Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
285/09.7TBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO
CARTÃO DE CRÉDITO
USO ABUSIVO
Data do Acordão: 05/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV AVEIRO JMPIC JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DL N.º 166/95, DE 15.7 E AVISOS DO BANCO DE PORTUGAL N.ºS 4/95, E N.º 11/01, ARTº 796º Nº 1 DO CC
Sumário: 1 - É de rejeitar o recurso sobre a impugnação da matéria de facto objecto de gravação que não indique com exactidão as passagens da gravação em que o recorrente funda a sua discordância;

2 – Porque a cláusula contratual geral sobre a repartição do risco sobre os prejuízos decorrentes de uso abusivo de cartão de crédito, entre o seu titular e o banco emitente, admite a prova da ausência de culpa do titular, não enferma de nulidade por alteração das regras respeitantes à distribuição do risco;

3 – Porque lícita a comunicação do banco emitente do cartão de crédito ao Serviço de Centralização de Riscos do Crédito do Banco de Portugal de operação de crédito não cumprida, não há lugar a obrigação de indemnização por danos sofridos pelo titular do cartão decorrentes dessa comunicação.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

           

            I. Relatório

A... propos acção com forma de processo sumário contra “B... , SA”, “C... , SA”, “D... de Créditos, SA”, pedindo a sua condenação solidária a pagar à A. a quantia que lhe foi retirada da conta após furto do cartão de crédito, no valor de € 1.579,98, a proceder à retirada do indicador de risco da A. junto do Banco de Portugal e na indemnização por prejuízos, vexame e humilhação, no valor não inferior a € 5. 500,00, acrescido de juros de mora desde a citação.

Alegou, para tanto, em síntese, que era titular de um cartão de crédito “ B...” associado a conta-cartão atribuído pelo 1.º R. que só podia ser utilizado se ao efectuar o pagamento o titular digitasse um código secreto (número de identificação pessoal - PIN) fornecido pelo Banco.

Tal cartão, que não estava acompanhado do PIN, foi-lhe furtado com outros documentos de identificação, carta de condução e outros cartões que se encontravam numa carteira, sem que disso se apercebesse, em 3.12.03, quando foi assaltada entre as 12 e as 13 horas, na Avenida da Liberdade, (Lisboa), e logo que do furto se apercebeu dirigiu-se ao posto de polícia mais próximo, onde procedeu à sua participação e telefonou ao marido, que cerca das 13h20 deu conhecimento ao Banco onde estava domiciliada a conta e solicitou o cancelamento de todos os cheques e cartões.

Nesse espaço de tempo e após foram efectuados levantamentos e compras de objectos, no valor global de € 1.579,98, sendo que a A. tinha o PIN memorizado, não havendo apontamento deste em parte alguma e também, quando utilizou a Caixa Multibanco, na Av. da Liberdade, ninguém estava a seu lado ou próximo.

Mais alegou que a cláusula 10.ª, n.ºs 1, 2, 3 e 4 das “Condições Gerais de Utilização do Cartão” é proibida por alterar as regras de distribuição do risco e o 1.º R. não accionou o seguro de risco contra roubos e que a 2.ª Ré requereu por duas vezes um procedimento de injunção contra a A., de que foi absolvida, sendo que se viu impossibilitada de obter dois empréstimos bancários por causa do registo da situação no Banco de Portugal e não pode requisitar cheques pela internet ou caixas ATM pelo que, por tudo isso, se sente humilhada e vexada.

Citada, contestou a Ré “ E..., STC, SA” no sentido de ter recebido, em cessão, o crédito do R. “ B...” e de que a A. deu de alguma forma conhecimento do PIN para que o cartão fosse movimentado, que as absolvições das injunções não tiveram na sua base a apreciação do mérito da causa e que foi lícita a comunicação de incumprimento ao Banco de Portugal, concluindo pela improcedência da acção.

Também o “ B..., SA” contestou, alegando que, por fusão, o “ C...” foi incorporado no Réu e que todas as utilizações do cartão foram efectuadas mediante a digitação do respectivo código secreto de utilização (PIN), que foi entregue à A. por ocasião da entrega do cartão e só ela conhecia e, se não foi ela a utilizá-lo contra as condições gerais de utilização, deu-o a conhecer a alguém ou trazia o número do PIN escrito em documento que estivesse junto ao cartão e, assim, acessível a quem lhe furtou a carteira – se furto houve.

