Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
306/12.6TATND-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO
ASSISTENTE
NULIDADE
ELEMENTOS CONSTITUTIVOS
BURLA
Data do Acordão: 04/29/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 283.º, ALS. B) E C); 309, DO CPP; ART. 217.º DO CP
Sumário: I - O requerimento para abertura da instrução do assistente deve estruturar-se como uma acusação, dele tendo que constar a narração, ainda que sintética, dos concretos factos imputados ao arguido fundamentadores da aplicação de pena ou medida de segurança ou seja, os factos preenchedores do tipo, objectivo e subjectivo, do crime pelo qual pretende ver este pronunciado.
II - O crime de burla, que tutela o bem jurídico património, globalmente considerado, tem como elementos constitutivos do respectivo tipo (art. 217º, nº 1 do C. Penal):

[Tipo objectivo]

- Que o agente determine outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a terceiro, prejuízo patrimonial;

- Que esta determinação seja causada por meio de erro ou engano sobre factos que o agente astuciosamente provocou;

[Tipo subjectivo]

- O dolo genérico, o conhecimento e vontade do agente actuar de forma fraudulenta, com conhecimento da sua censurabilidade; e

- O dolo específico, a intenção de o agente obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, o animus lucri faciendi.

III - Se os factos constantes do requerimento da assistente são insusceptíveis de caracterizarem o prejuízo patrimonial que integra o tipo objectivo do crime de burla e o enriquecimento ilegítimo que constitui o objecto da intenção do agente, elemento integrante do tipo subjectivo do mesmo crime, enquanto acusação alternativa, o dito requerimento não contém a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação aos denunciados de uma pena, in casu, a narração dos factos necessários e suficientes para o preenchimento do tipo, objectivo e subjectivo, do crime de burla.

II - Sendo o dolo um facto, deve concluir-se que a sua consideração pelo juiz de instrução na decisão instrutória, quando não alegado no requerimento e portanto, quando não integrando o objecto do processo, traduzir-se-á na nulidade prevista no art. 309.º, n.º 1, do CPP.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

No Processo nº 833/13.8TACLD que corre termos no, já extinto, 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tondela, hoje, Comarca de Viseu, Viseu – Instância Central – Secção de Instrução Criminal – J1, em que é assistente,A..., e arguidos, B... e C... , o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento do inquérito, relativamente aos factos denunciados, imputados a estes arguidos.

 A assistente requereu, em 28 de Maio de 2014, a abertura da instrução.

Remetidos os autos a juízo, o Mmo. Juiz de instrução, por despacho de 9 de Julho de 2014, rejeitou liminarmente o requerimento de abertura da instrução da assistente.


*

Inconformada com a decisão, recorreu a assistente, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1º – O presente recurso vem interposto da decisão do tribunal "a quo" de indeferir o requerimento de abertura de instrução apresentado pela Recorrente, quanto ao arquivamento dos autos quanto ao crime de burla (previsto e punido nos termos do art, 217º/1 do C.P.) e quanto ao crime de ofensa á integridade física simples (previsto e punido nos termos do art. 143º do C.P.).

2º – Dando, o Exmo Juiz "a quo" como fundamentos para este despacho o facto de: "o requerimento de abertura de instrução ora em apreço, não contém a identificação completa dos arguidos, ainda que por remissão para o local no processo onde eles constem, limitando-se a indicar os seus nomes.", "o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, não contém a narração sintética dos factos (objectivos) criminalmente relevantes, as circunstâncias de tempo, lugar e a motivação na sua prática", e ainda que "o requerimento de abertura de instrução é omisso, na descrição factual, quanto ao elemento subjectivo, o dolo, em qualquer uma das suas modalidades, direto, necessário e eventual, sendo que, tal requisito se revela como essencial para a eventual punibilidade do comportamento dos arguidos." E ainda "o requerimento de abertura de instrução apresentado pele assistente, não contém a narração sintética dos factos (objectivos) criminalmente relevantes, as circunstâncias de tempo, lugar e a motivação na sua prática".

Ora não pode de forma alguma a aqui Recorrente concordar, salvo o devido respeito, com tal opinião dado que:

3º – O RAI apresentado pela aqui Recorrente contêm:

- a identificação dos arguidos, identificando-os pelo nome completo no RAI e remetendo para os autos, onde se encontra a identificação com residência destes, na queixa já anteriormente efectuada pela Recorrente ( vide artigo 4° do RAI).

- a súmula das razões de facto e de direito da discordância em relação à não acusação dos arguidos, com uma narração exaustiva dos factos relevantes para o preenchimento do tipo de ilícitos criminais em causa, nomeadamente dos elementos subjectivos e objectivos (vide artigos 4º e seguintes – com especial relevo para o artigo 20º, 26º e 27º – no que diz respeito ao crime de burla e artigo 33º e seguintes – com especial relevo para o artigo 34º e 35º no qual se transcreve as expressões injuriosas e a violência utilizada – no que diz respeito ao crime de ofensa à integridade física simples).

- faz menção em todo o RAI de situações de dolo, fazendo referência directa à existência deste ( vide artigos 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 26º, 27º, 34º, 35º, 45º do RAI).

- a indicação dos actos de instrução que a Recorrente pretende que o juiz leve a cabo (vide rol de testemunhas a inquirir em sede de instrução para cada tipo criminal).

- a narração concreta e precisa dos factos que preenchem os elementos objectivos e subjectivos dos tipos de metros em causa, em tempo, modo e lugar ( vide artigo 4º e seguintes do RAI e artigo 33º e seguintes do mesmo).

- as disposições legais aplicáveis em cada ilícito criminal.

4º – Ainda assim, e caso assim não se entenda, diz-nos o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 17.04.2012 que "Não é de rejeitar o requerimento de abertura da instrução quando neste são narrados os elementos objectivos dos crimes em presença e deles podem depreender-se os respectivos elementos subjectivos, em que seja de exigir ao Sr. Juiz algum esforço para além do que lhe é pedido no exercício regular do seu múnus:"

5º – Pelo que, e salvo melhor opinião, não deveria o presente RAI ter sido rejeitado, já que este respeitou o preceituado nos artigos 287º, nº 1, 2 e 3 do C.P.P. e o artigo 283º nº 3 do C.P.P.

6º – Pelo exposto, o despacho objecto de recurso, ao rejeitar o RAI da assistente viola o artigo 287°1/ 1, 2 e 3 e artigo 283º/3 do C.P.P. e viola também o artigo 20º da C.R.P., inconstitucionalidade essa que desde já aqui se argui para os devidos e legais efeitos.

Termos em que, nos melhores de direito e com o suprimento de Vªs Exªs, deve ser concedido provimento ao presente recurso procedendo se á revogação da decisão recorrida, sendo admitido o requerimento de abertura de instrução da Recorrente e declarada a abertura da fase de instrução, com as demais consequências legais, assim se fazendo Justiça!


*

            Responderam ao recurso os arguidos, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            Em todas as questões levantadas pela assistente/recorrente, concluímos que a mesma, salvo sempre o devido respeito, carece de qualquer razão.

Por tudo já mencionado, conclui-se que o requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente não cumpre minimamente as exigências legais previstas nos artigos 283.º/3 e 287.º/2 do CPP, designadamente não identificou os arguidos e, ainda, dele não se alcança a fixação e delimitação do objeto da instrução, o que consubstancia inadmissibilidade legal e fundamenta a rejeição, nos termos do art. 287.º/3 do CPP.

Assim sendo, como de facto e de direito o é, deve o presente recurso ser julgado improcedente e, em consequência, ser integralmente mantido o douto despacho recorrido, com as legais consequências.

ASSIM SE FAZENDO INTEIRA, SERENA E SÃ JUSTIÇA.


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            Respondeu também ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            1 – A assistente teria necessariamente que narrar factos integradores tanto dos elementos objectivos do crime, como dos seus elementos subjectivos e que justificariam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, imputando-os directamente às denunciadas, agentes do crime.

