta escritura e pelo preço já recebido de quinhentos euros vendem ao segundo o seguinte prédio, que não confronta com outros rústicos seus: rústico, sito no (...) , freguesia de (...) , concelho de Tondela, inscrito na matriz sob o artigo 2092º (…)”.

7 – Os primeiros autores, O (…)e marido F (…), há mais de 20 anos que vêm possuindo a casa identificada no ponto 1), habitando-a, melhorando-a, utilizando o rés-do-chão para arrumos, o que fazem à vista de toda a gente sem oposição de ninguém, ininterruptamente, na convicção de em exclusivo exercerem um direito próprio.

8 – Os réus são donos de uma casa com 2 pavimentos, hoje destinada a arrumações e animais, sita à (...) , freguesia do (...) , a confrontar do norte e sul com O (...) , nascente com caminho e do poente com J (...) , inscrito na matriz sob o artigo 279º.

9 – Entre o prédio aludido em 1) e o prédio aludido em 8) desenvolve-se um caminho que dá acesso a ambos os prédios.

10 – Do prédio aludido no ponto 1) até à entrada do piso térreo do prédio aludido em 8) dista cerca de 5,20 metros.

11- O prédio aludido em 8) tem a área de cerca de 20 m2, tendo no piso térreo e no interior as paredes em pedra à vista.

12 – Os réus mantêm no prédio aludido em 8) duas vacas e um vitelo.

13- Os animais ficam por sobre o mato que se transforma em estrume e esterco, que exala cheiros.

14 - Os réus desde data não concretamente apurada mas situada há mais de 20 anos que depositam estrume seco no logradouro que fica a nascente do prédio aludido em 1) e por debaixo de duas janelas desta casa onde os primeiros autores residem, bem como há cerca de 2/3 anos depositaram em tal logradouro duas pedras de grande dimensão.

15 – O logradouro aludido em 14) fica para poente do caminho aludido em 9) e encostado à parede nascente da casa aludida em 1) e ao muro de vedação do prédio aludido em 3), ficando o prédio aludido em 8) a nascente de tal caminho.

16 – Aquando da fiscalização da inspecção do Ministério do Ambiente os réus já procediam nos termos aludidos em 14), continuando após a referida inspecção a proceder nos mesmos termos.

17 – O logradouro aludido em 14) situa-se sensivelmente no meio do aglomerado urbano da povoação de Jueus, por debaixo de duas das janelas da casa aludida em 1), a uma altura de cerca de 3,80 metros em relação ao primeiro andar e sensivelmente a um metro do parapeito em relação à janela do rés-do-chão.

18 – Os animais e estrumes, quer os do interior quer os do exterior do barracão exalam cheiros.

19 – Os excrementos deixados pelos diversos animais existentes na povoação de Jueus, nos caminhos por onde passam, inclusive junto à casa aludida em 1) exalam cheiros e contribuem para a abundante produção de moscas e mosquitos que previsivelmente invadem as habitações principalmente no Verão.

20 – Os autores e demais habitantes da povoação de Jueus são obrigados a manter as janelas e portas de habitação sempre fechadas para minorar os efeitos do aludido em 19) e do aludido em 18).

21- As pedras aludidas em 14) foram pelos réus colocadas em frente a abertura feita pelos segundos autores no muro de vedação do prédio aludido em 3), com o propósito de impediram a passagem destes pelo logradouro aludido em 14).

22 – O muro de vedação do prédio aludido em 3) apresenta fissuras.

23- Nas partilhas verbais após a morte do pai da autora, (…) ocorrida por volta do ano de 1970, a casa aludida em 1) e o releixo aludido em 14) foi atribuído à autora, e seus irmãos (…)

23- A autora O (...) , adquiriu aos irmãos (…) as partes que lhes foram adjudicadas.

24 – A Elisa vendeu a sua parte a (…)..

25 – Correu termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Tondela, o processo comum singular n º 129/996TBTND, no âmbito do qual foi proferida sentença transitada em julgado em 30/10/2001, que condenou o ali arguido F (...) , além do mais, pela prática de usurpação de coisa imóvel, previsto e punido pelo artigo 215º do Código Penal, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de PTE 700$00.

