Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
133/14.6TBPCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: ABUSO DE DIREITO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
VENDA EXECUTIVA
VENDA POR PROPOSTAS EM CARTA FECHADA
Data do Acordão: 03/01/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – PENACOVA – INST. LOCAL – SEC. COMP. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 334º E 473º DO C. CIVIL; 889º, NºS 1 E 2 DO CPC.
Sumário: I – O abuso do direito ocorre, de acordo com o artº 334º CCiv., quando no exercício de um direito o respectivo titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico desse direito.

II – Na vertente do ‘venire contra factum proprium’ traduz-se na conduta contraditória do respectivo titular, ou seja naquela que criou e objectivamente era susceptível de criar na outra parte a convicção de que o direito em causa não seria por ele exercido e, com base nisso, esta última parte delineou a sua actividade.

III – O enriquecimento sem causa depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

a) Existência de um enriquecimento;

b) Que esse enriquecimento não tenha causa que o justifique – ou porque nunca o houve, ou porque, entretanto, desapareceu;

c) Que ele seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição;

d) Que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído.

IV – A venda executiva efectuada mediante propostas em carta fechada é, em regra, a modalidade de venda utilizada quando a penhora recai sobre imóveis – artº 889º, nºs 1 e 2 do CPC -, sendo o valor a anunciar para a venda igual a 70% do valor base dos bens.

V – O pagamento, total ou parcial, pode, no entanto, ser efectuado mediante a adjudicação dos bens ao exequente que, para tal, ‘deve indicar o preço que oferece, não podendo a oferta ser inferior ao valor a que alude o nº 2 do artº 889º do CPC (70%).

VI – A proposta do exequente sé é aceite se não aparecer nenhuma proposta e ninguém se apresentar a exercer o direito de preferência – artº 877º, nº 1 do CPC.

VII – Não há abuso de direito do credor hipotecário mutuante, enquanto exequente, que apresente proposta de aquisição executiva por valor igual a 70% do valor base do imóvel, apesar de aquando da constituição da hipoteca ter sido atribuído valor superior ao bem.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - 1) – G…, casado, residente em …, instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca de Penacova, em 12/05/2014, contra o BANCO B…, S.A., com sede na …, acção declarativa de condenação, com processo comum, pedindo que o Réu fosse condenado a restitui-lhe a quantia de € 35.200,00 (trinta e cinco mil e duzentos euros), acrescida de juros de mora vencidos no montante de € 2.476,54 (dois mil quatrocentos e setenta e seis euros e cinquenta e quatro cêntimos), e dos vincendos, uns e outros à taxa legal.

Alegou, para o efeito e em síntese, que:

- Tendo, numa execução hipotecária intentada pelo ora Réu, na qualidade de credor mutuante, contra a mutuária (também proprietária do imóvel hipotecado) e contra ele, ora Autor, na qualidade de fiador daquela, foi o imóvel hipotecado (e aí penhorado) adjudicado àquele Banco, a requerimento do mesmo, pelo valor de € 92.700,00 (valor esse que o aí Exequente “ajudou a fixar e assentiu”), correspondente a 70% do valor patrimonial desse imóvel e substancialmente inferior àquele que foi mutuado, o que, em virtude desses € 92.700,00 não terem sido considerados como suficientes para que o Banco entendesse como efectuado o pagamento da quantia exequenda e dos demais encargos, levou a que lhe fossem penhorados dois imóveis pertencentes, pelo que, apesar de considerar tudo isso já se dever considerar como pago pela adjudicação do dito imóvel ao ora Réu “…não teve outro remédio senão pagar ao Réu, exequente naqueles autos executivos, mesmo considerando que nada lhe devia, por forma a desonerar os seus dois bens imóveis das penhoras que sobre eles impendiam”, pagamento esse que ocorreu mediante o endosso e entrega ao procurador do Banco de um cheque no montante de € 35.200,00 (“correspondendo € 35.000,00 ao pagamento da quantia exequenda e € 200,00 referentes a despesas com o Agente de Execução”), para evitar a venda executiva dos mesmos.

Na sequência desse pagamento o ora Réu requereu “…nos autos executivos, em 10/07/2012, a extinção da acção executiva instaurada contra o A. e a A…, bem como o cancelamento das penhoras que impendiam sobre os imóveis do A.”, tendo o ora Autor, em 26/11/2012 sido “…notificado pelo Agente de Execução da extinção da instância executiva com fundamento no pagamento da quantia exequenda e despesas do processo”.