2 – Não constando do requerimento de abertura de instrução factos que, por preencherem os elementos objectivos e subjectivos do ilícito criminal, pudessem fundamentar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança aos arguidos, aquele requerimento só poderia ter sido desde logo rejeitado, como o foi, por inadmissibilidade legal, nos termos do art, 287º, nº 3, posto que não poderia o sr. juiz de instrução suprir a omissão da imputação dos factos tipificadores dos ilícitos imputados.

Assim, mantendo-se a douta decisão que rejeitou liminarmente o requerimento de abertura da instrução formulado pela assistente A... , farão, Vossas Excelências, como sempre, e mais uma vez, JUSTIÇA.


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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, acompanhando a contramotivação do Ministério Público, realçando a dos requisitos substanciais legalmente exigidos ao requerimento de abertura da instrução apresentado pela recorrente, e concluiu pela improcedência [é manifesto o lapso de escrita existente no parecer, no segmento, «(…)deve ser julgado procedente (…)»] do recurso.

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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal, tendo respondido a recorrente, reafirmando os fundamentos da motivação do recurso.

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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A de saber se o requerimento de abertura de instrução padece de deficiência que determine a sua rejeição;

- A inconstitucionalidade do despacho recorrido, por violação do art. 20 º da Constituição da República Portuguesa.


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            Para a resolução destas questões importa ter presente:

A) O teor do despacho recorrido, que é o seguinte:

            “ (…).

            A... , assistente nos presentes autos, veio requerer a abertura da instrução porque inconformada com o despacho de arquivamento proferido pelo Mº Pº, de fls. 188 a 192 e que concluiu pela inexistência de indícios suficientes que permitam concluir que os arguidos, B... e C... , tenham praticado os ilícitos que lhes foram imputados na queixa por aquela deduzida, nos termos do disposto no artº 277º nº 2, do C. P. Penal.

Pretende a aqui assistente a pronúncia destes arguidos pelos factos que alega no seu requerimento de abertura da instrução e que qualifica como crimes de burla e de ofensa à integridade física, ps. e ps, respectivamente, pelo artºs 217º nº 1 e 143 nº 1, ambos do C. Penal.

De acordo com o disposto no artº 287º, do C. P. Penal, sob a epígrafe, “requerimento para abertura da instrução”:

1 – A abertura da instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:

a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou

b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

2 – O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283º, n.º 3, alíneas b) e c).

Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.

3 – O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução (...)”.

Por sua vez, o artº 308º, do mesmo do Código, sob a epígrafe, “despacho de pronúncia ou não pronúncia”, dispõe:

1 – Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

2 – É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto no artigo 283°, nºs 2, 3 e 4, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior (…)”.

O artº 283º, ainda do C. P. Penal, sob a epígrafe, “Acusação pelo Ministério Público” dispõe, para o que aqui releva que:

(…) 3 – A acusação contém, sob pena de nulidade:

a) (…).

b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada;

c) A indicação das disposições legais aplicáveis; (…)”.

Finalmente há, ainda, que ter em conta o disposto no artº 303º, do mesmo Diploma, que vincula o Juiz aos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, estipulando o nº 3 desse artigo que uma alteração substancial dos factos constantes do requerimento de abertura de instrução leva a novo inquérito.

Destes preceitos resulta que o requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente é mais do que uma forma de impugnar o despacho de arquivamento, uma vez que para esta existe a reclamação hierárquica, ou um meio de requerer actos de instrução ou novos meios de prova.

Na verdade, o objecto da instrução requerida pelo assistente é fixado pelo respectivo requerimento de abertura.

Como tal, pese embora não esteja sujeito a formalidades especiais, deve, não obstante, conter, em súmula as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar.

O requerimento de instrução deve ainda conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis.

Se o requerimento de abertura de instrução não contiver tais elementos de fundamentação, para além de ser nulo, nos termos do disposto no artº 283º nº 3, do C. P. Penal, fica a instrução sem objecto.

Não sendo a fase de instrução um novo inquérito é essencial que contenha um objecto delimitado, em relação ao que consta da acusação ou do despacho de arquivamento.

A omissão no requerimento do assistente da identificação do arguido ou da narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao mesmo de uma pena ou de uma medida de segurança ou das disposições legais aplicáveis é motivo de rejeição da acusação por inadmissibilidade legal (artº 287º nº 3, do C. P. Penal).

O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender, num número significativo de decisões, que a admissão do requerimento para abertura da instrução que não contenha a identificação do arguido, ainda que por remissão para o local do processo onde ela conste, a narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam, implica a prática de actos inúteis em violação do disposto no artº 130º, do novo C. P. Civil, aplicável por força do disposto no artº 4º, do C. P. Penal.

A este respeito se pronunciaram, entre outros, os seguintes Acórdãos daquele Colendo Tribunal (todos acessíveis em www.dgsi.pt), cujos sumários, pela sua relevância, se transcrevem:

i) De 12/03/2009:

I – A instrução é uma fase processual destinada a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento.

II – A inadmissibilidade legal constitui uma das três formas legalmente previstas de rejeição do requerimento para abertura de instrução.

III – Um dos princípios que presidem às normas processuais é o da economia processual, entendida esta como a proibição da prática de actos inúteis, conforme estabelece o art. 137.° CPC, aplicável ao processo penal nos termos do art. 4.° do CPP, por o princípio que lhe serve de substrato se harmonizar em absoluto com o processo penal.

IV – Há afloramentos deste princípio em diversas normas do CPP, nomeadamente no art. 311.°, ao permitir ao juiz rejeitar a acusação manifestamente infundada, e no art. 420.°, que prevê a rejeição do recurso quando for manifesta a sua improcedência.

V – Dado o paralelismo entre a acusação e o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, deve aquilatar-se da possibilidade de aplicação ao requerimento para abertura da instrução do disposto no art. 311.°, que considera manifestamente infundada a acusação: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime.

VI – Se o requerimento para abertura de instrução requerida pelo assistente não contém a identificação do arguido, ainda que por simples remissão para o local no processo onde ela consta, a instrução será inexequível e constituirá uma fase processual sem objecto se o assistente deixar de narrar os factos e de indicar as disposições legais aplicáveis.

VII – De igual modo, se, pela simples análise do requerimento para abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se dever concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à aplicação duma pena, estaremos face a uma fase instrutória inútil, por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia.

VIII – No conceito de "inadmissibilidade legal da instrução", haverá, assim, que incluir, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral”.

ii) De, 07/05/2008:

I – No caso de ter sido proferido despacho de arquivamento, o requerimento de abertura de instrução determinará o objecto desta, definindo o âmbito e os limites da investigação a cargo do juiz de instrução, bem como os da decisão de pronúncia.

II – Atento o paralelismo que se estabelece entre a acusação e o requerimento para abertura de instrução deduzido pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento, sendo que tal requerimento contém substancialmente uma acusação, deverá o mesmo conter a narração dos factos e indicar as provas a produzir ou a requerer, tal como para a acusação o impõe o art. 283.°, n.º 3, ais. b) e d), do CPP.

III – Na verdade, substanciando o requerimento de abertura de instrução uma manifestação de discordância em relação a um despacho de arquivamento, e sendo o essencial da fase de instrução o controlo da acusação – quer tenha sido deduzida pelo MP quer pelo assistente –, a submissão à comprovação judicial só faz sentido com a apresentação de uma narrativa de factos cuja prática é imputada ao arguido, pois a confirmação, o reconhecer-se como bom o requerimento (ou a acusação), terá de passar necessariamente pela aferição de factos concretos da vida real.

IV – A exigência de rigor na delimitação do objecto do processo – note-se que a exigência feita ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao MP no momento em que acusa –, sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.

V – É, pois, de rejeitar, por inadmissibilidade legal, «vista a analogia perfeita entre a acusação e a instrução», o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito, a pôr em crise a sua credibilidade e a evidenciar contradições, e omite em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pelo arguido e do elemento subjectivo que lhe presidiu para cometimento do crime (cf. Ac. deste STJ de 22-03-2006, Proc. n.º 357/05 – 3.ª). (…)”.

