Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
806/21.7T9PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: PROCEDIMENTO CONTRAORDENACIONAL
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 03/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PROCEDIMENTO CONTRAORDEACIONAL; PRESCRIÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CONTRAORDENACIONAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 29.º, N.ºS 1, 3 E 4 DA CRP; 7.º, N.ºS 3 E 6, B), DA LEI N.º 1-A/2020, DE 19 DE MARÇO, E 3.º, N.º 2, DO RGCOC.
Sumário: Mostra-se conforme com o art.º 29.º, n.ºs 1, 3 e 4 da Constituição da República, a aplicação da causa de suspensão da prescrição prevista nos art.ºs 7.º, n.ºs 3 e 6, b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, aos processos de natureza contraordenacional pendentes por factos anteriores à sua vigência e, nessa exacta medida, não violado o disposto no art.º 3.º, n.º 2, do RGCOC.
Decisão Texto Integral:






Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

            Por decisão de 20 de Julho de 2019 [por competência delegada do Presidente da ANSR], da Chefe de Divisão de Processamento de Contra-Ordenações e Apoio ao Cidadão, da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, do Ministério da Administração Interna, o arguido AA, com os demais sinais nos autos, foi condenado, pela prática de uma contra-ordenação rodoviária muito grave, p. e p. pelos arts. 27º, nºs 1 e 2, a), 3, 136º, 138º, e 146º, i) e 147º, todos do C. da Estrada, na sanção acessória, especialmente atenuada, de inibição de conduzir, pelo período de trinta dias. 

Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso de impugnação judicial que, por despacho de 8 de Novembro de 2021 [proferido pela Comarca de Leiria – Juízo Local Criminal de Pombal – Juiz 2], foi julgado improcedente e, em consequência, mantida a decisão administrativa impugnada.


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De novo inconformado com a decisão, recorreu o arguido para esta Relação, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

                a. O presente procedimento contraordenacional encontra-se prescrito, conforme demonstrado nos pontos 21. a 55. das Alegações.

b. Nos termos que se logrou demonstrar nos pontos referenciados no parágrafo precedente, o presente processo contraordenacional prescreveu em 07 de outubro de 2021.

c. É assim, pois, contrariamente ao considerado pelo Tribunal “a quo”, não se aplica qualquer das causas da suspensão da prescrição previstas no art.º 27.º-A do RGCO.

d. Não se pode aceitar, como considerado pelo Tribunal “a quo”, que se tenha verificado a causa de suspensão prevista na al. c) do art.º 27-A.º do RGCO, uma vez que, aquando da apresentação da impugnação judicial da decisão administrativa perante o Tribunal “a quo”, havia já decorrido o prazo ordinário de prescrição (2 anos) – 188.º, nº 1 do CE – acrescido de metade (1 ano) – art.º 28.º, nº 3 do RGCO.

e. Esclareça-se, os factos em causa nos presentes autos suscetíveis de integrar a prática de contraordenação, ocorreram em 07 de outubro de 2018, sendo dessa data que se deve contar o prazo de prescrição e não a data da notificação da decisão administrativa ao arguido – 19.08.2019 – como parece considerar a decisão “a quo”.

f. Não tem lugar, nos presentes autos, a aplicação de qualquer outra causa de suspensão do prazo de prescrição.

g. Não têm, in casu, aplicação os prazos de suspensão previstos pela legislação especial atinente ao impacto do Covid 19, prevista no art.º 7.º, nº 3 e 9 al. b) da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, como pretendido pelo Tribunal “a quo”.

h. Esta solução é a que resulta dos elementares princípios da segurança e confiança jurídicas ínsitos ao Princípio de Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da CRP, que impede a aplicação retroativa de novas causas de suspensão da prescrição, que implicam alargamento do prazo prescricional.

i. Ao que acresce a circunstância de a proibição da aplicação retroativa de novas causas de suspensão da prescrição violaria também o princípio da proibição da aplicação retroativa menos favorável da lei sancionatória ou punitiva, uma vez que, o facto de a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, estabelecer uma nova causa de suspensão dos prazos de prescrição em curso revela-se desfavorável ao arguido, na medida em que este vê aumentados os prazos de prescrição do facto ilícito que praticou em momento anterior ao início da sua vigência.

j. Esta regra da proibição da aplicação retroativa da lei desfavorável ao arguido, é transponível e aplicável ao processo contraordenacional.

k. Assim, o regime estabelecido pelo artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, está limitado pelo princípio da não aplicação retroativa da lei desfavorável ao arguido em processo contraordenacional, previsto no artigo 3.º, n.º 1, do RGCO.

l. A proibição da aplicação retroativa da lei contraordenacional não está associada a razões ou problemas de saúde pública ou dificuldades de investigação e estas razões não podem ser usadas para afastar a proibição da aplicação retroativa da lei em matéria contraordenacional.

