Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1650/22.0T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: SUSPENSÃO OU DESTITUIÇÃO DE TITULARES DE ÓRGÃOS SOCIAIS
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
CONHECIMENTO OFICIOSO
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1055.º, 986.º, N.º 2, E 615.º, N.º 1, AL.ª D), DO CPCIV.
Sumário: I – O processo de suspensão ou destituição de titulares de órgãos sociais (artigo 1055.º CPC), é um processo de jurisdição voluntária, onde o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes (artigo 986.º, n.º 2, do CPC).

II – Ainda que não seja admissível a apresentação de contestação, por ter sido dispensada, nesta fase, a audição dos Requeridos, ao tribunal incumbia, desde logo e em primeiro lugar, apreciar a questão da legitimidade, não só processual, mas também substancial, da requerente para deduzir as pretensões aqui deduzidas contra o gerente e a sociedade, da qual se arvora em sócia.

III – Como tal, o facto de os requeridos terem invocado a questão da nulidade da procuração com base na qual foi celebrado o negócio de transmissão da quota do requerido para a requerente, com a consequente nulidade de tal cessão, não constituiu impedimento ao conhecimento de tais questões por parte do tribunal, quer por as mesmas serem de conhecimento oficioso, quer porque sempre tal seria permitido pela amplitude poderes que é dada ao juiz no âmbito de um processo de jurisdição voluntária.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Integral:
Processo nº 1650/22.0T8LRA.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Paulo Correia

2º Adjunto: Helena Melo

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA intenta a presente ação de suspensão e destituição de titulares de órgãos sociais prevista no artigo 1055º do CPC, contra:

1. BB, e

2. S..., Lda,

Pedindo:

- a suspensão imediata do requerido, BB, do cargo de gerente da sociedade requerida, nos termos do artigo 1055º, nº2 do CPC, sem audição prévia do requerido;

- a sua destituição do cargo de gerente, devendo o mesmo entregar as chaves do estabelecimento e abster-se de assumir quaisquer compromissos em nome da sociedade;

- a nomeação de gerente provisório, indicando para tal, CC, ou caso assim não se entenda, DD.

Alegando, para tal, e em síntese que é sócia da sociedade requerida, detendo uma quota no valor nominal de € 12.000,00 e que o requerido tem praticado atos que consubstanciam a violação dos deveres de cuidado e de lealdade que impossibilitam, em termos objetivos e subjetivos, a manutenção da relação contratual de gerência estabelecida com a sociedade, por implicarem uma irreversível quebra da relação de confiança que a relação pressupõe, tornando inexigível à sociedade a manutenção da mesma.

A 22 de abril de 2022, pelo tribunal a quo foi proferido despacho a deferir o pedido de dispensa da audiência prévia dos requeridos, relativamente ao pedido de suspensão do requerido do cargo de gerente, designando-se para tomada de declarações à requerente o dia 11 de maio.

Por requerimento eletrónico enviado a 10 de maio, os requeridos, afirmando terem tomado conhecimento dos presentes autos, através da consulta online da certidão permanente da requerida, vêm alegar que a requerente procedeu à alegada cessão de quota de que o requerido BB era titular na sociedade requerida com base numa procuração nula, uma vez que a procuração para celebrar negócio consigo próprio tem de ser outorgada através de instrumento público, nos termos do art. 116º, nº2, do Código do Notariado.

Aberta a diligência designada para o dia 11 de maio, foi a Requerente notificada do Requerimento apresentado pelos Requeridos, sobre o qual se veio a pronunciar, alegando que, tendo-se o tribunal pronunciado já sobre a questão da despensa de citação e audição prévia dos requeridos, esgotado está o poder jurisdicional do juiz quanto a essa questão, nos termos do art. 613º, nº 1 do CPC, pelo que tal requerimento deverá ser desentranhado, impugnando à cautela, o que no mesmo é alegado.

Pelo juiz a quo é proferido o seguinte despacho:

“Os autos não dispõem ainda de todos os elementos para a decisão sobre a eventual nulidade da procuração, na medida em que é necessário desde logo apurar qual a relação subjacente que deu origem à outorga da procuração para se aferir do interesse do procurador na sua irrevogabilidade.

