Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2752/19.5T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO MOREIRA DO CARMO
Descritores: SENTENÇA
NULIDADE
EXCESSO DE PRONÚNCIA
INSOLVÊNCIA
ANULAÇÃO DA VENDA
TRANSACÇÃO
RENÚNCIA A MEIO PROCESSUAL
Data do Acordão: 02/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 615.º, N.º 1, ALÍNEA D), 838.º, N.º 1, ALÍNEA D) AMBOS DO CPC, ARTIGOS 217.º, N.º 1, E 1248.º, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - Não existe nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, se o tribunal, embora divergindo do autor no tocante à qualificação jurídica dos factos, se socorre dos que foram alegados na petição para decidir.

II – A entidade encarregada pelo administrador da insolvência de promover a venda não carece de ser demandada no incidente de anulação da venda nem tem que intervir na transacção efectuada em tal incidente entre o comprador e o administrador.

III - Tendo o administrador e o comprador acordado em dar a venda sem efeito, a entidade encarregada de proceder à venda está obrigada a restituir ao comprador as quantias que dele recebeu a título de remuneração, fixadas no regulamento/condições de venda.

IV – A circunstância de o comprador não ter demandado, no incidente de anulação da venda, a entidade que o administrador encarregou de a promover não revela com toda a probabilidade que aquele renunciou ao direito de pedir a restituição das quantias entregues a tal entidade a título de remuneração.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

1. E..., S.A., com sede no ..., intentou acção declarativa contra A..., LDA, com sede na ..., e L..., S. A., com sede em ..., pedindo a condenação das rés, solidariamente, a restituir-lhe a quantia de 258.300 €, acrescida dos juros de mora, calculados à taxa legal civil, vencidos até à data da propositura da acção, no valor de 20.522,47 €, e vincendos até efetivo integral pagamento.

Alegou, em síntese, responsabilidade civil contratual resultante da falta de cumprimento de um contrato de transação celebrado na sequência de uma venda judicial, levada a cabo em processo de insolvência, ou, subsidiariamente, efectivação de enriquecimento sem causa.

As RR contestaram conjuntamente, alegando, em suma, não ter existido nenhum contrato de transação com elas celebrado e que foi a autora que acabou por desistir da compra judicial realizada no indicado processo de insolvência, existindo da sua parte abuso de direito (na modalidade de venire contra factum proprium).

A autora respondeu, mantendo a sua posição.

*

A final foi proferida sentença que julgou a acção totalmente procedente e, em consequência, condenou solidariamente as RR a restituir à A. a quantia de 258.300 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde 19.1.2018 até integral pagamento.

*

2. As RR recorreram, tendo formulado as seguintes conclusões:

I) Resulta do despacho saneador de fls. que o presente litígio tem como objecto a “efectivação de responsabilidade civil contratual resultante da falta de cumprimento do contrato de transação ou, subsidiariamente, efectivação de enriquecimento sem causa, consubstanciado no pedido de condenação das Rés, solidariamente, a restituir à Autora a quantia de € 258.300,00 (duzentos e cinquenta e oito mil e trezentos euros), acrescida dos juros de mora calculados à taxa legal civil supletiva, vencidos até à data da propositura da presente ação, no valor de € 20.552,47 (vinte mil quinhentos e cinquenta e dois euros e quarenta e sete cêntimos), e vincendos, até efetivo e integral pagamento”;

II) In casu, a Autora fez assentar o seu pedido principal de condenação solidária das Rés no pagamento das sobreditas quantias, no inadimplemento por parte destas últimas de um acordo verbal que teria sido celebrado na sequência da instauração do mencionado incidente de anulação de adjudicação e a latere do acordo escrito (transacção judicial) outorgado pela Autora e pela Massa Insolvente;

III) Face à relação material controvertida configurada pela Autora na sua petição inicial, afigura-se inequívoco que esta invocou, como causa de pedir, a existência de dois contratos de transacção: (1) contrato celebrado por escrito com a Massa Insolvente no âmbito do incidente de anulação de adjudicação, nos termos do qual esta última se obrigou a restituir à Autora a importância de € 1.000.000,00 (um milhão de euros), tendo o mesmo sido cumprido; (2) contrato celebrado verbalmente com as Rés na sequência da instauração do incidente de anulação de adjudicação, nos termos do qual estas se teriam comprometido a restituir à Autora o montante de € 258.300,00 (duzentos e cinquenta e oito mil e trezentos euros), o que não fizeram.