m. No caso dos processos contraordenacionais iniciados antes da vigência da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, a suspensão da prescrição não pode ser justificada por maiores ou menores dificuldades de investigação ou realização de atos processuais, na medida em que tal é indiferente ao juízo de censurabilidade e de punibilidade que deve ser exercido sobre a conduta do agente.

n. Mais se diga que, a ratio da norma estabelecida no art.º 7.º, nº 3 da Lei 1-A/2020, sempre foi a de permitir ao cidadão comum a prática dos atos sem que a situação pandémica vivenciada o impossibilitasse de tal, atentas as restrições de circulação e acesso aos serviços, tendo, portanto, como destinatários, os cidadãos comuns e não os órgãos da justiça ou entidades administrativas com poder sancionatório, pois, esses sempre dispuseram de meios para a tramitação dos respetivos processos, prova do mesmo é a circunstância de sempre terem sido proferidas decisões por tais órgãos.

o. Por todo o exposto, e, como demonstrado, não é aplicável no caso dos presentes autos qualquer causa de suspensão do prazo de prescrição.

p. Devendo em consequência, ser declarada a prescrição e arquivados os presentes autos de contraordenação.

(…)


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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, tendo em consideração a limitação dos poderes de cognição do tribunal de recurso no âmbito do direito de mera ordenação social, imposta pelo art. 75º, nº 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas [doravante, RGCOC], atentas as conclusões formuladas pela Digna Magistrada do Ministério Público recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A prescrição do procedimento por contra-ordenação;

(…)


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            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da decisão recorrida. Assim:

A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

“ (…).

2.1.1. No dia 07 de outubro de 2018, pelas 11h07m, na ..., sentido ..., ao KM 145 em ..., ..., o arguido AA seguia aos comandos do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula (…) a uma velocidade de, pelo menos, 183 Km/h (deduzido o erro máximo admissível que no caso é de 10 Km/h), num local que tinha como limite de velocidade 120 Km/h.

2.1.2. Revelando o arguido desatenção e uma irrefletida inobservância das normas de direito rodoviário, no que concerne aos limites de velocidade, ao exercer aquela condução nos apontados termos, com manifesta falta de cuidado e de prudência, ainda que não se haja conformado com o resultado, sabendo que se tratava de um comportamento que lhe estava legalmente vedado.

2.1.3. O registo daquela velocidade foi obtido através do Radar Fotográfico Multanova MUVR-6FD n.º 2627, aprovado pela ANSR através do Despacho n.º 1863/2014 de 02.01, e certificado pelo IPQ através do despacho de provação n.º 111.20.12.309 de 31 de maio de 2012.

2.1.4. Equipamento que havia sido sujeito a verificação ordinária pelo IPQ a 26.06.2018.

2.1.5. Tendo o certificado operador daquele radar o GP n.º 2020581.

2.1.6.O arguido liquidou a quantia de 300,00 € a título de depósito.

2.1.7. O arguido não tem averbado no seu RIC qualquer condenação conhecida à data.

(…)”.

            B) Dela consta a seguinte fundamentação quanto à prescrição do procedimento:

            “(…).

            Veio o arguido invocar após a distribuição do processo (15.10.2021) que o procedimento contraordenacional se mostrava prescrito pelo decurso de mais de dois anos sobre a prática dos factos (07.10.2018) aqui sancionados, acrescido de um ano a que alude o art. 28.º n.º 3 do RGCO, por remissão do art. 188.º n.º 2 do Código da Estrada. Vejamos!

O arguido foi condenado por decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária datada de 20 de julho de 2019 pela prática de uma contraordenação prevista e punida pelo artigo 27.º n.º 1, 2 al. a), e 3 do Decreto-lei n.º 22-A/98, de 01.10 – doravante Código da Estrada – e 136.º, 138.º, e 146.º al. i) e 147º, do mesmo diploma legal, além do mais, numa sanção acessória de inibição de conduzir, especialmente atenuada, pelo período de 30 dias.

Considerando a natureza do ato e infração imputada ao arguido trata-se de um facto ilícito [infração estradal] e censurável [atuação negligente] que preenche um tipo legal correspondente à violação de uma disposição legal relativa à circulação automóvel [citada contraordenação prevista e punida pelo artigo 27.º n.º 1, 2 al. a), e 3; 136.º, 138.º, e 146.º al. i) e 147º, do Código da Estrada], que será regulada pelo disposto nessa mesma Lei [Código da estrada] e subsidiariamente pelo (RGCO) regime geral das contraordenações [cfr. art. 132.º do RGCO e 188.º n.º 2 do CE].

Ora, o prazo de prescrição convocável neste caso é de dois anos [de acordo com o art. 188.º n.º 1 do CE] o que bastaria para que, em abstrato, os factos imputados ao arguido e praticados a 07.10.2018 se mostrassem prescritos (cfr. auto de noticia onde assenta decisão administrativa impugnada). Mas tal ocorreria só à míngua da desconsideração de eventuais causas de interrupção ou de suspensão da contagem de um tal prazo de prescrição do procedimento.