Acrescentou ainda que os pedidos de empréstimo somente visaram a prova de prejuízo para propositura da presente acção e que a absolvição na 2.ª injunção se deveu à falta de pagamento da taxa de justiça e que foi em consequência do incumprimento da A. no reembolso das quantias adiantadas que comunicou ao Banco de Portugal.

Concluiu pela improcedência da acção.

Também a Ré “ D..., SA” contestou, a arguir a sua ilegitimidade e falta de responsabilidade relativamente ao peticionado pela A., concluindo pela procedência da excepção e absolvição do pedido.

A A. respondeu a essa matéria de excepção, no sentido da sua improcedência.

Como se indica no relatório da sentença recorrida[1], a 23/02/2010, foi proferido despacho que decidiu que, por o “ C... – ..., SA”, ter sido incorporado, por fusão, no “ B..., SA”., nos termos do art. 112.º, alínea a), do CSC, só contra este último seguiriam os ulteriores termos da acção e por terem sido demandadas como 3ª Ré duas sociedades anónimas diferentes e por a A. não atribuir expressamente à Ré “ D...” qualquer facto justificador para ser demandada, foi ordenada a sua notificação para informar se pretendia demandar ambas ou só a Ré “ E...”, tendo respondido que pretendia demandar ambas as sociedades.

Foi proferido despacho saneador, que relegou o conhecimento da excepção da nulidade das cláusulas das Condições Gerais para a sentença e conheceu, de imediato, do primeiro pedido formulado na petição inicial, de condenação das RR. a pagarem solidariamente “a quantia que foi retirada da conta da Autora após roubo do cartão no montante de € 1.579,98”, no sentido da absolvição das RR. desse pedido, por o mesmo assentar num pressuposto inexistente de ter sido retirada da conta da A. a importância de € 1.579,98, já que esta, antecipando-se ao reembolso do Banco, retirou da sua conta, a que estava vinculado o cartão, o dinheiro que nela tinha em depósito.

Por nenhum facto ter sido expressamente atribuído às RR. “ E...” e “ D...” justificador da sua demanda, ou seja, por inexistência de causa de pedir quanto a elas, no respeitante aos segundo e terceiro pedidos da petição inicial (de procederem rapidamente à retirada do risco da A. junto do Banco de Portugal e de pagamento de uma indemnização pelos prejuízos, vexame e humilhação causados, não inferior a € 5.500,00), foram as mesmas absolvidas desses pedidos e foi decidido que a acção prosseguisse somente contra o “ B... B...” e para conhecimento dos pedidos formulados sob as alíneas (repetidas) b) e b) da petição inicial, ou seja, da retirada do indicador de risco junto do Banco de Portugal e pagamento da indemnização por danos não patrimoniais da importância de € 5.500,00.

Quanto à parte decisória, o saneador transitou em julgado.

Seleccionada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória, que não sofreram reclamação, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento e lida a decisão sobre a matéria de facto igualmente não foi objecto de reclamação.

Proferida sentença, foi a acção julgada improcedente quanto a ambos os pedidos por que prosseguira, de retirada do indicador de risco da A. junto do Banco de Portugal e de condenação em indemnização e absolvido o R. “ B..., SA”.

Inconformada, recorreu a A., apresentando alegações rematadas com as seguintes úteis conclusões:

a) – Os factos constantes dos art.ºs 1.º, 2.º, 3.º 11.º e 13.º, última parte, deveria ter sido respondida de forma diversa da constante da sentença;

b) – O PIN não estava escrito em parte alguma e a carteira estava bem acautelada, pelo que o seu conhecimento não lhe pode ser imputado;

c) – Estando o seguro de risco válido, o furto corre por conta do banco, “adquirente do dinheiro que lá se deposita à sua guarda”;

d) - Foi amplamente demonstrado quanto a situação afectou a A., noites sem dormir, depressão, telefonemas a desoras, recusa de empréstimo, quando tinha e tem bastante dinheiro noutras contas, acções e aplicações no mesmo banco, as vezes que foi interpelada pelo tribunal pelo mesmo furto, em injunções e sempre absolvida, por causa do comportamento faltoso do recorrido, o qual deu causa aos prejuízos reclamados;

e) – Os prejuízos patrimoniais são devidos por a recorrente ter logrado provar em audiência de julgamento a verdade dos factos;

f) – A recorrente, funcionária reformada da Direcção de Finanças, muito conhecida no meio, foi afectada na sua imagem entre amigos e conhecidos, pelo que, por tudo isso, deveria ter sido procedente a acção quanto ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 5.500,00.

O recorrido respondeu às alegações no sentido da rejeição da impugnação da matéria de facto, por inobservância do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 685.º-B do CPC, e da confirmação da sentença.

