Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
741/09.7TBACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: EXECUÇÃO
GARANTIA REAL
TERCEIRO
INTERVENÇÃO PRINCIPAL
INTERVENÇÃO PROVOCADA
Data do Acordão: 06/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 54º Nº2, 316º E 735º DO CPC
Sumário: Pretendendo o exequente fazer valer, no processo de execução que instaurou contra o devedor, a garantia real do seu crédito e constatando-se que o bem sobre o qual incide essa garantia havia sido transferido para terceiro em momento anterior à propositura da execução, pode o exequente recorrer ao incidente de intervenção principal provocada para fazer intervir o aludido terceiro (que poderia ter demandado inicialmente) tendo em vista o prosseguimento da execução contra o devedor e contra o titular do bem onerado com a garantia real.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

O A..., S.A., instaurou processo de execução contra B... e C... , melhor identificados nos autos, pedindo o pagamento da quantia de 66.141,24€, com fundamento em contratos de mútuo garantidos por hipoteca constituída sobre o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça sob o nº 3948/Pataias.

Posteriormente, o Exequente veio requerer a intervenção principal provocada de D... , Ldª, ao abrigo do disposto no art. 321º e segs. do C.P.C., alegando, para o efeito, que os Executados haviam vendido a esta sociedade o imóvel hipotecado, razão pela qual a presente execução deve correr também contra ela, nos termos e para os efeitos previstos no art. 54º, nº 2, do C.P.C.

Tal incidente veio a ser indeferido por despacho proferido em 29/01/2014, por se ter aí considerado que o incidente adequado para fazer intervir o adquirente do bem hipotecado é o incidente de habilitação de adquirente e não aquele que foi utilizado.

Discordando dessa decisão, o Exequente veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. O Tribunal a quo indeferiu liminarmente a Intervenção Provocada com fundamentos com contrariam a própria decisão, pelo que o despacho recorrido é nulo nos termos do Artº 615 nº 1 al. c).

2. Após uma introdução fundamentadora da admissibilidade da Intervenção Provocada do adquirente do imóvel hipotecado ao exequente, o Tribunal a quo termina o despacho concluindo que o incidente adequado é a habilitação do adquirente, nos termos dos Artº 263 e 356 do NCPC (anteriores 271 e 376º).

3. Mesmo que se entenda que a decisão recorrida não é nula, ainda assim deverá ser revogada.

4. Com efeito, o exequente não pretende substituir o executado que já é parte da presente execução, uma vez que continua a ser devedor do exequente e, como tal, pode, em qualquer momento, pagar o crédito exequendo e, em momento ulterior, pode mesmo ver penhorados bens próprios, caso o produto dos bens objeto da garantia real seja insuficiente para satisfazer o seu crédito.

5. A exclui-lo, bem podia acontecer que, mais tarde, fosse necessário chamá-lo de novo à execução, o que aconteceria na referida hipótese de insuficiência do produto dos referidos bens, com os inerentes atrasos processuais.

6. Como tal, o meio processual adequado é a Intervenção Provocada, previsto no Artº 316 do N.C.P. Civil.

7. Como indica a própria epígrafe do Artº 263º do NCPC, a habilitação do adquirente destina-se a substituir uma das partes.

8. Dúvidas não há que o exequente poderia ter executado desde logo o adquirente, juntamente com o devedor, nos termos do Artº 54 nº 2 do C.P. Civil.

9. Se a lei processual civil admite que o aquirente ocupe ab initio a posição de executado, juntamente com o devedor, não existe nenhuma pode razão para que não o admita de forma superveniente.

10. Ainda que por alguma razão o Tribunal a quo entendesse que o incidente de intervenção provocada teria algum tipo de óbice na presente execução, sempre poderia ter adaptado o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, nos termos do Artº 547 do C.P. Civil, em vez de indeferir liminarmente a intervenção provocada do aquirente do imóvel, até por uma questão de economia processual.

11. Pelo que deve ser revogado o despacho recorrido, substituindo-se por outro que admita o incidente de Intervenção Provocada, nos termos do Artº 316 do C.P. Civil.

NORMAS VIOLADAS:

Artº 615 nº 1 al. c); 54 nº 2, 316º e 547, todos do NCPC e 818 do C.Civil.

Assim, conclui, deve o presente recurso ser provido e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido, substituindo-se por outro que admita o incidente de Intervenção Provocada, nos termos do Artº 316 do C.P. Civil.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se a decisão recorrida padece da nulidade que lhe é apontada pelo Apelante;

• Saber se o incidente de intervenção principal provocada tem ou não aptidão para fazer intervir na causa o proprietário do imóvel que está hipotecado para garantia do crédito exequendo.


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III.

O Apelante começa por invocar a nulidade da decisão recorrida, com fundamento no disposto no art. 615º, nº 1, alínea c), do CPC, dizendo, em suma, que a fundamentação utilizada contraria a decisão proferida e deveria ter conduzido a decisão contrária, ou seja, à admissibilidade do incidente requerido.