Deve, de seguida, analisar-se as ocorrências de causas suspensões ou interrupções do prazo de prescrição previstas nos artigos 27º-A e 28º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10, aplicáveis nos termos dos citados preceitos do C.E.

O Artigo 27º-A (Suspensão da prescrição):

1. A prescrição do procedimento por contraordenação suspende-se para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento:

a) Não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal;

b) Estiver pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público até à sua devolução à autoridade administrativa, nos termos do art. 40º;

c) Estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso;

2. Nos casos previstos nas alíneas b) e c) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar seis meses.

O artigo 28º “ (Interrupção da prescrição):

1. A prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se:

a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;

b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;

c) Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;

d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima.

2. Nos casos de concurso de infracções, a interrupção da prescrição do procedimento criminal determina a interrupção da prescrição do procedimento por contra-ordenação.

3. A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.

O prazo normal de prescrição convocável acrescido de metade, isto é, 2 (dois) anos mais 1 (um) ano, acrescido ainda do prazo de suspensão decorrente da distribuição do processo a juízo (de 6 meses), o que perfaz um total de 3 anos e 6 meses.

Isto dito, temos, desde logo, que a decisão administrativa foi prolatada a 20 de julho de 2019 e o arguido dela pessoalmente notificado, pelo menos (na falta de outra e melhor indicação), a 19.08.2019, iniciando-se, nesta data (com a notificação ao arguido da decisão condenatória, pelo menos) a interrupção da prescrição do procedimento contraordenacional – art. 188.º n.º 2 in fine do CE e 28.º n.º 1 al. a) e d) do RGCO.

Com o recebimento da impugnação judicial a 18.10.2021 ocorreria a causa de suspensão da prescrição do procedimento contraordenacional a que alude o art. 27.º-A n.º 1 al. c) do RGCO. Entre aquela primeira data (19.08.2019) e aquele despacho (10.08.2021) não decorreram mais de 02 anos, sendo que, de permeio, ao contrário do invocado pelo impugnante (mas em abono da verdade a impugnação antecede a pandemia do COVID), vigorou legislação especial atinente ao impacto do COVID no país que consagrou uma nova causa de suspensão dos termos deste tipo de processos e que é aqui convocável. Estamos a referir-nos à suspensão dos prazos de caducidade/prescrição que se mostrassem em curso à data, talqualmente decorre do artigo 7.º n.º 3 e 9.º al. b) da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março. Regime esse que vigorou até ao dia 05 de abril de 2021, com a publicação da Lei n.º 13-B/2021 que revogou o apontado regime excecional.

O Tribunal Constitucional chamado a pronunciar-se sobre a conformidade constitucional de uma tal legislação especial vem pronunciando-se no sentido de “não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretado no sentido de que a suspensão da prescrição aí prevista é aplicável aos processos contraordenacionais em que estejam em causa alegados factos ilícitos imputados ao arguido praticados antes da data da sua entrada em vigor, que nessa data se encontrem pendentes; e, consequentemente, (…)” – cfr acórdão do TC n.º 798/2021 (de 21.10).

Donde ser de concluir que entre a apontada interrupção da suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional (19.08.2019) e a subsequente primeira causa de suspensão dos termos do processo (entre 22 de janeiro de 2020 e 6 de abril de 2021), ainda não decorreu o prazo ordinário de prescrição (2 A), acrescido de metade do seu prazo (1 A) e dos 6 M de suspensão do prazo a que alude o art. 27.º-A n.º 1 al. c) do RGCO.

Improcede a solicitada declaração de prescrição do procedimento.

(…)”.


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            Da prescrição do procedimento por contra-ordenação

            1. Alega o recorrente – conclusões a a d e g a p – que o procedimento contraordenacional prescreveu em 7 de Outubro de 2021, pois não existem causas de suspensão da prescrição aplicáveis, sejam as previstas no art. 27º-A do RGCOC, sejam as previstas na Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, sob pena de violação, quanto a este último diploma, do princípio da não aplicação retroactiva da lei mais desfavorável, pelo que, deve ser declarada tal prescrição com o consequente arquivamento dos autos.

            Com ressalva do respeito devido, não tem razão. Explicando.

            a. O recorrente foi condenado nos autos pela prática de uma contra-ordenação muito grave, p. e p. pelos arts. 27º, nºs 1 e 2, a), 3, 136º, 138º, e 146º, i) e 147º, todos do C. da Estrada, portanto, pela prática de uma contra-ordenação rodoviária.

Brevitatis causa, podemos dizer que a prescrição do procedimento tem por fundamento a circunstância de o decurso do tempo esbater a necessidade de censura comunitária e consequentemente, a necessidade da punição.