Na verdade, para se considerar que uma procuração é irrevogável, não basta o facto de a irrevogabilidade constar da procuração, sendo necessário averiguar se, em concreto, ela foi conferida no interesse da procuradora.

Deste modo, importa determinar o prosseguimento dos autos com a inquirição das testemunhas arroladas pela requerente.

Assim, para a tomada de declarações à requerente (que se deve apresentar neste Juízo) e inquirição das testemunhas referidas em 1), 4) e 5) do requerimento inicial (…), designo o próximo dia 1 de Junho, pelas 13h e 30m.

Notifique


*

No que concerne ao desentranhamento do requerimento de 10.05.2022 vai o mesmo indeferido.

Na verdade, considerando que no requerimento é invocada a nulidade da procuração que ainda não se encontra decidida, questão esta relevante para a apreciação quer do pedido de suspensão quer de destituição do requerido do cargo de gerente da requerida uma vez que contende desde logo com a legitimidade da requerente, bem assim que, sendo este processo de jurisdição voluntária, o tribunal tem o poder-dever de investigar livremente os factos, coligir provas, ordenar inquéritos e recolher as informações que entenda convenientes e necessários (art.º 986º, nº 2, do CPC) à decisão a tomar.

Por outro lado, foi dada a oportunidade à requerente de exercer o contraditório.

Notifique a requerente.”

L... e P..., na qualidade de sócias da sociedade requerida, apresentaram requerimento, no qual manifestam a sua total discordância relativamente aos pedidos de suspensão e destituição formulados na presente ação.

A 1 de junho de 2020, procedeu-se à audição das testemunhas indicadas pela Requerente, após o que foi proferida a seguinte Sentença:

Em face do exposto, julgo a presente ação improcedente e, consequentemente, absolvo o requerido do pedido de suspensão e de destituição do cargo de gerente da sociedade.


*

Inconformada com tal decisão, a requerente dela interpõe recurso de Apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

I. Entende a recorrente que a douta sentença recorrida está ferida de nulidade, nos termos do disposto no artigo 668º, d), CPC, nulidade essa que expressamente se invoca.

II. Com efeito, no dia 28.04.2022, o Tribunal a quo proferiu um despacho onde dispensou a audiência prévia dos requeridos.

III. Ora, dispõe o artigo 613.º, n.º 1 do CPC que: “Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.”, acrescentando o º 3 da mesma norma legal que tal regra se aplica com as necessárias adaptações aos despachos pelo que, quando o Tribunal a quo proferiu a decisão quanto à dispensa de citação e contraditório prévio dos Requeridos, o seu poder jurisdicional esgotou-se, devendo, consequentemente, ser desentranhados todos os requerimentos remetidos aos autos pelos requeridos.

IV. Contudo, e ao invés, o tribunal a quo admitiu esses requerimentos e considerou o seu conteúdo na douta sentença recorrida, o que lhe estava vedado, designadamente no que concerne à legitimidade da requerente para intentar a ação em apreço.

V. Com efeito, vieram os requeridos alegar a nulidade da procuração usada pela requerente para transmitir a quota, mas não identificaram qual a motivo da “alegada” nulidade da procuração, nem sequer identificaram qual a procuração utilizada para a transmissão de quotas, logo, tal nulidade não tinha como ser atendida.

VI. Além de que, “A responsabilidade pelos registos compete ao conservador dos registos cuja função primordial é a qualificação, ou seja, a verificação da viabilidade do pedido de registo, da legitimidade dos requerentes e do cumprimento das disposições legais aplicáveis, nos termos do art. 47º do Código do Registo Comercial. O princípio da presunção da verdade registral consiste na presunção de que a situação jurídica resultante do registo definitivo existe e existe nos precisos termos nele definida (cf. art. 11º do Código do Registo Comercial), presunção que pode ser impugnada mediante a ação de declaração de nulidade do registo.” vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 11.12.2018, processo n.º 21390/17.0T8LSB.L1-7, disponível em www.dgsi.pt., tendo sido a transmissão de quotas em causa validada pela Conservatória do Registo Comercial ....