26 – Na factualidade provada constante da decisão aludida em 25) resulta que o (…) já em 2000 possuía há mais de 25 anos uma loja no rés-do-chão da casa e uma parte no releixo adjacente.

27 – O marido da O (..), F (…) em Outubro de 1999 pretendeu fazer sua tal loja, substituindo a porta de acesso, o que deu origem à decisão aludida em 25).

28 – Sem prejuízo do assente em 14, em limites temporais e físicos não apurados, a Autora (…) chegaram a utilizar parte do releixo.

29 – Após o processo-crime aludido em 25) a autora F (...) em 31/03/2002 outorgou um documento escrito, intitulado “contrato promessa”, no qual também intervieram (…) e mulher (…) no qual estes prometeram vender àquela e ela comprar-lhes a dita loja e releixo (parte) pertença do casal.

30 – Na data aludida em 29), a autora F (…) o marido e os réus demarcaram o seu bocado do releixo da parte que os réus vinham ocupando em  exclusividade há mais de 25 anos, sendo o réu Adelino o único e universal herdeiro de seu pai.

31 – Como sinais de demarcação fizeram cruzes nos estremos da linha de confinância através dos louvados (…).

32- Poucos meses depois os autores (…)e marido, no prolongamento do corpo antigo da casa ampliaram esta com nova construção até ao limite do prédio adquirido a (…) e mulher.

33- E deixaram livre o logradouro demarcado dos réus, embora tapassem com a construção as cruzes de demarcação.

34- O acesso para o novo corpo de ampliação quer ao nível do rés-do-chão, quer a do andar faz-se através do corpo da antiga casa.

35 – No estremo norte do caminho aludido em 9), um portão em ferro tem os chumbadoiros na casa dos réus e no lado oposto outro com chumbadoiros no muro de vedação do prédio aludido em 3).

36 – Uns 30 metros mais a sul em ambos os lados do caminho incrustações nas paredes.

37 – O acesso aludido em 9) desde o tempo de (…) era propriedade privada.

38 – Há mais de 25 anos que os réus e seus antepossuidores (…) e mulher (…), depositam tojo, carqueja, urzes, palhas e estrume seco no logradouro/releixo aludido em 14), à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, ininterruptamente, ignorando lesar direitos de outrem, na convicção de em exclusivo exercerem um direito próprio.

39 – Ao fazerem a ampliação aludida em 32) os autores F (...) e marido toparam-na junto ao muro de vedação do prédio aludido em 3) e fecharam o portal de acesso a este último prédio que existia na Rua Principal mais a norte.

40- Entre o estremo norte da ampliação e o muro fizeram uma abertura de pé para transitarem por sobre o logradouro aludido em 14) e 39).

41- Em virtude do aludido em 39) e 40) os réus procederam nos termos aludidos em 14) e 21).

42- Jueus é uma pequena povoação, com cerca de 30 habitantes situada no lado nascente da Serra do Caramulo, onde a criação de gado bovino se faz tradicionalmente nos baixos das casas de habitação ou perto destas, existindo actualmente cerca de 16 bovinos no interior da povoação, para além de caprinos e outros animais.

(Não existe o nº43.)

44 – A criação de dois ou três animais desta espécie têm representado e representa ainda para as famílias um complemento importante para o seu rendimento, naquela povoação.

45 – Autores e réus andam de relações cortadas.

46- A exploração que os réus fazem no prédio aludido em 8), não se trata de uma vacaria, ou de uma exploração agro-pecuária e agro-industrial, constitui antes uma criação doméstica de duas vacas e um vitelo.

47 – No logradouro aludido em 14) e 38) os réus depositam matos secos/estrume sem qualquer curtimento.

48- Transformados os matos secos no curral das vacas, com frequência não apurada os retiram directamente para o tractor e os transportam dali para o cultivo das suas terras.

49 – Os autores quer antes, quer depois da ampliação da casa sempre estenderam e estendem as suas roupas a secar quer em cordão debaixo da varanda, quer em suporte próprio no andar da ampliação.

50 – Por acordo escrito datado de 15 de Dezembro de 1979, intitulado “Termos de compromisso de troca por cedência mútua de dois prédios”, intervieram (…), pelo qual acordaram estes últimos ceder “metade de uma parte da casa de cima sita em Jueus a qual pertenceu a (…)”.