Nos termos do disposto no art. 188º, nº 1 do C. da Estrada, o procedimento por contra-ordenação rodoviária extingue-se por prescrição, logo que tenham decorrido dois anos sobre a prática da infracção. Assim, o termo a quo do prazo de prescrição do procedimento é a data da prática do facto que constitui a contra-ordenação.

Sendo de dois anos, o prazo de prescrição das contra-ordenações rodoviárias, e tendo a contra-ordenação praticada pelo recorrente ocorrido no dia 7 de Outubro de 2018 [ponto 2.1.1. dos factos provados], aquele prazo terminaria, normalmente, a 7 de Outubro de 2020.

Porém, a lei – quer a lei geral (RGCOC), quer a lei especial (C. da Estrada) quer, ainda, legislação avulsa – prevê causas de suspensão e de interrupção da prescrição, as quais, quando se verificam, têm repercussão na contagem do prazo respectivo.

Cumpre, pois, verificar, se existem, ou não, in casu, causas de suspensão e/ou de interrupção da prescrição.

b. São distintos os efeitos da interrupção da prescrição e da suspensão da prescrição.

            Nos primeiros, iniciando-se o prazo com a prática da infracção, ocorrendo uma causa de interrupção, o prazo até aí decorrido fica inutilizado, começando a partir da causa a correr um novo prazo. Nos segundos, ocorrendo uma causa de suspensão, o prazo que estava em curso não fica inutilizado, apenas deixa de correr durante o período fixado ou até ao desaparecimento do obstáculo legalmente previsto, voltando a correr a partir daí.

Não obstante, a lei estabelece no nº 3 do art. 28º do RGCOC o que podemos designar por válvula de segurança do sistema, visando impedir que, através de sucessivas e ilimitadas situações de interrupção e suspensão do prazo de prescrição do procedimento, este se eternize, frustrando o seu fundamento substantivo, a desnecessidade da punição, dispondo a norma referida que a prescrição do procedimento ocorrerá sempre, quando, desde o seu início, portanto, desde a data da prática da infracção, e com ressalva do tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. 

Dispõe o art. 28º do RGCOC, com a epígrafe «Interrupção da prescrição», na parte em que agora releva:

            1 – A prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se:

 a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;

(…);

c) Com a notificação ao arguido para o exercício da do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito; 

d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima.

(…).

3 – A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.  

Por sua vez, dispõe o art. 27º-A do RGCOC, com a epígrafe «Suspensão da prescrição»:

            1 – A prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento:

                a) Não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal;

                b) Estiver pendente a partir do envio do processo ao Ministério até à sua devolução à autoridade administrativa, nos termos do art. 40º; 

                c) Estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima até à decisão final do recurso.

                2 – Nos casos previstos nas alíneas b) e c) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar seis meses.

    

Dispõe ainda o nº 2, do art. 188º do C. da Estrada que, sem prejuízo da aplicação do regime de suspensão e de interrupção previsto no regime geral do ilícito de mera ordenação social, a prescrição do procedimento por contra-ordenação rodoviária interrompe-se também com a notificação ao arguido da decisão condenatória.

Finalmente, há que considerar a legislação sobre medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.

Neste âmbito, há, desde logo, que considerar o disposto no nº 3 [A situação excepcional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimento], no nº 4 [O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excepcional] e no nº 6º, b) [O disposto no presente artigo aplica-se ainda, com as necessárias adaptações, a: (…); b) Procedimentos contraordenacionais, sancionatórios e disciplinares, e respetivos atos e diligências que corram termos em serviços da administração directa, indirecta, regional, autárquica, e demais entidades administrativas independentes, incluindo o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Imobiliários], do art.7º da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, entrada em vigor no dia seguinte (art.  11º), mas produzindo efeitos à data da produção de efeitos do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março (art.10º), vindo a norma interpretativa do art. 5º da Lei nº 4-A/2020, de 6 de Abril, a fixar em 9 de Março de 2020 a data do início de produção de efeitos das disposições do art. 7º da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março.

Depois, o art. 8º da Lei nº 16/2020, de 29 de Maio, entrada em vigor no quinto dia posterior ao da sua publicação (art. 10º), revogou, além do mais, o art. 7º da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, e estabeleceu, no seu art. 6º, que os prazos de prescrição e caducidade que deixem de estar suspensos por força das alterações introduzidas [pela Lei nº 16/2020] são alargados pelo período de tempo em que vigorou a sua suspensão.

Por último, a Lei nº 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, entrada em vigor a 2 de Fevereiro de 2021 (art. 5º), aditou à Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, além do mais, o art. 6º-B, produzindo efeitos a partir de 22 de Janeiro de 2021 (art. 4º), que dispõe, na parte em que agora releva:

1 – São suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos, e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais,, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes;

(…).