Cumpre decidir, sendo, para tanto, questões a apreciar:

a) – A modificabilidade da matéria de facto provada;

b) – A reapreciação do mérito do causa, em especial saber se:

1. O seguro de risco abrange a situação dos autos;

2. A cláusula 10.ª, n.ºs 1 a 4 das “Condições Gerais de Utilização BP VISA”” é nula por alterar as regras respeitantes à distribuição dos riscos incidentes sobre o banco enquanto adquirente do dinheiro depositado;

3. A (i)licitude da conduta do recorrido por ter comunicado a situação de incumprimento da recorrente ao Banco de Portugal pela operação de crédito e consequente responsabilidade civil daí eventualmente adveniente.

Vejamos:


*

II. Fundamentação

a) De facto

Os factos considerados como provados pela sentença recorrida foram os seguintes:

1 - A A. era titular do cartão de crédito associado à conta-cartão n.º 4999 55 0327470 -00 - 0 que lhe foi atribuído pelo H... (A);

2 - Após a fusão do H... no B... a gestão do referido cartão foi entregue ao C..., na altura ainda não fusionado no B... embora pertencesse ao universo das empresas do Grupo B... (B);

3 - O C... foi incorporado, por fusão, no B..., incluindo tal incorporação todo o património daquele, com activo e passivo (C);

4 - O cartão de crédito referido em A) só pode ser utilizado se, ao efectuarem-se os levantamentos e os pagamentos, o seu titular ou utente digitar um código secreto (PIN) que lhe foi fornecido pelo Banco e que só ele (titular) fica a conhecer, sendo desconhecido do Banco - gerentes e funcionários (D);

5 - A A. participou à PSP, a 3 de Dezembro de 2003, que nesse mesmo dia, entre as 12,00 e as 13,30 horas, lhe haviam furtado, na Avenida da Liberdade, o cartão de crédito juntamente com outros documentos sem que ela se apercebesse (E);

6 - E participou, nesse mesmo dia, por intermédio do marido, na Agência de Aveiro, onde a conta-cartão se encontrava domiciliada, o furto do cartão de crédito, ao C... (F);

7 - Por intermédio do cartão em referência foram feitos levantamentos e pagamentos em compras no montante total de € 1.579,98 (G);

8 - A utilização do cartão ficou sujeita às Condições Gerais, previamente elaboradas, de fls. 34/35, importando salientar, ao que nos interessa, as seguintes:

a) - O Cartão BP Visa (“Cartão”), objecto das presente condições gerais e do anexo às mesmas (“Anexo”), é um cartão de crédito da Rede Visa emitido pelo B..., S.A. e propriedade deste, o qual estabelece no C... - ..., S.A. (“Banco”) a gestão do cartão;

b) - A emissão de Cartão depende de pedido prévio do Titular, que é titular da conta de depósitos à ordem a que fica vinculado o Cartão emitido (“Conta”) e à qual é associada uma Conta (“Conta-Cartão”) onde são registadas as transacções efectuadas com o Cartão - primeira parte da Cláusula 2.1.;

c) - O cartão é pessoal e intransmissível, destinando-se exclusivamente ao uso da pessoa singular (“Titular” ou “Titular adicional”), cujo nome ficará gravado no cartão -Cláusula 1.2.;

d) - Ao cartão será atribuído um número de identificação pessoal (“PIN”) necessário para acesso aos Caixas Automáticos da Rede Visa e/ou outras com as quais esta tenha acordos (conjuntamente designadas “Rede Visa”) - Cláusula 3.1.;

e) - O cartão é válido em Portugal e no estrangeiro e possibilita ao seu portador o pagamento de bens e serviços, em qualquer estabelecimento aderente à Rede Visa e efectuar levantamentos de dinheiro a crédito (“cash-advance”) em todas as Caixas Automáticas ligados à Rede Visa, assim como em estabelecimentos bancários associados à Rede Visa - Cláusula 3.2., alíneas a) e b);

f) - Os titulares obrigam-se a assinar o respectivo cartão, logo após a sua recepção, com a assinatura que consta do bilhete de identidade e da Proposta de Adesão e a memorizar o PIN, não o revelando nem por qualquer forma o tornando acessível ou inteligível por terceiros, não devendo, em caso algum, anotá-lo junto do respectivo cartão - Cláusula 4.4., alíneas a) e b);

g) - Em caso de não adesão ao serviço MBNet e desde que se verifique dolo ou negligência grosseira, o Titular será responsável pelo pagamento de todas as transacções efectuadas em ambientes abertos fora do serviço de pagamentos MBNet - Cláusula 4.4., alínea d);