Assim, quando o requerente da instrução é o assistente, o limite tem de ser definido pelos termos em que, segundo o próprio, deveria ter sido deduzida acusação e, consequentemente, não deveria ter sido proferido despacho de arquivamento.

Em rigor, por um modelo de requerimento que deve ter o conteúdo de uma acusação alternativa, ou, materialmente, da acusação que o assistente entende que deveria ter sido produzida, fundada nos elementos de prova recolhidos no inquérito, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do princípio do contraditório, de acordo com o disposto nos artºs 308º e 309º, ambos do C. P. Penal.

Conforme ensina o Prof. Germano Marques da Silva (in “Do Processo Penal Preliminar" pp. 254), “o Juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal, ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser o objecto da acusação do MP. O requerimento para a abertura da instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente uma acusação alternativa (ao arquivamento ou à acusação deduzida pelo MP), que dada a divergência assumida pelo MP vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial”.

Do até aqui exposto, resulta que o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente, na sequência do despacho de arquivamento do Mº Pº, equivale a uma acusação e, tal como esta, define e delimita o objecto do processo, que deve manter-se o mesmo até ao trânsito em julgado da decisão.

A demarcação do objecto do processo, conforme se refere no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/04/2002 (acessível em www.colectaneajurisprudencia.com) estriba-se em duas ordens de fundamentos:

Um, inerente ao objecto imediato da instrução: a comprovação judicial da pretensa indiciação (que para que se possa demarcar o âmbito do objecto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados) e outro, implícito a uma finalidade mediata, mas essencial no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento: a demarcação do próprio objecto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do tribunal que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objecto, constitui uma garantia de defesa do arguido, possibilitando a este a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório”.

Importa, agora, apurar se o requerimento de abertura da instrução formulado pela assistente, A... , obedece aos requisitos legais.

Ressalta, desde logo, que o requerimento de abertura da instrução ora em apreço, não contém a identificação completa dos arguidos, ainda que por simples remissão para o local no processo onde elas constam, limitando-se a indicar os seus nomes.

Ora, de acordo com o disposto no artº 311º nº 3, alínea a), do C. P. Penal, a acusação considera-se manifestamente infundada e, como tal, deverá ser rejeitada, quando não contenha a identificação do arguido.

Somos, assim, do entendimento, na esteira do já exposto, que, valendo o requerimento de abertura de instrução como acusação, por ter sido requerida pelo assistente e não contendo a identificação das arguidas, a mesma é inexequível.

Por outro lado, o requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente, não contém a narração sintética dos factos (objectivos) criminalmente relevantes, as circunstâncias de tempo, lugar e a motivação na sua prática.

De referir, ainda, que o requerimento de abertura de instrução é omisso, na descrição factual, quanto ao elemento subjectivo, o dolo, em qualquer uma das suas modalidades, directo, necessário e eventual, sendo que, tal requisito se revela como essencial para a eventual punibilidade do comportamento dos arguidos.

Conforme se deixou já dito, à saciedade, o assistente deve pautar o requerimento de abertura de instrução pelas mesmas regras que norteiam a acusação pública, por força do disposto no artº 287º nº 3, do C. P. Penal, não podendo estar à espera que as suas deficiências venham a ser supridas.

Sendo que, por força do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 7/2005 (publicado no DR I-A, nº 212, de 4 de Novembro de 2005), não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução quando este for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.

Com tudo isto, não se quer dizer que o elemento subjectivo deva obedecer a uma fórmula “standartizada”.

Quer-se apenas dizer que a assistente, “in casu”, teria de descrever se os arguidos agiram, por exemplo, com o propósito concretizado de obterem para si ou para terceiro, enriquecimento ilícito e, por meio de engano sobre factos que astuciosamente provocaram, a determinaram à pratica de actos que lhe causaram prejuízo patrimonial, no caso do crime de burla e de ofender o seu corpo e a sua saúde, no caso do crime de ofensa à integridade física, bem como, esclarecer se os mesmos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Essa factualidade é essencial que conste da descrição factual e indispensável para que possa haver uma eventual pronúncia pelo crime que a assistente imputa às arguidas.

Com efeito e conforme se pode ler no Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 27/1/2011 (acessível em www.colectaneajurisprudencia.com), “(…) é que muita doutrina e a maior parte da jurisprudência entendem integrar o conceito de inadmissibilidade legal as situações em que o requerimento de abertura da instrução não respeita o disposto no nº 3 do artigo 283° do Código de Processo Penal. E assim se tem entendido porque a descrição dos factos que integram o tipo legal de crime imputado, quer o tipo objectivo, quer o tipo subjectivo, é fundamental dada a circunstância de vigorar entre nós, em pleno, o princípio da legalidade. Portanto, quando o requerimento de abertura de instrução seja omisso em elementos essenciais a consequência será a de rejeição por inadmissibilidade legal.

Tenha-se presente que o Juiz não se pode substituir ao assistente e colocar, por sua própria iniciativa, os factos em falta, essenciais para a imputação de crime.

Se assim procedesse não só violaria os princípios da igualdade, imparcialidade e independência, mas também extravasaria os seus poderes de cognição, limitados pelo conteúdo do requerimento de abertura de instrução.

(…) Pode, pois, concluir-se que o requerimento de abertura de instrução deve ter a estrutura de uma acusação, devendo ser dirigido contra uma identificada pessoa ou entidade, e conter os elementos objectivos e subjectivos face aos quais se possa concluir que o arguido cometeu um ilícito penal, sob pena de rejeição por inadmissibilidade legal, de harmonia com o disposto no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal”.

Finalmente, resulta ainda que a assistente não indica, no requerimento em análise, quais os meios de prova que não foram considerados no inquérito, bem como os factos que através dos mesmos e das diligências instrutórias que requereu, espera provar, violando, dessa forma, também, o comando legal do artº 287º nº 1, alínea b), do C. P. Penal.

De todo o exposto, resulta que o requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente padece de deficiências que impõem a sua rejeição.

Pelo exposto, atentas as razões expendidas e as normas legais citadas, ao abrigo do disposto nas disposições conjugadas dos nºs 1, alínea b), 2 e 3, “in fine”, do artº 287º do C. P. Penal, rejeito liminarmente o requerimento de abertura da instrução formulado pela assistente, A... , por inadmissibilidade legal.

Rejeitado, nos termos supra expostos, o requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente, ficam prejudicadas as questões ali suscitadas de separação de ilícitos e de nulidade do inquérito, relativamente aos crimes de burla e de ofensa à integridade física que imputou aos arguidos na queixa que apresentou.

Notifique.


**

Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.

(…):



B) O teor do requerimento de abertura da instrução apresentado pela recorrente, que é o seguinte:

“ (…).

A... , queixosa nos autos supra mencionados e neles melhor identificada, vem requerer a ABERTURA DE INSTRUÇÃO, nos termos do artigo 287º, nº 1, alínea b), quanto aos factos pelos quais o Ministério Público arquivou e consequente CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE, nos seguintes termos e fundamentos:

I – QUESTÃO PRÉVIA:

1º Dentro do âmbito do mesmo processo foram proferidos dois despachos de arquivamento e um despacho de acusação, sendo que com o Requerimento de Abertura de Instrução apresentado, passa a existir um excesso de complexidade em lidar com o mesmo.

2º Nessa medida, e tendo em conta a descoberta da verdade material e assegurando que não exista nem vá existir nenhuma compressão atinente às garantias de defesa constitucionalmente consagradas, requer-se desde já, que Vª Exª se digne ordenar a separação de ilícitos criminais.

II – QUANTO À CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE:

3º A queixosa, porque é ofendida e está em tempo, requer que seja admitida a sua intervenção como assistente nos presentes autos, nos termos do artigo 68º, nº 1, alínea a) e b) do C.P.P., juntando comprovativo do pedido de apoio judiciário para dispensa de pagamento de taxas de justiça e demais encargos.