IV) Foi precisamente tal contrato verbal que foi contraditado e impugnado pelas Rés em sede de contestação, e que o Tribunal a quo veio a dar como não provado;

V) Estribando-se na factualidade vertida no ponto 60 dos Factos Provados, o Tribunal a quo considerou ser “irrelevante não ter ficado provada a existência de acordo verbal expresso no sentido de as Rés se comprometerem a restituir a quantia relativa à comissão, uma vez que tal obrigação é consequência das obrigações resultantes das Condições de Venda estipuladas pelas próprias Rés (…)”.

VI) Perante o naufrágio da relação material controvertida invocada pela Autora, que apontava para a existência do acordo/contrato verbal que, a final, veio a ser dado como não provado, o Tribunal a quo acabou por condenar as Rés no pagamento à Autora das quantias por esta peticionadas, mas com fundamento numa outra relação material controvertida conexa que também se terá estabelecido entre Autora e Rés, por força do Regulamento/Condições Gerais da Venda a que se faz menção no ponto 60 dos Factos provados e na fundamentação vertida nas pág. 17 e 18 da Sentença recorrida;

VII)Tal decisão não só se traduz numa “decisão surpresa”, como configura uma clara e ostensiva violação dos princípios do dispositivo e do contraditório, consagrados, respectivamente, nos artigos 5º e 3º do C.P.C.

VIII) O Tribunal a quo incorreu in casu em excesso de pronúncia, porquanto exorbitou da causa de pedir invocada pela Autora nos termos explanados supra, pelo que está a Sentença sob censura ferida da nulidade prevista na 2ª parte da alínea d) do artigo 615º do C.P.C.

IX) A Autora deduziu junto do competente processo de insolvência, incidente de anulação de adjudicação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 838º do C.P.C. ex vi artigo 17º do C.I.R.E., o que fez apenas contra a Massa Insolvente;

X) A Autora deveria ter deduzido aquele incidente processual também contra as Rés, cuja legitimidade lhes advém da sua qualidade de auxiliares do Administrador de Insolvência na realização das operações de liquidação dos bens da Massa Insolvente, o que não aconteceu.

XI) Acresce que, em ordem a vincular as Rés à obrigação de restituição da quantia por elas percebida a título de comissão, deveria a Autora ter promovido a intervenção daquelas na transacção que veio a celebrar com a Massa Insolvente, o que, igualmente, não se verificou.

XII) Com efeito, nos termos do preceituado no artigo 1248º do Código Civil, «a par dos sujeitos processuais, é de admitir a intervenção de terceiros na transação, mesmo sem formalização processual incidental, desde que tenham interesse direto na resolução global do litígio; a transação também pode envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito ou direitos controvertidos, sem recurso às normas que condicionam a alteração do pedido. Ponto é que exista uma conexão objetiva ou subjetiva que justifique a ampliação dos efeitos que se obtêm através da homologação judicial da transação»;

XIII) Ao contrário do entendimento sufragado pelo Tribunal recorrido, importa concluir que in casu a Autora prescindiu de impulsionar os meios processuais próprios e adequados a tornar efectiva a eventual responsabilidade civil das Rés;

XIV) A renúncia é um acto jurídico unilateral, de carácter abdicativo, o qual implica, em regra, a perda e extinção de uma vantagem, interesse pessoal ou direito do renunciante, cujos efeitos típicos esgotam-se na esfera jurídica do renunciante, não exigindo, para a sua perfeição, qualquer comunicação a terceiros, designadamente, ao seu beneficiário ou destinatário.

XV) No caso sub specie, a Autora e a Massa Insolvente transigiram, em sede de Incidente de Anulação de Adjudicação, nos exactos termos que vieram a ser dados como provados.

