Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
107/15.0T8MBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: SERVIDÃO DE VISTAS
JANELA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 10/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - M.BEIRA - JUÍZO C. GENÉRICA - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.334, 1360, 1361, 1362, 1363, 1364 CC
Sumário: 1.- Com as restrições ao direito de propriedade, previstas no artigo 1360 do CC, foi intenção do legislador evitar, não propriamente as vistas que se podem desfrutar sobre o prédio vizinho, mas antes o devassamento deste, ou melhor, a ocupação do prédio vizinho.

2.- Não dizendo o Código Civil em vigor, tal como o Código de Seabra, o que deve entender-se por janela, a doutrina e a jurisprudência entendem que tal vocábulo é usado com o sentido que tem na linguagem corrente.

3.- As janelas e as frestas são aberturas feitas nas paredes dos edifícios, mas que se distinguem não só pelas suas dimensões, como pelo fim a que se destinam.

4.- As frestas são aberturas estreitas, que têm apenas por função permitir a entrada de luz e ar.

5.- As janelas, além de serem mais amplas do que as frestas, dispõem de um parapeito onde as pessoas podem apoiar-se ou debruçar-se e disfrutar comodamente as vistas que tais aberturas proporcionam, olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo.

6. - Quando o proprietário constrói uma parede no limite do seu prédio e deixa nela uma abertura, esta abertura só poderá ser qualificada de janela se permitir que um utilizador comum possa apoiar-se ou debruçar-se sobre o seu parapeito, ou sobre superfície que lhe corresponda, e com tal ação possa devassar o prédio vizinho.

7. - Uma janela gradada que não respeite as imposições do artigo 1364 CC, não pode levar, pelo decurso do prazo da usucapião, à constituição de uma servidão de vistas.

8. - Ainda que tenham decorrido os prazos da usucapião, o proprietário vizinho não se encontra sujeito à distância prevista no nº1 do artigo 1360 CC, podendo levantar obra ou construção no seu prédio até à estrema ainda que tape ou inutilize tal janela.

9.- Ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante.

10. - Para que integre um abuso de direito, a desproporção entre as vantagens auferidas pelo titular do direito e os prejuízos causados a terceiro terá de ultrapassar os limites contidos na intenção normativa subjacente ao direito invocado.

Decisão Texto Integral:     







                                                                                           

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

J (…) e mulher, M (…) intentam a presente ação declarativa sob a forma de processo comum, contra I (…) e mulher, D (…),

Alegando, em síntese, na parte com relevo para a apreciação dos recursos deduzidos por autores e réus:

os autores são donos e legítimos possuidores do prédio urbano melhor identificado no artigo 1º da Petição Inicial (PI), onde os mesmos edificaram, na respetiva parede poente, por volta de 1990, uma abertura que confina diretamente para o prédio dos Réus, dela tendo retirado desde então todas as utilidades;

em Janeiro de 2015, os Réus edificaram um muro em blocos de cimento encostado à parede poente do prédio dos Autores, tapando completamente a referida abertura.

Em consequência formulam, entre outros, o pedido de condenação dos réus a reconhecer que se encontra constituída, por usucapião, uma servidão de vistas, de entrada de ar, luz, abertura de janela, a favor do prédio dos Autores, e a demolir a construção em bloco que ali efetuaram; e ainda a indemnizar os Autores pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados, em quantia não inferior a €2.500,00.

Os Réus contestam, alegando, em síntese, que não se constituiu qualquer servidão de vistas por usucapião a onerar o mencionado prédio dos Réus em benefício do prédio dos Autores na medida em que a abertura construída na parede poente de casa dos Autores não pode ser qualificada como “janela” nos termos em que tem sido entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores.

Concluem, nesta parte, pela improcedência da ação.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar a ação parcialmente procedente:

i. Condenando os Réus a reconhecer os Autores como donos e legítimos proprietários do prédio urbano melhor descrito no Ponto 1) da factualidade provada;

ii. Condenando os Réus a reconhecer que sobre o seu prédio se encontra constituída, por usucapião, uma servidão de estilicídio, uma servidão de saliência de beiral e uma servidão de escoamento de águas a favor do prédio urbano dos Autores;-

iii. Condenando os Réus a demolir a construção melhor descrita no Ponto 18) da factualidade provada, deixando totalmente destapada e desimpedida a abertura melhor descrita no Ponto 10) da factualidade provada existente na parede poente do prédio dos Autores;

iv. Absolvendo os Réus do demais peticionado.


*

Inconformados com tal decisão, os Réus dela interpõem recurso de apelação, (…)

*

Os Autores apresentaram contra-alegações, nas quais declaram interpor recursosubordinado[1], relativamente ao qual apresentam as seguintes conclusões:

(…)


*

Os réus apresentaram contra-alegações ao recurso subordinado, pugnando pela sua improcedência.
Cumpridos que foram os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº2, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
A. Apelação dos Réus
1. Impugnação da matéria de facto
2. Abuso de direito
B. Ampliação do objeto do recurso pelos autores
3. Impugnação da matéria de facto
4. Constituição de uma servidão de vistas
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A. Matéria de facto

São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida, que aqui se reproduzem parcialmente, na parte com relevo para a decisão em apreço:

 1) Encontra-se registado a favor dos Autores o prédio urbano sito no Lugar de Y (...) , freguesia de X (...) , concelho de Sernancelhe, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 0 (...) º, composto de casa de habitação a confrontar de norte com A (...) , de sul com caminho, de nascente com M (...) e de poente com o prédio referido em 8);

2) O prédio referido em 1) teve origem no artigo 00 (...) º urbano da freguesia de X (...) , composto por casa de habitação, com a superfície de 35m2, construído pelos Autores em data não concretamente apurada do ano de 1990, sendo à data constituído por uma pequena casa de habitação de rés-do-chão, com três divisões;

3) Ao longo dos anos, os Autores realizaram ampliações e introduziram melhoramentos no mencionado prédio, ampliando primeiro a sua habitação para o lado norte, onde construíram mais um quarto, tendo após construído um coberto para arrumos e garagem do lado sul;

4) Em 2007, os Autores, ao abrigo da Licença de Reconstrução n.º .../08 realizaram obras no prédio referido em 2), mantendo como anexos da nova moradia e habitação, o coberto e a ampliação referidas em 3), e construíram no logradouro uma habitação nova, e que, por avaliação do Serviço de Finanças de Sernancelhe, em 19.11.2011, deu origem ao atual artigo urbano 0 (...) º, nos termos melhor descritos em 1);

5) Em 10.08.2004 os Autores registaram, a seu favor, na Conservatória do Registo Predial de Sernancelhe, o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 00 (...) ,º e o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 000 (...) º, este último adquirido em partilha judicial por óbito de M (…) pai da Autora, sob prédio misto n.º 1.../20040810 da freguesia de X (...) ;

6) Desde a sua construção em 1990, os Autores sempre possuíram o prédio urbano referido em 1), nele habitando, ocupando-o com mobílias e outros utensílios domésticos, nele passando os dias e as noites sempre que se encontram em X (...) , aí confecionando e tomando as suas refeições diárias, recebendo os seus amigos e familiares, fazendo obras de manutenção de modo a manter o mesmo em condições de habitabilidade e nele fazendo obras de ampliação e beneficiação, comportando-se como únicos e exclusivos proprietários, dele tirando todos os rendimentos e utilidades que o mesmo foi suscetível de propiciar;