h) - A cada cartão é atribuído um limite de crédito comunicado confidencialmente pelo Banco ao Titular - Cláusula 5.;

i) - Todos e quaisquer pagamentos devidos pelos Titulares ao Banco ao abrigo das presentes condições gerais, a qualquer título, serão efectuados nas datas-valor, mediante débito da Conta, que o Titular se obriga a ter devidamente provisionada para o efeito. O Titular desde já autoriza o Banco a movimentar a Conta para esse efeito, bem como a efectuar quaisquer correcções que se mostrem necessárias face aos movimentos realizados – Cláusula 8.1.;

j) - Sempre que se verifique perda, furto, roubo, extravio ou falsificação de qualquer Cartão, o respectivo titular deve avisar, de imediato e indicando o número do respectivo Cartão, a Sociedade Interbancária de Serviços, S.A. “SIBS” ou o Banco, pelo meio mais rápido ao seu dispor, confirmando essa comunicação por escrito ao Banco no prazo de 24 horas - Cláusula 10.1.;

k) - O banco responsabiliza-se integralmente pelos movimentos efectuados após a referida comunicação, excepto quando esses movimentos decorram de dolo ou negligência grosseira do Titular - Cláusula 10.2.;

l) - Quanto aos movimentos efectuados antes desta comunicação, o Banco assume a seguinte responsabilidade:

- Nas 48 horas imediatamente anteriores à comunicação, salvo actuação com dolo ou por negligência grosseira do Titular, o Banco considera-se responsável pela totalidade dos montantes das transacções ocorridas que excedam o valor de metade do limite de crédito atribuído;

- A todo o tempo e até ao período de 48 horas [a referência a 24 horas deve-se a manifesto lapso] imediatamente anteriores à referida comunicação, salvo actuação com dolo ou por negligência grosseira do Titular, o banco considera-se responsável pela totalidade dos montantes das transacções ocorridas que excedam o montante máximo de crédito atribuído ao Cartão - Cláusula 10.3.;

m) - No caso de furto, roubo ou falsificação do Cartão, os Titulares deverão efectuar participação detalhada às autoridades policiais locais e entregar ao Banco cópia, duplicado ou certidão do respectivo auto, juntamente com a comunicação escrita prevista em 10.1. - Cláusula10.4 (H);

9 – O C... propôs, no Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto, acção especial de cumprimento de obrigações pecuniárias contra A...(ora A.), que ali correu termos, pelo 2.° Juízo com o n.º 3298/05.4THPRT e terminou por sentença de 20/06/2005, que julgou inepta a respectiva petição, por falta de causa de pedir e, em consequência, absolveu a ali Ré da instância (I);

10 - C... propôs acção declarativa contra A... no Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto, que correu seus termos, pelo 3.° Juízo com o n.º 44/07.1THPRT e terminou por sentença que absolveu a R. da instância, por falta de pagamento da taxa de justiça inicial (J);

11 - D... remeteu, datada de 2 de Julho de 2008, à ora A., a carta de fls. 44, do teor seguinte (ao que interessa): “na sequência de um contrato de cessão de créditos celebrado entre a E... - Sociedade de Titularização de Créditos, S.A., B... que detinha o seu crédito, a D..., S.A., empresa gestora do seu processo, tem para lhe oferecer um conjunto de soluções para resolução da sua situação. Vimos, por este meio, dar-lhe a possibilidade de beneficiar de um desconto de 35% sobre o valor em dívida. Para isso, liquide a sua dívida na totalidade até 30 de Agosto de 2008” (K);

12 - A ora A. pediu ao B..., por carta de 19/09/2008, um empréstimo de € 5.000,00, que lhe não foi concedido (L);

13 - Pediu, ainda, ao BPI, por carta de 03/10/2008, um financiamento de € 4.500,00, que lhe foi negado com o fundamento da “existência de valores contabilizados como crédito em contencioso junto da Centralização de Risco do Banco de Portugal (informação reportada a Agosto de 2008)” (M);

14 - Ambos os pedidos foram feitos para pagamentos de despesas imprevistas e inesperadas ou inadiáveis (N),

15 - E por a A. não querer tocar nas suas poupanças a prazo (O);

16 - O B..., S.A., a 21 de Novembro de 2005, cedeu os créditos de que era titular à sociedade G..., entre os quais consta o da ora A. A... no montante de € 1.579,98 (P);

17 - G... - sucursal em Portugal LB UK RE Holding, Limited, cedeu, a 12/06/2006, a E..., STC, S.A., a posição contratual de que era titular por força do contrato referido em P), com todas as garantias e direitos acessórios inerentes (Q);

18 - O B... desembolsou, em resultado das operações executadas com o cartão de crédito em referência, as quantias correspondentes às movimentações feitas por terceiros contra a vontade do titular, ora A., no montante global de € 1.579,98 (R);

19 - O B... não pôde reembolsar-se deste montante por a conta a que estava associado o cartão não ter provisão que suportasse o débito respectivo (S).