- Entende que “…ao Réu, em Novembro de 2010, foi-lhe adjudicado um bem que, segundo ele, valia € 132.428,58 para pagamento da quantia exequenda no valor de € 116.602,13, o que dava, ainda, a favor do Réu um diferencial de € 15.826,46, suficiente para liquidar os encargos com a instância executiva”;

- Tendo ao Réu sido adjudicado, em Novembro de 2010, “…um bem que, segundo ele, valia € 132.428,58 para pagamento da quantia exequenda no valor de € 116.602,13”, “…o que dava, ainda, a favor do Réu um diferencial de € 15.826,46, suficiente para liquidar os encargos com a instância executiva”, incorreu em conduta de abuso de direito “…ao prosseguir a execução com a consequente penhora dos seus dois imóveis”, tendo, subsequentemente, ao receber os € 35.200,00 que o Autor lhe pagou, enriquecido, à custa deste, sem causa justificativa para tal, no correspondente valor, pelo que “…de acordo com o disposto no artigo 479° do Código Civil, deve o Réu restituir a quantia de € 35.200,00 que ilegitimamente arrecadou em 9/07/2012”.

2) – Contestando, para além de sustentar que a conduta do Autor integrava abuso do direito e de ter invocado a existência de caso julgado, ou, se assim se não entendesse, uma situação de “preclusão judicial”, o Réu defendeu-se por impugnação, pugnando pela sua absolvição da instância, ou, não procedendo as excepções que invocara, pela sua absolvição do pedido.

3) - No início da audiência prévia efectuada pela Instância Local – Secção de Competência Genérica - J1, da Comarca de Coimbra (Penacova) e que teve lugar a 15/06/2015, o A., ao abrigo do disposto no artigo 3°, n° 4 do C.P.C., entregou articulado de resposta às excepções deduzidas pelo Réu na contestação.

4) – No âmbito dessa audiência prévia foi proferido despacho saneador, onde, julgando-se improcedente a excepção do caso julgado, entendeu-se ser possível conhecer do mérito da acção e, assim se tendo procedido, julgou-se a acção improcedente e absolveu-se o Réu do pedido.

II – O Autor, na parte que lhe foi desfavorável, recorreu desta decisão – recurso esse que veio a ser recebido como apelação, com subida imediata e efeito meramente devolutivo – oferecendo, a findar a respectiva alegação, apresentada em 15/07/2015, as seguintes conclusões:

Terminou pedindo o provimento ao recurso e a revogação do saneador/sentença recorrido.

O Apelado, respondendo, defendeu a improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida.

No despacho que admitiu o recurso o Tribunal “a quo” expressou o entendimento de que a decisão em causa não enfermava de nulidade, designadamente, da prevista na alínea d), do n° 1 do art° 615°, do novo CPC, referindo, para além do mais, no saneador-sentença, que “…considerou provados os factos relevantes para a decisão da causa, com base na ponderação das posições assumidas pelas partes nos seus articulados, conjugadas com os documentos juntos aos autos, motivo pelo qual se não foram inseridos os artigos supra referidos…”.

III - Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do NCPC, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que o Tribunal pode ou não abordar, consoante a utilidade que veja nisso (Cfr., entre outros, no domínio da legislação pretérita correspondente, Acórdão do STJ de 13/9/2007, proc. n.º 07B2113 e Acórdão do STJ de 8/11/2007, proc. n.º 07B3586 [1]).

Deste modo, importará apurar da verificação da nulidade de sentença invocada pelo Autor e saber se é de considerar inexistir, como foi decidido, enriquecimento sem causa ou abuso do direito, por parte do Banco Réu.

IV - No saneador-sentença consignou-se, que, com interesse para a apreciação e discussão da causa, estava apurado o seguinte:

«1 - Em 12/06/2006, o Réu celebrou um contrato de mútuo com hipoteca e fiança, ao abrigo do Regime Geral de Crédito à habitação com A…, no montante de € 69.544,61 (sessenta e nove mil quinhentos e quarenta e quatro euros e sessenta e um cêntimos).

2 - Também em 12/06/2006, o Réu celebrou com A… um contrato de abertura de crédito com hipoteca e fiança, no montante de € 39.255,12 (trinta e nove mil duzentos e cinquenta e cinco euros e doze cêntimos).