7) Os atos referidos em 6) foram praticados pelos Autores à vista de toda a gente e com conhecimento da generalidade das pessoas da freguesia de X (...) , ano após ano, sem interrupção nem oposição de ninguém, na convicção de exercerem um direito próprio e de não terem ofendido os direitos de outrem aquando da sua aquisição;

8) Encontra-se registado a favor dos Réus o prédio urbano composto por casa de habitação com 1 piso e 4 divisões, situado no W (...) , freguesia de X (...) , inscrito na matriz sob o artigo 471º, a confrontar de norte com A W (...) de sul com caminho, de nascente com M D(...) e de poente com caminho;

9) Os prédios urbanos referidos em 1) e 8) são contíguos entre si, confinando este último com o dos Autores pelo lado nascente;

10) Aquando da construção do prédio referido em 2), os Autores abriram na sua parede do lado poente, que confina direta e imediatamente com o prédio dos Réus, uma abertura com as seguintes dimensões: 1,20m de largura por 0,97m de altura, situando-se a 1.02 m de altura medidos do solo pelo lado interior[2];

11) A abertura referida em 10) tem uma grade em ferro e um vidro, com duas empenas a abrir para o interior, que permite a entrada de luz para o interior do prédio dos Autores durante o dia e permite ver para o exterior e, quando aberto, permite a entrada de ar e arejamento do prédio dos Autores;

12) A grade de ferro referida em 11) foi colocada pelos Autores como forma de proteção na sequência de um assalto ocorrido na sua habitação em data não concretamente apurada, em meados da década de 90;

13) Pela abertura referida em 10) o prédio dos Autores sempre gozou da entrada do ar e luz, utilidades que os Autores dela retiraram e que a mesma foi sendo suscetível de propiciar, o que foi feito à vista e com conhecimento da generalidade das pessoas da freguesia de X (...) , dia após dia, ano após ano, ininterruptamente, sem oposição ou perturbação de quem quer que fosse, de boa-fé e na convicção do exercício de um direito próprio;

 (…)

18) Em Janeiro de 2015, quando os Autores se encontravam em França, os Réus fizeram obras no seu prédio, que consistiram no levantamento de um muro em blocos de cimento encostado à parede poente do prédio dos Autores, debaixo do beiral e em frente à abertura referida em 10), tapando-a totalmente;

19) A grade de ferro referida em 11) consiste numa estrutura constituída por quatro ferros exteriores, em forma retangular, com as dimensões idênticas às da abertura mencionada em 10), e, no seu interior, por três figuras geométricas de ferro, em forma de losangos, colocadas em sentido vertical e soldadas respetivamente a três dos referidos varões de ferro, ficando duas dessas figuras unidas respetivamente aos dois referidos varões de ferro das extremidades e a terceira unida ao varão do meio;

20) A grade referida em 11) é composta por cinco varões e seis secções, encontrando-se fixada nas padieiras, nas ombreiras e no peitoral em massa de cimento e, quanto à forma de fixação, os varões foram soldados na grade, bem assim como os desenhos geométricos foram soldados nos varões;

21) Desde a construção do gradeamento de ferro na abertura referida em 11) os Autores ficaram impossibilitados de introduzirem a sua cabeça através dessa grade e de se debruçarem sobre o prédio dos Réus, não podendo fazer despejos ou arremessar objetos para esse prédio, encontrando-se impedidos de se apoiarem sobre o parapeito da referida abertura, não podendo deitar a cabeça de fora sobre esse prédio para olharem em frente, para cima, para baixo ou para os lados, e nem desfrutarem das vistas que aquela poderia proporcionar;

22) Os Réus têm duas filhas casadas e quatro netos que costumam vir passar férias para a sua casa referida em 8), reunindo-se na dita casa os Réus, as suas filhas, genros, netos e ainda a mãe da Ré, mulher que reside permanentemente com esta;

23) Os Réus edificaram a construção referida em 18), um anexo contiguo aos dois anteriormente existentes no logradouro da sua casa de habitação, com cerca de 4 metros de comprimento por 1,70m de largura e 2,25m de altura, ficando situado defronte da referida abertura em 10);

24) No aludido anexo de arrumações os Réus guardam cereais, bilhas de gás, utensílios domésticos e uma arca congeladora, ficando com mais espaço disponível dentro de sua casa para nela se instalarem.


*

1. Impugnação da matéria de facto

Os tribunais da Relação, sendo tribunais de segunda instância, têm atualmente competência para conhecer tanto de questões de direito, como de questões de facto.

Segundo o nº1 do artigo 662º do NCPC, a decisão proferida sobre a matéria de pode ser alterada pela Relação, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

 Para que o tribunal se encontre habilitado para proceder à reapreciação da prova, o artigo 640º, do CPC, impõe as seguintes condições de exercício da impugnação da matéria de facto:

1 – Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevante;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”

A impugnação da matéria de facto que tenha por fundamento a errada valoração de depoimentos gravados, deverá, assim, sob pena de rejeição, preencher os seguintes requisitos:

a) indicação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, que deverão ser enunciados na motivação do recurso e sintetizados nas conclusões;

b) indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa, sobre os pontos da matéria de facto impugnados;

c) indicação, ou transcrição, exata das passagens da gravação erradamente valoradas. 

Estes requisitos visam assegurar a plena compreensão da impugnação deduzida à decisão sobre a matéria de facto, mediante a identificação concreta e precisa de quais os pontos incorretamente julgados e de quais os motivos de discordância, de modo a que se torne claro com base em que argumentação e em que elementos de prova, no entender do impugnante, se imporia decisão diversa da que foi proferida pelo tribunal.

Tais exigências surgem como uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo[3], assegurando a seriedade do próprio recurso intentado pelo impugnante.


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1.1. Impugnação deduzida pelas Rés

(…)

1.2. Impugnação deduzida pelos Autores  

(…)


*

B. O Direito

O juiz a quo, partindo de um conceito de janela tendo em vista a dupla finalidade do artigo 1360º do CC – evitar que o prédio vizinho seja objeto da indiscrição de estranhos e impedir a sua fácil devassa com o arremesso de objetos – considerou que a janela em causa, por ser gradeada, não preenchia o conceito de janela previsto em tal norma, pelo que a manutenção de tal abertura ainda que por determinado período nunca seria suscetível de levar à constituição de uma servidão de vistas por usucapião.

Contudo, e apesar de negar a constituição de uma servidão de vistas, a sentença recorrida acaba por determinar a demolição do muro construído pelos réus com fundamento em abuso de direito – nas modalidades de venire contra fatum proprium e de desequilíbrio entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados.

Insurgem-se os réus contra a ordenada demolição, com a alegação de que necessitavam de construir um anexo e que, por outro lado, o edifício onde está implantada a “janela” em apreço, desde que os AA. construíram a sua nova habitação, é por eles destinada a arrumos, sendo que, para a entrada de luz, podem os autores nele construir uma claraboia. Concluem, assim, pela inexistência de abuso de direito em qualquer uma das referidas modalidades.

Por sua vez, os autores interpõem recurso subordinado, insurgindo-se contra a circunstância de não lhes ter sido reconhecida a constituição de uma servidão de vistas, com a alegação de que a colocação de uma grade pelos autores naquela abertura, com o objetivo de se protegerem contra os assaltos, não altera a qualificação daquela janela para fresta, seteira ou óculo, ou janela gradeada, de acordo com a lei.