VII. Ora, não sendo objeto dos presentes autos a validade da transmissão de quotas, não poderia o Tribunal a quo pronunciar-se sobre essa mesma validade e consequente legitimidade ou não da requerente para intentar a presente ação.

VIII. Entende a recorrente que todos os factos dados como provados, bem como a prova produzida, em especial o depoimento da testemunha EE (que aqui se dão por reproduzidos por uma questão de economia processual) são por demais evidentes de que o requerido nunca teve qualquer intervenção na empresa, nem tem conhecimentos técnicos e especializados na mesma para a conseguir gerir, além de que não mantinha relação com colaboradores, fornecedores e/ou clientes, dispensou sem mais o advogado da empresa, não sabendo a requerente os prejuízos que isso pode causar à requerida S..., Lda e, em tom de ameaça, referiu à testemunha FF (contabilista da empresa) que ainda estava a ponderar a sua posição na empresa.

IX. Estamos a falar de um gerente (requerido) que, de verdade, nunca geriu a S..., Lda, não reside nem tem conhecimentos do nosso país, não conhece a dinâmica da empresa, o know-how, mas que, de um dia para o outro, decidiu tomar a empresa de assalto e pôr em questão tudo quanto foi feito desde a sua constituição pela recorrente e pelo seu companheiro CC,

X. Que não fosse os problemas pessoais que tinham em 2014, teriam sido os sócios e gerentes primários da empresa.

XI. De tudo quanto está provado e da prova constante dos autos, fácil é concluir que o requerido quis tomar a S..., Lda de assalto para a falir e, assim, não cumprir com as obrigações que a L... (empresa do requerido em ...) tem para com a S..., Lda, deitando assim por terra todo o esforço, dedicação e trabalho levados a cabo quer pela recorrente, quer pelo seu companheiro CC que construíram a S..., Lda de raiz e a seguraram mesmo nos tempos mais difíceis, como foi o caso da pandemia COVID-19.

XII. A douta sentença recorrido violou o disposto nos artigos 668º, d), do CPC, 257º, nº 4, do CSC, 64º, CSC.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO DEVERÁ A DECISÃO RECORRIDA SER REVOGADA E SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE CONTEMPLE AS CONCLUSÕES SUPRA ELENCADAS.


*

Não foram apresentadas contra-alegações (a citação das requeridas não foi ainda determinada).
Dispensados os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº4, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Nulidade da sentença pelo facto de ter conhecido de questão que não podia conhecer, nos termos do artigo 615º, al. d), do CPC, ao apreciar a validade da cessão de quotas e a (i)legitimidade da requerente para intentar a presente ação.
2. Se os factos dados como provados constituem motivos suficientes para afastar o requerido do cargo de gerente.
*
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Nulidade da sentença, nos termos do artigo 615º, nº1, al. d). pelo facto de ter conhecido de questão que não podia conhecer, nos termos do artigo 615º, al. d), do CPC, ao apreciar a validade da cessão de quotas e a (i)legitimidade da requerente para intentar a presente ação.

Instaurada a presente ação de suspensão e destituição de BB de gerente da sociedade, S..., Lda., veio a mesma a ser julgada improcedente, com fundamento na nulidade da procuração com base na qual a Requerente procedeu à cessão da quota de 12.000 € para si própria, e consequente nulidade de tal cessão de quotas, e em que, na ausência de alegação do consentimento da sociedade nessa transmissão de quota, sempre a mesma seria ineficaz para com a sociedade. Daí conclui que, não sendo a requerente titular da quota e sócia da sociedade, não é titular do direito de que se arrogou, não tendo legitimidade substantiva para requerer a suspensão e a destituição do requerido do caro de gerente da sociedade S..., Lda.