3 – São igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos identificados no nº 1.

4 – O disposto no número anterior prevaleça sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão.

(…).   

Vindo a Lei nº 13-B/2021, de 5 de Abril, entrada em vigor a 6 de Abril de 2021 (art. 7º), no seu art. 6º a revogar, além do mais, o art. 6º-B da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, e a dispor, no seu art. 5º que, sem prejuízo do disposto no artigo anterior, os prazos de prescrição e caducidade cuja suspensão cesse por força das alterações introduzidas pela presente lei são alargados pelo período correspondente à vigência da suspensão.

Assim, no âmbito da legislação sobre medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, há a considerar os períodos de suspensão dos prazos de prescrição, entre 9 de Março e 2 de Junho de 2020 e entre 22 de Janeiro e 6 de Abril de 2021.

c. Aqui chegados, cumpre conhecer da questão suscitada pelo recorrente, ao afirmar que a legislação sobre medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, viola o princípio do Estado de Direito, consagrado no art. 2º, e o princípio da não retroatividade da lei penal e contraordenacional, previsto no art. 19º, nº 6, ambos da Constituição da República Portuguesa [certamente por lapso, invoca o recorrente esta última norma constitucional, sendo suposto, pela argumentação apresentada, que pretenderia referir-se ao art. 29º, nºs 1 e 4 da Lei Fundamental].

A questão é, basicamente, a de saber se a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento, in casu, contraordenacional, introduzida pelo art. 7º, nº 3, da Lei nº 1-A/2020 e, posteriormente [na redacção da Lei nº 4-B/2021, de 1 de Fevereiro], no art. 6º-B, nº 3, da mesma Lei nº 1-A/2020, pode aplicar-se aos processos pendentes por factos praticados antes da sua vigência, sem atentar as normas da Constituição da República Portuguesa que consagram a proibição da aplicação retroactiva da lei penal e da lei contraordenacional in malam partem, adiantando-se desde já que a tal questão não tem sido dada uma resposta uniforme na jurisprudência.

Vejamos.

 

i) O instituto da prescrição – do procedimento criminal e da pena – radica na circunstância de o decurso, considerável, do tempo esbater ou, no limite, fazer desaparecer, quer a necessidade da censura comunitária, quer as exigências de prevenção especial, quer as exigências de prevenção geral positiva, estando, pois, justificado, por razões de natureza jurídico-penal substantiva. É que, traduzindo-se a prescrição do procedimento criminal e do procedimento contraordenacional numa causa de extinção da responsabilidade penal e da responsabilidade contraordenacional, as normas que integram os respectivos regimes, designadamente, as que fixam os prazos de prescrição e as que preveem as respectivas causas de suspensão e interrupção, porque consubstanciam a renúncia do Estado ao jus puniendi – determinada, conforme supra dito, pelo decurso do tempo e consequente esbatimento dos fins das penas –, têm natureza substantiva ou, pelo menos, natureza mista, razão pela qual, no âmbito da sucessão de leis, o princípio da legalidade deve sempre impor-se, seja na perspectiva da proibição da retroactividade da lei nova, seja na perspectiva da aplicação da lei mais favorável (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime,1993, Aequitas Editorial Notícias, pág. 699 e seguintes, Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, Normas processuais penais materiais, 1990, Coimbra Editora, pág. 212 e seguintes, Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, I, 1981, Editorial Verbo, pág. 127 e seguintes e Maia Gonçalves, Código Penal Português, Anotado e Comentado, 8ª Edição, 1995, Almedina, pág. 181 e seguintes).

Assim, sendo indiscutível que os arts. 7º, nº 3 e 6º-B, nº 3, da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março [o art. 6º-B, na redacção da Lei nº 4-B/2021] preveem uma, nova, causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal e contraordenacional, cujos efeitos, em cada caso concreto, significam o afastamento, no tempo, do termo do prazo de prescrição respectivo, desta forma agravando a posição do agente, a sua aplicação a factos praticados anteriormente à sua entrada em vigor, viola as disposições dos arts. 2º, nº 4 do C. Penal, 3º, nº 2 do RGCOC, bem como viola as disposições do art. 29º, nºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa, e neste sentido se tem pronunciado parte significativa da jurisprudência (acs. da R. de Coimbra de 7 de Dezembro de 2021, processo nº 200/09.8TASRE.C3, da R. de Lisboa de 9 de Março de 2021, processo nº 207/09.5PAAMD-A.L1, de 24 de Julho de 2020, processo nº 128/16.5SXLSB.L1 e 21 de Julho de 2020, processo nº 76/15.6SRLSB.L1, da R. do Porto de 14 de Abril de 2021, processo nº 300/19.6Y9PRT.P1, da R. de Évora de 23 de Fevereiro de 2021, processo nº 201/10.3GBVRS.E1 e de 26 de Outubro de 2021, processo nº 28/06.7IDFAR-A.E1, e da R. de Guimarães de 25 de Janeiro de 2021, processo nº 179/15.7T9FAF.G2, todos in, www.dgsi.pt).