XVI) Salvo o devido respeito por melhor opinião e contrariamente ao entendimento plasmado na decisão sob censura, a conjugação do explanado supra nas conclusões X) e XI) com a circunstância de, em sede de transacção, a Autora ter reduzido o pedido para a quantia de € 1.000.000,00 (um milhão de euros), configura uma renúncia tácita ao direito de exigir das Rés a restituição da importância de € 258.300,00 (duzentos e cinquenta e oito mil e trezentos euros);

XVI A Sentença recorrida violou, designadamente, o disposto nos artigos 3º e 5º do C.P.C., 20º, nºs.1, 4 e 5 da Constituição, e 217º, nº 1, 220º, 1248º e 1250º, todos do Código Civil.

Nestes termos, nos mais de direito aplicáveis e nos que doutamente vierem a ser supridos por V. Exas., deve conceder-se provimento ao presente recurso nos termos alegados supra, com as legais consequências.

Assim fazendo V. Exas. a costumada JUSTIÇA!!!

3. A A. contra-alegou, concluindo que:

(i) deverá ser negado provimento ao recurso das RÉS, com a consequente manutenção da Sentença a quo, e, caso assim não se entenda,

(ii) deverá ser a sentença substituída por outra que condene as RÉS, a restituir a quantia de € 258.300,00 à AUTORA, com fundamento em enriquecimento sem causa, acrescida dos juros de mora vencidos calculados à taxa supletiva desde a data da segunda adjudicação até efetivo e integral pagamento.

II -  Factos Provados

   *Factos da Petição Inicial e Resposta

1. No âmbito do processo n.º 735/14...., que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Comércio ... – Juiz ..., foi declarada a insolvência da sociedade comercial F..., Lda. (cfr. doc. n.º 1)

2. Foi nomeado como Administrador da Insolvência o Senhor Dr. AA (cit. doc. n.º 1).

3. Foram apreendidos diversos bens a favor da Massa Insolvente, relevando, para efeitos dos presentes autos, (i) o prédio misto sito em ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ..., da freguesia ... [Ao qual, no processo de adjudicação, foi atribuída a verba n.º 59] e (ii) o prédio misto sito em ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ..., da freguesia ... [Ao qual, no processo de adjudicação, foi atribuída a verba n.º 60] – cfr. doc. n.º 2.

4. Foi determinada a venda dos referidos bens imóveis mediante proposta em carta fechada.

5. A “AV...” foi a entidade encarregada do processo de promoção e venda dos imóveis apreendidos.

6. A expressão «AV...» é uma marca nacional registada no INPI sob o nº ...66 e titulada pela Ré L..., S. A.

7. As Rés têm, respetivamente, como Gerente e Administrador único o Senhor BB (cfr. certidão permanente do registo comercial das Rés – docs. n.º 3 e 4).

8. A 1.ª Ré era anteriormente designada por AV..., C..., LDA.

9. Tendo mudado a sua designação para A..., LDA. em 20 de fevereiro de 2014 (cfr. ap. ...20 do cit. DOC. N.º 3).

10. A 1.ª Ré é detida em 97,99% pela 2.ª Ré, L..., S. A.

11. Sendo que os restantes 2,01% do capital social da 1.ª RÉ são detidos pelo referido Senhor BB (tudo conforme doc. n.º 3).

12. A 2.ª RÉ era anteriormente designada por L..., SGPS, S.A.,

13. Tendo também mudado a sua designação em fevereiro de 2015 para L..., S. A., e, simultaneamente, deixado de ser uma SGPS, passando a ter um objeto social semelhante à 1.ª RÉ – cfr. ap. ...25 do cit. doc. n.º 4.

14. Em fevereiro de 2014 a 1.ª RÉ alterou a sua sede social para a mesma sede da 2.ª RÉ, ou seja, para a Travessa..., ... (cfr. a Ap. ...21 do cit. doc. n.º 3).

15. Tendo as RÉS mantido a mesma sede social até 2017, data em que a 1.ª RÉ a voltou a alterar.

16. A “AV...” foi fundada «em 1998, [contando] já com 20 anos de experiência na sua atividade, sendo hoje reconhecidamente como uma das mais importantes empresas do setor»,

17. Estando a respetiva sede situada na Travessa..., ... – Apto 2926, ... ..., sede da sociedade 2.ª RÉ, L... (tudo conforme print do sítio da internet junto como doc. n.º 5).