Insurge-se a Requerente/Apelante, contra o decidido, com a seguinte fundamentação:

- tendo o tribunal a quo proferido, a 28.04.2022, despacho onde dispensou a audiência prévia dos requeridos, encontrava-se esgotado o poder jurisdicional relativamente a tal matéria, nos termos do art. 613º, nº1, CPC, devendo ter sido desentranhados os requerimentos remetidos aos autos pelos Requeridos;

- como tal, encontrava-se vedado ao tribunal a consideração de tais requerimentos na sentença, nomeadamente a apreciação da questão da legitimidade da requerente para intentar a ação em apreço.

- tendo os requeridos alegado a nulidade da procuração usada pela requerente para transmitir a quota, sem que tivessem alegado qual o motivo da alegada nulidade da procuração, tal nulidade não tinha como ser atendida;

- não sendo objeto dos autos a validade da transmissão de quotas, não podia o tribunal pronunciar-se sobre essa mesma validade e consequente legitimidade da Requerente para intentar a presente ação.

Vejamos, então, se o facto de ter sido proferido despacho de dispensa do contraditório relativamente ao procedimento de suspensão imediata das funções de gerente, impedia o juiz de conhecer da questão da nulidade da procuração usada pela Requerente para transmitir a quota, a validade da cessão efetuada a seu favor e a consequente questão da sua legitimidade para a instauração da presente ação, começando por analisar os fundamentos sustentados a tal respeito pela Apelante:

a.            pelo facto de o poder jurisdicional do juiz se encontrar esgotado relativamente à questão da dispensa da audiência prévia.

Não tem fundamento a invocação da violação do disposto no artigo 613º, nº1, do CPC, por, alegadamente, se encontrar esgotado o poder jurisdicional do juiz relativamente à questão da dispensa da audiência prévia. Proferido, por si, despacho a dispensar a audiência prévia dos requeridos, relativamente ao procedimento ou fase cautelar respeitante ao pedido de suspensão imediata do requerido das funções de gerente (artigo 1055º, nº2, CPC), não foi proferida qualquer decisão do juiz em sentido oposto, sendo que, apesar de os requeridos (espontaneamente) terem feito apresentar dois requerimentos aos autos, acompanhados de alguns documentos, nunca, relativamente aos requeridos, chegou a ser observado o princípio do contraditório previsto no artigo3 º do CPC.

Nunca, até agora, nem na 1º instância, nem em sede recursal, foi ordenada a sua citação ou notificação de qualquer ato praticado nos autos.

Foi por sua própria iniciativa que os requeridos, tendo tomado conhecimento da pendência da presente ação, vieram apresentar um requerimento, alertando para o facto de a Requerente ter procedido à cessão da quota de 12.000 € da titularidade do requerido BB, com base numa procuração nula, em violação do artigo 116º, nº2 do Código do Notariado, cessão que, será como tal, também ela nula; mais alertam para a circunstância de tal quota ter sido transmitida sem o consentimento da assembleia.

O facto de o juiz a quo ter vindo a indeferir o pedido de desentranhamento de tais requerimentos (decisão da qual a Requerente não recorreu) e de, posteriormente, na sentença recorrida, ter apreciado, entre outras, as questões aí aludidas pelo requerente, já nada tem a ver com o facto de se encontrar esgotado o seu poder relativamente à questão da dispensa do contraditório, mas, em saber de tal conhecimento lhe era permitido, no confronto dos princípios do inquisitório e do princípio do dispositivo, ambos vigentes em processo civil.

b.           pelo facto de os requeridos não terem alegado o motivo da alegada nulidade da procuração e não terem identificado qual a procuração utilizada para a transmissão de quotas

Quanto às críticas de que os requeridos invocaram a nulidade da procuração usada pela requerente para transmitir a quota, sem que tenham alegado qual o motivo da alegada nulidade da procuração, e sem identificarem qual a procuração utilizada para a transmissão de quotas, não tem qualquer fundamento: os requeridos alegaram a nulidade da procuração com base na qual a requerente celebrou o negócio de transmissão da quota, em representação do requerido BB, para si própria, “por violação do disposto no art.º 116º, nº2 do Código do Notariado” (que prevê que a procuração também conferida a favor do procurador deve ser lavrada por instrumento público[1]);

Por outro lado, é a requerente que, no requerimento inicial da presente ação, identifica, dentro das várias procurações que lhe terão sido emitidas, qual a procuração que terá sido por si usada para proceder à cessão de tais quotas para si própria (alegação e prova que, além do mais lhe competia, enquanto factos constitutivos do seu direito a vir requerer ao tribunal a destituição de gerente).