ii) Porém, há também quem, partindo das especialíssimas circunstâncias que estão na origem da causa de suspensão da prescrição criada pela Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março – a crise pandémica, a infecção epidemiológica por ela causada e a consequente afectação da prática de actos e da promoção de procedimentos em condições normais de eficácia –, porque a norma do n.º 1 do artigo 27.º-A do RGCOC enuncia, não taxativamente, as causas suspensão da prescrição, que podem constar de diplomas avulsos posteriores, sem violação do princípio da confiança, porque a aplicação da nova causa de suspensão da prescrição aos processos pendentes por factos praticados antes da sua entrada em vigor não demonstra um caso de retroactividade de primeiro grau [aplicação da LN a situação já tornada definitiva no âmbito da LV] e porque não existe uma verdadeira retroactividade, entenda que a especificidade do direito de mera ordenação social e respectivo processo afastam a possibilidade de a aplicação da causa de suspensão da prescrição prevista pela lei supra referida, a factos praticados antes da sua entrada em vigor, significar a violação do disposto no art. 29º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa (neste sentido, acs. da R. de Lisboa de 11 de Fevereiro de 2021, processo nº 89/90.4PTAMD-A.L1 e de 16 de Março de 2021, processo nº 309./20.7YUSTR.L1, in www.dgsi.pt).

iii) Também o Tribunal Constitucional se tem pronunciado no sentido da conformidade constitucional da aplicação da nova causa suspensão da prescrição, em processo penal e contraordenacional, prevista na Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, aos processos pendentes por factos praticados em data anterior à da entrada em vigor daquela lei (acs. nº 500/2021, de 9 de Julho e nº 798/2021, de 21 de Outubro, in www.tribunalconstitucional.pt), argumentando, em síntese:

- O princípio da legalidade penal – nullum crimen sine lege, nulla poena sine praevia lege poenali – previsto no art. 29º, nºs 1, 3 e 4º, da Constituição da República Portuguesa, vale para as leis que fixam os pressupostos da relevância criminal das condutas ativas e omissivas – o facto punível – e para as leis que estabelecem as respetivas consequências jurídicas – as penas;

- As normas relativas à prescrição do procedimento criminal não se encontram incluídas, de modo literal, na proibição da retroatividade in pejus fixada para as normas incriminadoras, pelo que, a sua subsunção ao disposto no art. 29º, nºs 1, 3 e 4º, da Lei Fundamental terá que ser suportada por argumentos de natureza jurídico-constitucional a serem extraídos da ratio da proibição da retroactividade in pejus, logo, dos próprios fundamentos do princípio da legalidade penal, e não da prévia qualificação [natureza substantiva ou adjectiva] das normas relativas ao instituto da prescrição; 

- O princípio da legalidade penal funda-se no conceito de que o Estado de direito democrático afirmado no art. 2º da Constituição da República Portuguesa deve proteger o indivíduo perante o direito penal, defendendo-o de qualquer intervenção estadual excessiva ou arbitrária, sendo a esta luz que a proibição da retroactividade in pejus deve ser explicada, daí que, radicando ela de um fundamento político-jurídico ligado à defesa da liberdade e segurança contra a arbitrariedade estadual, não obstante ser questionável que exista um direito do agente da infracção a que a inércia do Estado o beneficie, as normas relativas à prescrição, incluindo as que estabelecem as causas de interrupção e de suspensão se encontrem, à primeira vista, subordinadas à proibição da retroactividade in pejus, por duas ordens de razões; em primeiro lugar, porque, considerando os efeitos que as causas de interrupção e suspensão da prescrição têm sobre o decurso do prazo desta, a exigência de as respectivas normas deverem constar de lei prévia mostra-se justificada pela necessidade de obstar a que o Estado, através da ampliação retroactiva daquelas causas, reverta em prejuízo do agente os efeitos da sua inércia e/ou incapacidade para efectivar a realização do Direito no caso concreto, e; em segundo lugar, porque a ratio da proibição da retroactividade in pejus se encontra ligada ao princípio da confiança, portanto, ligada a uma ideia de previsibilidade razoável das normas, de forma a que os cidadãos não possam ser surpreendidos pela incriminação de uma conduta anteriormente assumida, nem pela aplicação de uma sanção mais grave ou de normas processuais materiais de efeitos mais graves do que aqueles com que podia contar na data em que praticou a conduta;    

  - Acontece, porém, que, ainda que se admita que em sede de prescrição, o conceito de retroactividade é dado pelo tempus deliti e não pelo termo do prazo, não subsistem dúvidas quanto a causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal prevista no artigo 7º, nº 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, pela sua especificidade, escapar, em absoluto, a ambas as razões com base nas quais é possível justificar o alargamento às normas sobre prescrição das garantias inerentes à proibição da retroactividade;