Por facilidade na exposição, começaremos pela questão da constituição de uma servidão de vistas a favor dos autores e só no caso de a mesma ser denegada, confirmando o juízo proferido pelo tribunal recorrido, se apreciará se o direito reconhecido aos réus de construírem na sua propriedade até à confinância com os autores constitui, ou não um abuso de direito.

1. Constituição de uma servidão de vistas a favor do prédio dos autores

 A primeira questão a apreciar respeita à (i)regularidade da “janela” construída pelos autores e em determinar se a permanência da mesma durante determinado lapso de tempo, sem oposição dos réus, permite a aquisição de um direito de servidão de vistas por usucapião a favor do prédio dos autores.

Sendo o direito de propriedade um direito subjetivo absoluto, enquanto oponível erga omnes, tendo por conteúdo o gozo, fruição e disposição da coisa, incluindo a sua transformação (é um direito real de gozo), entre as limitações ao direito de propriedade destacam-se as emergentes das relações de vizinhança[4], nomeadamente as respeitantes a construções e edificações.

A propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, como tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico (artigo 1344º CC).

O direito de propriedade compreende a faculdade de levantar edificações ou construções no respetivo prédio. Não impondo o nosso Código qualquer distância mínima obrigatória entre construções realizadas em diferentes prédios contíguos, aquele que construir pode fazê-lo até às estremas do seu prédio[5].

Por outro lado, em princípio, o proprietário pode fazer no seu prédio portas, janelas, varandas, terraços, sacadas, eirados e obras semelhantes, que lhe apetecer, e ainda que com elas fique devassado o prédio vizinho. Como esclarece Cunha Gonçalves, o proprietário pode, em princípio, fazer a edificação que lhe aprouver junto da estrema do seu terreno, ocupando-o totalmente ou deixando espaço em volta bem como levantá-lo até à maior altura possível (desde que com respeito dos regulamentos municipais e administrativos), sem que o proprietário se possa opor com a alegação de que o novo edifício ou construção lhe retira a vista de que gozava ou lhe diminua a luz ou o ar[6].

Tal liberdade só fica restringida quando o proprietário queira construir até à estrema. A distancia imposta pelo legislador entre a construção e a estrema (um metro e meio, e que podia ter sido outra e que não é suscetível de obviar totalmente ao devassamento), constitui uma solução de compromisso entre, por um lado, a possibilidade de devassa e, por outro lado, a liberdade de cada um construir no seu terreno e a necessidade de ar e luz nas habitações[7].

Se, de uma forma geral, o proprietário pode, no exercício do seu direito de uso e fruição, construir até à estrema do seu prédio, os interesses do titular de direito sobre o prédio vizinho podem ditar limitações que visam, entre o mais e quanto a construções, evitar o seu devassamento, seja pela vista e indiscrição de estranhos, seja pelo arremesso de objetos.

Vejamos, assim, o que o Código Civil prevê a tal respeito, normas que reproduziremos, para melhor compreensão do espírito que preside ao regime aí consagrado.

Dispõe o nº1 do artigo 1360º do Código Civil (CC), sob a epígrafe “Abertura de janelas, portas, varandas e obras semelhantes

1. O titular do direito real não pode abrir portas ou janelas viradas para o prédio vizinho sem deixar entre estas e o limite daquele uma distancia de, pelo menos um metro e meio.

2. Igual restrição é aplicável às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela.

(…).

Artigo 1361º - Prédios isentos da restrição:

As restrições do artigo precedente não são aplicáveis a prédios separados entre si por estrada, caminho, rua, travessa ou outra passagem por terreno do domínio público.

Dispõe o artigo 1363º CC, “Frestas, seteiras ou óculos para luz e ar

1. Não se consideram abrangidos pelas restrições da lei as frestas, seteiras ou óculos para a luz e ar, podendo o vizinho levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro, ainda que vede tais aberturas.

2. As frestas, seteiras ou óculos para a luz e ar devem, todavia, situar-se pelo menos a um metro e oitenta centímetros de altura, a contar do solo ou do sobrado, e não devem ter, numa das suas dimensões, mais de quinze centímetros; a altura de um metro e oitenta centímetros; a altura de um metro e oitenta centímetros respeita a ambos os lados da parede ou muro onde essas aberturas se encontram.

Salientamos ainda o artigo 1364º CC, “Janelas gradadas”:

“É aplicável o disposto no nº1 do artigo antecedente às aberturas, quaisquer que sejam as suas dimensões, igualmente situadas a mais de um metro e oitenta sentimentos do solo ou do sobrado, com grades fixas de ferro ou outro metal, de secção não inferior a um centímetro quadrado e cuja malha não seja superior a cinco centímetros.

É a seguinte interpretação que a doutrina e a jurisprudência vêm fazendo da leitura conjugada de tais normas:

A regra geral surge contida no artigo 1360º: o proprietário não pode abrir portas ou janelas viradas para o prédio vizinho, sem que deixe entre estas e o limite do prédio vizinho uma distância de um metro e meio (proibição extensiva a varandas e terraços com beirados a altura inferior a um metro e meio).

O Código parte do princípio de que uma distância inferior àquela o devassamento se torna intolerável[8].

É dupla a finalidade da limitação. Por um lado, pretende-se evitar que o prédio vizinho seja facilmente objeto da indiscrição de estranhos. Por outro lado, quer-se impedir que o prédio seja facilmente devassado com o arremesso de objetos[9].

Com as restrições ao direito de propriedade contidas no artigo 1360º foi intenção do legislador evitar, não propriamente as vistas que se podem desfrutar sobre o prédio vizinho, mas antes o devassamento deste, ou melhor, a ocupação do prédio vizinho: “Basta que, no parapeito de uma janela ou terraço, a pessoa se debruce numa atitude natural, ou estenda um braço, para que haja violação do direito de propriedade alheia, e é isso que se pretende evitar[10].

Os artigos 1363º e 1364º CC vêm consagrar duas exceções a tal proibição: se não respeitar a distância de um metro e meio relativamente ao prédio vizinho, o proprietário poderá ainda abrir óculos ou seteiras ou janelas gradadas, desde que possuam as caraterísticas aí definidas.

E compreende-se a razão de ser de tal regime excecional: embora através das frestas e das janelas gradadas se possa ver para o exterior, a lei procura evitar que sirvam para este fim, através da exigência de que se situem à altura mínima de um metro e oitenta sentimentos.

Não dizendo o Código Civil em vigor, tal como o Código de Seabra, o que deve entender-se por janela, a doutrina e a jurisprudência entendem que tal vocábulo é usado com o sentido que tem na linguagem corrente[11].

As janelas e as frestas são aberturas feitas nas paredes dos edifícios, mas que se distinguem não só pelas suas dimensões, como pelo fim a que se destinam.

As frestas são aberturas estreitas, que têm apenas por função permitir a entrada de luz e ar.

As janelas, além de serem mais amplas do que as frestas, dispõem de um parapeito onde as pessoas podem apoiar-se ou debruçar-se e disfrutar comodamente as vistas que tais aberturas proporcionam, olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo.

E se, no Código de Seabra, se considerava janela toda a abertura deixada na parede de um edifício, por onde coubesse uma cabeça humana[12] – critério este formulado para edificações que apresentavam dimensões muito exíguas –, Henrique Mesquita[13] propõe que no conceito de janela se devam incluir apenas as aberturas através das quais se possa projetar a parte superior do corpo humano e em cujo parapeito as pessoas se possam apoiar ou debruçar para conversar com alguém que esteja do lado de fora ou para disfrutar as vistas.