Com efeito, a requerente, no requerimento inicial da presente ação, alega ter BB ter “outorgado, no dia 04.10.2014, ou seja, em data anterior à constituição da ..., procuração irrevogável a favor da ex-mulher, do CC, a aqui Requerente, para transmitir a quota de € 12.000 (Doze mil euros) para a sua titularidade – cf. Procuração que se junta adiante como doc.1 e que se dá como integralmente reproduzida.”.

Ou seja, é a requerente que identifica qual a procuração por si usada para, em nome do requerido, proceder à cessão da quota da titularidade daquele, para si própria.

E a requerente faz assentar a sua legitimidade para a presente ação no facto de deter a referida quota nominal de 12.000,00 € “conforme certidão permanente”.

Concluindo, os requeridos identificam perfeitamente qual o vício que apontam a tal procuração e que, em seu entender, acarretaria a nulidade da própria cessão de quotas efetuada a favor da Requerente.

c.            Não sendo objeto dos presentes autos a validade ou transmissão de quotas, não poderia o tribunal pronunciar-se sobre essa mesma validade e consequente legitimidade ou não do requerente para intentar a presente ação.

A verdadeira questão que aqui se coloca consiste em determinar se, uma vez dispensada a sua audiência prévia, podia o tribunal, nesta fase, a que se refere o artigo 1055º, nº2 CPC – em que não está prevista a intervenção dos requeridos e que era suposto decorrer na sua ausência –, conhecer das questões levantadas pelos requeridos em tal requerimento.

Não podendo, em regra, o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (artigo 609º, nº2 do CPC), será nula a sentença que o faça, por conhecer de questões de que não podia conhecer, nos termos artigo 615º, nº1, al. d), do CPC.

No caso em apreço, a resposta à questão de saber se podia, ou não, o tribunal apreciar as questões em causa, será necessariamente afirmativa se se encontrarem em causa questões de conhecimento oficioso por parte do tribunal.

E é precisamente o caso: ainda que não tenha sido deduzida contestação, por ter sido dispensada, nesta fase, a audição dos Requeridos, ao tribunal incumbia, desde logo e em primeiro lugar, apreciar a questão da legitimidade, não só processual, mas também substantiva, da requerente para deduzir as pretensões aqui apresentadas contra o gerente e a sociedade, da qual se intitula sócia.

Assim sendo, alegando a Requerente ter adquirido a quota de 12.000,00 € da titularidade do gerente BB, através de uma procuração irrevogável, emitida por este a seu favor, pela qual lhe conferia poderes para ceder tal quota a terceiros, inclusive a si própria, e sendo requisito de legitimidade a qualidade de sócia da requerida, ao tribunal incumbia a tarefa de apreciar se tal procuração preenchia os requisitos legais, quer quanto à forma, quer para aferir se os poderes atribuídos por esta lhe conferiam a faculdade de realizar um negócio consigo mesma.

E, tal conhecimento oficioso mais se impunha pela circunstância de, tratando-se de ação de suspensão ou destituição de titulares de órgãos sociais, se inserir no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, onde o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes (artigo 986º, nº2 do CPC).

“O nº2 prescreve a prevalência do princípio do inquisitório sobre o princípio do inquisitivo, de modo a que «os factos essenciais que constituem a causa de pedir não delimitam o âmbito de cognição do tribunal já que este pode considerar outros factos (complementares, concretizadores, instrumentais, notórios, de que tenha conhecimento no exercício das suas funções ou que sejam constitutivos do desvio da função processual), para além daqueles que são alegados pelas partes[2]”.

