Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
405/13.7TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA INÊS MOURA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
INFORMAÇÃO MÉDICA
INFORMAÇÃO DE SAÚDE
PROCESSO CLÍNICO
FICHA CLÍNICA
PROPRIEDADE
Data do Acordão: 10/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 381, 387, 393, 395, CPC, LEI Nº1 12/2005 DE 26/1
Sumário: 1. De acordo com o disposto no artº 5 nº 2 e 3º da Lei 12/2005 de 26 de Janeiro, qualquer registo, informatizado ou não, que contenha informação de saúde sobre doentes ou seus familiares deve integrar o processo clínico do doente; este deve assim conter toda a informação médica disponível que diga respeito ao paciente- seu estado de saúde, evolução, exames realizados, terapêuticas administradas, intervenções realizadas, etc. pelo que não pode deixar de considerar-se que tanto as fichas clínicas elaboradas pelo médico, como as meras anotações pessoais que contenham informação de saúde sobre o paciente, integram o seu processo clínico.

2. Relativamente aos doentes assistidos na Requerente ao abrigo de protocolos ou convenções de saúde com ela firmados, não pode dizer-se que se tratam de doentes a quem o Requerido prestava os cuidados de saúde com total autonomia face à Requerente. Nos casos em que isso acontece, o contrato de prestação de serviços de saúde ao abrigo da convenção é feito com a unidade de saúde e não com o médico individualmente, que nela não é parte.

3. Cada um é proprietário da sua informação médica. Tal não significa, no entanto, que o paciente é titular do direito de propriedade sobre o seu processo clínico, enquanto realidade corpórea, e que, em consequência, dele possa dispor materialmente. Apenas é do paciente a propriedade da “informação de saúde”, sendo as unidades de saúde depositárias de tal informação, tal como decorre do artº 3º nº 1 da Lei 12/2005 de 26 de Janeiro.

4. Para o decretamento da providência, os factos têm de revelar a existência de um perigo iminente ou de um risco que importa remover desde já, e que não se compadece com o decurso do tempo que decorre da acção principal, por da demora poderem resultar danos graves e de difícil reparação para a Requerente.

Decisão Texto Integral: Proc. Nº 405/13.7TBCBR.C1

Apelação

                                                                       *

Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

I (…), S.A. vem intentar procedimento cautelar comum contra J (…) pedindo que o requerido seja compelido a proceder à entrega dos originais de todos os registos clínicos dos pacientes identificados à requerente, nas suas instalações clínicas. Mais requer a fixação de uma sanção pecuniária compulsória no montante mínimo de € 1.000,00 (ou outro que o Tribunal, no seu avisado critério, entenda ajustado) por cada dia em que se verifique o não acatamento da providência.

Alega, em síntese, para fundamentar o seu pedido que o requerido retirou das instalações da requerente, sem o seu conhecimento e contra a sua vontade, os registos clínicos referentes aos processos clínicos melhor identificados no requerimento inicial o que a impede de cumprir as suas obrigações legais e contratuais de informação e manutenção dos registos clínicos supra mencionados.

Foi determinada a citação do Requerido que veio deduzir oposição, pugnando pela improcedência da presente providência. Refere, em síntese, que retirou das instalações da requerente apenas informações, notas ou exames relativamente aos seus doentes por si recebidos, diagnosticados, tratados, operados e seguidos e melhor identificados, não sendo a requerente a legitima detentora de tal informação.

Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas pelas partes, com observância do legal formalismo.

Foi proferida decisão que julgou improcedente o procedimento cautelar intentado, absolvendo o Requerido do pedido contra ele formulado.

É com esta decisão que não se conforma a Requerente e dela vem interpor recurso, pedindo a sua revogação e substituição por outra que decrete a providência requerida, formulando para o efeito as seguintes conclusões:

(…)

O Requerido vem apresentar contra-alegações pedindo a improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões:

(…)

II. Questões a decidir

Tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas suas conclusões (artº 684 nº 3 e 685 A nº 1 do C.P.C.), salvo questões de conhecimento oficioso- artº 660 nº 2 in fine.

- do direito da Requerente a ter na sua posse os elementos clínicos dos pacientes intervencionados nas suas instalações;

- da verificação do requisito do periculum in mora.

III. Fundamentos de Facto

            Os factos que resultam indiciariamente apurados são os que constam da decisão proferida, para a qual se remete, atento o disposto no artº 713 nº 6 do C.P.C., por não terem sido impugnados, nem haver lugar a qualquer alteração, e que são os seguintes: 

1. A requerente é uma sociedade comercial de direito português, constituída sob a -forma de sociedade anónima, que tem por objeto social a prestação de Serviços Médico-Cirúrgicos (facto provado pela certidão permanente - código de acesso 7060-0481-6353).

2. Exerce essa atividade nas valências médicas de Anestesiologia, Angiologia e Cirurgia Vascular, Cardiologia, Cirurgia Geral, Cirurgia Maxilo-Facial, Cirurgia Plástica, Dermatologia, Endocrinologia, Gastrenterologia (endoscopia digestiva), Ginecologia – Obstetrícia, Imunoalergologia, Medicina da Reprodução, Medicina Interna, Neurocirurgia, Neurologia, Obesidade Mórbida / Cirurgia Bariática, Oftalmologia, Ortopedia, Otorrinolaringologia, Pediatria, Pedopsiquiatria, Pneumologia, Psicologia Clínica, Psicologia de Desenvolvimento, Psiquiatria, Terapia da Fala e Urologia (facto provado por acordo).