Dispõe a norma citada que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, daí decorrendo, portanto, que a sentença será nula quando os fundamentos nela invocados conduzem, logicamente, a uma decisão diferente da que consta da sentença, de tal forma que é possível afirmar a existência de um vicio ou erro lógico no raciocínio do julgador, vício este que, naturalmente, não poderá ser confundido com um erro de julgamento emergente da errada valoração dos factos ou da errada aplicação da lei.

De facto e como se refere no Ac. do STJ de 16/09/2008, processo 08A1438[1], “Está aqui em causa um erro lógico, derivado de os fundamentos usados não estarem em sintonia com a decisão tomada. No processo lógico, as premissas de direito e de facto apuradas pelo julgador conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas ao oposto”.

A contradição aqui em causa – determinante da nulidade da sentença – reporta-se ao processo lógico de raciocínio e não a uma opção voluntária do julgador, não podendo, por isso, ser confundida com um erro de julgamento[2].

Ora, nesta perspectiva, não nos parece que a decisão recorrida padeça do aludido vício.

De facto, aquilo que a decisão reconheceu, na respectiva fundamentação, foi apenas que, tendo o credor/exequente a possibilidade (legal) de instaurar a execução contra o devedor e o terceiro, em litisconsórcio voluntário, não há qualquer obstáculo a que, não estando o terceiro na execução e pretendendo o exequente continuar a usar da garantia real, o faça intervir, continuando o devedor originário também na execução.

Mas daí não decorria, necessariamente, que o incidente apropriado para provocar tal intervenção fosse o de intervenção principal provocada.

Não se vislumbra, pois, qualquer incompatibilidade ou contradição entre o reconhecimento (decorrente da fundamentação da decisão) de que o Exequente poderia fazer intervir o terceiro para com ele seguir a execução, a par dos Executados, e a decisão – que veio a ser proferida – de que o incidente adequado para esse efeito não era a intervenção principal provocada mas sim o incidente de habilitação.

Não existe, portanto, qualquer nulidade; existirá, quando muito, um erro de julgamento por se dever entender que nada obsta à admissibilidade do incidente requerido pelo Exequente.

É isso que passamos a analisar.

 

Determina o art. 54º, nº 2, do actual C.P.C. – à semelhança do que determinava o art. 56º, nº 2, do anterior CPC – que “a execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue directamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor”.

Resulta, por outro lado, do disposto no art. 735º do CPC (tal como já previa o anterior CPC) que, por regra, apenas estão sujeitos à execução os bens do devedor, apenas podendo ser penhorados bens de terceiro nos casos especialmente previstos na lei (como é o caso de a dívida exequenda beneficiar de garantia real sobre bens de terceiro) e desde que a execução tenha sido movida contra esse terceiro.

É certo, portanto, que, estando aqui em causa uma dívida garantida por hipoteca constituída sobre bem pertencente a terceiro, o Exequente poderia ter instaurado a execução contra esse terceiro e assim teria que proceder necessariamente caso pretendesse a execução dessa garantia, ou seja, caso pretendesse a penhora do prédio hipotecado com vista ao pagamento do seu crédito.

Não obstante pretender a execução dessa garantia – indicando à penhora o prédio hipotecado – o Exequente apenas instaurou a execução contra os devedores (eventualmente por desconhecer que o aludido prédio já não lhes pertencia), pretendendo agora que o terceiro (proprietário do prédio) seja admitido a intervir na execução para que esta possa prosseguir com a aludida penhora.

Sendo inquestionável o direito do Exequente de executar a aludida garantia, nada obsta – como, aliás, se reconheceu na decisão recorrida – a que, por via dos incidentes legalmente admitidos, faça intervir na presente execução o aludido terceiro, sendo certo que, como se referiu, poderia tê-lo demandado inicialmente.  

Resta saber – e é essa a questão suscitada no recurso – qual é o incidente adequado, já que, tendo o Exequente recorrido ao incidente de intervenção principal provocada, entendeu a decisão recorrida que o incidente adequado seria o de habilitação de adquirente e com esse fundamento indeferiu o que havia sido requerido.

Essa questão não tem merecido um entendimento uniforme da nossa jurisprudência, sendo que encontramos várias decisões no sentido que foi adoptado pela decisão recorrida (vejam-se os Acórdãos aí citados) e encontramos outras no sentido que é propugnado pelo Apelante (designadamente os Acórdãos citados nas alegações de recurso).

Diz o Apelante que o incidente de habilitação não é o adequado, na medida em que este tem como finalidade a substituição de uma parte quando é certo que não é isso que pretende; com efeito, não pretende substituir os Executados na execução, mas sim que estes continuem a ser parte a par da interveniente.

Não nos parece que possa colher tal argumentação.