- Na verdade, esta causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal insere-se, como é de todos conhecido, no âmbito de legislação temporária e de emergência, aprovada pela Assembleia da República para dar resposta à crise sanitária originada pela pandemia associada ao coronavírus SARS-CoV-2 e à doença COVID-19, mediante a adopção pelo Estado, de uma série de medidas visando conter o risco de contágio e a propagação da doença, pelo distanciamento físico e diminuição de contactos presenciais que, ao nível da administração da justiça, determinou uma muito significativa diminuição da actividade dos tribunais;

- É particularíssimo circunstancialismo que subjaz à criação pelo parlamento de uma nova causa de suspensão da prescrição, não só transitória, como apenas vigente durante o período em que se mantivessem os condicionalismos impostos à actividade dos tribunais pela complexa situação sanitária do país, em defesa da saúde e da vida dos operadores e utentes da justiça, condicionalismos que reduziram ou mesmo, eliminaram, a possibilidade da prática dos actos processuais susceptíveis de interromper e/ou suspender a prescrição;

- Por isso, a causa de suspensão da prescrição prevista no nº 3, do art. 7º, da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março só se tornaria capaz de cumprir a função determinante da sua criação, se fosse aplicável aos processos pendentes por factos anteriores ao início da sua vigência, sendo certo que, a situação de emergência sanitária que está na sua origem a ninguém é imputável, não existindo, por isso, razão para que beneficie quem quer que seja;

- Afirmar-se que a causa de suspensão da prescrição em causa não é imputável a ninguém significa, desde logo, e além do mais, que não é imputável ao Estado, nem se destinou a que este corrigisse os efeitos causados pela sua ineficácia no exercício do jus puniendi, mas apenas a responder aos efeitos da inevitável paralisação do sistema judicial, imposta pela necessidade de evitar a disseminação do vírus e, unicamente, durante o período de tempo em que se verificou o condicionamento da actividade dos tribunais, a sua aplicação aos processos pendentes não significa excesso ou arbítrio por parte do Estado que justifique a invocação das garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus;

- Por outro lado, visando esta proibição garantir ao agente da infracção uma previsibilidade razoável das consequências que para si advirão da violação da norma penal, é evidente que a invocação dos limites fixados pela letras dos nºs 1, 3 e 4, do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa deixará de ter fundamento se o acontecimento suspensivo tipificado se situar no mais elevado grau de imprevisibilidade, como é o caso da paralisação do sistema de administração da justiça devida ao súbito surgimento de uma pandemia à escala planetária; e

- Por isso, a aplicação da causa de suspensão prevista no nº 3, do art. 7º, da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março a factos anteriores à sua vigência, tendo em conta a natureza absolutamente imprevisível do acontecimento determinante da sua criação, não defrauda a exigência de previsibilidade das consequências da violação da norma penal que a proibição da retroatividade in pejus tutela;  

- Em suma [como se pode ler no acórdão nº 500/2021, supra, identificado], «para além de absolutamente congruente com o mais amplo critério seguido na jurisprudência do TEDH e do TJUE, a norma extraída dos nºs 3 e 4 do artigo 7º da Lei nº 1-A/2020, interpretados no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência, não se encontra abrangida, nem pela letra, nem pela ratio da proibição da retroatividade in pejus a que a Constituição, no seu artigo 29º, nºs 1, 3 e 4, sujeita a aplicação das leis que definem as ações e omissões puníveis e fixam as penas correspondentes.»;

- Sendo que tudo o que antecede quanto à aplicação da causa de suspensão da prescrição prevista nos nºs 3 e 4 do artigo 7º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março aos processos pendentes por factos anteriores à sua vigência, é independente da natureza criminal ou contraordenacional do processo concreto, ainda que, a autonomia material do ilícito de mera ordenação social relativamente ao ilícito penal determine que a proibição da retroactividade in pejus imposta pela Lei Fundamental, se estenda ao direito das contra-ordenações apenas enquanto manifestação nuclear da função de garantia do princípio legalidade, exigida pela ideia de Estado de Direito e oponível ao arbítrio ex post facto, pelo que, e

- Em conclusão, «ao proibir que qualquer cidadão seja «sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão» ou sofra pena que não esteja expressamente cominada «em lei anterior» ou mais grave do que a prevista «no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos», o artigo 29º da Constituição, respetivamente nos seus nºs 1, 3 e 4, não se opõe à aplicação de uma causa de suspensão da prescrição com a função e o recorte daquela que foi prevista no artigo 7º, nºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2000, a procedimentos contraordenacionais pendentes por factos praticados antes do início da respetiva vigência.».

iv) Alinhados os argumentos em confronto, cabe tomar posição, adiantando, desde já que subscrevemos a tese minoritária, considerando, sobretudo, as circunstâncias de emergência nacional que impuseram a criação da nova causa de suspensão da prescrição do procedimento sancionatório, situação bem vincada, aliás, nas específicas características de vigência, que o legislador conferiu a tal causa de suspensão, conjugadas com a inexistência de um verdadeiro e absoluto direito à prescrição, e à bondade dos dois esteios argumentativos que suportam a posição do Tribunal Constitucional, pelos ‘tópicos’ que seguem, correndo embora o risco de repetição.