III – QUANTO À ABERTURA DA FASE DE INSTRUÇÃO:

> Quanto ao arquivamento dos autos relativamente ao crime de Burla ( previsto e punido nos termos do artigo 217º/1 do C.P.):

4º Foi apresentada queixa nos presentes autos (a folhas 2 a 5) pela queixosa contra B... e C... , imputando-lhes factos que, ao contrário do referido no despacho de arquivamento, preenchem o elemento objetivo e o elemento subjetivo do tipo de crime de burla (previsto e punido nos termos do artigo 217º, nº 1 do C.P.P.), senão vejamos:

5º Em meados de 2007, após a sua tia D... ter ficado viúva, o seu sobrinho e aqui denunciado C... , conjuntamente com B... e E... , sua irmã, intentaram no Tribunal Judicial de Tondela uma ação de interdição da referida senhora D... , que correu termos no Tribunal Judicial de Tondela, 2º Juízo, Processo nº 779/07.9TATND.

6º No seguimento da procedência dessa ação, foi intentado de forma imediata pelos mesmos denunciados uma nova ação destinada a obter por parte do Tribunal uma autorização para que os mesmos do conselho de família pudessem gerir o património da referida senhora e consequentemente terem poderes para doar à Santa Casa da Misericórdia (...) todo esse património.

7º A aqui queixosa, ao aperceber-se do que estava a acontecer e duvidando justificadamente das intenções dos aqui denunciados, apresentou uma reclamação no mencionado processo de doação, tendo aferido que o verdadeiro objetivo dos denunciados seria o de dissimular a doação para futuramente eles próprios conseguirem "manobrar" com a referida instituição, o património em causa à sua maneira e vontade.

8º Tendo assim a queixosa tomado as necessárias diligências judiciais e participado criminalmente dos aqui denunciados em 06.06,2012 por estes terem retirado "todas as moedas e notas" à sua parente, agindo assim de má-fé.

9º Estando, por isso, já a correr termos no Tribunal Judicial de Tondela, o processo de inquérito no M,P, com o nº 87/10.8TATND, processo no qual o Senhor C... já foi constituído arguido.

10º Estando a queixosa convicta que foram tais ações e participações da sua parte que ditaram todas as infundadas acusações que o aqui denunciado lhe veio dirigir posteriormente.

Ora,

11º Diz a Exmª Procuradora do M.P., no seu despacho de arquivamento, que "Não descreve a queixosa A... qualquer facto ou circunstância de onde resulte ter sido alvo de astúcia ou engano por parte dos denunciados, de artifícios que a levaram a incorrer em erro, sem o qual não teria entregue a quantia de 1769,14 €, aos denunciados para pagamento de despesas do inventário da responsabilidade de um seu irmão. (…) Ora, o que resulta da queixa é que na sequência de troca de cartas entre a queixosa e a denunciada B... , cabeça de casal no inventário, combinaram encontrar-se na CGD, balcão de (...) , no dia 06/12/2012, a fim de procederem ao levantamento de uma quantia a título de tornas, que se encontrava depositada, a qual devia ser entregue à queixosa. Contudo, porque tal quantia ainda não estava disponível para poder ser levantada, não foi entregue à queixosa A... . Não se vê, pois, como, de tais factos se extrai que tenha havido ardil na conduta dos denunciados (…)".

12º Ora, salvo o devido respeito, não pode a queixosa concordar com esta posição. Senão vejamos,

13º Antes da data da prática dos factos (06.12.2012), a aqui queixosa já tinha trocado inúmeras (!) cartas com a aqui denunciada B... e já se tinha dirigido por diversas vezes às instalações da Caixa Geral de Depósitos de (...) .

 14º Sempre na expectativa de receber a quantia monetária, a título de tornas, a que tinha direito e com o fim de proceder à entrega à cabeça de casal da quantia de 1.769,14 € que lhe competia.

15º De todas as vezes que se dirigia às instalações da Caixa Geral de Depósitos de (...) ia acompanhada do seu mandatário à data dos factos, que acompanhou todo o seguimento deste processo desde o seu início, Doutor K... .

Por conseguinte,

16º Mais uma vez, à data dos factos, a denunciada B... endereçou uma carta à queixosa, com o conhecimento do aqui denunciado, a comunicar-lhe que o dinheiro das tornas já estava disponível para levantamento e que esta deveria entregar a quantia de 1.769,14 € aos denunciados para o pagamento das despesas de inventário da responsabilidade de um seu irmão.

17º A queixosa, mais uma vez acompanhada do seu mandatário, dirigiu-se então às instalações da instituição bancária supra referida tendo-lhe entregue a quantia em causa aos denunciados, com a convicção que iria receber o valor que lhe competia.

18º Sendo que, os denunciados só após se terem apoderado dos 1.769,14 € comunicaram à queixosa que a quantia a que esta tinha direito a título de tornas ainda não estava disponível.

Pelo exposto,

19º Os denunciados tinham conhecimento prévio que naquele dia o dinheiro ainda não estaria disponível, dado a deficiente documentação entregue na instituição bancária e a necessidade de a completar.

20º Actuaram assim os denunciados de má-fé, voluntária e conscientemente, com o intuito de induzirem em erro a queixosa, bem sabendo que se iriam apoderar de uma quantia monetária que ainda não lhes era devida, causando assim um prejuízo patrimonial substancial à mesma tendo a queixosa entregue a referida quantia, na expectativa de nesse mesmo dia receber o valor de tornas.

21º Quando tal entrega se frustrou, viu-se assim a aqui queixosa com bastantes dificuldades financeiras, tendo ficado numa séria situação de insuficiência económica.

22º Sentindo-se assim a aqui queixosa chocada, abalada e enganada com o comportamento dos denunciados.

23º Seguidamente, no seu despacho de arquivamento, refere a Exmª Procuradora do M.P. que "Por outro lado, a própria queixosa, a fls 172, declarou que já recebeu as tornas dos denunciados, nada mais tendo deles a reclamar, sendo que o atraso no pagamento das tornas deveu-se ao facto de os denunciados, seus tios, não terem tratado das coisas como deviam, mas nunca se sentiu enganada por eles".

Ora tais declarações são inexactas ou estão desinseridas do seu contexto real, senão vejamos:

24º A queixosa referiu que já recebeu o valor das tornas actualmente, sendo que à altura dos factos (06.12.2012) não tinha recebido nenhuma quantia, muito pelo contrário, ficou em situação de insuficiência económica face à conduta abusiva e de má-fé dos aqui denunciados.

25º Sendo que, quanto a essa quantia monetária relativa às tornas, nada tem a reclamar por a ter recebido muito posteriormente à data dos factos, mas não se podendo de forma nenhuma referir que a queixosa não se sentiu enganada por estes; se assim fosse, não teria participado criminalmente dos denunciados.

Pelo exposto,

26º Diz-nos o artigo 217º/ 1 do Código Penal que comete um crime de burla "quem com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem ou causem a outra pessoa prejuízo patrimonial (…)".

27º Preenchendo, assim, os denunciados o elemento objetivo (da astúcia dos denunciados resultou a indução em erro da queixosa que iria receber a sua quantia monetária, que devido a isso lhes entregou a quantia de 1.769,14 € para pagamento de despesas de inventário e que do facto de ter procedido a essa entrega e nada tendo recebido lhe causou um imenso prejuízo patrimonial) e o elemento subjetivo deste tipo de ilícito criminal.

28º Devendo, por conseguinte, proceder-se, salvo melhor opinião, à abertura da fase se instrução quanto a este ilícito criminal e consequentemente ser proferido despacho de pronúncia.

> Quanto ao arquivamento dos autos relativamente ao crime de ofensa á integridade simples (previsto e punido nos termos do artigo 143º do C.P.):

A) QUESTÃO PRÉVIA: ARGUIÇÃO DA NULIDADE DO INQUÉRITO

29º Aquando da elaboração da queixa crime, a queixosa indicou como testemunha, por ter conhecimento directo dos factos e por a ter acompanhado em todo este percurso malfadado, o seu mandatário à altura dos factos: Dr. K... .