18. A “AV...” assumiu a qualidade de entidade encarregada do processo de promoção e venda dos imóveis apreendidos para a massa insolvente (cfr. doc. n.º 6).

19. Assim, a 1.ª RÉ, elaborou e publicou o respetivo regulamento/condições de venda, junto como doc. n.º 6.

20. Nos termos do ponto 3.1, alínea c), desse documento, o adjudicatário seria responsável pelo pagamento à “AV...” de 3% do valor da venda, acrescido de IVA, à taxa legal em vigor, para imóveis cujos valores se situassem entre € 1.000.001,00 (um milhão e um euros) e € 5.000.000,00 (cinco milhões de euros) – cfr. doc. n.º 6.

21. Este montante, de acordo com o referido regulamento/condições de venda, destinar-se-ia a remunerar a “AV...” pelos «[s]erviços prestados na promoção e venda […]» (p. 1 do cit. doc. n.º 6).

22. Após a realização de vários procedimentos para venda, em 21 de Novembro de 2014, a Autora apresentou proposta de compra, tendo-lhe sido adjudicada a venda, por € 4.500.000,00 (quatro milhões e quinhentos mil euros), da verba n.º 59, correspondente ao

prédio misto sito em ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ..., da freguesia ..., anunciada com a área de 22.491,80 m2, conforme consta da ficha de imóvel e condições de venda anunciadas.

23. A Autora apresentou também proposta de compra, tendo-lhe sido igualmente adjudicada a venda, por € 2.500.000,00 (dois milhões e quinhentos mil euros), da verba n.º 60, correspondente ao prédio misto sito em ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ..., da freguesia ..., anunciada com a área de 14.401,20 m2, tudo conforme consta da ficha de imóvel e condições de venda anunciadas (doc. n.º 6) [art. 24.º PI].

24. Mediante carta datada de 29 de dezembro de 2014, enviada pela 1.ª RÉ à AUTORA, aquela escreveu o seguinte:

«Vimos pela presente informar que os imóveis lhe foram adjudicados. Assim, e para dar cumprimento às devidas formalidades processuais, solicitamos que seja efectuado o respectivo pagamento, no prazo de 8 dias corridos, a saber:

- 10% do valor global da adjudicação dos imóveis: 700.000,00 (setecentos mil euros) pago por cheque à ordem da Massa Insolvente de F..., Lda. ou a transferir para a conta da massa Insolvente do B... com o NIB […].

- 3% + IVA, de serviços prestados pela AV....: 258.300,00 € (duzentos mil euros) pago por cheque à ordem de AV..., Lda. ou a transferir para a conta da AV... do BIC com o NIB ...34» (DOC. N.º 7) – sublinhados nosso.

25. Assim, por conta do ponto 3.1, alínea c), do Regulamento/condições de venda, e na sequência da missiva referida no parágrafo anterior, a AUTORA entregou às RÉS, a quantia global no valor de € 258.300,00 (duzentos e cinquenta e oito mil e trezentos euros).

26. O pagamento em causa foi realizado em 6 tranches:

27. As duas primeiras transferências, no montante global de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), foram enviadas feitas para a conta com o NIB indicado na carta junta como doc. n.º 7 e que corresponde a uma conta bancária da titularidade da 1.ª RÉ – doc. n.º 8.

28. E a 05 de março de 2015 foi enviado um e-mail pela “AV...” – DOC. N.º 9 – com indicação de que o valor remanescente deveria ser enviado para o NIB ...53 que corresponde a uma conta bancária da titularidade da 2.ª RÉ.

29. Assim, as restantes transferências, no montante global de € 108.300,00 (cento e oito mil e trezentos euros), foram feitas para a supra referida conta bancária – doc. n.º 10.

30. Ambas as RÉS foram remuneradas pelo serviço de promoção e venda, atuando sob a designação comercial/marca “AV...”.

31. O prédio com a verba 59 foi anunciado com a área registada na Conservatória ... e o prédio com a verba n.º 60 foi anunciado com a área registada na Conservatória do Registo Predial de 14.401,2m2 (com a área total de 36.893 m2) – cfr. documento n.º 2 da P.I.