3 - Em caução e garantia de ambos os empréstimos, dos juros, da sobretaxa em caso de mora e das despesas extrajudiciais, A… constituiu a favor do Réu hipoteca sobre a fracção autónoma individualizada pela letra "R”, correspondente …, da qual era dona e legítima possuidora.

4 - O Autor confessou-se e constituiu-se fiador e principal pagador das dívidas contraídas por A… no âmbito dos contratos identificados em 1 e 2, renunciando ao benefício da excussão prévia.

5 - Desde 05/03/2007 A… deixou de cumprir as obrigações pecuniárias que tinha para com o Réu em virtude dos contratos acima identificados.

6 - Na sequência disso, em 29/11/2007, o Réu instaurou contra A… e contra o A., a acção executiva n° …, com o valor de € 116.602,13.

7 - Desde logo, o Réu indicou no requerimento executivo que pretendia a penhora do imóvel, propriedade da executada A…, sobre o qual incidia hipoteca a favor do Réu, o que veio a suceder.

8 - No decurso do processo executivo referido em 6 foi promovida a venda judicial do imóvel propriedade da executada A...

9 - Em Abril de 2010 executados e exequente, ora Réu, foram notificados pelo Agente de Execução para se pronunciarem quanto à modalidade e ao valor da venda do bem imóvel penhorado.

10 - Após ter sido notificado, o Banco R. requereu na citada execução que a venda de tal fracção fosse efectuada pelo valor base de € 132.428,58 e o valor a anunciar para venda de 70% do valor base, isto é, € 92.700,00.

11 - Em Maio de 2010, executados e exequente, ora Réu, foram notificados da decisão da modalidade de venda, bem como do valor da mesma.

12 - O exequente, ora Réu, e os executados foram notificados que a venda iria decorrer mediante propostas em carta fechada.

13 - Com atribuição ao imóvel de um valor de € 132.428,58 (cento e trinta e dois mil quatrocentos e vinte e oito euros e cinquenta e oito cêntimos), admitindo-se propostas correspondentes a 70% desse valor, ou seja € 92.700,00.

14 - Dispunha o exequente, ora Réu, de 10 (dez) dias, para discordar ou impugnar dos termos consignados na decisão da modalidade de venda, o que não fez.

15 - Chegado o dia da venda judicial do imóvel, 18/11/2010, o exequente, ora Réu, adquiriu por adjudicação o bem imóvel sobre o qual tinha garantia de hipoteca, pelo valor de € 92.700,00, correspondente a 70% do valor base de venda do imóvel.

16 - Tendo em 07/12/2010 sido emitido e entregue pelo Agente de Execução o competente título de transmissão a favor do mesmo Banco R..

17 - Em 23/02/2011 requereu o Banco ora R. o prosseguimento dos autos com a penhora de imóvel identificado em tempos do ora A..

18 - Tendo sido notificado pelo referido Agente de Execução, por notificação de 04/10/2011, que tal imóvel já não era propriedade do A. desde Março de 2011 e que havia sido requerido despacho a autorizar o levantamento de sigilo fiscal.

19 - Em 07/02/2012, foi o Banco R. notificado da consulta à base de dados da DGSI obtida nos referidos autos.

20 - Tendo, nessa sequência, o mesmo Banco R., requerido em 20/02/2012, a penhora dos dois imóveis identificados ao A.:

- prédio urbano sito em …; e

- prédio urbano sito em ...

21 - No âmbito do mencionado processo de execução em 20/03/2012, foi efectuada penhora sobre os referidos prédios.

22 - A referida penhora havia sido registada sobre tais imóveis sob a Ap. 2886 de 05/03/2012.

23 - O A. foi, por ofício de 20/03/2012, notificado da penhora alcançada sobre tais imóveis e que capeava o aludido auto de penhora.

24 - No dia 9 de Julho de 2012, realizou-se na Conservatória do Registo Predial de …, a escritura pública de compra e venda do imóvel de Póvoa de Midões, identificado como verba n° 1 no auto de penhora na qual, estiveram presentes o Autor, na qualidade de vendedor, os compradores e um procurador do Exequente, ora Réu.

25 - Nessa data, o Autor recebeu das mãos dos compradores o cheque n° …, sacado sobre o Banco C…, no montante de € 35.200,00 (trinta e cinco mil e duzentos euros).