30º Sucede que, e apesar de este ter sido chamado para prestar declarações junto da P.S.P. de Santa Maria da Feira sobre o inquérito respeitante ao crime de burla qualificada acima exposto, o mesmo nunca foi inquirido quanto aos factos concretizadores do tipo de ilícito de ofensa à integridade simples, apesar de no despacho de arquivamento se referir que "a testemunha nada disse quando a estes factos", a verdade é que nunca foi questionado sequer.

31º Ora, sendo uma testemunha vital e não tendo sido questionada quanto a estes factos só se pode concretizar esta situação numa insuficiência de inquérito por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios e essenciais para a descoberta da verdade material.

Pelo exposto,

32º Argui-se desde já, para os devidos e legais efeitos, a NULIDADE do inquérito, nos termos do artigo 120º/2, alínea d) do C.P.P., sendo que a referida nulidade deve ser considerada procedente, devendo o presente inquérito ser considerado ferido de nulidade e devendo-se proceder à repetição do mesmo, nos termos do artigo 122º, nº 1 e 2 do C.P.P.

B) QUANTO AOS FACTOS:

33º Foi apresentada queixa por A... contra C... , folhas 77 a 80 dos autos, por este a 06.12.2012, dado que após a ida infrutífera da queixosa à Caixa Geral de Depósitos de (...) onde se verificaram os acontecimentos supra mencionados (quanto ao crime de burla qualificada) e ao se encaminhar juntamente com o seu mandatário para o seu veículo, ao passar pelo veículo do denunciado este imediatamente saiu do mesmo.

34º Tendo-se dirigido à queixosa e ao seu mandatário de forma muito agressiva proferindo exclamações como "Queriam o dinheiro? Vão ter de esperar muito!", fazendo uso de linguagem obscena, colocando uma mão ao nível do chão e dirigindo-se à queixosa humilhando-a e dizendo que "Tu és deste tamanho e vais ser sempre!", referindo-se de forma óbvia à situação económica da queixosa.

35º Posto isto e, ao iniciar-se uma discussão verbal entre o mandatário da queixosa, que a tentou defender das injuriosas expressões do denunciado, e o denunciado, este avançou sobre a mesma desferindo-lhe vários murros no peito, torcendo-lhe e apertando-lhe o braço direito e tendo-lhe deferido pontapés na perna direita.

 36º A queixosa, devido a esta agressão por parte do denunciado, teve de receber assistência hospitalar, e dirigiu-se ao Centro Hospitalar (...) – Viseu, cujas cópias dos elementos clínicos respeitantes à referida assistência se encontram juntos aos autos a folhas 96 a 101.

37º Tendo imediatamente participado criminalmente do mesmo, que ao ter consciência do que tinha feito e de que certamente iria correr termos um procedimento criminal contra a sua pessoa, se apressou a fazer a sua participação criminal contra a queixosa e o seu mandatário.

38º Participação essa completamente desprovida de fundamento e, ao contrário do referido no despacho de arquivamento, não sendo o Senhor F... , de forma nenhuma, uma testemunha presencial, já que este nem se encontrava no local dos factos.

39º Sendo o seu depoimento completamente inócuo e vazio de fundamento por este manter, desde há algum tempo, quezílias com o mandatário à altura dos factos da ofendida, originários da partilha judicial por morte de D... .

40º Correndo termos no Tribunal Judicial de Tondela, processo nº 203/10.0TATND, 1º Juízo, um processo criminal contra si, cujo objeto são expressões injuriosas que a testemunha F... proferiu sobre a pessoa do Doutor K... e no âmbito do qual foi condenado em 1ª instância, vendo a sentença confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

Pelo exposto,

41º A alegada "testemunha presencial" viu apenas aqui uma forma de "vindicta" contra o Doutor K... , não podendo ser dada qualquer credibilidade ao mesmo.

42º Por outro lado, foi o Senhor H... , abaixo melhor identificado e arrolado como testemunha, quem, ao ver a discussão ocorrer, se apressou a apaziguar os ânimos, tendo a queixosa e o seu mandatário na altura abandonando o local e se dirigindo à unidade hospitalar.

Por conseguinte,

43º Refere a Exmª Procuradora do M.P. que "(…) podendo até colocar-se a hipótese de uma eventual atuação em legítima defesa por parte do arguido, que excluiria a ilicitude da conduta (…)"

44º Ora, salvo o devido respeito pela opinião supra mencionada, uma senhora, que à altura dos factos tinha 57 anos, muito dificilmente teria capacidade ou força para agredir um homem com a força necessária para que este, por legítima defesa, lhe causasse os ferimentos que causou (encontrando-se estes descritos nos documentos juntos aos autos pela unidade hospitalar).

Pelo exposto,

45º Preenche o aqui denunciado/arguido os elementos objetivos e subjetivos do ilícito criminal de ofensa á integridade física simples, devendo por isso ser aberta a fase de instrução e consequentemente ser proferido despacho de pronúncia.

IV – MEIOS DE PROVA:

A) Referente à abertura de instrução quanto ao ilícito criminal de burla:

1) Prova Testemunhal:

- Requer-se a tomada de declarações da assistente A... ;

- J... , funcionário da Caixa Geral de Depósitos, ouvido a folhas 122 e 123 dos autos;

- K... , divorciado, residente na (...) Santa Maria da Feira;

B) Prova testemunhal através de carta rogatória:

1 – I... , divorciado, residente em (...) Suíça, para responder às seguintes questões:

- Ouviu na Caixa Geral de Depósitos, agência de (...) , no dia 06.12.2012, o arguido dizer à assistente que não levava o dinheiro das tornas e só o levaria quando ele quisesse?

- Ouviu no mesmo estabelecimento o arguido dirigir-se à assistente e dizer-lhe que ela era uma desgraçada e que nunca mais via o dinheiro das tornas?

Assim requer a Vª Exª se digne, através dos meios judiciais de carta rogatória notificar a testemunha para o efeito da sua inquirição.

C) Referente à abertura de instrução quanto ao ilícito criminal de ofensa á integridade física simples:

1) Prova Testemunhal:

- Requer-se a tomada de declarações da assistente A... ;

- K..., divorciado, residente na (...) Santa Maria da Feira;

- G..., casado, reformado, residente na Rua (...) , Tondela;

- H..., casado, residente na Rua (...) , Tondela;

2) Prova Documental:

- Requer que seja notificada a P.S.P. de Santa Maria da Feira para vir juntar aos autos o documento em que se enumeram as questões feitas ao Doutor K... .

Ainda quanto à abertura de instrução quanto ao ilícito de ofensa à integridade física simples:

- Requer-se também que o depoimento das testemunhas seja realizado no local, para melhor compreensão de onde se localizavam à altura dos factos.

Termos em que se requer a Vª Exª que:

- se digne ordenar a separação de ilícitos criminais,

- seja admitida a constituição da queixosa como assistente nos autos, nos termos do artigo 68° , nº 1, alínea a) e b) do C.P.P.;

- que se digne deferir a nulidade invocada, nos termos do artigo 120, nº 2, alínea d) e ordene a repetição do inquérito, nos termos do artigo 122º do C.P.P. quanto ao ilícito criminal de ofensa à integridade simples, e caso assim não entenda, que seja declarada a abertura da instrução, nos termos do artigo 287º/ 1, alínea b) e, consequentemente, produzida a prova indicada, devendo, a final, ser proferido despacho de pronúncia;

- que se digne proceder à abertura de instrução, nos termos do artigo 287º, nº 1, alínea b), em relação ao ilícito criminal de burla e, consequentemente, produzida a prova indicada, devendo, a final ser proferido despacho de pronúncia;

(…)”.


*

*


Da rejeição do requerimento de abertura de instrução

1. A instrução é uma fase intermédia e facultativa do processo penal na forma comum que tem por finalidade exclusiva a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º, nº 1, do C. Processo Penal).

Esta comprovação judicial traduz-se na conjugação e ponderação dos meios de prova produzidos – em sede de inquérito e na própria instrução – em ordem a ajuizar-se da existência ou não, de indícios suficientes de estarem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança sendo, a final, formalmente explicitada na decisão instrutória. Nesta sequência, estabelece o art. 308º, nº 1 do C. Processo Penal [código a que pertencem todas as disposições legais citadas sem menção de origem] que, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia. Por outro lado, consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (nº 2 do art. 283º, aplicável ex vi, nº 2 do art. 308º).