51 – No tempo de (…) e até à data aludida em 23) o prédio dos réus aludido em 8) era uma arrecadação de materiais agrícolas, salgadeiras e feno para os animais.


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2ª Demonstração ou não de que o logradouro é dos primeiros Autores.

Considerando a presunção de titularidade do direito decorrente do artigo 7º do Código de Registo Predial e os factos provados, integradores da específica aquisição por usucapião, a sentença recorrida reconheceu aos primeiros Autores o direito de propriedade sobre o prédio identificado no ponto 1) dos factos provados (a casa de habitação).

E, bem, concluiu que aqueles não provaram, como a lei lhes impõe (art.342º, nº1, do Código Civil), que da casa referida faça parte o logradouro em litígio.

Lembremos que a presunção da titularidade do direito, decorrente do art.7º do Código do Registo Predial, não tem como finalidade garantir os elementos de identificação do prédio, não abrangendo a área, limites ou confrontações do  mesmo no registo, sendo certo que, no caso, não há sequer menção no registo a qualquer logradouro ou a área descoberta. (Ver, entre outros, ac. do STJ de 14.11.2013, no processo 74/07, em www.dgsi.pt.)

Assim, a segunda parte do 1º pedido e o pedido de restituição do logradouro são improcedentes.

            3ª Demonstração ou não do acesso dos segundos Autores.

            No mesmo contexto jurídico, facilmente se percebe que estes Autores não provaram fazer sobre o logradouro qualquer acesso legítimo ao seu prédio.


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            4ª Justifica-se a retirada dos animais e a cessação da respetiva atividade?

A produção ou emissão de cheiros, geradora de degradação ambiental, lesiva de direitos, pode ser encarada por vias distintas, embora interligadas:

A do direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, densificado pela Lei de Bases do Ambiente, essencialmente orientada para a protecção de interesses colectivos;

A da tutela do direito de propriedade, no domínio das relações jurídicas de vizinhança (art.º 1346.º do Código Civil);

A dos direitos fundamentais da personalidade, constitucionais e também previstos no Código Civil, no seu art.º 70.º, sendo claro que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida na sua própria casa se configuram como emanação do direito da personalidade (cfr., entre outros, acórdão do STJ de 19.4.2012, no processo 3920/07, em www.dgsi.pt).

Como o fazem as partes, é necessário coligir o disposto no art. 1346º do Código Civil:

"O proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam."

Para que seja fundada aquela oposição, exige o normativo que se verifique um destes dois requisitos:

a) que as emissões importem num prejuízo substancial para o uso do imóvel vizinho; ou

b) que não resultem da utilização normal do prédio de que emanam.

Tanto o primeiro como o segundo dos requisitos devem ser apreciados objectivamente, atendendo-se à natureza e à finalidade do prédio, e não segundo a sensibilidade do dono. ( P. Lima, A. Varela, C.C.Anotado, vol.III, 2ª edição, paginas 178 e seguintes.)

Quanto ao primeiro requisito, é indiscutível que ocorrerá um prejuízo substancial para o uso do imóvel se estiver em causa a saúde, o repouso, a tranquilidade e o sono dos que nele habitam.

Quanto ao segundo dos requisitos, o uso normal do prédio deve ser apreciado em função do destino económico do prédio. A utilização normal depende sempre, em alguma medida, das condições e usos locais (P.Lima, A.Varela, obra e local citados).

Os Autores invocam ainda os artigos 115º e seguintes do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (Decreto-Lei n.º38382/51 de 7 de Agosto).

Seguindo de perto o acórdão do STJ, de 20.9.2012, (proc.45/2001, em www.dgsi.pt), “o RGEU estabelece as bases gerais a que deve obedecer o projecto de uma nova edificação, garantindo ao seu titular que a moradia que pretende ter haverá de ser construída de modo a propiciar-lhe condições vantajosas para a sua saúde e bem-estar, mas deixando, todavia, às autarquias a última palavra quanto à decisão dos planos de pormenor da sua realização desde que, não se mostrando delineados contra o Regulamento, passem a enriquecer cada uma das moradias que se planeiam erigir.”