Com efeito, se é certo que o incidente de habilitação tem como finalidade operar a substituição de uma parte na causa que se encontre pendente, é igualmente certo que essa substituição não tem que ser total, na medida em que não tem que abranger a totalidade da relação jurídica que está em litígio. E, bem vistas as coisas, o que estará em causa no presente incidente até será a efectiva substituição dos Executados por um terceiro (o proprietário do imóvel hipotecado) em tudo aquilo que respeita ao imóvel hipotecado e que se pretende ver penhorado e vendido na presente execução. Importa notar que o Exequente, não obstante ter demandado apenas os devedores, pretendia fazer valer a hipoteca e, porque nessa parte os devedores não têm legitimidade por não serem os proprietários do imóvel, o que importará, na prática, é operar, nessa parte, a sua substituição pela pessoa que detém tal legitimidade.

De qualquer forma, a verdade é que o Exequente recorreu ao incidente de intervenção principal provocada e, portanto, o que interessa apurar é se estão ou não verificados os requisitos/pressupostos da admissibilidade desse incidente, já que, na nossa perspectiva, aquilo que poderá justificar o indeferimento do incidente concretamente requerido é a falta dos seus pressupostos legais e não a circunstância de existir, eventualmente, um outro incidente (designadamente o da habilitação) que também pudesse ser utilizado.

Ora, no que toca à intervenção principal provocada, dispõe o art. 316º do C.P.C.:

1 – Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.

2 – Nos casos de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não tenha demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do art. 39º”.

O incidente de intervenção principal provocada será, pois, adequado para provocar a intervenção de alguém que deveria ter sido demandado inicialmente, por estar em causa uma situação de litisconsórcio necessário, ou para provocar a intervenção de alguém que poderia ter sido inicialmente demandado conjuntamente com o réu, por ocorrer uma situação de litisconsórcio voluntário.

Ora, tal como referimos supra, pretendendo o Exequente – como pretende – fazer valer a garantia de que dispõe, deveria ter demandado inicialmente o proprietário do prédio onerado com tal garantia (sendo certo que, à data da propositura da execução, os Executados já haviam transferido o respectivo direito de propriedade) e poderia tê-lo demandado juntamente com os devedores.

E, se o Exequente poderia ter demandado inicialmente o proprietário do prédio (e estava mesmo obrigado a fazê-lo se pretendesse – como pretende – fazer valer a garantia), não encontramos razões válidas para não admitir a dedução do incidente de intervenção provocada que tem precisamente como objectivo chamar à lide uma pessoa que podia ou devia ter sido demandada inicialmente.

Reafirma-se que a transferência da propriedade do prédio onerado com a garantia não ocorreu na pendência da presente execução (caso em que o incidente adequado seria o de habilitação); tal transferência já havia ocorrido à data da propositura da execução e, portanto, o terceiro que agora se pretende chamar à lide poderia ter sido demandado inicialmente e, se tal não aconteceu (eventualmente, por lapso ou desconhecimento da transmissão daquele direito), não encontramos razões válidas para sustentar que a sua intervenção não possa agora ser provocada, por via do incidente de intervenção principal.

Veja-se, neste sentido, o Acórdão do STJ de 16/01/2014[3], onde se considerou que “O facto de o credor ter instaurado acção executiva apenas contra o devedor não constitui obstáculo a que seja requerida a intervenção principal provocada do titular do bem hipotecado, se o credor pretender exercitar nessa mesma execução a garantia real do seu crédito”.

O incidente de habilitação seria, naturalmente, o adequado caso a transferência do imóvel hipotecado tivesse ocorrido na pendência da execução, tal como seria o adequado caso se pretendesse operar a substituição (integral) da parte primitiva pelo adquirente, já que o incidente de intervenção provocada não teria idoneidade para retirar da lide a parte inicial; todavia, estando em causa – como acontece no caso sub judice – uma transferência que já havia ocorrido à data da propositura da execução (o que permitiria ao Exequente ter demandado desde logo o terceiro que agora vem chamar à lide) e não estando em causa a exclusão da parte inicialmente demandada, apenas se pretendendo que o terceiro seja admitido para intervir na lide ao seu lado (como poderia ter sucedido inicialmente), o incidente de intervenção provocada surge como adequado e com aptidão para alcançar os efeitos pretendidos, razão pela qual não encontramos razões que justifiquem o seu indeferimento.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

Pretendendo o exequente fazer valer, no processo de execução que instaurou contra o devedor, a garantia real do seu crédito e constatando-se que o bem sobre o qual incide essa garantia havia sido transferido para terceiro em momento anterior à propositura da execução, pode o exequente recorrer ao incidente de intervenção principal provocada para fazer intervir o aludido terceiro (que poderia ter demandado inicialmente) tendo em vista o prosseguimento da execução contra o devedor e contra o titular do bem onerado com a garantia real.


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IV.
Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, admitindo-se o incidente de intervenção principal provocada deduzido pelo Exequente e ordenando-se o prosseguimento dos ulteriores termos desse incidente.
Custas a cargo da parte que venha a ser responsável pelas custas do incidente.
Notifique.

Maria Catarina Ramalho Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[2] Cardona Ferreira, in, Guia de Recursos em Processo Civil, 4ª. Ed., revista e actualizada, pág. 56.
[3] Proc. nº 1626/11.2TBFAF-A.G1, disponível em http://www.dgsi.pt.