No caso de que cuidamos, tendo a instrução sido requerida pela assistente, a mesma visaria a comprovação judicial da decisão que ordenou o arquivamento do inquérito, uma vez que o procedimento não é dependente de acusação particular, sendo certo que o recurso não tem por objecto, a problemática da suficiência ou insuficiência dos indícios, mas antes a questão de saber a que requisitos essenciais que deve obedecer o requerimento de abertura de instrução e as consequências da sua inobservância.

2. Dispõe o art. 287º, com a epígrafe, «Requerimento para abertura da instrução», no seu nº 2 e na parte que ora releva: “ (…)

2 – O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º (…)”.

Como se vê, embora não esteja sujeito a formalidades especiais, o requerimento para abertura da instrução deve conter sempre, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância quanto à acusação ou não acusação e, sendo disso caso, a indicação dos actos de instrução pretendidos e dos meios de prova não considerados no inquérito, e dos factos que, por meio destes, se pretende provar.

No que especificamente respeita ao requerimento do assistente, a lei impõe ainda que dele constem as especificações previstas nas als. b) e c) do nº 2 do art. 283º. Assim, do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente – que se destina, como se disse, a obter a comprovação judicial da decisão do Ministério Público em se abster de acusar em procedimento por crime público ou semi-público – deve obrigatoriamente conter, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e ainda, a indicação das disposições legais aplicáveis. A observância desta exigência significa que, no segmento da narração dos factos e indicação das disposições legais aplicáveis, o requerimento para abertura da instrução do assistente se deve estruturar, substancialmente, como uma verdadeira acusação, como uma acusação alternativa à que, na sua [do assistente] perspectiva, foi mas não devia ter sido, omitida pelo Ministério Público.

A sua razão de ser decorre da circunstância de o objecto do processo ser definido, simplificadamente, pela acusação, pública ou privada, que nele tenha sido deduzida e portanto, pelos concretos factos imputados ao arguido (cfr. art. 339º, nº 4). A estrutura acusatória do processo penal e a salvaguarda das garantias de defesa do arguido impõem a definição do thema decidendum e a sua tendencial imutabilidade. Se o Ministério Público se absteve de acusar por crime público ou semi-público e o assistente pretende, ao requerer a instrução, que o arguido seja levado a julgamento, será o respectivo requerimento a definir o objecto da instrução e portanto, a balizar, não só o âmbito da investigação a levar a efeito pelo juiz de instrução, como o da decisão instrutória. Por isso, a sujeição do juiz de instrução à vinculação temática definida pelo requerimento para abertura da instrução, enquanto acusação alternativa, determina a nulidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos naquele requerimento (art. 309º, nº 1).

Em suma, e como é entendimento uniforme, quer na doutrina, quer na jurisprudência, o requerimento para abertura da instrução do assistente deve estruturar-se como uma acusação, dele tendo que constar a narração, ainda que sintética, dos concretos factos imputados ao arguido fundamentadores da aplicação de pena ou medida de segurança ou seja, os factos preenchedores do tipo, objectivo e subjectivo, do crime pelo qual pretende ver este pronunciado.

3. Aqui chegados, detenhamo-nos no requerimento da assistente, supra transcrito, tendo-se em consideração a deduzida pretensão de que seja proferido despacho de pronúncia, por crime de burla, p. e p. pelo art. 217º, nº 1 do C. Penal [apesar de nos arts. 21º e 24º mencionar, conclusivamente, ter ficado em «situação de insuficiência económica»] e por crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do C. Penal.

3.1. O crime de burla, que tutela o bem jurídico património, globalmente considerado, tem como elementos constitutivos do respectivo tipo (art. 217º, nº 1 do C. Penal):

[Tipo objectivo]

- Que o agente determine outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a terceiro, prejuízo patrimonial;

- Que esta determinação seja causada por meio de erro ou engano sobre factos que o agente astuciosamente provocou;

[Tipo subjectivo]

- O dolo genérico, o conhecimento e vontade do agente actuar de forma fraudulenta, com conhecimento da sua censurabilidade; e

- O dolo específico, a intenção de o agente obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, o animus lucri faciendi

Trata-se, pois de um crime comum, já que qualquer cidadão pode ser seu agente, de um crime de dano e de resultado na medida em que a sua consumação só se verifica com a ocorrência de um prejuízo, por um lado, e com a efectiva saída da coisa ou valor da esfera de disponibilidade da vítima, por outro, e de crime de execução vinculada pois a lesão do bem jurídico que tutela tem que ocorrer em consequência da específica forma de actuar prevista no tipo ou seja, a utilização pelo agente de um meio enganoso, com vista è indução em erro do ofendido, erro que, por sua vez, o determina à prática do acto danoso. Deste modo, o preenchimento tipo objectivo depende, além do mais, da verificação de um duplo nexo de causalidade: a conduta enganatória tem que ser a causa do erro de outrem; este erro, por sua vez, tem que ser a causa da disposição patrimonial causadora do prejuízo (cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, Scientia Juridica, Ano 1970, pág. 301 e A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, Parte Especial, Tomo II, pág. 293).

No despacho recorrido entendeu-se que o requerimento para a abertura da instrução apresentado pela assistente não contém a narração sintética dos factos objectivos criminalmente relevantes, as circunstância de tempo e de lugar e a motivação da sua prática, e é omisso, na descrição factual, quanto ao elemento subjectivo, em qualquer das modalidades admissíveis do dolo. Por seu turno, entende a recorrente que o seu requerimento contém uma narração exaustiva dos factos, especificamente quanto à burla, nos arts. 4º e seguintes e, concretamente quanto ao dolo, nos arts. 20º e 27º.

Vejamos, então, de que lado, em nosso entender, está a razão.

O que consta do art. 4º é que na queixa apresentada nos autos contra B... e C... lhes foram imputados factos que, no entender da assistente [sobrinha daqueles, como consta do art. 23º, ao transcrever um segmento do despacho de arquivamento do inquérito], preenchem o tipo do crime de burla. Nos arts. 5º a 10º a assistente relata que os denunciados e ainda E... intentaram em 2007 uma acção para interdição de D... , tia do denunciado e, ao que parece, da referida E... , acção que foi procedente e à qual se seguiu uma outra acção destinada a obter uma autorização judicial para que o conselho de família pudesse gerir o património da interditada, incluindo os poderes para o doar à Santa Casa da Misericórdia (...) , tendo a assistente, ao aperceber-se das intenções dos denunciados que eram as de dissimular a doação para futuramente e com aquela instituição, manobrarem o património à sua vontade, apresentado uma reclamação no ‘processo de doação’ (sic), e tendo ainda a assistente participado criminalmente dos denunciados, em Junho de 2012, por estes, agindo de má fé, terem tirado à interditada todo o dinheiro, acções e participações que deram causa às infundadas acusações que o denunciado lhe fez depois. E nos arts. 11º e 12º a assistente transcreve segmentos do despacho de arquivamento do inquérito onde a Magistrada do Ministério Público que o subscreveu explica a razão pela qual entende não se evidenciar qualquer ardil na conduta dos denunciados, e afirma o seu desacordo quanto a esta posição. 

Até aqui, portanto, justifica-se o desentendimento familiar mas não existe relato de qualquer facto relevante para o preenchimento do tipo do crime em análise.

Nos arts. 13º a 15º a assistente relata a existência de várias cartas, anteriores a 6 de Dezembro de 2012, trocadas entre si e a denunciada e várias deslocações suas à CGD de (...) na expectativa de receber as tornas a que tinha direito e com o fim de entregar à cabeça-de-casal [que não identifica, mas que parece ser a denunciada, como não identifica o processo de inventário em causa, designadamente, a pessoa do inventariado] a quantia de € 1.796,14 correspondente às despesas do inventário da responsabilidade de um seu irmão, deslocações que fez acompanhada do seu, então, mandatário.      