“Muito embora o RGEU contenha essencialmente normas de direito público a proteger interesses da comunidade, ao mesmo tempo protege, outrossim, interesses particulares.”

“A jurisprudência deste STJ tem-se orientado no sentido de que está consentida aos particulares a possibilidade de demandarem o infractor das regras do RGEU desde que, face a esta ilegalidade, lhe tenham advindo danos patrimoniais compreendidos no atentado ao seu direito de propriedade e, igualmente, lhe tenham causado prejuízos não patrimoniais relativos aos seus direitos de personalidade protegidos pelo art.º 70º do Cód. Civil, ou seja, ao direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, constitucionalmente acautelado (art.º 66.º, n.º 1).”

Dispõe o artigo 115.º deste Regulamento:

(Alojamento de animais)

“As instalações para alojamento de animais somente poderão ser consentidas nas áreas habitadas ou suas imediações quando construídas e exploradas em condições de não originarem, directa ou indirectamente, qualquer prejuízo para a salubridade e conforto das habitações.”

Sendo assim, pela referência ao prejuízo para a salubridade e conforto das habitações, quando confrontado com o prejuízo substancial para o uso do imóvel vizinho, da lei civil, estamos perante a mesma ideia de prejuízo para a saúde e conforto das habitações e dos seus habitantes.

Como no caso dos autos estão em confronto direitos fundamentais dos autores (da personalidade) e dos réus (propriedade e economia), é necessário pensar ainda o art.335º do Código Civil. “Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.”

É certo, em regra, havendo colisão de direitos fundamentais, os direitos à saúde, ambiente e qualidade de vida, prevalecem sobre o direito de propriedade e o direito de exercício de actividade comercial ou industrial.

Mas não devemos, à partida e abstratamente, sacrificar os direitos de natureza patrimonial aos direitos inerentes à integridade do indivíduo. Caso a caso, e em concreto, importa averiguar se a prevalência dos direitos relativos à personalidade não resulta em desproporção intolerável face aos interesses em jogo. (Ver acórdão do STJ, de 15.3.2007, proc.07B585, em www.dgsi.pt.)

            Vejamos o caso concreto.

Os animais e estrumes, quer os do interior quer os do exterior do barracão exalam cheiros. Os excrementos deixados pelos diversos animais existentes na povoação de Jueus, nos caminhos por onde passam, inclusive junto à casa aludida em 1), exalam cheiros e contribuem para a abundante produção de moscas e mosquitos que previsivelmente invadem as habitações principalmente no Verão. Os autores e demais habitantes da povoação de Jueus são obrigados a manter as janelas e portas de habitação sempre fechadas para minorar os efeitos descritos.

Jueus é uma pequena povoação, com cerca de 30 habitantes situada no lado nascente da Serra do Caramulo, onde a criação de gado bovino se faz tradicionalmente nos baixos das casas de habitação ou perto destas, existindo actualmente cerca de 16 bovinos no interior da povoação, para além de caprinos e outros animais.

A criação de dois ou três animais desta espécie têm representado e representa ainda para as famílias um complemento importante para o seu rendimento, naquela povoação.

Resultou ainda da aquisição probatória que os habitantes são agricultores, em geral já com alguma idade.

A situação já existe há muitos anos.

Não se provou um dano para a saúde pública ou para a saúde dos Autores.

O incómodo maior são as moscas, fenómeno que não é novo para os habitantes.

As pessoas, com a restrição referida das portas e janelas, vão obtendo o seu descanso e relativo conforto habitacional. O gozo habitacional é o usual da localidade.

            Apesar do contributo dos cheiros provenientes dos animais e estrumes do prédio dos réus para o ambiente geral e, concretamente, para a produção de moscas e mosquitos, principalmente no Verão, o ambiente não se degradou e é aquele que sempre existiu e carateriza a povoação de Jueus e algumas aldeias portuguesas.

Com toda a certeza, prevalecem sobre os cheiros provenientes dos animais e estrumes do prédio dos réus o cheiro geral que na povoação se faz sentir e que

advém dos excrementos existentes em todos os caminhos da povoação, dos animais existentes na mesma, como assinalou o julgador que se deslocou ao local.