   Ainda segundo tal autor[14], as frestas que, ou pelas suas dimensões ou pela altura a que se situem, não obedeçam aos requisitos legais, mas que apesar disso não proporcionem estas comodidades, não devem qualificar-se como janelas. Continuam a ser frestas, embora frestas irregulares.

Também a jurisprudência[15], segundo cremos maioritária, se tem pronunciado no sentido de que, quando o proprietário constrói uma parede no limite do seu prédio e deixa nela uma abertura, esta abertura só poderá ser qualificada de janela se permitir que um utilizador comum possa apoiar-se ou debruçar-se sobre o seu parapeito, ou sobre superfície que lhe corresponda, e com tal ação possa devassar o prédio vizinho.

Se a possibilidade de devassa não existir, a abertura não pode ser considerada janela para efeitos do artigo 1362º CC.

A abertura em apreço – com 1,20 m de largura por 0,90 m de altura e 1,2 de comprimento, com um vidro e com duas empenas a abrir para o interior, e situada a 1,02 m do solo, medidos do interior da casa – se, na altura em que foi construída, preenchia as caraterísticas necessárias à sua qualificação como janela, caindo na previsão do artigo 1360º CC, a partir do momento em que nela foi colocada uma grade de ferro, com as caraterísticas descritas nos pontos 19 e 20 dos factos provados, impedindo a transposição de um corpo através dela[16], terá de ser considerada uma “janela gradada.

E, o facto de em tal “janela” ter sido aplicada uma grade em ferro, fez toda a diferença, alterando a natureza da mesma (ao contrário do sustentado pelos Autores nas suas alegações de recurso). Com efeito, a partir de então, as utilidades suscetíveis de serem retiradas de tal abertura sofreram uma forte restrição – diminuindo o espaço transponível, deixaram de permitir que alguém nela se debruce sobre o prédio vizinho, impedindo que alguém passe com a cabeça através da grade, impedindo a visão lateral e para cima e para baixo. A curta distancia, deixada livre pelas barras de ferro verticais e pelas figuras geométricas em ferro, permitirá, quando muito, a passagem de um braço através da janela. Ou seja, despida de uma das funções essenciais a qualquer janela, passou a permitir unicamente a visão em frente e a entrada de ar e luz.

  Para a determinação da natureza de tal abertura, mostra-se indiferente o motivo que terá estado por detrás da decisão de proceder ao seu gradeamento – se com a intenção de obstarem à ocorrência de assaltos (como é alegado pelos autores e foi dado como provado), ou se por força da oposição deduzida pelos réus.

O que interessa é a devassa ou o grau de devassa que é permitido pela configuração apresentada pela “janela” no estado em que a mesma se encontra (independentemente da utilização que dela é feita).

E, com a configuração que se apresenta desde meados de 1990, tal “janela gradada” não permite a invasão do espaço aéreo.

De qualquer modo, quer no estado em que se encontrava anteriormente, quer depois de gradada, tal abertura sempre teria de ser considerada irregular : tal abertura foi construída sem respeito da distância de um metro e meio relativamente ao prédio dos réus, em violação do disposto no artigo 1360º, sem que, pelas suas caraterísticas, se possa encaixar em qualquer uma das exceções expressamente previstas nos arts. 1362º (prédios separados por rua, estrada ou caminho), 1363º (frestas, seteiras ou óculos) e 1364º (janelas gradeadas), uma vez que foi aberta a menos de um metro e oitenta do solo.

Segundo Pires de Lima e Antunes Varela[17], toda a abertura que não obedeça, quer pelas suas dimensões quer pela respetiva localização, aos requisitos indicados no artigo 1362º, não pode ser considerada como abertura de tolerância (fresta, seteira ou óculo para luz), devendo considerar-se sujeita ao regime que o nº1 do artigo 1360º estabelece para as janelas, ou seja, é proibida.

Contudo, em nosso entender, a equiparação de tais aberturas às janelas, fica-se por aí.

Tratando-se de uma abertura irregular – uma “janela” que, embora sendo gradada não respeita as características previstas no artigo 1364º –, os réus poderiam ter-se insurgido contra a sua manutenção, impondo aos autores a sua tapagem ou a modificação das suas características em conformidade com a lei.

Não o tendo feito até hoje, chegamos à segunda parte da questão, de saber quais os efeitos de tal inércia por parte dos réus, nomeadamente se o decurso dos prazos da usucapião permitirá a aquisição de uma servidão de vistas a favor do prédio dos autores, como estes defendem nas suas alegações de recurso (direito que lhes foi denegado na sentença recorrida), com o consequente impedimento para os réus de levantarem qualquer construção que as vede e não permita que o ar e a luz por elas entre, por força do art. 1362º CC.

Dispõe o artigo 1362º CC (Servidão de Vistas):

1. A existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião.

2. Constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras mencionadas no nº1 um espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão das obras.

As janelas e demais obras aí referidas podem levar à constituição de uma servidão de vistas por usucapião – importando a consequente imposição ao proprietário vizinho de deixar um espaço mínimo de um metro e meio nas obras que venha a efetuar em frente de tais janelas.

Quanto às frestas e as janelas gradadas que obedeçam aos requisitos previstos nos artigos 1363º e 1364º, se o proprietário vizinho não se pode insurgir contra a sua abertura ou manutenção, pode, a todo o tempo, erguer construção no seu prédio até à estrema, ainda que com a mesma tape tais aberturas (nº1 do artigo 1363º CC). Tais aberturas nunca podem importar a constituição de uma servidão de vistas.

Contudo, o Código Civil não é expresso na solução a dar às frestas e janelas gradadas que, não obedecendo às caraterísticas impostas pelos arts. 1363º e 1364º – aberturas irregulares, relativamente às quais o proprietário vizinho tem o direito  de exigir que sejam modificadas e postas em conformidade com a lei –, se venham a manter pelo tempo necessário à usucapião.

Quanto a esta questão, deparamo-nos com três posições diferentes.

Uma primeira[18] que, partindo da ideia de que todas as aberturas que não obedeçam ao circunstancialismo previsto nos arts. 1363º e 1364º devem ser consideradas como janelas, encontrando-se como tal, sujeitas ao regime destas previsto nos arts. 1360º e 1362º: podem levar à constituição de uma servidão de vistas por usucapião, com a consequente imposição para o proprietário vizinho de não levantar construção a menos de metro e meio de distância das mesmas.

Para um segundo entendimento[19], tais aberturas poderão levar à constituição de uma servidão de ar e de luz, por usucapião. Podendo a servidão ter objeto quaisquer utilidades suscetíveis de serem gozadas através de outro prédio (artigo 1544º CC), decorrido o prazo necessário à usucapião, o proprietário adquire uma servidão de ar e de luz, que lhe confere o direito a manter tais aberturas em condições irregulares, impedindo, consequentemente, o titular do prédio serviente de pedir a sua modificação e harmonização com a lei.

“Mas da constituição de tal servidão nenhum outro efeito resulta. Concretamente, o proprietário vizinho não perde o direito de construir mesmo junto à linha divisória, ainda que tape as frestas, porque a restrição que cria uma zona non aedificandi, não permitindo edificar no espaço de metro e meio, medido a partir dos limites do prédio, só é estabelecida pela lei em relação à servidão de vistas regulada no artigo 1362º, em cujo campo de aplicação não se incluem as frestas[20]”.