26 - De imediato, o Autor procedeu ao endosso desse cheque, e entregou-o ao procurador do Réu que o depositou, correspondendo € 35.000,00 ao pagamento da quantia exequenda e € 200,00 referentes a despesas com o Agente de Execução.

27 - O Réu recebeu do A. a quantia de € 35.200,00, tendo logo requerido nos autos executivos, em 10/07/2012, a extinção da acção executiva instaurada contra o A. e a A…, bem como o cancelamento das penhoras que impendiam sobre os imóveis do A..

28 - Em 26/11/2012 foram A. e R. notificados pelo Agente de Execução da extinção da instância executiva com fundamento no pagamento da quantia exequenda e despesas do processo.».

V – A argumentação do Autor, quer no que respeita à verificação do enriquecimento sem causa que invoca, quer no que concerne ao comportamento do ora Réu nos autos de acção executiva n° …, que classifica como integrando a figura do abuso do direito, assenta na premissa de que o Banco ora Réu, enquanto Exequente hipotecário, se deveria ter considerado como pago da quantia exequenda de € 116.602,13 e demais despesas, quando, na fase da venda ocorrida nesses autos de acção executiva que correu termos no 1° Juízo Cível do Tribunal …, lhe foi adjudicado o imóvel hipotecado, já que o montante a considerar como satisfeito a esse credor com tal adjudicação seria o valor patrimonial de € 132.428,58, pois que seria esse o valor a atribuir a tal imóvel e não o de € 92.700,00 - correspondentes a 70% do daquele valor patrimonial -, que o ora Réu aí “ajudou a fixar” como valor real, pelo que, com essa adjudicação, se deveria entender ter sido entregue ao exequente um bem de valor suficiente para se dar como extinta a execução.

Daqui resulta, segundo o Autor, que o ora Réu, na aludida acção executiva, quer ao ter requerido que lhe fosse adjudicado, pelo valor de € 92.700,00, de um imóvel que sabia ter o valor de € 132.428,58, quer, subsequentemente, não obstante a adjudicação desse imóvel, ao ter requerido o prosseguimento da execução para pagamento da quantia de € 42.386,43, referente a dívida exequenda e de € 4.924,84, de despesas prováveis, com a penhora de dois imóveis que a si - aí co-executado, enquanto fiador nos mútuos contraídos pela proprietária do dito imóvel adjudicado -, pertenciam, incorreu em abuso do direito e, porque, para desonerar esses prédios, teve ele, ora Autor, de pagar ao Exequente a quantia de € 35.200,00, que já não era devida, ocorreu, nessa medida, enriquecimento sem causa do Banco Réu, com o correspondente empobrecimento dele, ora Autor.

A linha de argumentação utilizada pelo Autor tem traços característicos dos entendimentos seguidos na sentença do Tribunal Judicial de Portalegre, de 4 de Janeiro de 2012[2] e nas decisões proferidas por Tribunais de Espanha, designadamente, na decisão nº. 111/2010, de 17/12/2010, da Sección Segunda da Audiencia Provincial de Navarra de 17/12/2010[3],[4] que confirmou a decisão de 01/11/2009, proferida pelo Juzgado de Primera Instancia e Instrucción nº 2 de Estella/Lizarra.[5]

O abuso do direito ocorre, de acordo com o artº 334º do nosso Código Civil (CC), quando no exercício de um direito, o respectivo titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Na vertente do “venire contra factum proprium”, traduz-se na conduta contraditória do respectivo titular, ou seja, naquela que criou e objectivamente era susceptível de criar na outra parte a convicção de que o direito em causa não seria por ele exercido e, com base nisso, esta última parte delineou a sua actividade.

Gil Teles de Meneses de Moraes Campilho, salientando que “nem todos os actos contraditórios entre si são censuráveis ou vedados por lei” refere como consubstanciando uma das correntes de entendimento relativas à proibição do “venire”, que esta se justifica quando afecta “de modo inadmissível uma determinada situação de confiança legítima criada pelo factum proprium.”[6].

Por outro lado, o enriquecimento sem causa encontra-se regulado nos art.ºs 473.º e ss. do CC e depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

a. existência de um enriquecimento; 

b. que esse enriquecimento não tenha causa que o justifique - ou porque nunca a houve, ou porque, entretanto, desapareceu; 

c. que ele seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição;

d. que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído.