Os cheiros não se dirigem diretamente à casa dos autores.

            O dano apurado nunca foi tido por essencial para os habitantes.

Neste contexto, não estando em causa a saúde e descanso dos Autores, a restrição provada ao uso das janelas e portas e o incómodo provocado pelas moscas, num ambiente vivido há muitos anos, tem de ser entendida como tolerável e o pedido de cessação da economia dos Réus como excessiva e intolerável.

Alguma coisa pode ser feita para minorar os efeitos provados. No entanto, nem os Autores nem os Réus a pediu.

Também não se pode dizer que o prédio dos Réus tenha uma utilização anormal. Embora inicialmente, no tempo do G (...) , o prédio dos réus se tenha destinado à arrecadação de materiais agrícolas, salgadeiras e feno para animais, e posteriormente tenha sido alterado o seu fim, passando a ser utilizado para arrecadação de animais, o que acontece há vários anos, sendo certo que na localidade a criação de gado bovino se faz tradicionalmente nos baixos das casas de habitação ou perto destas, não se pode considerar que a emissão de cheiros provenha de uma utilização anormal do prédio.

Pelo exposto, e considerando:

O dano apurado não importa um prejuízo substancial para o uso dos imóveis dos Autores;

Este dano não resulta de uma utilização anormal do prédio dos Réus;

E o dano não se consubstancia num dano para a saúde e descanso dos Autores, mas num incómodo que pode ser minorado;

Conclui-se que os Autores não têm direito a pedir a retirada dos animais e a cessação da respetiva atividade.

É certo que a evolução da vida em todos os aspectos tem acarretado o desenvolvimento das localidades, em diversas vertentes.

Mas a preservação de algumas comunidades rurais e de práticas mais antigas faz-se à custa da solidariedade dos seus membros, em regra já com alguma idade.

Os Autores invocam o abuso de direito por parte dos réus.

Dispõe o art.º 334 do Código Civil, que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

A concepção de abuso de direito adoptada no nosso ordenamento jurídico é objectiva, não sendo necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, basta que se excedam esses limites (P.Lima, A.Varela, C.C. Anotado, 3ª edição, vol.I, página 296).

O excesso cometido tem de ser manifesto e para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes têm de ponderar-se as concepções ético-jurídicas dominantes na comunidade envolvente. Quanto ao fim social e económico do direito, há que buscar os juízos de valor positivamente consagrados na lei.

No caso, no desenvolvimento da análise já feita, nada nos permite concluir

que os réus agiram excedendo os limites da boa fé e dos bons costumes. Nada permite dizer que a atuação dos Réus seja chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade envolvente.

            Por fim, os Autores invocam a violação do princípio da igualdade (conlusão 23ª).

O princípio da igualdade postulado pelo art. 13.º da Lei Fundamental reclama a procura de igual ou idêntica solução legal para situações iguais ou idênticas, reclamando, da mesma fonte, a adopção de soluções diversas quando as situações a contemplar sejam elas mesma dissonantes.

As características e diferenças detetadas na referida comunidade rural impõem e legitimam uma solução diversa da que seria pensada noutro tipo de comunidade envolvente.

E foi esta consideração da diversidade que esteve também na fundamentação da solução encontrada para o caso.

Por isso, entendemos respeitado o princípio constitucional.


*

5ª Justificam-se os pedidos indemnizatórios?

Os segundos Autores pedem a condenação dos Réus a indemnizá-los no montante de € 100,00, por força da destruição do seu muro.

Como assinalou a decisão recorrida, a este respeito, não se provou qualquer facto imputável aos Réus.

Os primeiros Autores pedem a condenação dos Réus a indemnizá-los, no montante que se vier a apurar, em virtude dos prejuízos que alegam no artigo 26º da petição, com a natureza de danos não patrimoniais.

Também aqui falta o facto ilícito e culposo dos Réus pressuposto da responsabilidade civil.


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Decisão.

Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pelos Autores.

Coimbra, 2015-3-3


 (Fernando de Jesus Fonseca Monteiro (Relator)

 (Maria Inês Carvalho Brasil de Moura)

 (Luís Filipe Dias Cravo)