 

Ainda que as normas que integram o instituto da prescrição, em direito penal e, também, no direito de mera ordenação social, devam ser qualificadas como tendo natureza substantiva, ou, ao menos, como tendo natureza mista, a circunstância de as normas que, especificamente, versam a interrupção e a suspensão não terem expressa previsão nos nºs 1, 3 e 4, do art. 29º da Constituição da República Portuguesa, leva-nos a subscrever o entendimento de que, quanto a elas, a proibição da retroatividade in pejus terá que ser suportada pelos próprios fundamentos do princípio da legalidade.

Assegurando o princípio da legalidade penal a protecção do cidadão perante o direito penal, isto a defesa do indivíduo perante qualquer intervenção arbitrária do Estado, e sendo esta a perspectiva em que a proibição da retroactividade in pejus deve ser actuada, as normas relativas à prescrição encontram-se, em princípio, subordinadas a esta proibição, devendo constar de lei prévia, quer para impedir qualquer abuso da autoridade pública [através da ampliação retroactiva das acusas de interrupção e suspensão da prescrição, a fim de dissipar os efeitos da sua inércia no exercício do jus puniendi], que para efectivar o princípio da confiança [a previsibilidade razoável das normas, de modo a não surpreender os cidadãos pela incriminação de uma conduta anteriormente assumida].

Tendo a nova causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal e do procedimento contraordenacional, prevista no art. 7º, nº 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, origem numa particularíssima situação de emergência, resultante da crise sanitária causada pela pandemia associada ao coronavírus SARS-CoV-2 e à doença COVID-19, situação de emergência que obrigou o Estado a por em prática uma série de medidas visando conter os elevadíssimo risco de contágio, e que, ao nível da justiça, determinou uma relevante diminuição da actividade dos tribunais, conducente à redução e, mesmo, eliminação da prática dos actos susceptíveis de interromperem ou suspenderem o prazo de prescrição, é evidente que, com o seu estabelecimento, o Estado não visou praticar uma qualquer arbitrariedade, designadamente, esconder ou corrigir os efeitos da sua negligência na perseguição de ilícitos penais e contraordenacionais, e também não afectou o princípio da confiança, na medida em que o acontecimento suspensivo tipificado se situa no mais elevado grau de imprevisibilidade, sendo certo, também, que a concreta intervenção do legislador parlamentar se mostra proporcionada, pois contemplou, apenas, uma causa de suspensão da prescrição, com natureza transitória, para vigorar unicamente enquanto subsistissem os condicionamentos sanitários impeditivos do normal funcionamento do sistema de justiça, não restando, portanto, dúvidas, quanto a que a causa de suspensão da prescrição prevista no referido art. 7º, nº 3, pelas suas particularidades, é totalmente alheia as razões que tornam possível justificar a aplicação das garantias da proibição da retroactividade in pejus às normas sobre prescrição  do procedimento criminal e do procedimento contraordenacional.

E assim, aderindo aos argumentos dos supra identificados acórdãos do Tribunal Constitucional, concluímos como aí, citando o acórdão nº 500/2021, de 9 de Julho, «Resta concluir, assim, que, ao proibir que qualquer cidadão seja «sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão» ou sofra pena que não esteja expressamente cominada «em lei anterior» ou mais grave do que a prevista «no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos», o artigo 29.º da Constituição, respetivamente nos seus n.ºs 1, 3 e 4, não se opõe à aplicação de uma causa de suspensão da prescrição com a função e o recorte daquela que foi prevista no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2000, a procedimentos contraordenacionais pendentes por factos praticados antes do início da respetiva vigência.».

Deste modo, considerando-se conforme com o art. 29º, nºs 1, 3 e 4 da Constituição da República, a aplicação da causa de suspensão da prescrição prevista nos arts. 7º, nº 3 e 6, b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, aos processos de natureza contraordenacional pendentes por factos anteriores à sua vigência e, nessa exacta medida, não violado o disposto no art. 3º, nº 2, do RGCOC, deve tal causa de suspensão ser aplicada nos autos.

(…)

           


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III. DECISÃO

     

 Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.


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            Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS. (art. 93º, nº 3, do RGCOC, art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).


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Coimbra, 17 de Março de 2022


Acórdão integralmente revisto por Vasques Osório – relator – e Maria José Guerra – adjunta