32. Também o respetivo registo predial confirma a informação de áreas constante do anúncio, conforme admitiu o Senhor Administrador da Insolvência, mediante carta datada de 19 de abril de 2017 – cfr. doc. n.º 11 da P.I.

33. Ao promover atos preparatórios de projeto de licenciamento para o local, a AUTORA apercebeu-se de que a área real das parcelas do terreno correspondente às verbas 59 e 60 era inferior cerca de 25% às áreas publicitadas pela “AV...” no processo de venda e constantes do registo predial.

34. Desconformidades que haviam já sido admitidas pelo Senhor Administrador da Insolvência aos autos de insolvência, em 20 de abril de 2015, mediante requerimento subordinado ao tema “Estado da Liquidação”, no qual aquele expôs o seguinte:

«[…] 4. Relativamente às verbas remanescentes, isto é, verbas números 59 e 60 (terrenos para construção), as mesmas já foram adjudicadas e sinalizadas, porém subsistem duas questões que impedem a outorga (imediata) das respetivas escrituras: [...] Quanto às verbas 59 e 60, e face às divergências das áreas registadas, foi deliberado (em sede de comissão de credores) avançar para a reclamação administrativa (respectivamente, processo n.º 0108/03/0549 e processo n.º 0029/03/0254) estando neste momento os respectivos processos suspensos “por falta de demarcação” dos terrenos; face a esta circunstância já foram solicitados orçamentos para levantamento topográfico das áreas das mencionadas verbas e os mesmos estão em apreciação em sede de Comissão de Credores; logo que a Comissão de Credores se pronuncie, será adjudicado o trabalho tendo em vista a regularização das áreas e proceder subsequentemente aos correspondentes registos».

35. A Autora manifestou junto do Senhor Administrador da Insolvência que considerava a proposta e adjudicação anteriormente realizadas ineficazes, em consequência da divergência entre as áreas anunciadas e as áreas reais (carta datada de 24 de abril de 2017, junta como doc. n.º 12 da P.I.).

36. No dia 26 de abril de 2017 o Administrador da Insolvência volta a escrever à Autora, rejeitando os fundamentos por esta apresentados e informando que iria agendar nova

data para a celebração de escritura de compra e venda – cfr. doc. n.º 1 junto com a Resposta.

37. E mediante carta datada de 2 de maio de 2017, o Administrador da Insolvência voltou a contactar a Autora agendando, mais uma vez, unilateralmente, a celebração da escritura pública de compra e venda – cfr. doc. n.º 2 junto com a Resposta.

38. A Autora respondeu mediante cartas datadas de 10 e 22 de maio de 2017, reiterando o teor da sua comunicação anterior e interpelando o Administrador da Insolvência para restituir as quantias prestadas à Massa Insolvente – cfr. docs. n.º 3 e 4 juntos com a Resposta.

39. Nesta sequência, a 4 de julho de 2017, a Autora deduziu, junto do aludido processo de insolvência, incidente de anulação da adjudicação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 838.º do Código de Processo Civil, ex vi artigo 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (cópia do requerimento inicial – doc. n.º 13),

40. Apenas contra a Massa Insolvente.

41. Na sequência de transação apresentada no âmbito de processo de anulação da venda a adjudicação à Autora das referidas verbas 59 e 60 ficou sem efeito.

42. E foi promovido e realizado novo procedimento de adjudicação relativo às referidas verbas n.º 59 e 60.

43. E os imóveis anunciados sob as verbas n.ºs 59 e 60 foram entretanto adjudicados à sociedade S..., S. A., (“S..., S. A.”) com o NIPC ..., e sede na Avenida..., ... ... – cfr. doc. n.º 15.

44. Em 8 de setembro de 2017, o prédio correspondente à verba n.º 59 foi adjudicado à referida sociedade S..., S. A. pelo preço de € 4.650.000,00 (quatro milhões e seiscentos e cinquenta euros).

45. E o prédio correspondente à verba n.º 60 foi, nessa mesma data, adjudicado àquela mesma sociedade pelo preço de € 2.650.000,00 (dois milhões e seiscentos e cinquenta euros).