20 - O B... comunicou, após a entrada da A. (fins de Janeiro de 2004) em mora, nos termos da alínea anterior, o incumprimento por esta do reembolso, à Central de Riscos do Banco de Portugal (T);

21 - A ora A. tem fundo de maneio mais do que suficiente para proceder ao pagamento dos montantes levantados com o cartão de crédito após ter sido desapossada do mesmo (U);

21 - Do contrato de emissão do Cartão de Crédito faz parte um seguro de riscos contra roubos (4º);

22 - Esse seguro estava em vigor à data do furto do cartão (5º);

23 - A A. apresentou toda a documentação para ser accionado esse seguro (6º);

24 - A A. sentiu-se humilhada e vexada com a proposição das acções acima referidas em I) e J) e com a recusa dos empréstimos acima referidos em L) e M) (7º);

25 - E porque, em consequência da participação ao Serviço de Centralização de Riscos, não pode requisitar cheques pela Internet ou pelos Caixas Multibanco nem pode obter qualquer empréstimo bancário (8º);

26 - Sempre teve uma vida certinha, idónea e impoluta (9º);

27 - Todas e cada uma das utilizações abusivas do cartão de crédito identificado em A) foram efectuadas mediante a digitalização do respectivo PIN (10º);

Ao abrigo do disposto nos art.ºs 713.º n.º 2 e 659.º, n.º 3, do CPC considera-se ainda como provado, com o documento de fls. 256, que não foi impugnado, que o seguro de risco a que se reportam os antecedentes n.ºs 21 a 23 nas suas “Condições Particulares e Especiais” e nas “Exclusões” dispõe que “não serão reembolsados os pagamentos resultantes de utilização fraudulenta ou não autorizada do cartão quando a transacção seja validada através da digitação do PIN (número de identificação pessoal) do Cartão BP VISA”.


*

b) - De direito

Importa começar por precisar que após o despacho saneador (onde, com trânsito em julgado, se absolveram todos os RR. do pedido de “pagamento da quantia que foi retirada da conta da A. após o roubo do cartão no montante de € 1.539,98” – porque pura e simplesmente nenhuma quantia fora retirada, desde logo por falta de provisão da conta associada ao cartão de crédito – e, igualmente com trânsito, se absolveram as RR. “ E...” e “ D...” dos demais pedidos), a acção prosseguiu simplesmente quanto aos pedidos de condenação do R. “ B...” de “retirada do indicador de risco da A. junto do Banco de Portugal” e de “pagamento de indemnização pelos prejuízos, vexame e humilhação, nunca inferior a € 5.500,00”.

Por outro lado e como é sabido, sendo as conclusões de recurso que delimitam o âmbito do seu conhecimento e recortadas que foram as questões que encerram, comecemos pela impugnação da matéria de facto.

            1. Perguntava-se no art.º 1.º da base instrutória (b. i.) se, “Quando foi furtada à A. a carteira com o cartão de crédito e outros documentos de identificação e a carta de condução, aquele cartão não estava acompanhado do respectivo PIN”, no 2.º se “A A. tinha o PIN memorizado, não havendo apontamento do mesmo dentro da carteira”, no 3.º, se “Quando utilizou o Caixa Multibanco na Avenida da Liberdade ninguém estava a seu lado ou próximo” e a todos se respondeu não provado, com fundamento em que, tendo sido inquiridas 2 testemunhas, a filha e o marido da A., nenhuma delas estava com esta quando lhe furtaram o cartão, nem tinham conhecimento directo de tal factualidade, limitando-se, a 1.ª, a dizer “estar convencida” que a mãe tinha o PIN memorizado, e a 2.ª a dizer “estar convencido” que a A. não tinha o PIN escrito em lado nenhum.

            Perguntava-se também no art.º 11.º da b. i. se “A A. não guardou devidamente o n.º do PIN, dando-o a conhecer a alguém” e no 13.º se “Os pedidos de empréstimo referidos em M) e L) foram instrumentalmente solicitados pela A. com vista à propositura desta acção e não para satisfazer necessidades reais que enfrentasse” e mereceram igualmente resposta negativa, por falta de prova, v. g., da única testemunha oferecida pelo R.