Nos arts. 16º a 20º a assistente refere que mais uma vez, à data dos factos [que não especifica], recebeu carta da denunciada, com o conhecimento do denunciado, comunicando estar disponível para levantamento o dinheiro das tornas e que deveria ser entregue a quantia de € 1.796,14 das despesas do inventário da responsabilidade do seu irmão, que por isso, de novo acompanhada pelo mandatário se dirigiu à referida agência bancária [não indica a data mas, atento o teor do art. 13º e 24º, é suposto ser o já referido dia 6 de Dezembro de 2012], onde entregou à denunciada a quantia de € 1.796,14 na convicção de que ia receber o valor das tornas que lhe eram devidas, o que não sucedeu, só então lhe sendo dito pelos denunciados que o dinheiro ainda não estava disponível, o que já antes sabiam, dado estar incompleta a documentação entregue para o efeito na instituição, tendo os denunciados actuado voluntária e conscientemente, com o intuito de a induzirem em erro, sabendo que se apoderavam de uma quantia que ainda não lhes era devida e causando-lhe [à assistente] um substancial prejuízo.

Nos arts. 21º a 22º a assistente afirma ter ficado em situação de insuficiência económica [sem mais concretização] e ter-se sentido chocada, abalada e enganada, nos arts. 23º a 25º, depois de transcrever um segmento do despacho de arquivamento onde a Magistrada subscritora, refere declarações da assistente onde esta afirma não se considerar enganada pelos denunciados, discorda da conclusão ali tirada, afirmando que, se recebeu as tornas mais tarde, foi enganada e por isso de queixou, e nos arts. 26º a 28º afirma o preenchimento do tipo pelos denunciados e a necessidade de abertura da fase da instrução para a consequente pronúncia.

Aqui chegados temos que, no essencial, a conduta imputada aos denunciados resume-se à, nem sempre de forma clara, descrita problemática do recebimento de tornas e da entrega do dinheiro devido por um irmão da assistente a título de despesas do inventário. Pois bem.

O prejuízo patrimonial pressuposto pelo tipo tem o sentido de dano ou empobrecimento patrimonial ou económico injusto que ocorrerá «sempre que se observe uma diminuição do valor económico por referência à posição em que o lesado se encontraria se o agente não houvesse realizado a sua conduta» (A. M. Almeida Costa, ob. cit., pág. 283 e ss.).

Ao entregar a quantia de € 1.796,14, devida por seu irmão a título de despesas ou custas do inventário, à denunciada e, segundo parece, cabeça-de-casal no dito inventário, a assistente satisfez dívida alheia (cfr. art. 767º, nº 1 do C. Civil) que existia e cujo cumprimento era, por certo, devido. Desconhece-se o acordo estabelecido entre a assistente e o seu irmão, quanto a tal pagamento, mas trata-se de facto irrelevante, no contexto em que nos movemos. E se a dívida existia, como é admitido, não se vê que o seu cumprimento, à luz do que supra se deixou dito, possa constituir um dano ou empobrecimento patrimonial injusto. 

É certo que a assistente alegou ter sido enganada pelos denunciados, pela forma que se deixou sintetizada, mas ainda que assim tenha sido isto é, ainda que tenha entregue os € 1.796,14 no convencimento que, de seguida, receberia as tornas depositadas, quando aqueles sabiam que a quantia ainda não estava disponível no banco por falta de documentação bastante, não foi alegada qualquer razão, designadamente, qualquer acordo no sentido de que a dívida de custas do irmão da assistente só seria satisfeita com o recebimento por esta das tornas que, a ela, eram devidas. Por outro lado, mesmo que a assistente tenha sido induzida a uma visão deturpada da realidade pelos denunciados, não só não perdeu o direito às tornas [que a assistente reconhece ter recebido, no art. 24º], como a quantia entregue era devida e, aparentemente, deveria ser entregue, como foi, à denunciada, atenta a qualidade desempenhada no inventário, não constituindo, por isso, qualquer enriquecimento patrimonial indevido ou injusto.        

Em conclusão, os factos constantes do requerimento da assistente são insusceptíveis de caracterizarem o prejuízo patrimonial que integra o tipo objectivo do crime de burla e o enriquecimento ilegítimo que constitui o objecto da intenção do agente, elemento integrante do tipo subjectivo do mesmo crime o que vale dizer que, enquanto acusação alternativa, o dito requerimento não contém a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação aos denunciados de uma pena, in casu, a narração dos factos necessários e suficientes para o preenchimento do tipo, objectivo e subjectivo, do crime de burla.  

3.2. O crime de ofensa à integridade física simples, que tutela o bem jurídico integridade física isto é, a integridade corporal e a saúde física, tem como elementos constitutivos do respectivo tipo (art. 143º, nº 1 do C. Penal):

[Tipo objectivo]

- Que o agente ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com conhecimento da sua censurabilidade [em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal].

De novo estamos perante, um crime comum, um crime de dano e um crime de resultado.

E também aqui se entendeu, no despacho recorrido, ser o requerimento para a abertura da instrução omisso quanto à narração sintética dos factos objectivos criminalmente relevantes, as circunstância de tempo e de lugar e a motivação da sua prática, e quanto ao elemento subjectivo, em qualquer das modalidades admissíveis do dolo. Diferente é também a opinião da recorrente que entende constarem tais elementos de factos dos arts. 34º, 35º e 45º, este último, especificamente, quanto ao dolo.

Vejamos, agora, a quem, em nosso entender, assiste razão.

Nos arts. 33º a 36º a assistente alega que no dia 6 de Dezembro de 2012, depois de sair da agência de (...) da CGD, e quando se dirigia para o seu veículo, acompanhada do seu mandatário, foi abordada pelo denunciado que lhe dirigiu palavras obscenas [que não especificou] e a humilhou, dizendo-lhe que havia de ser sempre pequena, e depois lhe desferiu vários murros no peito, torceu e apertou o seu braço direito e deu-lhe pontapés na perna direita, o que a obrigou a receber assistência hospitalar no Centro Hospitalar de (...) – Viseu. Nos arts. 37º a 42º a assistente refere que o denunciado apenas se queixou contra si e o seu mandatário quando soube que havia uma queixa contra ele formulada, e que a queixa do denunciado não tem qualquer fundamento, matéria esta completamente irrelevante para a questão em apreço. Nos arts. 43º e 44º a assistente discorda da Magistrada subscritora do despacho de arquivamento quanto a ter sido colocada a hipótese de ter o denunciado agido em legítima defesa, o que é também irrelevante. E no art. 45º a assistente limita-se a afirmar, conclusivamente, que estão preenchidos pelo denunciado os elementos objectivos e subjectivos do crime de ofensa à integridade física simples devendo, por isso, ser aberta a instrução e, a final, proferido despacho de pronúncia.

Ponderando esta descrição de facto, se pode dizer-se que dela constam factos preenchedores do tipo objectivo do crime em referência, é inquestionável, por outro lado, que foram completamente omitidos factos preenchedores do tipo subjectivo, do dolo, em qualquer uma das modalidades admissíveis pois que, contrariamente ao pretendido pela assistente, eles não constam do referido art. 45º nem de qualquer outro artigo do seu requerimento.

Em conclusão, os factos constantes do requerimento da assistente são insusceptíveis de caracterizarem o dolo de ofensa à integridade física do denunciado, o que significa que, também relativamente a este crime, o requerimento não contém a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação aos denunciados de uma pena.

3.3. No despacho recorrido entendeu-se que também a falta de identificação completa dos arguidos, ainda que por remissão, determina a inexequibilidade da instrução, por identidade de razão, quanto á acusação manifestamente infundada, nos termos do art. 311º, nº 3, a). Diferente é o entendimento da recorrente, para quem o requerimento identifica pelo nome os arguidos e fazendo a remissão da identificação completa para os locais do processo onde ela consta, conforme arts. 4º e 33º do requerimento.

Vejamos.