3. A requerente contratou a prestação de serviços médicos com diversos médicos, consoante as várias especialidades que integram a sua oferta. Nessa conformidade, além de outros profissionais de saúde, prestam serviços nas suas instalações os seguintes médicos:

a) (…) na especialidade de Anestesiologia;

b) (…), na especialidade de Angiologia e Cirurgia Vascular;

c) (…), na especialidade de Cardiologia;

d) (…), na especialidade de Cardiologia Pediátrica;

e) (…) na especialidade de Cirurgia Geral;

f) (…), na especialidade Cirurgia Plástica;

h) (…), na especialidade de Dermatologia;

i) (…), na especialidade de Endocrinologia; j) (…) na especialidade de Gastrenterologia (Endoscopia Digestiva);

j) (…) na especialidade de Gastrenterologia (Endoscopia Digestiva);

k) (…) na especialidade de Ginecologia – Obstetrícia;

l) (…) na especialidade de Imunoalergologia;

m) (…), na especialidade de Medicina da reprodução;

n) (…), na especialidade de Medicina Interna;

o) (…), na especialidade de Neurocirurgia;

p) (…), na especialidade de Neurologia;

q) (…), na especialidade de Nutricionismo;

r) (…) na especialidade de Obesidade Mórbida / Cirurgia Bariática;

s) (…) na especialidade de Oftalmologia;

t) (…), na especialidade de Pediatria;

u) (…) na especialidade de Otorrinolaringologia;

v) (…), na especialidade de Pediatria;

w) (…), na especialidade de Pedopsiquiatria;

x) (…), na especialidade de Pneumologia;

y) (…)( na especialidade de Psicologia Clínica;

z) (…), na especialidade de Psicologia de Desenvolvimento;

aa) (…), na especialidade de Psiquiatria;

bb) (…), na especialidade de Terapia da Fala;

cc) (…)na especialidade de Urologia (factos em parte provados por acordo - com exceção da celebração de contratos e prestação de serviços);

            4. A celebrou contratos de prestação de serviços com os subsistemas de saúde convencionados ADMG – Guarda Nacional Republicana, Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos, Companhia de Seguros Allianz Portugal, S. A., Mondial Assistance Portugal, Serviços de Assistência, Lda., Medicare – Passos Firmes, Lda., Médis – Companhia Portuguesa de Seguros de Saúde, S. A., EPS – Gestão de Sistemas de Saúde, S. A. / MultiCare – Seguros de Saúde, S. A., Portugal Telecom – Associação de Cuidados de Saúde (PT-ACS), RNA – Rede Nacional de Assistência, S. A.), tendo diversos pacientes à dada altura na qualidade de pacientes integrados/beneficiários de um dos referidos subsistemas de saúde dirigindo-se às instalações da requerente para serem consultados/operados pelo requerido.

5. Materialmente até ao dia 16-2-2013 nas instalações médicas da requerente, denominadas K..., sitas na Rua (...)o requerido exerceu profissionalmente as funções próprias de médico oftalmologista.

6. Aí praticou os correspondentes atos médicos, designadamente consultas, exames auxiliares de diagnóstico, intervenções cirúrgicas e os mais diversos tratamentos.

7. Os instrumentos e demais equipamento referidos (designadamente) nos art.º 44º do requerimento inicial e 80º e 81º da oposição, utilizados pelo requerido para o exercício da sua atividade médica eram, alguns, propriedade da requerente na sua totalidade; outros totalmente propriedade das sociedades referidas nos Autos, participadas pelo requerido (indicadas no art.º 80º) e, outros ainda, detidos em 50% pelas sociedades referidas nos Autos e participadas pelo requerido, sendo os restantes 50% propriedade de sociedades participadas pelo presidente do conselho administração da requerente (equipamentos indicados art.º 81º) (assente por acordo)

8. Os pacientes por si observados, tratados e seguidos até à alta médica, individualmente ou com o concurso de outros colegas médicos, possuíam um processo clínico.

9. Os processos clínicos de todos os médicos que prestavam e prestam serviços à requerente encontram-se arquivados em arquivo próprio, situado nas instalações do K..., na supra citada morada.

10. O requerido teve intervenção partilhada com outros elementos da equipa médica, tais como anestesistas, cardiologistas, endocrinologistas e patologia.

11. No dia 17-2-2013, um Domingo, cerca das 21h30, o requerido, fazendo-se acompanhar pela sua mulher (que não é médica) dois filhos e um cunhado, entraram nas instalações do K... (assente por acordo).

12. O que fizeram sem o conhecimento da requerente, não estando os acompanhantes autorizados a entrar nas referidas instalações, desacompanhados pelo requerido.

13. Aí permaneceram até cerca das 22h40 (assente por acordo)

14. Através da porta de saída de emergência do corredor dos consultórios, o requerido, auxiliado por aquelas pessoas, retirou para o interior de cinco viaturas automóveis que aí haviam sido por si estacionadas, vários papéis, capas e caixas (assente por acordo)

15. Na manhã do dia 18-2-2013, a administração da requerente, nas pessoas do Sr. (…) e da Sra. (…), tomou conhecimento do sucedido.

16. Razão por que determinou que fossem feitas averiguações no sentido de verificar o que tinha sido exactamente retirado pelo requerido e seus acompanhantes das suas instalações clínicas.

17. No final dessa semana, a requerente ficou a saber que o requerido tinha levado consigo, entre outras coisas, a documentação diversa sem que conseguisse identificar, porém, todos os pacientes a que respeitavam.

18. A requerente viu-se obrigada a fazer um levantamento dos termos de responsabilidade, dos pedidos de córneas para transplante ao Centro de Histocompatibilidade do Sul, dos pedidos dirigidos ao Banco de Olhos do Serviço de Oftalmologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra, bem como a elementos contabilísticos de ordem vária, designadamente facturas, no sentido de identificar quais os registos clínicos em falta subtraídos pelo requerido e que pertencem aos processos clínicos dos pacientes da requerente.

19. A requerente manteve na sua posse os registos de internamento.

20. Desde 25-2-2013 que o requerido presta serviços, como médico oftalmologista, na W... (facto provado por acordo).

21. O requerido tem em seu poder informações, notas, fichas ou exames, relativamente a doentes por si recebidos, diagnosticados, tratados, operados e seguidos dos seguintes pacientes:

(…)

22. A requerente tinha então como seu Director Clínico, como continua a ter hoje, o Sr. Dr. (…), com a especialidade de cardiologia (assente por acordo)

23. Cabendo-lhe o arquivo e a superintendência nos processos clínicos organizados pela requerente

24. Em 4-3-2013, a requerente foi procurada pelo Sr. (…), que não foi consultado pelo requerido nas instalações da requerente.