            Na impugnação de tal matéria (a do art.º 13.º fora limitada à 2.ª parte) a recorrente limitou-se, minguadamente, a dizer que os quesitos 1.º, 2.º, 3.º e 11.º deveriam ter sido respondidos de forma diversa, sem dizer como, inferindo-se, do contexto, que em sentido positivo, que “sobre o PIN a matéria vertida foi objecto de depoimento das testemunhas N..., O...e última parte de M...”.

            Quanto à 2.ª parte do art.º 13.º da b. i. a resposta deveria ter sido positiva face aos depoimentos da filha e marido da A.

            Definindo as regras a que deve obedecer a impugnação da matéria de facto, o art.º 685.º-B do CPC impõe ao recorrente os seguintes ónus:

 – Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição (n.º 1):

            a) – Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

            b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

            – No caso previsto na antecedente alín. b), quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 522.º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição (n.º 2).

            Por seu turno o referido n.º 2 do art.º 522.º-C obriga a que “quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, devem ser assinalados na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento, de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos”.

            Comentando este preceito, Abílio Neto[2], fazendo o paralelo com o regime pregresso, sustenta que “em relação à anterior redacção do n.º 2 deste artigo, que havia sido introduzida pelo art.º 1.º do DL n.º 183/02, de 10.8, foi agora acrescentada a parte final – “de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos” -; não basta, assim, que as partes se limitem a assinalar, em relação à acta, o início e o termo da gravação do depoimento, informação ou esclarecimento que invocam como fundamento do recurso quanto à matéria de facto, mas terão, além disso, de o fazer de modo a que o tribunal possa identificar com precisão a passagem ou passagens submetidas à sua reponderação (“identificação precisa”), com exclusão, pela negativa, de todo o restante (“identificação separada”).

Ora, lida e relida a impugnação requerida, a sua singeleza está longe de corresponder, minimamente que seja, ao arquétipo legal, pura e simplesmente omitindo as passagens de qualquer gravação dos depoimentos das testemunhas indicadas.

À convicção da julgadora da matéria de facto limitou-se a opor a sua discordância, sem demonstrar onde possa estar a incorrecção do julgamento, para tanto não bastando, a qualquer inflexão, os “avisos” do marido da A., enquanto bancário, para se não ter o PIN escrito ou as informações da testemunha M... sobre o modo como “os ladrões” podem obter o PIN, por fotografia, com binóculos, micro-câmaras…

Mister era a A. ter logrado provar que, por essa ou outra via, quem usou o seu cartão com o PIN, o fez sem culpa sua, da A!

Seja como for, além do mais, porque à partida a recorrente não cumpriu o ónus de indicação das passagens da gravação em que fundou a discordância das respostas à matéria de facto, é de rejeitar o recurso na vertente da impugnação da matéria de facto.


*

            2. Quanto à 2.ª questão, da existência de seguro válido e que a sentença recorrida implicitamente terá considerado prejudicada, a partir da imputação da responsabilidade à recorrente pelo uso abusivo do cartão, de acordo com a repartição das regras do ónus da prova, uma vez que não conseguiu provar a sua falta de culpa no uso do mesmo, com o PIN que só ela e mais ninguém conhecia (ou devia conhecer), simplesmente se dirá que, atenta a factualidade provada acima aditada, das condições particulares da apólice do seguro de risco associado ao cartão, excluída estava a responsabilidade pela utilização fraudulenta ou não autorizada quando as transacções fossem validadas através da digitação do PIN, como pacificamente assim ocorreu no caso sub judice.

            Porque desde logo não foi posta em causa a validade de tal cláusula (nem poderia sê-lo, uma vez que a A. não era parte no contrato de seguro), não pode concluir-se que, na alegação da recorrente, “o furto corre por conta do banco”, isto é, a responsabilidade pelo alegado furto do cartão (e como tal participado à autoridade policial) não se acoberta na apólice do seguro em causa, pelo que não é a partir daí que a recorrente pode obter ganho de causa.