Conforme se refere no Acórdão do STJ de 25/11/2008 (Revista n.º 08A3501) “o autor tem de alegar e provar os requisitos do enriquecimento como “genus”, isto é que ocorreu um locupletamento indevido, em seu prejuízo por causa que nunca existiu ou deixou de existir ou perspectivando efeito que não ocorreu.

Enfim, trata-se de provar, de acordo com o artigo 342.º do Código Civil uma deslocação patrimonial sem qualquer causa ou com escopo que não se verificou.”.

Importa recordar, para melhor se contextualizar a problemática aqui em questão, que as normas do Código de Processo Civil aplicável à acção executiva em causa (pendente em 1 de Janeiro de 2008) eram as que constavam da versão anterior àquela que foi introduzida a esse código pelo DL nº 303/2007, de 24 de Agosto.[7]

Assim, relativamente à decisão sobre a venda – que compreendia, entre o mais, a respectiva modalidade e o valor base dos bens a vender -, eram ouvidos o exequente, o executado e os credores com garantia sobre os bens a vender (886.º-A, nº 1 e nº 2, als. a) e b), do CPC). 

A decisão era notificada ao exequente, ao executado e aos credores reclamantes de créditos com garantia sobre os bens a vender, podendo estes discordar da decisão, situação esta em que, em definitivo, caberia ao juiz decidir (nºs 4 e 5, do citado artº 886.º-A).

Sendo decidido que a venda se faça mediante propostas em carta fechada, que é, em regra, a modalidade de venda utilizada quando a penhora recai sobre imóveis (cfr. 889º, nº 1, do CPC), “o valor a anunciar para a venda é igual a 70% do valor base dos bens” (nº 2 do referido artº 889º).

O pagamento, total ou parcial, pode, no entanto, ser efectuado mediante a adjudicação dos bens ao Exequente que, para tal, “deve indicar o preço que oferece, não podendo a oferta ser inferior ao valor a que alude o n.º 2 do artigo 889.º” (artº 875º, nºs 1 e 3, do CPC).

E o valor a que alude o n.º 2 do artigo 889.º, é, como vimos, 70% do valor base dos bens.

Mas esse valor é susceptível de ser superado por outrem, situação em que, evidentemente, não se procede à requerida adjudicação, pois que, estabelecendo a lei que esta seja publicitada nos termos do artigo 890.º, com a menção do preço oferecido (876º, nº 1, do CPC) e que se notifique, entre outros, o executado, do dia, hora e local para a abertura das propostas (nº 2 do citado artº 876), determina que só se aceite o preço oferecido pelo requerente “…se não aparecer nenhuma proposta e ninguém se apresentar a exercer o direito de preferência…” (artº 877º, nº 1, do CPC).

Feito este périplo por algumas das normas que regulavam o processo executivo à data da adjudicação que aqui é trazida à liça, a primeira questão que se nos coloca tem a ver com a consideração, na argumentação do Apelante, do valor atribuído ao imóvel na escritura de hipoteca.

É que esse valor que foi fixado num dado contexto e em determinada data – “rectius”, em 12/06/2006 - não só não corresponde, necessariamente, ao valor real do imóvel nessa ocasião, como, sobretudo, nada aponta que essa correspondência se verificasse, quase quatro anos e meio depois, à data em que a adjudicação desse imóvel ao Banco ora Réu se fez (18/11/2010), num contexto, aliás, em que era pública e notória a crise do mercado imobiliário.

Por outro lado o Banco ora Réu não se comprometeu, nessa escritura - nem por algum modo aí deu disso indícios -, a satisfazer o seu crédito, perante um eventual futuro incumprimento da mutuária, mediante o valor que o imóvel tivesse à data em que o mesmo fosse vendido em execução, caso esta viesse a ter lugar. Pelo contrário, a constituição do ora Apelante como fiador e principal pagador das dívidas contraídas pela mutuária co-executada, no âmbito dos contratos firmados com o Banco ora Réu, antes mostra que este, aquando da dita escritura, não considerou como suficiente, para garantir o futuro pagamento do seu crédito, o imóvel hipotecado.[8]

Não se olvide, ainda, que, consoante o provado, na referida acção executiva, os executados foram notificados da decisão da modalidade de venda, bem como do valor da mesma, sendo notificados que a venda iria decorrer mediante propostas em carta fechada, com atribuição ao imóvel de um valor de € 132.428,58, admitindo-se propostas correspondentes a 70% desse valor, ou seja € 92.700,00.