25. Por notificação registada enviada no dia 27-2-2013, a 1ª Secção do 1º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa, no âmbito do proc. n.º 1919/08.6TTLSB.1 (Incidente de Revisão – Incapacidade / Pensão), renovou a solicitação para lhe serem enviadas, com urgência, informações clínicas sobre a sinistrada (…) concretamente quanto ao seu estado clínico atual e a eventual contra indicação, por Oftalmologia, do regresso ao seu posto de trabalho, no seguimento de solicitação do perito do INML de Lisboa (assente por acordo)

26. A requerente não pôde aceder a esse pedido, conforme justificou por carta registada que dirigiu aos autos no dia 4-3-2013 (assente por acordo)

27. Nos termos do Protocolo celebrado com o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra em 3-5-2012, que tem por objecto o fornecimento de botões córneoesclerais, está a requerente obrigada a: (i) cumprir todos os aspectos legais aplicáveis e inerentes à actividade desenvolvida; (ii) comunicar todas as reacções adversas e incidentes críticos que ocorram e possam interferir com a qualidade e segurança dos botões córneo-esclerais fornecidos; (iii) permitir a realização de auditorias; (iv) manter o registo das operações realizadas de forma a assegurar a rastreabilidade dos tecidos, como resulta, respectivamente, da Cláusula 2ª, n.º 3, als. a), f), g), h) (assente por acordo).

28. Estando ainda a requerente sujeita a fiscalização do cumprimento de directivas pela Autoridade para os Serviços de Sangue e Transplantação (ASST) e pelos representantes do Banco de Olhos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, E. P. E. (CHUC – EPE) (assente por acordo).

29. O Requerido tinha ainda em seu poder alguma informação referente a doentes abrangidos pelo denominado SIGIC, Sistema Integrado de Gestão de Inscritos Para Cirurgia, criado por Resolução do Conselho de Ministros de Junho de 2004 e que, apesar de recebidos e operados por ele, deixou de os seguir, a que correspondem os documentos números: - 13, 15, 150, 517, 580, 595, 639, 667, 711, 722, 734, 996 e 1081. Informação que enviou em 22/04/2013 à Requerente.

30. Os doentes em causa são e continuam a ser e, pelo menos em grande parte, a ser examinados, tratados, seguidos e operados pelo requerido.

31. O requerido apenas levou consigo as fichas clínicas por si elaboradas e exames complementares de diagnóstico dos seus doentes por si recebidos, observados, estudados e seguidos em conformidade com o seu próprio diagnóstico.

32. Para além desta informação, o Requerido apenas tem em seu poder cópia de documentação referente aos transplantes de córnea por si efetuados, cujos originais foram enviados para o Instituto Português do Sangue e daTransplantação – Área da Transplantação, Banco de Tecidos (CHSul), e para o Banco de Olhos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra E.P.E. (CHUC – EPE) no cumprimento das obrigações legais sobre a matéria e informação de que, por via de regra, ficou uma outra cópia em poder da Requerente.

33. O Requerido exercia a sua atividade profissional através de duas sociedades comerciais, a (…), LDA e a (…), S.A., sociedades que tinham as suas sedes sociais no espaço utilizado pelo Requerido, nas instalações da Requerente, com conhecimento e autorização desta.

34. O cunhado do Requerido, de nome (…)era em Janeiro de 2013 trabalhador da sociedade (…)LDA.

35. O Requerido foi um dos sócios fundadores da Requerente (provado pelo teor do documento de fls. 1430 cópia da publicação da sua constituição efetuada no Diário da República nº 91, III Série)

36. Após a Requerente ter sido transformada em sociedade anónima, o Requerido transmitiu a totalidade da sua participação social detida na Requerente a uma sociedade gestora de participações sociais, cujo capital é totalmente por si detido por si e pela sua mulher, denominada (…)LDA (provado pela certidão permanente do teor da matrícula da sociedade junta a fls. 1431/1432).

37. Desde a abertura das instalações da Requerente, em 04 de Julho de 1999 que o Requerido tinha o seu consultório em tais instalações, onde exercia a sua atividade médica,

38. Num espaço perfeitamente autonomizado das restantes instalações da Requerente, onde, detinha um espaço para consultório e um espaço administrativo exclusivamente utilizados pelo Requerido, pelas suas referidas sociedades comerciais (…) LDA e (…), S.A., e pelas pessoas que para si trabalhavam ou prestavam serviços,

39. Espaço pelo qual nunca o Requerido, ou as suas referidas sociedades, pagaram à Requerente qualquer contraprestação pecuniária pela sua utilização.

40. Acresce ainda que as obras de acabamento do espaço e decoração do consultório do Requerido, apesar de efetuadas nas instalações da Requerente, foram por ele custeadas através das suas duas referidas sociedades.

41. No referido espaço utilizado pelo Requerido, este tinha 3 secretárias clínicas, exclusivamente pagas por si, através das aludidas sociedades.

42. Sendo que eram tais secretárias quem marcavam e desmarcavam as consultas dos doentes do Requerido,

43. Doentes que com elas contatavam diretamente para o efeito.

44. Eram ainda tais secretárias quem igualmente marcava e desmarcava, diretamente com os doentes seguidos pelo Requerido, as datas para a realização de cirurgias.

45. Sendo certo que por decisão e autorização do Requerido, tais secretárias asseguravam o secretariado de um outro médico oftalmologista, cujo consultório se encontrava lado a lado com o do Requerido e que dava para a mesma sala de espera.

46. Para além das referidas secretárias, deslocava-se frequentemente ao referido espaço, a mulher do Requerido, que desde há longos anos superintende a atividade administrativa do Requerido.

47. Nos casos em que tais doentes estavam abrangidos por algum dos subsistemas de saúde referidos pela Requerente, o pagamento pelos tratamentos ou consultas realizadas era feito por tais entidades à requerente, em virtude das convenções celebradas,

48. Convenções que tinham normalmente devidamente individualizadas as quantias destinadas a honorários médicos.  

49. Assim, em regra, a Requerente recebia de tais entidades a totalidade do valor das consultas e das cirurgias,

50. Ficando a Requerente para si com o valor referente aos internamentos, consumíveis, utilização de bloco operatório, cuidados de enfermagem e pessoal auxiliar, e

51. Transferindo depois para o Requerido os honorários deste como médico oftalmologista e a ele devidos por tal intervenção.