*

            3. Quanto à outra questão (tratado no corpo alegatório, não tanto, como devia, nas conclusões), da nulidade da cláusula 10.ª, n.ºs 1 a 4, da “Condições Gerais” de utilização do cartão de crédito, esta reza assim:

            “0.1. Sempre que se verifique perda, furto. Roubo, extravio ou falsificação de qualquer cartão, o respectivo titular deve avisar, de imediato e indicando o número do respectivo cartão a (…) SIBS (…) ou o Banco (…), pelo meio mais rápido ao seu dispor, confirmando essa comunicação por escrito ao Banco, no prazo de 24 horas;

            10.2. O Banco responsabiliza-se integralmente pelos movimentos efectuados após a referida comunicação excepto quando esses movimentos decorram de dolo ou negligência grosseira do Titular;

            10.3. Quanto aos movimentos efectuados antes desta comunicação, o Banco assume a seguinte responsabilidade:

            - Nas 48 horas imediatamente anteriores à comunicação, salvo actuação com dolo ou por negligência grosseira do Titular, o Banco considera-se responsável pela totalidade dos montantes das transacções ocorridas que excedam o valor de metade do limite de crédito atribuído;

            - A todo o tempo e até ao período das 48 horas imediatamente anteriores à referida comunicação, salvo actuação com dolo ou por negligência do Titular, o Banco considera-se responsável pela totalidade dos montantes das transacções ocorridas que excedam o montante máximo de crédito atribuído ao Cartão;

10.4. No caso de furto, roubo ou falsificação do Cartão, os Titulares deverão efectuar participação detalhada às autoridades policiais locais e entregar ao Banco cópia, duplicado ou certidão do respectivo auto, juntamente com a comunicação escrita prevista em 10.1”.

Como dela flui, reporta-se tal cláusula aos movimentos do cartão antes e depois da comunicação às entidades bancárias, da perda, furto, roubo, extravio ou falsificação, sendo que a factualidade apurada não refere o momento do uso abusivo do cartão, tendo a sentença recorrida concluído pelo uso antes da comunicação (“muito pouco tempo depois do furto, possivelmente para evitar o bloqueio de acesso à conta”).

Contudo, o relevante, aqui, é que, numa ou noutra situação, se prevê na cláusula a assunção da responsabilidade (risco) do banco, apenas ressalvada do dolo ou negligência grosseira do titular.

Quer dizer, permite-se ao titular a prova da sua ausência de culpa no (pelo) uso abusivo do cartão.

Como salienta Joana Vasconcelos[3] o cartão de crédito comporta um risco próprio: o da sua utilização abusiva ou fraudulenta por terceiro.

A repartição desse risco entre os sujeitos envolvidos nas operações de pagamentos com cartão, concretamente entre o titular do cartão e a entidade emitente, tem alimentado ampla discórdia para responder, afinal, a uma simples questão: quem deve pagar o preço dos bens e serviços adquiridos mediante cartão abusivamente utilizado por terceiro, ou repor os levantamentos (cash advance) desse modo efectuados.

A questão começou por ser equacionada a partir do pressuposto de que o risco haveria de incidir sobre o emitente (por norma um banco) de acordo com a regra res suo domino perit, ou seja, porque o banco se torna proprietário do dinheiro depositado qualquer perda ou extravio desencadeia a sua responsabilidade (art.ºs 796.º, n.º 1 e 1144 ex vi, 1206.º, do CC).

Passou-se, depois, para uma assunção de risco repartido ou partilhado entre titular e emitente, na sequência das Recomendações Comunitárias[4], da publicação do DL n.º 166/95, de 15.7 e do Aviso do Banco de Portugal n.º 4/95, que viria a ser revogado e substituído pelo n.º 11/01.[5]

Dispõe a alín. f) do art.º 21.º do DL n.º 446/85, de 25.10 (Lei da Cláusulas Contratuais Gerais) que são proibidas e nulas (art.º 12.º) as cláusulas contratuais gerais que alterem as regras respeitantes à distribuição do risco.

Ao abrigo desse normativo foram declaradas nulas cláusulas que imputavam a responsabilidade ao titular do cartão, independentemente de culpa sua, em vez de o ser ao emitente, de acordo com aquele princípio res suo domino perit, pelos prejuízos sofridos pelo banco, do uso fraudulento de terceiros.[6]

Joana Vasconcelos chama a atenção para que o risco a que alude o citado art.º 796.º, n.º 1, do CC, corre por conta de quem detém e utiliza a coisa, seja ou não proprietário e não sobre este pelo simples facto de o ser, pelo que, afinal, é sobre o emitente que incide.[7]

Todavia, em casos como o presente, a responsabilidade eventualmente incidente sobre o titular pressupõe a sua culpa, sob a forma de dolo ou de negligência grave ou grosseira, o que permite a sua exoneração uma vez provada a sua ausência, o que no caso não ocorreu.