Ou, como se afirma no Acórdão do STJ de 07-02-2002[21], o proprietário que abre frestas em desconformidade com a lei fica, após o decurso do prazo da usucapião, exatamente na mesma situação jurídica que resulta da abertura de frestas regulares: o vizinho não pode reagir contra a violação cometida, exigindo que as frestas sejam modificadas ou tapadas, mas mantém o direito de, a todo o tempo, construir no seu prédio, ainda que vede ou inutilize tais aberturas.  

Encontrámos ainda uma terceira tese, sustentada pelo Acórdão do TRG de 07-12-2006[22], segundo a qual, no caso de permanência de aberturas irregulares, o proprietário adquire uma servidão atípica (de vista, luz e ar), que lhe confere não só o direito de manter tais aberturas em condições irregulares, mas também o de desfrutar da vista e da entrada direta de luz e ar, pois também é este direito que se exerce quando se constrói aberturas irregulares. Em consequência, reconhece ao titular da servidão o direito de impedir que o proprietário vizinho as vede ou tape, impondo-lhe a observância do disposto no nº2 do artigo 1362º.

Pela nossa parte, consideramos que a manutenção de aberturas irregulares – frestas ou janelas gradadas que não respeitem as dimensões, altura mínima e demais características definidas nos artigos 1363º e 1364º a – nunca poderão dar lugar à constituição de uma servidão de vistas.

Com efeito, e desde logo, a designação de servidão de vistas não é a mais adequada, prestando-se a equívocos. “O objeto da restrição não é propriamente a vista sobre o prédio vizinho, mas a existência da porta, da janela, da varanda, do terraço, do beirado ou de obra semelhante, que deite sobre o prédio nas condições previstas no artigo 1360º. Não se exerce a servidão com o facto de se disfrutarem as vistas sobre o prédio, mas mantendo-se a obra em condições de se poder ver e devassar o prédio vizinho. Pode a janela ou a porta estar fechada, desde que o não seja definitivamente, com pedra e cal, que a servidão não deixa de ser exercida[23].”

Quanto às frestas e janelas gradadas, quando abertas em desrespeito dos limites legais, a jurisprudência[24] dominante vai atualmente no sentido de que não se lhes pode aplicar o regime que o artigo 1362º prevê para as janelas e demais obras nele mencionadas (relativamente às quais o decurso do tempo necessário à usucapião poderá importar a constituição de uma servidão de vista).

Henrique Mesquita fornece a seguinte justificação para o entendimento por si defendido:

“A cada passo são abertas, em paredes construídas a menos de metro meio da linha divisória, fretas que, sem assumirem a configuração de uma janela, medem mais de 15 cm ou se situam a uma altura inferior à fixada na lei.

E a experiência mostra, também, que os proprietários confinantes têm tendência a não reagir contra estas pequenas violações da lei, quer porque não lhes causam dano apreciável, quer porque uma atitude de intransigência criaria necessariamente um clima de hostilidade nas relações de vizinhança, que o comum das pessoas procura evitar.

Se se generalizasse, porém o entendimento de que a existência de frestas em condições diferentes das fixadas na lei pode conduzir à aquisição, por via possessória, de uma servidão de vistas, com o efeito mencionado, relativamente às janelas e outras obras, no nº2 do artigo 1362º (imposição aos donos dos prédios servientes, de uma zona ou espaço non aedificandi), os proprietários confinantes sentiriam necessidade de reagir imediatamente contra toda a violação do regime legal, por mais insignificante que ela fosse”.

Quanto a estas frestas ou janelas irregulares, ao proprietário vizinho assiste o direito de exigir que sejam modificadas e postas em conformidade com a lei.

Se o vizinho afetado pelas frestas irregulares não reagir contra o abuso cometido, a situação possessória que delas resulta dará origem, logo que decorra o prazo da usucapião, a uma servidão predial[25] (o direito português consagra o princípio da atipicidade do conteúdo das servidões – artigo 1543º CC).

Constituída a servidão, o proprietário vizinho deixa de ter o direito, que antes lhe cabia, de exigir, através de uma ação negatória, que as frestas sejam modificadas e harmonizadas com a lei. E o proprietário que abriu as frestas adquire, por seu turno, o direito, de que não dispunha até então, de manter tais aberturas em condições irregulares.

Mas, como salienta Henrique Mesquita, da constituição desta servidão nenhum outro efeito resulta. “Concretamente, o proprietário vizinho não perde o direito de construir mesmo junto à linha divisória, ainda que tape as frestas, porque a restrição que cria uma zona non aedificandi, não permitindo edificar no espaço de um metro e meio, medido a partir dos limites do prédio, só é estabelecido pela lei em relação à servidão de vistas regulada no artigo 1362º, em cujo campo de aplicação não se incluem as frestas[26]”.

A restrição em causa é baseada na possibilidade de devassamento.

Regressando à análise do caso em apreço, a janela gradada em questão não permite o tal devassamento e a intromissão no espaço aéreo vizinho. Assim sendo, a manutenção da janela com tais caraterísticas pelo prazo da usucapião nunca poderia levar à constituição de uma servidão de vistas[27] – só a manutenção de uma determinada situação que permita o gozo das utilidades correspondentes ao conteúdo de uma servidão de vistas, poderá levar à constituição da mesma por usucapião.

Assim sendo, decorrido o tempo necessário à usucapião, o proprietário vizinho perderá, quando muito, a faculdade de se insurgir contra tal janela gradada, mas não ficará sujeito à obrigatoriedade de respeitar a distância de um metro e meio relativamente a qualquer construção que levante em frente à mesma.

Com efeito, a imposição de manter uma distância de um metro e meio entre o edifício ou construção que venha a ser levantado em frente em frente a “janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, só se encontra prevista pelo nº2 do artigo 1362º como consequência da constituição de uma servidão de vistas.

2. Se o tapamento da “janela” constituiu um abuso de direito.

Confirmando-se o juízo proferido pelo tribunal recorrido no sentido da inexistência de qualquer servidão de vistas a favor do prédio dos autores e de que os Réus não se encontravam sujeitos à restrição prevista no nº2 do art. 1362º, tendo o direito de construir até à estrema, ainda que com tais obras tapassem a janela gradada existente no prédio dos autores, haverá que apreciar agora, se o exercício de tal direito constitui um abuso, como foi entendido na 1ª instancia, entendimento contra o qual se insurgem agora os Réus/Apelantes.

A favor da ocorrência de abuso de direito (na modalidade de “desequilíbrio entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados”) por parte dos réus ao construírem uma parede encostada à janela dos autores, tapando-a em toda a sua largura e altura, impedindo a entrada de ar e luz nessa dependência, alegam os autores os seguintes argumentos:

- aquela dependência, que era utilizada como quarto de dormir, ficou totalmente privada da luz exterior, uma vez que aquela janela era a única abertura para o exterior, não havendo qualquer possibilidade de criar uma abertura alternativa;

- a dependência agora construída pelos réus está a ser utilizada pelos réus, não para habitação, mas para arrumos, sendo que, não tem aptidão para outros fins;

- no terreno dos réus existe espaço suficiente  e com condições para construírem uma arrecadação semelhante em qualquer outro lugar.

Por outro lado, alegam ainda que ambas as casas, da autora e da Ré, foram construídas num terreno rústico pertencente aos pais de ambas, terreno este que foi adjudicado à autora em 2001, pelo que, ao tapar agora uma dessas janelas da cada da autora e ao alegar e tentar demonstrar com a presente ação factos incompatíveis com aquele acordo, estarão os Réus atuar em abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium”.