Ora, ao que parece, o aqui Apelante não considerou, então, que a anunciada venda, a ser concretizada pela admissão de propostas a partir de € 92.700,00, seria efectuada por montante inferior ao valor que o imóvel então teria, pois que, se assim o entendesse, teria expressado a sua discordância no processo.

Se o preço proposto pelo Exequente para a adjudicação do imóvel fosse aquém do seu valor na ocasião, por certo que surgiriam proponentes a oferecer valores mais elevados, o que não sucedeu.[9]

Assim, o preço a considerar foi, com observância dos normativos pertinentes, o oferecido na proposta de adjudicação do Exequente e era esse valor que para todos os efeitos haveria de considerar para apurar se estava ou não satisfeita a quantia exequenda e demais despesas e, consequentemente, se a execução haveria, ou não, de prosseguir com penhora dos bens co-excutado fiador, o que veio a suceder, precisamente, porque a quantia de € 92.700,00 não cobria então a quantia exequenda e demais despesas.

Por outro lado, a circunstância de o exequente ter indicado, como valor base, os referidos € 132.428,58, não significa que entendesse ser esse e não um inferior, na ocasião, o valor do imóvel, pois sabia ou teria de saber, que, à luz dos preceitos legais aplicáveis, teriam de ser admitidas as propostas que representassem 70/% ou mais desse valor.

Do exposto resulta a negação do invocado abuso do direito do credor hipotecário mutuante, enquanto exequente, porquanto, não se vislumbra, que, observando as regras processuais pertinentes e tendo em conta o que já se referiu quanto ao valor atribuído ao imóvel na dita escritura, a conduta do ora Réu haja excedido manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, e que, em particular, tal conduta encerrasse, de alguma forma, contradição susceptível de, objectivamente, gerar nos executados a convicção de que ele, credor-mutuante, sempre consideraria como valor do imóvel, em caso de incumprimento da mutuária, o valor indicado em 12/06/2006 na mencionada escritura.[10]

Por outro lado e conforme também já flui do exposto, não se podendo equiparar, como sustenta o Apelante, esse valor-base, ou “valor patrimonial”, de € 132.428,58, ao valor que o imóvel efectivamente tinha à data da adjudicação, não se pode concluir que o Exequente, adquirindo, por adjudicação, tal imóvel, tenha ficado pago da quantia exequenda e demais despesas e que, consequentemente, tenha recebido, além daquilo a que tinha direito nessa execução, o montante de € 35.200,00 que o executado fiador, ora Apelante, entregou a seu favor, o que não habilita a retirar a conclusão de que tenha ocorrido enriquecimento, nessa ou noutra medida, do aí Exequente à custa do empobrecimento do ora Apelado.

Não se verifica, assim, desde logo, o enriquecimento, que é o pressuposto principal da obrigação prevista no artº 473º, nº 1, do CC, pelo que é de negar o enriquecimento sem causa do Réu, que o Apelante também invocou para alicerçar o direito à restituição que nesta acção peticiona.[11]

Como se pode constatar do acima exposto, a argumentação tecida para chegar ao que se concluiu, não sofre alteração, quer se leve em consideração ou não a matéria vertida nos artigos 18°, 19°, 21º e 25°, da petição inicial, pelo que, irrelevando tal matéria para a decisão a tomar, o Tribunal “a quo” ao não a especificar como assente no saneador-sentença recorrido, não incorreu em erro de julgamento (de facto) e, muito menos se poderá entender, que, ao assim proceder, omitiu pronúncia sobre questão que lhe cumpria resolver, pois que a ausência, na decisão, de factualidade alegada que se deva entender como provada, ainda que relevante para a sorte da causa, não configura o vício a que se reporta a 1ª parte da alínea d) do n° 1 do artigo 615° do NCPC. Efectivamente, uma coisa é o Tribunal não tomar posição sobre determinada questão que está obrigado a decidir; uma outra, é o Tribunal não ter dado relevância a determinado facto ou argumento, porque, tácita ou expressamente, o afastou em resultado de não lhe achar cabimento na solução jurídica que entendeu ajustada à resolução da questão. Neste último caso - se o facto desconsiderado se apura, afinal, tratar-se de um facto juridicamente relevante -, esta conduta do tribunal poderá conduzir a erro de julgamento, mas não consubstancia omissão de pronúncia, já que a questão, embora sem o contributo de um elemento relevante para o efeito, foi apreciada.