Assim, volvendo ao caso concreto, aquela cláusula, acautelando a repartição do risco em função da culpa do titular (dolo ou negligência grosseira), respeita as orientações do citado Aviso n.º 11/01 e orientações comunitárias e não conflitua, de resto, com o disposto no art.º 796.º, n.º 1, do CC, na medida em que, em coligação com um contrato de depósito há um outro, autónomo, de emissão e utilização de cartão, em que o risco e o ónus da prova têm de olhar-se de ângulo diverso.[8]

Aqui chegados, concluímos que não enferma de invalidade a cláusula 10.ª acima transcrita.

Decorrendo pacificamente do demais clausulado que o titular estava obrigado a memorizar o PIN, não o revelando nem por qualquer forma o tornando acessível ou inteligível por terceiros, não devendo em caso algum anotá-lo junto do respectivo cartão (…) (Cláusula 4.4, b) das “Condições Gerais”), porque só o titular tem acesso a esse número secreto e porque o uso do cartão em causa só foi possível com a digitação de tal número, não merece censura a sentença recorrida quando concluiu que sobre o utilizador incide o ónus da prova da ausência de culpa no uso abusivo do cartão.[9]


*

            4. Quanto à última questão, da indevida comunicação ao Banco de Portugal (Serviço de Centralização de Riscos do Crédito) da situação de incumprimento perante o banco enquanto credor das quantias adiantadas em concessão de crédito, tratou-se de uma obrigação legal decorrente dos art.ºs 1.º a 3.º do DL n.º 29/96, de 11.4 então vigente[10], pelo que, porque lícita a conduta, afastado se antolha o requisito da responsabilidade civil, no caso extracontratual, ilicitude (art.º 483.º, n.º 1, do CC), bem como a correspondente obrigação de indemnizar, de nada valendo a invocada absolvição da A. em procedimentos de injunção que, como a recorrente sabe, não incidiu sobre o mérito da causa, ou seja, sobre a dívida peticionada, correspondente à utilização abusiva do cartão de crédito.

            Também nesta parte se impõe confirmar a douta sentença recorrida.


*

            III. Sumariando (n.º 7 do art.º 713.º do CPC)

            1 - É de rejeitar o recurso sobre a impugnação da matéria de facto objecto de gravação que não indique com exactidão as passagens da gravação em que o recorrente funda a sua discordância;

            2 – Porque a cláusula contratual geral sobre a repartição do risco sobre os prejuízos decorrentes de uso abusivo de cartão de crédito, entre o seu titular e o banco emitente, admite a prova da ausência de culpa do titular, não enferma de nulidade por alteração das regras respeitantes à distribuição do risco;

            3 – Porque lícita a comunicação do banco emitente do cartão de crédito ao Serviço de Centralização de Riscos do Crédito do Banco de Portugal de operação de crédito não cumprida, não há lugar a obrigação de indemnização por danos sofridos pelo titular do cartão decorrentes dessa comunicação.


*

            IV. Decisão

            Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar, assim, a sentença recorrida.

            Custas pela recorrente.


***

Francisco Caetano (Relator)

António Magalhães

Ferreira Lopes


[1] A versão em papel do processo não contém o despacho em causa.
[2] “Código de Processo Civil, Anot.”, 2008, pág. 775, nota 1.
[3] “Sobre a Repartição entre Titular Emitente do Risco de Utilização Abusiva do Cartão de Crédito no Direito Português”, in “Estudos de Homenagem ao Prof. Dr. I. Galvão Teles”, II – Direito Bancário, 2002, pág. 487 e ss.
[4] V. a sua indicação em Joana Vasconcelos, ob. cit., pág. 491.
[5] Publicados, respectivamente, no DR, II, de 28.7.95 e 20.11.01.
[6] V. Ac. STJ de 11.10.01, Sumários, 54.º e 19.11.02, CJ/STJ, 2002, 3.º, pág. 135.
[7] Ob. cit. pág. 515. Contra esta posição v. Ana Prata, “Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais”, 2010, pág. 502.
[8] V. Acs. STJ de 15.10.09, Proc. 29368/03.5TJLSB.S1, in www.dgsi.pt e 12.10.00, CJ/STJ, 2000, III, pág. 69.
[9] V., no mesmo sentido, os Acs. STJ de 12.10.00, cit. e RP de 10.4.03, CJ, 2003, II, pág. 190.
[10] Entretanto, foi revogado e substituído pelo DL n.º 204/08, de 14.10, cujo serviço passou a denominar-se Central de Responsabilidades de Crédito (art.ºs 1.º a 3.º).