Respondem os réus, alegando que os autores não demonstraram que não possam abrir uma outra janela numa das paredes nascente ou sul, sendo que, sempre poderão construir uma janela claraboia de vidro fixa ou janela basculante ao nível do telhado; por outro lado, desde que construíram nova casa de habitação, os autores destinam a construção em casa para arrumos; os réus não tinham outro local adequado, visto que a CM impôs um afastamento mínimo de 10 m entre o aludido anexo e caminho público.

Por sua vez, o tribunal recorrido veio a reconhecer a ocorrência de abuso de direito com base na seguinte argumentação, que aqui se reproduz parcialmente:

“A questão que se coloca no caso presente é a de saber se os Réus, ao procederem à edificação da construção melhor descrita no Ponto 18), actuaram com abuso do direito.---

Ora, com relevância para a decisão desta questão, em suma resultou demonstrado que a construção/ anexo edificado pelos Réus foi edificada debaixo do beiral e em frente à abertura existente na parede poente do prédio dos Autores, tapando-a totalmente, impossibilitando assim, desde a data da sua construção, em Janeiro de 2015, a entrada de arejamento e luz natural na casa dos Autores.---

É certo que tal anexo reveste alguma utilidade para os Réus, nomeadamente para efeitos de armazenamento de cereais, bilhas de gás, utensílios domésticos e uma arca congeladora, ficando com mais espaço disponível dentro de sua casa para nela se instalarem, a si e aos seus familiares.---

Todavia, não ficou demonstrado que os Réus só pudessem construir o anexo precisamente naquele local, antes pelo contrário, certamente teriam outro espaço disponível no logradouro de sua casa para ser utilizado como dispensa e que, ao mesmo tempo, respeitasse o parecer técnico de fls. 32.-

Verifica-se, pois, que a conduta dos Réus, consistindo a mesma num exercício de um direito (na medida em que o anexo se encontra implantado na sua propriedade e, como ficou supra explanado, não violou a disposição legal constante no art. 1360.º, n.º 1 do CC, na medida em que não se encontra constituída qualquer servidão de vistas a favor do prédio dos Autores), a mesma é manifestamente susceptível de violar os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito, nomeadamente em termos gritantemente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante, considerando a desproporção entre a vantagem obtida pelos Réus e o sacrifício imposto aos Autores que, tendo sempre beneficiado, desde o momento em que a sua casa foi construída, da entrada de ar, luz natural e arejamento na sua casa, e em especial no quarto onde se situa a abertura, se viram de um momento para o outro privados dessas faculdades que a abertura lhes propiciava, quando é manifesto que nada obstava a que os Réus utilizassem outro espaço do seu logradouro para os mesmos fins, de uma forma que não importaria qualquer sacrifício para terceiros.--

Ainda que assim não se entendesse, a conduta dos Réus sempre poderia ser reconduzida à modalidade de venire contra factum proprium, na medida em que se afigura, salvo melhor opinião, terem os Réus entrado em contradição com comportamento anteriormente assumido, em que não manifestaram qualquer oposição à existência da abertura no prédio dos Autores, por forma a fazer confiar os Autores que os mesmos sempre poderiam beneficiar das faculdades que a mesma propiciava, designadamente entrada de luz e arejamento, para, posteriormente, e ao fim de tantos anos, bloquearem totalmente a referida abertura, privando-os dessas mesmas faculdades.---

Nestes termos, e pelos fundamentos acima elencados, deverá ser julgado procedente o pedido de condenação dos Réus na demolição da construção/ anexo melhor descrito no Ponto 18) que tapa a abertura do lado poente do prédio dos Autores, por se considerar que, no caso concreto, o exercício dos direitos pelos Réus se afere fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante.”

Vaz Serra faz radicar a necessidade de uma teoria sobre o abuso de direito na circunstância de, sendo o direito formulado sob a forma de normas gerais e abstratas, poderem as mesmas dar lugar, na sua concreta aplicação, a soluções violentas e injustas[28].

De harmonia com o disposto no artigo 334º do CC, “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Em primeiro lugar, salientar-se-á que a atuação abusiva terá de revelar um excesso manifesto no seu exercício, expressão que redunda no reconhecimento de um apela à prudência na apreciação e compreensão dos limites ao próprio exercício do direito[29].

Para Manuel de Andrade, haverá abuso de direito quando um certo direito, admitido como válido em tese geral, surge, num determinado caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, entendida segundo o critério social dominante[30]”.

Para que o exercício do direito seja abusivo é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpra observar, em função dos interesses que legitimam a concessão do poder[31].

Para Castanheira Neves, o abuso de direito traduz-se “num comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica – por não contrariar a sua estrutura formal – definidora de um direito, à qual mesmo externamente corresponde – e, no entanto, viole ou não cumpra, no sentido concreto – materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constituiu o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício[32]”.

Poder-se-á, então, dizer que ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante.

Uma das categorias de comportamentos abusivos é constituída pelo desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, dentro do qual se podem considerar três subcategorias: i) o exercício danoso inútil; ii) o dolo agit qui petit quod statim redditurus est; iii) desproporção grave entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem.

Integrará a primeira subespécie o comportamento emulativo, isto é, que, não trazendo ao titular do direito nenhuma vantagem objetiva, se traduz, em concreto, apenas ou sobretudo, numa desvantagem para terceiro[33] (caso do vizinho que pede o tapamento de uma janela que deita diretamente para o seu telhado, uma vez que correspondendo a um direito que lhe assiste, do seu exercício não retira qualquer vantagem[34]).

A segunda subespécie abarca os casos em que se mostre contrario à boa-fé exigir aquilo que de seguida se deva restituir.

Na terceira, atender-se-á àquelas situações em que a desproporcionalidade, uma vez ultrapassados determinados limites, se pode ter por abusiva (ex., exigir uma demolição dispendiosa, a troco de uma pequena vantagem).

A outra categoria de comportamento abusivo aqui referenciada é o “venire contra factum proprium” que, segundo Baptista Machado jurídico[35], depende da verificação dos seguintes pressupostos:

1 – Uma situação objetiva de confiança: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura;

2 – Investimento na confiança: o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos se a confiança legítima vier a ser frustrada;

3 – Boa-fé da contraparte que confiou: a confiança do terceiro ou contraparte só merecerá proteção jurídica quando de boa-fé e tenha agido com cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico.

Como refere Menezes Cordeiro[36], o abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium”, postula duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si mas diferidas no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo – o venire. Só se considera como “venire contra factum proprium” a contradição direta entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento do autor.

Contudo, o venire contra factum proprium só é proibido em circunstâncias especiais – como afirma Paulo Mota Pinto, no plano dogmático não se poderá afirmar um princípio geral de proibição do comportamento contraditório: “fora dos casos em que assumiu compromissos negociais, o indivíduo é livre de mudar de opinião e de conduta[37]”.

Em igual sentido, de inexistência, na Ciência do Direito e nas ordens jurídicas por ele informadas, de uma proibição genérica de contradição, se pronuncia Menezes Cordeiro[38].

O venire aparece assim ligado fundamentalmente à proteção da confiança: um comportamento não pode ser contraditado quando tenha suscitado a confiança dos sujeitos envolvidos.

“A confiança digna de tutela tem de radicar em algo objectivo: numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura[39]”.