52. Não existiu nunca nenhuma contrapartida pecuniária suportada pela Requerente do seu património, referente a honorários médicos do Requerido,

53. Em 13/03/2013, já após a mudança de consultório do Requerido das instalações da Requerente, esta informou o Requerido que, para completar alguns processos referentes a doentes operados pelo Requerido, na área do transplante de córneas, estava em falta alguma documentação que tinha de ser enviada para o Centro de Histocompatibilidade do Sul (assente por acordo)

54. Informação que o Requerido enviou para a referida entidade em 26/03/2013 (assente por acordo)

55. Em 26/03/2013 a Requerente solicitou ao Requerido o envio de outra documentação referente a mais doentes operados pelo Requerido, documentação que o Requerido enviou em 09/04/2013 (assente por acordo)

56. Em 17/04/2013 a Requerente solicitou o envio de mais documentação referente a doentes operados pelo Requerido, também na área do transplante de córneas, informação que o Requerido enviou à Requerente em 21/04/2013 (assente por acordo)

57. O Requerido sempre que fazia transplantes de córnea, enviava, algum tempo depois, para o Instituto Português do Sangue e da Transplantação – Área da Transplantação, Banco de Tecidos, atualmente denominado Centro de Histocompatibilidade do Sul (CHSul), a informação legalmente exigida, ficando ainda, em regra, uma cópia de tal documentação em poder da Requerente,

58. O doente (…), tinha consulta marcada para ser examinado pelo Requerido no dia 04/03/2013.

59. No entanto o doente em causa confundiu a consulta que tinha marcado com o Requerido, com outra consulta, de outra especialidade, noutra entidade, razão pela qual no referido dia 04/03/2013 se deslocou às instalações da Requerente para ser examinado pelo Requerido.

60. Quando aí chegou, uma secretária da Requerente, em lugar de informar o doente do novo local do consultório do Requerido, limitou-se a dizer que este já lá não se encontrava,

61. No entanto, o doente em causa, não queria ser examinado por nenhum outro médico existente nas instalações da Requerente.

62. Tendo a Requerente só mais tarde pouco antes da reclamação informado o doente sobre qual o novo local do consultório do Requerido, ao qual aquele se deslocou, tendo sido examinado no novo consultório do Requerido, nesse mesmo dia,

63. O Requerido deu já cumprimento à notificação do Tribunal de Trabalho, tendo respondido em 15/03/2013.

            IV. Razões de Direito

- do direito da Requerente a ter na sua posse os elementos clínicos dos pacientes intervencionados nas suas instalações.

Os procedimentos cautelares em geral destinam-se a acautelar o efeito útil das acções de que são dependência, visando, designadamente, evitar prejuízos graves através da consumação de uma lesão grave ou dificilmente reparável de um direito em face do decurso de tempo necessário à composição definitiva do litígio, de modo a obter-se a conciliação possível, entre o interesse da celeridade e o da segurança jurídica, o que se infere do disposto no artº 381 nº 1 do C.P.C. Têm assim como objectivo obviar ao periculum in mora.

O procedimento cautelar comum, previsto no artº 381 diz no seu nº 1 que: “Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave ou dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência, conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.”

A restituição provisória de posse vem autonomizada como procedimento cautelar especificado. Estabelece o artº 393 do C.P.C. que: “no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.”

            Por seu turno o artº 395 permite que, mesmo que não tenha havido violência, o possuidor perturbado no exercício do seu direito possa lançar mão, nos termos gerais, do procedimento cautelar comum.

            É ao abrigo desta norma que a Requerente vem intentar a presente procedimento cautelar.

São requisitos para a procedência da providência cautelar de restituição provisória de posse, quando não haja violência, a alegação e prova de factos que constituem a posse (de direito real sobre a coisa em causa na providência), a ofensa dessa posse denominada de esbulho e o receio de lesão grave ou dificilmente reparável do direito.

No que se refere à posse, diz-nos o artº 1251 do C. Civil que a posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, sendo que, nos termos do artº 1252 nº 2 do mesmo diploma, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto sobre a coisa.

Há esbulho sempre que alguém é privado, total ou parcialmente, contra a sua vontade, do exercício de retenção ou fruição do objecto possuído ou da possibilidade de continuar esse exercício.

Importa ainda referir que, para o decretamento da providência, não é necessário um juízo de certeza, sendo bastante um juízo de probabilidade, ainda que séria, quanto à existência do direito, neste caso quanto à existência de uma situação de posse, conforme decorre do disposto no artº 387 nº 1 do C.P.C.

Feitas estas considerações gerais, importa então determinar se a Requerente tem o direito/dever a ter na sua posse os elementos clínicos dos pacientes intervencionados nas suas instalações, o que passa por saber se incumbe à Requerente a obrigação de guardar os registos clínicos elaborados no exercício de uma actividade médica prestada na sua unidade de saúde.

Esta primeira questão que importa avaliar desdobra-se na apreciação de três sub-questões que se colocam em face das conclusões apresentadas pela Recorrente e da decisão proferida pelo tribunal “a quo” e que são as seguintes:

a) Saber se as fichas elaboradas pelo médico assistente, os seus apontamentos e notas pessoais integram ou não o chamado processo clínico do paciente;

b) Saber se pode dizer-se que o Requerido exercia com total autonomia a sua actividade médica nas instalações da Requerente, nomeadamente no que se refere aos pacientes que atende ao abrigo de subsistemas de saúde;

c)  Saber se o paciente tem o direito de propriedade sobre o seu processo clínico, podendo determinar quem fica depositário do mesmo.

Quanto à primeira situação, que se refere a saber se as fichas elaboradas pelo médico assistente, os seus apontamentos e notas pessoais integram ou não o chamado processo clínico do paciente entendeu o tribunal “a quo” que não ficou provado que elementos tem o Requerido em seu poder e que as notas pessoais do médico são sua pertença, não podendo considerar-se incluídas na noção de registos clínicos como parte integrante do processo clínico do doente.

Vejamos se assim é.

Com relevância para esta questão há ter em conta a Lei 12/2005 de 26 de Janeiro, diploma relativo à informação genética pessoal e informação de saúde, que no seu artº 5º dispõe o seguinte:

“1 - Para os efeitos desta lei, a informação médica é a informação de saúde destinada a ser utilizada em prestações de cuidados ou tratamentos de saúde.

2 - Entende-se por «processo clínico» qualquer registo, informatizado ou não, que contenha informação de saúde sobre doentes ou seus familiares.

3 - Cada processo clínico deve conter toda a informação médica disponível que diga respeito à pessoa, ressalvada a restrição imposta pelo artigo seguinte.

4 - A informação médica é inscrita no processo clínico pelo médico que tenha assistido a pessoa ou, sob a supervisão daquele, informatizada por outro profissional igualmente sujeito ao dever de sigilo, no âmbito das competências

específicas de cada profissão e dentro do respeito pelas respectivas normas deontológicas.