Assim, a conclusão que se tira é a de que, sem infracção dos preceitos cuja violação o Apelante imputa ao Tribunal “a quo”, bem se decidiu no saneador-sentença recorrido, ao julgar-se a acção improcedente, absolvendo-se o Réu do pedido.

VI - Em face de tudo o exposto, Acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em, na improcedência da apelação, manter o decidido no saneador-sentença recorrido.

Custas a cargo do Apelante.

Coimbra, 01/03/2016


    (Luís José Falcão de Magalhães)

 (Sílvia Maria Pereira Pires)

(Maria Domingas Simões)


           

***



[1] Consultáveis na Internet, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase, endereço este através do qual poderão ser acedidos todos os Acórdãos do STJ que abaixo se assinalarem sem referência de publicação.
[2]http://www.inverbis.pt/2012/ficheiros/doc/tribunalportalegre_creditohipotecario.pdf”. Uma apreciação crítica a esta decisão é feita pela Professora Isabel Menéres Campos, no “"Comentário à (muito falada) sentença do Tribunal Judicial de Portalegre de 4 de Janeiro de 2012", in Cadernos de Direito Privado n.º 38, Abril/Junho 2012, págs. 3 a 13.
[3]https://www.google.ca/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&ved=0ahUKEwjV3Zuj3ofLAhXFPRoKHZuODpMQFggjMAE&url=http%3A%2F%2Fwww.parlament.cat%2Fdocument%2Fintrade%2F11033&usg=AFQjCNErqSz6AVbjX_DMrpo0nkna4zS4NA&bvm=bv.114733917,d.d2s&cad=rja.”.
[4] Cfr. a crítica, pelo Prof. José MARTÍN PASTOR, a esta decisão de 17/12, em “https://www.icab.cat/files/242-344696-DOCUMENTO/MART%C3%8DN_PASTOR_posibilidades_acreeedor_hipotecario.pdf”.
[5] Como é claro estas decisões dos Tribunais Espanhóis foram proferidas muito antes da publicação do “Real Decreto-ley 6/2012, de 9 de marzo”, que estabelece “medidas urgentes de protección de deudores hipotecarios sin recursos” e o respectivo anexo “Código de Buenas Prácticas para la reestructuración viable de las deudas con garantía hipotecaria sobre la vivienda habitual” (BOLETÍN OFICIAL DEL ESTADO, nº 60, de 10/3/2012, Sec. I. págs. 22492 a 22501).
[6] “INCUMPRIMENTO DO CONTRATO DE MÚTUO PARA AQUISIÇÃO DE HABITAÇÃO E ADJUDICAÇÃO DO IMÓVEL HIPOTECADO POR VALOR INFERIOR AO DA DÍVIDA EXEQUENDA” - DISSERTAÇÃO DE MESTRADO (Direito), Porto – 2011, págs. 32 e 33, a que se poderá aceder na Internet, no seguinte endereço: “http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/8939/1/111229%20DISSERTA%C3%87%C3%83O%20DE%20MESTRADO%20-%20GIL%20CAMPILHO.pdf”.
[7] Este diploma entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2008 (artº 12º, nº 1) e, fora as excepções que o memo refere no nº 2 do seu artº 11 - que para aqui não importam -, as alterações que introduziu ao CPC não se aplicam aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor (nº 1 do artº 11).
[8] Cfr. Gil Campilho, Obra citada, pág. 42 (Item 7.1); Cfr. também, Acórdão da Relação de Évora, de 11 de Junho de 2015 (Apelação nº 30/12.0TBACN-A.E1), consultável em “http://www.dgsi.pt/jtre.nsf?OpenDatabase”.
[9] Cfr. Gil Campilho, Obra citada, págs. 41 e 42.
[10] Cfr. Gil Campilho, Obra citada, págs. 42,43 e 44.
[11] Versando hipóteses semelhantes àquela que se nos apresenta e negando, quer a existência de abuso do direito, quer a verificação de enriquecimento sem causa, cfr. para além do já citado Acórdão da Relação de Évora, os Acórdãos da Relação de Lisboa, de 12/12/2013 (Agravo nº 23703/09.0T2SNT-B.L1-6) e de 29/10/2013 (Apelação nº 181/12.OTBMC.L1-7), ambos consultáveis em “http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf?OpenDatabase”.