Segundo Menezes Cordeiro, são quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:

1. Uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);

2. Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;

3. Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do, factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;

4. Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.[40]

No caso em apreço, o juiz a quo considerou verificar-se uma desproporção entre a vantagem obtida pelos réus com a construção do anexo e o sacrifício imposto aos autores que, tendo sempre beneficiado, desde o momento em que a casa foi construída, da entrada de ar e de luz natural, se viram privados das mesmas, quando é manifesto que nada obstava a que os réus utilizassem outro espaço do seu logradouro para outros fins.

Ora, se não haverá dúvidas que a construção levada a cabo pelos réus junto à sua estrema levou ao tapamento total da janela gradada (janela existente desde a data da construção do edifício dos AA. e que se encontrava gradada desde meados de 90), da matéria dada como provada não consta qualquer facto do qual resulte que os réus dispusessem de qualquer outro local para construir o seu anexo. Ou seja, o juiz a quo socorreu-se de um facto que não consta dos factos dados como provados.

E, para que seja negado aos réus aquilo que, em princípio, constitui um seu direito – o de construírem até à sua estrema –, impunha-se que os autores alegassem e demonstrassem factos dos quais resultasse que o exercício desse seu direito, no caso em apreço redundava num abuso; por ex., que a construção do anexo naquele local correspondeu a um mero capricho dos réus ou que teria sido efetuado com a mera intenção de prejudicar os autores, ou que as utilidades que os réus possam disfrutar da construção por si efetuada sejam manifestamente inferiores ao prejuízo que causam aos autores.

Os réus estão a exercitar o seu direito de construir até à estrema, tal como os autores já o haviam feito anteriormente. E o conflito entre direitos só se coloca porquanto, aquando da construção da sua casa de habitação, pretendendo exercitar o seu direito de construir até à estrema, os autores não quiseram prescindir de abrir janelas nessa parede, a deitar, então, diretamente para o prédio dos réus – em clara contravenção do disposto no artigo 1360º do CC –, janelas que alguns anos depois gradaram.

É certo que não foi dado como provado que, à data da construção do edifício dos autores, os réus tenham então deduzido oposição à abertura de tal janela (alínea h) dos factos dados como não provados), mas também não se mostra dado como provado que os réus a não tenham deduzido – a circunstância de determinado facto ter sido dado como “não provado”, não implica a prova do seu contrário.

O certo é que, em determinada altura, os autores tomaram a iniciativa de nela colocar as grades que ainda hoje nela se encontram implantadas. E o motivo da eventual inércia dos réus relativamente à irregularidade de tal janela, pode ter residido precisamente na circunstancia de terem confiado em que a existência de tal “janela gradada” não cercearia os seus direitos, nomeadamente o de construírem até à estrema; por outro lado, sendo familiares (a autora mulher será irmã da ré mulher), mais se compreende a inação dos réus desde que tal janela os não importunasse.

Quando comparamos a vantagem que os réus retiram da construção que agora efetuaram – construção de uns anexos, por si destinados a arrumações – e a desvantagem para os autores de ficarem sem luz e ar num dos compartimentos do edifício que atualmente serve de complemento à casa de habitação principal – não se nos afigura a existência da alegada desproporção (significativa) entre ambas.

Assim como, não se descortina qualquer comportamento contraditório dos réus; ainda que nunca antes tivessem pedido o fechamento de tal “janela gradada” (o que, como se salienta, não se encontra dado como provado), eles não vieram, só agora, ao fim de vários anos insurgir-se contra tal janela, limitando-se a tapá-la como era seu direito. De qualquer modo, ainda que se tivesse tal comportamento por contraditório, sempre faltaria (desde logo, por não alegado) o investimento na confiança – que movidos pela confiança na inação dos réus tenham orientado a sua vida em conformidade, tenham tomado medidas ou adotado programas de ação com base nessa confiança.

E este exercício não nos surge como excessivo, correspondendo, antes pelo contrário, ao exercício do direito tal como foi pensado pelo legislador que, quis expressamente distinguir a situação das janelas construídas em infração ao disposto no art. 1360º nº1 (que permitem a devassa do prédio vizinho) – e só estas podem levar à constituição de uma servidão de vistas – das demais aberturas (regulares ou irregulares), permitindo ao vizinho “levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro ainda que vede tais aberturas” (artigo 1363º, nº1).

Enquadra-se dentro da ponderação dos interesses em conflito que esteve na base das normas contantes dos artigos 1360º a 1365º CC, não nos parecendo chocar com o espírito que subjaz ao regime contido em tais normas.

A apelação das rés será de proceder, improcedendo as pretensões dos autores por si formuladas em ampliação do objeto do recurso.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação das rés procedente e improcedentes as pretensões formuladas pelos autores, revogando-se a decisão recorrida relativamente ao ponto iii) do dispositivo, julgando, nessa parte, a ação improcedente, absolvendo os réus do pedido relativo à demolição da construção por si efetuada e id. no ponto 18 dos factos provados.

As custas da instância de recurso serão suportadas pelos autores.                          

Coimbra, 11 de outubro de 2017

Maria João Areias ( Relatora )

Alberto Ruço

Vítor Amaral


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. Quando o proprietário constrói uma parede no limite do seu prédio e deixa nela uma abertura, esta abertura só poderá ser qualificada de janela se permitir que um utilizador comum possa apoiar-se ou debruçar-se sobre o seu parapeito, ou sobre superfície que lhe corresponda, e com tal ação possa devassar o prédio vizinho.
2. Uma janela gradada que não respeite as imposições do artigo 1364º, não pode levar, pelo decurso do prazo da usucapião, à constituição de uma servidão de vistas.
3. Ainda que tenham decorrido os prazos da usucapião, o proprietário vizinho não se encontra sujeito à distancia prevista no nº1 do artigo 1360º, podendo levantar obra ou construção no seu prédio até à estrema ainda que tape ou inutilize tal janela.
4. Para que integre um abuso de direito, a desproporção entre as vantagens auferidas pelo titular do direito e os prejuízos causados a terceiro terá ultrapassar os limites contidos na intenção normativa subjacente ao direito invocado.