5 - O processo clínico só pode ser consultado por médico incumbido da realização de prestações de saúde a favor da pessoa a que respeita ou, sob a supervisão daquele, por outro profissional de saúde obrigado a sigilo e na medida do estritamente necessário à realização das mesmas, sem prejuízo da investigação epidemiológica, clínica ou genética que possa ser feita sobre os mesmos, ressalvando-se o que fica definido no artigo 16.º”

            Por seu turno o Código Deontológico da Ordem dos Médicos também pode dar uma ajuda para a clarificação deste conceito, quando dispõe, no seu artº 100, sob a epígrafe “Processo clínico, ficha clínica e exames complementares” o seguinte:

“1. O médico, seja qual for o enquadramento da sua acção profissional, deve registar cuidadosamente os resultados que considere relevantes das observações clínicas dos doentes a seu cargo, conservando- os ao abrigo de qualquer indiscrição, de acordo com as normas do segredo médico.

2. A ficha clínica é o registo dos dados clínicos do doente e tem como finalidade a memória futura e a comunicação entre os profissionais que tratam ou virão a tratar o doente. Deve, por isso, ser suficientemente clara e detalhada para cumprir a sua finalidade.

3. O médico é o detentor da propriedade intelectual dos registos que elabora, sem prejuízo dos legítimos interesses dos doentes e da instituição à qual eventualmente preste os serviços clínicos a que correspondem tais registos.

4. O doente tem direito a conhecer a informação registada no seu processo clínico, a qual lhe será transmitida, se requerida, pelo próprio médico

assistente ou, no caso de instituição de saúde, por médico designado pelo doente para este efeito.

5. Os exames complementares de diagnóstico e terapêutica deverão ser-lhe facultados quando este os solicite, aceitando-se no entanto que o material a fornecer seja constituído por cópias correspondentes aos elementos constantes do processo clínico.”

Da leitura destas normas decorre que qualquer registo, informatizado ou não, que contenha informação de saúde sobre doentes ou seus familiares deve integrar o processo clínico do doente, que contém toda a informação médica disponível que diga respeito à pessoa- seu estado de saúde, evolução, exames realizados, terapêuticas administradas, intervenções realizadas, etc. Nestes termos, não pode deixar de considerar-se que tanto as fichas clínicas elaboradas pelo médico, como as meras anotações pessoais que contenham informação de saúde sobre o paciente, integram o seu processo clínico - é que, também estas não, deixam de ser registos com informação de saúde sobre o doente.

A sentença recorrida começa aliás por dizer que as fichas clínicas são elementos integrantes do processo clínico, referindo ainda que: “As exigências subjacentes à necessidade da existência de um processo clínico, impõem, em nosso entender de forma inelutável que o mesmo seja único, isto é que apenas existe um só repositório de toda a informação clínica do doente.”

Neste mesmo sentido se pronuncia o Prof. André Dias Pereira, que no seu parecer junto aos autos nos diz a fls. 8: “ A ficha clínica é uma parte do processo clínico, é a parte do processo que foi escrita ou instruída pelo médico na sequência da consulta ou da intervenção cirúrgica.”

Não vê assim qualquer acolhimento legal na conclusão a que chega a sentença recorrida, no sentido de que as anotações pessoais do médico não se integram na noção de registos clínicos como parte integrante do processo clínico do doente. É que, estas anotações pessoais do médico, não podem deixar de conter informações de saúde sobre o doente, sendo que do artº 5º da Lei 12/2005 de 26 de Janeiro antes resulta que qualquer registo que contenha informação de saúde sobre o doente faz parte do seu processo clínico.

Da mesma forma, embora possa dizer-se, como faz a decisão sob recurso que o processo clínico de internamento é diferente do processo clínico do doente, uma vez que pode não haver inteira coincidência entre ambos, tal apenas permite a ilação de que o primeiro faz parte do segundo, já que, como se viu, o processo clínico do doente é único e deve conter toda a sua informação de saúde, desde a ficha clínica elaborada pelo médico, exames complementares realizados, etc. e o processo de internamento, no caso em que tal se verifique.

Em face do exposto, e tendo ficado provado que o Requeridos levou consigo fichas clínicas por si elaboradas e exames complementares de diagnóstico, informações e notas, dos doentes por si recebidos, observados, estudados e seguidos em conformidade com o seu próprio diagnóstico, para além de cópia de documentação referente a transplantes de córnea por si efectuados, cujos originais foram enviados para o Instituto Português do Sangue e Transplantação,  (pontos 21, 31 e 32 da matéria de facto provada) tem de concluir-se que levou consigo pelos menos uma parte dos processos clínicos  dos doentes por si atendidos.

Importa então ponderar se podia ou não fazê-lo.

E a resposta a esta interrogação passa por saber se o Requerido exercia com total autonomia a sua actividade médica nas instalações da Requerente, conforme o mesmo pretende e o conclui a sentença sob recurso.

A relevância desta situação prende-se com a determinação da entidade à guarda de quem que deve estar o processo clínico do doente, na medida em que, de acordo com o disposto no artº 3º nº 1 da Lei 12/2005 de 26 de Janeiro, as unidades do sistema de saúde são os depositários da informação de saúde. Esta norma confere o direito/dever de guarda do processo clínico do doente à unidade de saúde prestadora dos serviços médicos. Daí a importância de saber se quem prestava os serviços médicos era a Requerente ou o Requerido, com autonomia relativamente àquela.

Com interesse para a decisão desta questão ficaram apurados os seguintes factos:

- A Requerente contratou a prestação de serviços médicos com diversos médicos, consoante as várias especialidade que integram a sua oferta (que não o Requerido); (ponto 3)

- A Requerente celebrou contratos de prestação de serviços com diversos sistemas de saúde convencionados ADMG – Guarda Nacional Republicana, Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos, Companhia de Seguros Allianz Portugal, S. A., Mondial Assistance Portugal, Serviços de Assistência, Lda., Medicare – Passos Firmes, Lda., Médis – Companhia Portuguesa de Seguros de Saúde, S. A., EPS – Gestão de Sistemas de Saúde, S. A. / MultiCare – Seguros de Saúde, S. A., Portugal Telecom – Associação de Cuidados de Saúde (PT-ACS), RNA – Rede Nacional de Assistência, S. A.), tendo diversos pacientes a dada altura na qualidade de pacientes integrados/beneficiários de um dos referidos subsistemas de saúde dirigindo-se às instalações da requerente para serem consultados/operados pelo requerido; (ponto 4)