Embora o requerimento para abertura da instrução, como já se disse, não esteja sujeito a formalidades especiais, e a lei, relativamente ao requerimento do assistente, determine a aplicação do disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do art. 283º (art. 287º, nº 2) mas não já, a aplicação do disposto na alínea a) do mesmo número [as indicações tendentes à identificação do arguido], é uma evidência que nele, requerimento, o assistente não pode deixar de identificar o arguido que pretende ver pronunciado. Mas esta identificação basta-se com a alegação dos elementos necessários para que nenhuma dúvida subsista sobre quem é o cidadão visado.

Pois bem.

No art. 4º a assistente alega ter apresentado queixa a fls. 2 a 5 dos autos contra B... e C... , e no art. 33º alega ter apresentado queixa a fls. 77 a 80 dos autos contra o mesmo C... . E da leitura de todo o requerimento não subsistem quaisquer dúvidas de que estes são os denunciados nele referidos, necessariamente constituídos arguidos no inquérito e relativamente aos quais foi proferido despacho de arquivamento.

Assim, ainda que de forma não modelar, considera-se que os arguidos contra quem foi requerida a instrução se encontram suficientemente identificados no requerimento.

3.4. No despacho recorrido entendeu-se ainda que no requerimento para abertura da instrução a assistente não indicou os meios de prova não considerados no inquérito bem como os factos que, através deles e das diligências instrutórias requeridas pretende provar, assim incumprindo o disposto no art. 287º, nº 1, b). Também aqui dissente a recorrente, afirmando ter indicado os actos de instrução que pretende sejam realizados.

Vejamos a quem assiste razão.

Começaremos por dizer existir lapso manifesto na convocação do art. 287º, nº 1, b), uma vez que este preceito apenas regula a legitimidade do assistente para requerer a fase da instrução.

A norma em questão é antes a do nº 2 do mesmo artigo no segmento que dispõe que o requerimento deve conter, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar.    

Em bom rigor, a assistente, no requerimento que apresentou, limitou-se a indicar os meios de prova – testemunhal e documental – que pretendia fossem produzidos na instrução. Indicou, portanto, os actos de instrução que pretendia que fossem levados a cabo, mas não referiu qualquer deles, ainda que por remissão, aos factos que visava provar [a omissão da indicação dos meios de prova não considerados no inquérito pode sempre ficar a dever-se à inexistência ou irrelevância, na perspectiva do requerente, dos mesmos].

Assim, a apontada omissão, com a restrição efectuada, ocorreu efectivamente no requerimento da assistente.

4. Passemos agora às consequências de, no requerimento da assistente, enquanto acusação alternativa, não constar a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação aos denunciados de uma pena, in casu, a narração dos factos necessários e suficientes para o preenchimento do tipo, objectivo e subjectivo, do crime de burla e do tipo subjectivo do crime de ofensa à integridade física simples, e de padecer da omissão referida em 3.4., que antecede.

4.1. Começando pela última questão, cremos que a verificada omissão não conduz à rejeição do requerimento. Na verdade, destinando-se a indicação omitida a evidenciar perante o juiz de instrução a relevância dos actos de instrução requeridos, e dependendo a realização de tais actos da livre resolução do juiz em função das finalidades da instrução (cfr. arts. 290º, nº 1 e 291º, nºs 1 e 2), o que poderá acontecer é a maior probabilidade de desconsideração da sua relevância e consequente indeferimento pelo magistrado instrutor.

De todo o modo, não vemos que nesta parte exista obstáculo legal ao convite ao aperfeiçoamento, uma vez que não lhe ser aplicável a jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 7/2005, de 12 de Maio de 2005 (cfr. Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1003).

4.2. Já não assim, relativamente à falta de narração dos factos necessários ao preenchimento dos tipos, objectivo e subjectivo, dos crimes de burla e de ofensa à integridade física simples. Explicando.

Quando o requerimento de abertura de instrução do assistente não se apresenta, substancialmente, como uma acusação ou seja, quando omite o quis, o quid, o ubi, o quibus auxiliis, o quomodo e o quando, definidores da necessária narração de facto, a instrução carece de objecto o que, independentemente de determinar ou não, a sua inexistência jurídica (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, III, 2ª Edição, pág. 151), conduz à sua inadmissibilidade legal (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 737 e Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, 2014, Almedina, pág. 1003). E a inadmissibilidade legal da instrução é uma das causas de rejeição do requerimento (art. 287º, nº 3).

Por outro lado, a omissão da narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido não pode ser suprida através de convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução, por a tanto se opor a jurisprudência fixada pelo já citado Acórdão nº 7/2005, de 12 de Maio de 2005.

Entende, no entanto, a recorrente, na esteira do Ac. da R. de Évora de 17 de Abril de 2012, processo nº 138/10.6PAETZ.E1, in www.dgsi.pt, por si citado, que tendo sido narrados no requerimento os elementos objectivos dos crimes, deles se podem depreender os respectivos elementos subjectivos, sem esforço excessivo para o juiz de instrução. Porém, ressalvado sempre o devido respeito, que é muito, discordamos deste entendimento.

Começaremos por dizer que a solução apontada pela assistente só se colocaria relativamente ao crime de ofensa à integridade física simples, pois no que concerne ao crime de burla, como se deixou dito, os factos narrados são insuficientes para o preenchimento do próprio tipo objectivo.

Depois, é certo que o dolo, enquanto facto subjectivo, pertence à vida interior do agente, sendo insusceptível de apreensão directa e por isso, não sendo susceptível de prova directa, tem que ser inferido de factos objectivos, pelo funcionamento de regras da experiência comum. Mas a questão não se coloca na indiciação probatória do facto subjectivo inferido da análise conjugada dos factos objectivos indiciados mas antes, num momento logicamente anterior, que é o da alegação, legalmente exigida, do facto subjectivo a indiciar.

O nosso processo penal tem uma estrutura basicamente acusatória, sendo o seu objecto definido, conforme exista ou não instrução, pela acusação, pelo requerimento para abertura da instrução e pelo despacho de pronúncia. E é este objecto que delimita os poderes de cognição do tribunal, com vista a assegurar uma defesa eficaz e um processo equitativo. Ora, sendo o dolo um facto, deve concluir-se que a sua consideração pelo juiz de instrução na decisão instrutória, quando não alegado no requerimento e portanto, quando não integrando o objecto do processo, traduzir-se-á na nulidade prevista no art. 309º, nº 1.

Aliás, o recente Acórdão nº 1/2015 (DR, I, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015) ao uniformizar jurisprudência no sentido de que a falta dos elementos subjectivos do crime na acusação não pode ser integrada em sede de audiência de julgamento por recurso à alteração não substancial dos factos, aponta no sentido proposto. Com efeito, se em sede de julgamento, como se ponderou no Douto Aresto, não é admissível a transformação de uma conduta atípica em conduta típica, por maioria de razão, tal não será possível em sede de instrução.

4.3. Em suma, tal como foi apresentado pela assistente, o requerimento formula uma pretensão instrutória sem objecto, o que conduz à inadmissibilidade legal da instrução e consequente rejeição daquele.


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Da inconstitucionalidade do despacho recorrido, por violação do art. 20 º da Constituição da República Portuguesa

5. Na conclusão 6 a assistente alega a inconstitucionalidade do despacho recorrido, por violação do art. 20º da Lei Fundamental, sem que no corpo da motivação algo mais tenha adiantado [com efeito, o art. 11º do corpo da motivação limita-se a repetir a conclusão identificada].

O art. 20º, nos seus cinco números, assegura o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva.

Não vemos onde e como, foi tal acesso vedado à recorrente que, em boa verdade, também não o especifica. Acresce que a exigência legal da observância de certos requisitos substanciais no requerimento em questão, é mera decorrência do princípio do acusatório, sendo certo que, basta o seu cumprimento, para que não sobrevenham quaisquer consequências processuais.

Assim, e sem necessidade de mais considerações, considera-se não verificada a invocada inconstitucionalidade.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.


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Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCS. (art. 515º, nºs 1, b) do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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Coimbra, 29 de Abril de 2015


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Fernando Chaves – adjunto)