Quer se trate de “factos integrantes da causa de pedir ou das exceções, de factos complementares ou concretizadores desses factos essenciais, ou de factos instrumentais ou indiciários (…) na jurisdição voluntária, os poderes do tribunal não dependem do cumprimento de nenhum ónus de alegação, na medida em que o tribunal pode conhecê-los oficiosamente, investigando-os por sua iniciativa ou em consequência da alegação dos interessados[3]”.

Ou, como se afirma no Acórdão do STJ de 16-06-2015[4], no processo de suspensão ou destituição de órgãos sociais, previsto no art. 1055ºº CPC, o tribunal tem o poder/dever de investigar livremente os factos, coligir provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes (art.º 986º, n.º 2, do CPC) – o material de facto, sobre o qual há de assentar a resolução, é não só o que os interessados ofereçam, senão também o que o juiz conseguir trazer para o processo pela sua própria atividade.

Como tal, e independentemente de que a questão ter sido suscitada (ou não) pelos requeridos, para apreciar o direito invocado pela autora, e invocando esta a aquisição da quota com base numa procuração irrevogável que lhe atribuía poderes para ceder a quota, inclusive a si própria, o tribunal podia e devia, oficiosamente, apreciar a validade de tal procuração, e daí retirar as devidas consequências quanto à própria validade da cessão de quotas, por essencial à determinação da legitimidade da requerente, dependente da comprovação da qualidade de sócio (art. 257º, nº4 do Código das Sociedades Comerciais).

Como tal, não se verifica a invocada nulidade por excesso de pronúncia.


*

 Com o presente recurso, a Apelante não contesta a apreciação feita pelo tribunal quando à nulidade da procuração e consequente nulidade da cessão de quotas que acarreta a ilegitimidade da requerente para formular as pretensões em causa, circunscrevendo as suas discordâncias com o decidido, unicamente, no argumento de que o tribunal não poderia ter apreciado tal questão.

Assim sendo, reconhecendo-se ao tribunal o poder/dever de apreciar tais questões, mantém-se a decisão recorrida quanto à ilegitimidade da requerente para instaurar a presente ação, encontrando-se prejudicado o conhecimento do restante objeto do recurso, na parte em que se insurge quanto ao decidido relativamente à existência de factos suficientes para afastar o requerido do cargo de gerente.

A apelação é de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a Apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.

Custas a suportar pela Apelante.                  

                                                                Coimbra, 13 de setembro de 2022


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

1. O processo de suspensão ou destituição de titulares de órgãos sociais (artigo 1055º CPC), é um processo de jurisdição voluntária, onde o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes (artigo 986º, nº2 do CPC).

2. Ainda que não seja admissível a apresentação de contestação, por ter sido dispensada, nesta fase, a audição dos Requeridos, ao tribunal incumbia, desde logo e em primeiro lugar, apreciar a questão da legitimidade, não só processual, mas também substancial, da requerente para deduzir as pretensões aqui deduzidas contra o gerente e a sociedade, da qual se arvora em sócia.

2. Como tal, o facto os requeridos terem invocado a questão da nulidade da procuração com base na qual foi celebrado o negócio de transmissão da quota do requerido para a requerente, com a consequente nulidade de tal cessão, não constituiu impedimento ao conhecimento de tais questões por parte do tribunal, quer por as mesmas serem de conhecimento oficioso, quer porque sempre tal seria permitido pela amplitude poderes que é dada ao juiz no âmbito de um processo de jurisdição voluntária.




[1] Artigo 116.º Código do Notariado:
Procurações e substabelecimentos
1 - As procurações que exijam intervenção notarial podem ser lavradas por instrumento público, por documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura ou por documento autenticado.
2 - As procurações conferidas também no interesse de procurador ou de terceiro devem ser lavradas por instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial.
[2] António José Fialho, “Conteúdo e Limites do Princípio do Inquisitório na Jurisdição Voluntária”, p. 97, citado por António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, Almedina, nota 5. ao artigo 986º, p.436.
[3] Maria dos Prazeres Beleza, “Jurisprudência sobre o Rapto Internacional de Crianças”, Revista Julgar, nº 124, p. 70.
[4] Acórdão relatado por Fonte Ramos, disponível in www.dgsi.pt.