- Materialmente até ao dia 16-2-2013 nas instalações médicas da requerente, denominadas K..., sitas na Rua (...)o requerido exerceu profissionalmente as funções próprias de médico oftalmologista; (ponto 5)

- Aí praticou os correspondentes actos médicos, designadamente consultas, exames auxiliares de diagnóstico, intervenções cirúrgicas e os mais diversos tratamentos; (ponto 6)

- Os instrumentos e demais equipamento referidos (designadamente) nos art.º 44º do requerimento inicial e 80º e 81º da oposição, utilizados pelo requerido para o exercício da sua atividade médica eram, alguns, propriedade da requerente na sua totalidade; outros totalmente propriedade das sociedades referidas nos Autos, participadas pelo requerido (indicadas no art.º 80º) e, outros ainda, detidos em 50% pelas sociedades referidas nos Autos e participadas pelo requerido, sendo os restantes 50% propriedade de sociedades participadas pelo presidente do conselho administração da requerente (equipamentos indicados art.º 81º); (ponto 7)

- O Requerido teve intervenção partilhada com outros elementos da equipa médica, tais como anestesistas, cardiologistas, endocrinoligistas e patologia; (ponto 10)

- O Requerido exercia a sua atividade profissional através de duas sociedades comerciais, a (…) LDA e a (…)S.A., sociedades que tinham as suas sedes sociais no espaço utilizado pelo Requerido, nas instalações da Requerente, com conhecimento e autorização desta; (ponto 33)

- O Requerido foi um dos sócios fundadores da Requerente; (ponto 35)

- Após a Requerente ter sido transformada em sociedade anónima, o Requerido transmitiu a totalidade da sua participação social detida na Requerente a uma sociedade gestora de participações sociais, cujo capital é totalmente por si detido por si e pela sua mulher, denominada (…), LDA; (ponto 36)

- Desde a abertura das instalações da Requerente, em 04 de Julho de 1999 que o Requerido tinha o seu consultório em tais instalações, onde exercia a sua atividade médica; (ponto 37)

- Num espaço perfeitamente autonomizado das restantes instalações da Requerente, onde, detinha um espaço para consultório e um espaço administrativo exclusivamente utilizados pelo Requerido, pelas suas referidas sociedades comerciais (…) LDA e (…) S.A., e pelas pessoas que para si trabalhavam ou prestavam serviços; (ponto 38)

- Espaço pelo qual nunca o Requerido, ou as suas referidas sociedades, pagaram à Requerente qualquer contraprestação pecuniária pela sua utilização; (ponto 39)

- As obras de acabamento do espaço e decoração do consultório do Requerido, apesar de efetuadas nas instalações da Requerente, foram por ele custeadas através das suas duas referidas sociedades; (ponto 40)

- No referido espaço utilizado pelo Requerido, este tinha 3 secretárias clínicas, exclusivamente pagas por si, através das aludidas sociedades; (ponto 41)

- Eram tais secretárias quem marcavam e desmarcavam as consultas dos doentes do Requerido; (ponto 42)

- Doentes que com elas contactavam diretamente para o efeito; (ponto 43)

- Eram ainda tais secretárias quem igualmente marcavam e desmarcavam, diretamente com os doentes seguidos pelo Requerido, as datas para a realização de cirurgias; (ponto 44)

- Sendo certo que por decisão e autorização do Requerido, tais secretárias asseguravam o secretariado de um outro médico oftalmologista, cujo consultório se encontrava lado a lado com o do Requerido e que dava para a mesma sala de espera; (ponto 45)

- Para além das referidas secretárias, deslocava-se frequentemente ao referido espaço, a mulher do Requerido, que desde há longos anos superintende a atividade administrativa do Requerido; (ponto 46)

- Nos casos em que tais doentes estavam abrangidos por algum dos subsistemas de saúde referidos pela Requerente, o pagamento pelos tratamentos ou consultas realizadas era feito por tais entidades à requerente, em virtude das convenções celebradas; (ponto 47)

- Convenções que tinham normalmente devidamente individualizadas as quantias destinadas a honorários médicos; (ponto 48)  

- Assim, em regra, a Requerente recebia de tais entidades a totalidade do valor das consultas e das cirurgias; (ponto 49)

- Ficando a Requerente para si com o valor referente aos internamentos, consumíveis, utilização de bloco operatório, cuidados de enfermagem e pessoal auxiliar, e transferindo depois para o Requerido os honorários deste como médico oftalmologista e a ele devidos por tal intervenção; (ponto 50 e 51)

- Não existiu nunca nenhuma contrapartida pecuniária suportada pela Requerente do seu património, referente a honorários médicos do Requerido; (ponto 52).

Estes factos permitem dizer, fora de dúvida, que o Requerido tinha um estatuto especial na Requerente, diferente desde logo dos restantes médicos com os quais a mesma contratou a prestação de serviços médicos e que como tal também prestam serviços nas suas instalações.

No relacionamento estabelecido entre a Requerente e o Requerido, os factos revelam também que havia uma certa confusão de práticas, nomeadamente no que se refere ao atendimento de doentes ao abrigo dos sistemas de saúde convencionado, ao que não seria alheio o facto do próprio Requerido ter sido sócio fundador da Requerente e quando da transformação desta em sociedade anónima, ter transmitido a totalidade da sua participação social detida na Requerente a uma sociedade gestora de participações sociais, cujo capital é totalmente por si detido por si e pela sua mulher.

A realidade da vida é dinâmica e nem sempre é possível “colocá-la em compartimentos estanques”.

Isto para dizer que, se é verdade que os factos apurados nos permitem dizer, como o faz a sentença sob recurso, que Requerido exercia com plena autonomia a actividade médica nas instalações da Requerente, tal conclusão apenas se torna possível quanto a uma parte dos seus pacientes; não podemos dizer que, relativamente aos doentes convencionados, atendidos pelo Requerido nas instalações da Requerente, em consultas ou intervenções cirúrgicas, a sua actividade se exercia com total autonomia face à Requerente. Ou seja, não era apenas de uma forma que se fazia a actividade do Requerido nas instalações da Requerente. Se relativamente aos doentes particulares pode concluir-se pela prestação de cuidados de saúde prestados directamente pelo Requerido, com total autonomia face à Requerente, essa mesma conclusão não se torna possível relativamente aos doentes convencionados.

Senão vejamos.