[1] Uma vez que, relativamente ao objeto do presente recurso, os autores não ficaram vencidos, tendo obtido total vencimento – o recurso subordinado pressupõe que ambas as partes tenham ficado vencidas (artigo 633º CPC), apreciaremos as questões levantadas pelos autores no âmbito de uma ampliação do objeto do processo, respeitante a um dos fundamentos por si invocado (existência de uma servidão de vistas) e que não foi acolhido pelo tribunal, decisão que, apesar disso lhe foi favorável.
[2] Embora em tal ponto se tenha feito constar “1,02 m de comprimento”, deduz-se tratar-se de um lapso, quer porque a referência a “comprimento” não faz aqui qualquer sentido, quer porque tal matéria de facto foi objeto de alegação no artigo 25º da p.i., não tendo nesta parte sido impugnada pelos réus.
[3] Cfr., António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 127.
[4] É o denominado conteúdo negativo imposto pelas relações de vizinhança – José Alberto C. Vieira, “Direitos Reais”, Coimbra Editora 2008, p.339.
[5] José Alberto Gonzalez, “Limitações de Vizinhança, Direito Privado”, Universidade Lusíada 1997, p. 141.
[6] Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, Vol. XII, Coimbra Editora – 1938, p.69 .
[7] Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, Vol. XII, Coimbra Editora – 1938, pp.70-71.
[8] José Alberto Gonzalez, obra citada, p. 142.
[9] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado”, Vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora 1967, pág. 212. Para José Alberto Gonzalez, a razão de ser da imposição deste interstício é, basicamente, a de impedir a indiscrição visual, conseguindo-se obter indiretamente outros resultados, como impedir que quaisquer substancias ou objetos arrojados, intencional ou advertidamente, de um prédio possam atingir o prédio vizinho – obra citada, pp. 142-143. Para Augusto Penha Gonçalves as restrições estabelecidas no artigo 1360º, visam evitar que o prédio vizinho seja utilizado como vazadouro de lixo e de despejos e também, para proteger, na medida do possível, a privacidade das pessoas que nele se encontrem “Curso de Direitos Reais”, 1992, p. 325, nota 493.
[10] Pires de Lima, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 99, p.240.
[11] Henrique Mesquita, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 128 (1996), anotação ao Acórdão do STJ de 03-03-2001, p. 151; Acórdão do STJ de 15-05-2008, relatado por Salvador da Costa, e Acórdão do TRL de 03-03-2015, relatado por Alexandre Reis, disponível in www.dgsi.pt.
[12] Para Cunha Gonçalves, janela era a abertura feita na parede, acima do nível do solo, a fim de dar luz e ar às divisões interiores do edifício, e, ao mesmo tempo, permitir que os respetivos moradores espreitem e até se debrucem para o exterior e, em caso de absoluta necessidade, por aquela abertura saiam ou entrem, embora com o auxílio de escada ou corda; já as frestas, seteiras e óculos, deveriam ser tão pequenos que por eles não passasse, uma cabeça a não ser que tenham grades de ferro que lhes diminuíssem os espaço; tais aberturas seriam só para luz e não para vista exterior, devendo evitar-se que, por meio ardiloso, se aproveitem delas como se fossem janelas – Tratado de Direito Civil, Vol. XII, Coimbra Editora – 1938, pp.73-84.
[13] Local citado, p.151.
[14] Obra e local citados, p. 152.
[15] Entre outros, Acórdão do TRC de 21-05-2013, relatado pelo aqui adjunto Alberto Ruço, Acórdão do TRC de 03-03-2015, relatado por Alexandre Reis, Acórdão TRG de 19-12-2007, relatado por Augusto Carvalho, Acórdão do STJ de 26-02-2004, relatado por Santos Bernardino, disponíveis in www.dgsi.pt.
[16] Cfr., o teor do ponto 21) da matéria de facto:
“Desde a construção do gradeamento de ferro na abertura referida em 11) os Autores ficaram impossibilitados de introduzirem a sua cabeça através dessa grade e de se debruçarem sobre o prédio dos Réus, não podendo fazer despejos ou arremessar objetos para esse prédio, encontrando-se impedidos de se apoiarem sobre o parapeito da referida abertura, não podendo deitar a cabeça de fora sobre esse prédio para olharem em frente, para cima, para baixo ou para os lados, e nem desfrutarem das vistas que aquela poderia proporcionar”.
[17] Obra citada, anotação ao artigo 1363º, p.223.
[18] Neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado”, Vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora 1967, pág. 225, e Acórdão TRG de 06-12-2011, relatado por António Sobrinho, disponível in www.dgsi.pt.
[19] Neste sentido, Henrique Mesquita, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 128 (1996), anotação ao Acórdão do STJ de 03-03-2001, p. 151; na Jurisprudência, cfr., Acórdãos do TRC de 21-05-2013, relatado pelo aqui adjunto Alberto Ruço, e de 03-03-2015, relatado por Alexandre Reis, Acórdão TRP de 22-02-2011, relatado por Cecília Agante, Acórdão do TRG de 19-12-2007, relatado por Augusto Carvalho, Acórdão do TRE de 30-11-2016, relatado por José Tomé de Carvalho, e Acórdão do STJ de 03-04-2003, relatado por Santos Bernardino, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[20] Henrique Mesquita, local citado, p. 153.
[21] Acórdão relatado por Neves Ribeiro, disponível in www.dgsi.pt
[22] Acórdão relatado por Rosa Tching, cujo entendimento é seguido pelo Ac. TRG de 15-12-2016, relatado por António Figueiredo de Almeida, ambos disponíveis in www.dgsi.
[23] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado”, Vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora 1967, pág. 219.
[24] RLJ Ano 128, pp. 150-151.
[25] Não era esta a solução preconizada por Cunha Gonçalves. No seu entendimento, “tratando-se de frestas ou seteiras abusivas, o proprietário vizinho tem o direito de as fazer suprimir, a não ser que o seu autor se sujeite a modificá-las conforme as prescrições legais”, direito que aquele proprietário conserva ainda que tenham decorrido trinta anos, porque a falta de oposição imediata contra o abuso cometido na abertura de frestas ou seteiras constituiu um ato de mera tolerância e não dá lugar a posse e prescrição a favor do autor de tal abuso – obra citada, p. 85. Chama-se a atenção que aquele autor não refere a situação das “janelas gradadas”, uma vez que a sua equiparação às frestas e seteiras só foi introduzida pelo atual Código Civil.
[26] Obra citada, p. 153.
[27] No sentido de que uma janela gradada irregular (que não obedeça às imposições do artigo 1364º), não pode levar à constituição de uma servidão de vistas, se pronunciou, entre outros, o Acórdão do TRC de 18-03-2014, relatado por Maria Domingas Simões, www.dgsi.pt.
[28] Adriano Vaz Serra, “Abuso do Direito (Em matéria de responsabilidade civil), BMJ nº 85, Abril 1959, pp. 253-255.
[29] Tatiana Guerra de Almeida, “Comentário ao Código Civil, Parte Geral”, Coord. Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença, Universidade Católica Editora, Lisboa 2014, p. 786.
[30] Manuel de Andrade, “Teoria Geral das Obrigações”, -------. Em sentido semelhante, se pronuncia o Prof. Vaz Serra, para quem, “de um modo geral há abuso de direito quando um certo direito, legítimo (razoável), em princípio, é exercido em determinado caso de maneira a constituir uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante” – ““Abuso do Direito”, BMJ Ano 85, p. 253.
[31] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 7ª ed., p.536.
[32] “Questão-de-facto – questão de direito ou o problema metodológico da juricidade”, I, Coimbra, 1967, p. 523-524.
[33] Cfr. Coutinho de Abreu, “Do Abuso de Direito”, Almedina 2006, p. 43.
[34] Cfr., Acórdão do STJ de 29-01-2014, relatado por Pinto de Almeida, disponível in www.dgsi.pt.
[35] Cfr., “Tutela da confiança e venire contra factum proprium”, João Batista Machado Obra Dispersa, Vol. I, SCIENCIA IVRIDICA pp. 415 a 418.
[36] “Da Boa Fé no Direito Civil”, Colecção Teses, Almedina 2007, p. 745.
[37] “Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório (Venire Contra Factum Proprium) no Direito Civil”, in Boletim da FDUC, Vol. Comemorativo 2003, pp. 275 e 276.
[38] Cfr., “Da Boa Fé no Direito Civil”, Colecção Teses, Almedina 2007, p.750
[39] João Baptista Machado, “Obra Dispersa”, estudo citado, pag. 416.
[40] Cfr., António Menezes Cordeiro, “Contrato Promessa – art. 410º, nº3, do CC – Abuso de Direito – Inalegabilidade Formal”, in ROA, nº 58, Vol. II, Julho 1998, pag. 964.