Os factos revelam que os protocolos ou convenções de saúde foram outorgados pela Requerente, como prestadora dos cuidados de saúde, com várias entidades (nº 4 dos factos assentes) e que diversos pacientes se dirigiam às instalações da Requerente, na qualidade de pacientes integrados e beneficiários de um dos subsistemas de saúde em causa, para serem consultados/operados pelo Requerido.

Esta circunstância não pode deixar de levar à conclusão que estes pacientes contratam com a Requerente, quando pretendem fazer uso da convenção de que são beneficiários com vista à prestação de cuidados de saúde, na qual a Requerente é parte e o Requerido não. Aliás isso retira-se também da forma como era paga a remuneração do Requerido nestes casos: da quantia entregue à Requerente, esta dava ao Requerido o valor correspondente aos seus honorários. Não são os pacientes que procedem, nestas situações, ao pagamento dos honorários do Requerido, mas a Requerente, após receber os valores que lhe são pagos pelos tratamentos ou consultas realizadas, das diversas entidades com quem os protocolos ou convenções foram por si celebrados e que transfere para o Requerido os seus honorários. O próprio Requerido admite nos artº 96 e 97 da oposição apresentada que no caso dos doentes abrangidos por algum dos subsistemas de saúde o pagamento pelos tratamentos ou consultas realizadas era feito por tais entidades à Requerente, em virtude das convenções celebradas. Tal não pode ser visto como uma mera questão de facturação como refere a sentença recorrida. Só por ficção pode dizer-se que, nestas situações, os pacientes contratam com o Requerido e que a sua actividade era prestada de forma independente e autónoma da Requerente.

Assim, quanto aos doentes que são assistidos quer no âmbito de consultas, quer em intervenção/internamento hospitalar na Requerente, ao abrigo dos protocolos de saúde ou convenções celebrados pelas suas entidades patronais, ou pelas seguradoras com a Requerente (já que o Requerido não é parte em tais protocolos ou convenções) e procedendo estas ao pagamento dos serviços à própria Requerente, não pode deixar de entender-se que é com esta que contratam. Quanto a estes pacientes não pode, a nosso ver, dizer-se que eram doentes do Requerido, no sentido de com ele terem contratado a prestação de serviços médicos que o mesmo exerceu com plena autonomia face à Requerente e que a questão do pagamento se tratava de mera questão de facturação como faz a sentença sob recurso.

A isto não obsta naturalmente, o facto dos doentes escolherem a assistência na clínica em questão para serem seguidas pelo Requerido, atento o seu prestígio profissional. A escolha de um médico assistente pautar-se-á a maioria das vezes por esse critério, mas pode haver outros, ou mais de uma situação a ponderar, como seja, por exemplo, o custo da assistência médica. Na verdade, muitas vezes as pessoas que podem beneficiar de protocolos celebrados pelas suas entidades patronais optarão por efectuar a escolha dos médicos no âmbito de tais protocolos. Não raro é o facto de um mesmo médico fazer atendimento no seu consultório privado e também numa unidade de saúde, como uma clínica que é subscritora de determinada convenção, optando os pacientes por o consultar na clínica, por assim beneficiarem de uma redução de custos da assistência médica, em lugar de o fazerem no primeiro, quando o médico individualmente não é outorgante de tal convenção. Nos casos em que isso acontece, não podemos deixar de entender que o contrato de prestação de serviços de saúde é feito com a unidade de saúde e não com o médico individualmente.

Não pode então deixar de entender-se que, relativamente aos doentes assistidos na Requerente ao abrigo de protocolos ou convenções de saúde com ela firmados, não pode dizer-se que se tratam de doentes “do Requerido” a quem o mesmo prestava os cuidados de saúde com total autonomia face à Requerente.

Podem assim coexistir duas situações: uma que se verificava em relação aos pacientes a quem o Requerido prestava cuidados de saúde com total autonomia, o que parece não oferecer dúvidas, no sentido de que é o mesmo o depositário dos processos clínicos de tais pacientes; outra relativamente aos doentes que procuram a clínica e com ela contratam a prestação de serviços médicos ou cuidados de saúde, ainda que a prestar pelo Requerido, ao abrigo de protocolos ou convenções por ela outorgados, em que é esta a depositária dos processos clínicos dos pacientes que com ela negoceiam.

Importa finalmente considerar uma última questão que se refere a saber se o paciente tem o direito de propriedade sobre o seu processo clínico, podendo determinar quem fica depositário do mesmo, em face das declarações que foram juntas aos autos em que alguns alegados pacientes declaram pretender que a sua ficha clínica, processo clínico e demais informação de saúde fique à guarda do Requerido.

Para este efeito há que ter em conta o disposto no artº 3º da Lei 12/2005 de 26 de Janeiro que, com a epígrafe “Propriedade da informação de saúde” dispõe, nos seus nº 1 e 2:

“1 - A informação de saúde, incluindo os dados clínicos registados, resultados de análises e outros exames subsidiários, intervenções e diagnósticos, é propriedade da pessoa, sendo as unidades do sistema de saúde os depositários da informação, a qual não pode ser utilizada para outros fins que não os da prestação de cuidados e a investigação em saúde e outros estabelecidos pela lei.

2 - O titular da informação de saúde tem o direito de, querendo, tomar conhecimento de todo o processo clínico que lhe diga respeito, salvo circunstâncias excepcionais devidamente justificadas e em que seja inequivocamente demonstrado que isso lhe possa ser prejudicial, ou de o fazer

comunicar a quem seja por si indicado.”

A lei vem assim considerar que cada um é proprietário da sua informação médica. Tal não significa, no entanto, que o paciente é titular do direito de propriedade sobre o seu processo clínico, enquanto realidade corpórea, e que, em consequência, dele possa dispor materialmente. Apenas é do paciente a propriedade da “informação de saúde”, sendo as unidades de saúde depositárias de tal informação, tal como expressa o nº 1 da norma referida.

Claro que assiste ao doente o direito de ter no seu médico de confiança toda a informação relativa à sua situação clínica, daí o paciente em qualquer altura e enquanto proprietário da sua informação médica, poder solicitar a mesma à entidade que é sua depositária.

Sobre esta questão da propriedade da informação médica já se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/03/2008, in. www.dgsi.pt no sentido de considerar serem as pessoas os titulares da informação, sendo as unidades de saúde suas depositárias.

A lei ao determinar a obrigatoriedade da existência de um processo clínico para cada paciente, de que é depositária a unidade de saúde prestadora dos serviços tem em vista não só o interesse particular de cada um dos doentes, mas tem também subjacente questões de interesse público.

A situação não pode pois ser colocada do ponto de vista do conflito de direitos, conforme o fez a decisão sob recurso, ao considerar que o direito de depósito e guarda não pode prevalecer sobre o direito de propriedade do utente. Os dois não são antagónicos. Este é o direito à propriedade da informação de saúde e não à detenção do processo clínico, como se viu, e a conciliação dos dois direito é compatível e não contraditória.

Nesta medida, já se vê que cada um dos pacientes pode dispor da sua informação médica, salvos nos casos excepcionais previstos no artº 3º nº 2 da Lei 12/2005 de 26 de Janeiro, mas já não do seu processo clínico enquanto tal, sendo por isso irrelevante a declaração feita por alguns dos pacientes do Requerido no sentido de pretenderem que o mesmo fique depositário do seu processo clínico.

Por tudo o que fica exposto, considera-se que é a Requerente quem tem o direito/dever de ter à sua guarda o processo clínico dos pacientes que na mesma foram assistidos ao abrigo de convenções de saúde com ela celebradas, sendo certo que são apenas esses que a Requerente vem peticionar no âmbito da presente providência.

- da verificação do requisito do periculum in mora.

Se quanto à existência do direito o legislador se basta com a exigência de um juízo de probabilidade séria, já quanto ao requisito da lesão grave e dificilmente reparável, torna-se necessário um juízo de certeza sobre o perigo.

Tal como nos diz Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/03/2007, in. www.dgsi.pt : “O periculum in mora, requisito primordial das chamadas providências cautelares não especificadas que tem de ser alegado e provado, em termos de convencer o tribunal de que a demora de uma decisão - a obter através da acção competente - acarreta um prejuízo a que se pretende obviar com o procedimento cautelar. Na verdade, não é toda e qualquer consequência, que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva, que justifica o decretamento de uma medida provisória, com reflexos imediatos na esfera jurídica da contraparte. Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade de permitir ao Tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão.”

O receio de lesão grave e de difícil reparação supõe que o titular do direito se encontre perante uma ameaça. Pretendendo acautelar-se um prejuízo, se este já se produziu, a providência carece de razão de ser. Diz-nos, no entanto, o Prof. Alberto dos Reis, in. Código de Processo Civil anotado, 3ª ed. pág. 684 que é necessário não exagerar no alcance desta doutrina que tem de ser entendida em termos razoáveis. É que pode haver um dano já consumado, mas haver outros danos previsíveis e iminentes. A lesão cometida pode determinar o justo receio de lesões futuras. Refere este Prof. que: “Quando isto suceda, o titular do direito pode invocar a lesão efectuada como fundamento do justo receio de outras lesões idênticas e pedir, consequentemente, a providência adequada para evitar que essas lesões se produzam.”

A Requerente invoca a este respeito a salvaguarda da informação e o interesse legítimo que tem em cumprir os deveres de prestação de informação, bem como a defender-se de demandas judiciais que tenham por objecto a discussão de responsabilidade médica.

Os factos que resultaram apurados permitem-nos dizer, no entanto, que a Requerente nunca teve obstáculos em obter tais informações. Pelo contrário, ficou apurado que em circunstâncias em que a Requerente solicitou ao Requerido que lhe facultasse informações necessárias relativas aos pacientes, as mesmas foram fornecidas pelo mesmo. Não há qualquer ameaça actual que imponha o recurso a um procedimento cautelar.

Dos factos apurados não resulta que haja um perigo iminente que importa remover desde já, e que não se compadece com o decurso da acção principal, ou que do decurso do tempo podem resultar danos graves e de difícil reparação para a Requerente.

É que a lei não se contenta com o mero perigo de lesão do direito, antes exige, por um lado, que tal lesão seja grave e, por outro lado, que seja dificilmente reparável. Se estiver em causa uma pequena lesão ou uma lesão facilmente reparável, a sua tutela não se situa no âmbito dos procedimentos cautelares.

Verifica-se assim, em face do que fica exposto, a falta de um dos requisitos que permite o decretamento da providência. É que, os factos apurados não permitem ao tribunal concluir que estamos perante o perigo de uma lesão grave e dificilmente reparável do direito da Requerente, conforme é exigência legal para o decretamento da providência.

Nesta medida, ainda que por diferentes fundamentos, mantêm-se a decisão recorrida.

V. Sumário

1. De acordo com o disposto no artº 5 nº 2 e 3º da Lei 12/2005 de 26 de Janeiro, qualquer registo, informatizado ou não, que contenha informação de saúde sobre doentes ou seus familiares deve integrar o processo clínico do doente; este deve assim conter toda a informação médica disponível que diga respeito ao paciente- seu estado de saúde, evolução, exames realizados, terapêuticas administradas, intervenções realizadas, etc. pelo que não pode deixar de considerar-se que tanto as fichas clínicas elaboradas pelo médico, como as meras anotações pessoais que contenham informação de saúde sobre o paciente, integram o seu processo clínico.

2. Relativamente aos doentes assistidos na Requerente ao abrigo de protocolos ou convenções de saúde com ela firmados, não pode dizer-se que se tratam de doentes a quem o Requerido prestava os cuidados de saúde com total autonomia face à Requerente. Nos casos em que isso acontece, o contrato de prestação de serviços de saúde ao abrigo da convenção é feito com a unidade de saúde e não com o médico individualmente, que nela não é parte.

3. Cada um é proprietário da sua informação médica. Tal não significa, no entanto, que o paciente é titular do direito de propriedade sobre o seu processo clínico, enquanto realidade corpórea, e que, em consequência, dele possa dispor materialmente. Apenas é do paciente a propriedade da “informação de saúde”, sendo as unidades de saúde depositárias de tal informação, tal como decorre do artº 3º nº 1 da Lei 12/2005 de 26 de Janeiro.

4. Para o decretamento da providência, os factos têm de revelar a existência de um perigo iminente ou de um risco que importa remover desde já, e que não se compadece com o decurso do tempo que decorre da acção principal, por da demora poderem resultar danos graves e de difícil reparação para a Requerente.

VI. Decisão:

Em face do exposto, ainda que por diferentes fundamentos, julga-se improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Notifique.

                                                            *

                                               Coimbra, 15 de Outubro de 2013

                                               Maria Inês Moura (relatora)

                                               Luís Cravo (1º adjunto)

                                               Maria José Guerra (2º adjunto)