46. Em 2 de novembro de 2017, entre a sociedade F... e a sociedade V..., LDA. (“V..., LDA”) (sociedade do grupo S..., S. A.) foi celebrado, mediante escritura pública, contrato de compra e venda dos imóveis correspondentes às sobreditas verbas n.ºs 59 e 60 (doc. n.º 16).

47. Entretanto, a AUTORA e a Massa Insolvente da F..., Lda. transigiram no âmbito do incidente de anulação da adjudicação por requerimento apresentado a 22 de dezembro de 2017 (doc. n.º 17).

48. Em consequência, a Massa Insolvente da F..., Lda. restituiu à AUTORA a quantia que esta havia entregue a título de sinal – € 1.000.000,00 (um milhão de euros).

49. O gerente e administrador único das Rés não restituiu a quantia entregue pela AUTORA a título de remuneração, isto é, € 258.300,00 (duzentos e cinquenta e oito mil e trezentos euros).

50. Nos termos do respetivo regulamento/condições de venda, e de modo similar à anterior adjudicação, caberia à sociedade S..., S. A., na qualidade de adjudicatária, pagar o montante correspondente a 3% do valor da venda, acrescido de IVA, o qual se destinava a remunerar os serviços de promoção e venda da “AV...” (Regulamento/condições de venda, junto como doc. n.º 13).

51. O que sucedeu, uma vez que a sociedade V..., LDA, do grupo S..., S. A., pagou à 2.ª RÉ a quantia global de € 267.180,00 (duzentos e sessenta e sete mil cento e oitenta euros), a qual inclui IVA à taxa de 23% - cfr. faturas que se juntam como doc. n.º 18.

52. Os referidos montantes entregues destinavam-se a remunerar a “AV...”, isto é, as Rés, pelos serviços prestados com a promoção e venda dos imóveis.

53. Os imóveis em questão foram adjudicados à sociedade S..., S. A., no âmbito de uma segunda adjudicação, e a 8 de setembro de 2017.

54. Tendo o respetivo contrato de compra e venda sido celebrado em 2 de novembro de 2017 entre a sociedade F... e a referida sociedade V..., LDA, do grupo S..., S. A..

55. E tendo esta sociedade remunerado a “AV...”, por intermédio da L..., nos termos contratualmente acordados, mediante o pagamento de € 267.180,00 (duzentos e sessenta e sete mil cento e oitenta euros).

56. Sendo que a Massa Insolvente transigiu e devolveu à AUTORA a quantia que lhe havia sido entregue a título de sinal, nos termos do ponto 3.1, alínea c), desse documento, compete ao adjudicatário pagar à “AV...” 3% do valor da venda, acrescido de IVA, à taxa legal em vigor, para imóveis cujos valores se situassem entre € 1.000.001,00 (um milhão e um euros) e € 5.000.000,00 (cinco milhões de euros) (Regulamento/condições de venda, que se juntou como doc. n.º 6).

57. Ou seja, nos termos das condições de venda, o adjudicatário acorda em remunerar a “AV...” pelos serviços prestados na promoção e venda dos bens imóveis, sendo certo que parte da remuneração foi paga à 1.ª RÉ e parte à 2.ª RÉ.

58. Os imóveis em questão foram adjudicados à sociedade S..., S. A., no âmbito de uma segunda adjudicação, e a 8 de setembro de 2017 e adquiridos pela sociedade V..., LDA.

59. E esta sociedade remunerou a “AV...”, por intermédio da L..., nos termos contratualmente acordados, mediante o pagamento de €267.180,00 (duzentos e sessenta e sete mil cento e oitenta euros).

60. Nos termos do Regulamento/condições de venda da primeira adjudicação consta o seguinte: «[s]e, por motivos alheios à vontade da AV..., a venda for considerada sem efeito, por quem de direito, as quantias recebidas serão devolvidas em singelo, não havendo prejuízo da Massa Insolvente em qualquer circunstância» (p. 1 do cit. Doc. n.º 6).

61. Foi já após a celebração da transação com a Massa Insolvente no âmbito do incidente de anulação, a 19 de janeiro de 2018, que o Senhor CC enviou um e-mail ao Senhor DD com cópia da sentença de homologação da transação solicitando a transferência dos montantes prestados à AV... – cfr. doc. n.º 5 junto com a Resposta.

62. Tendo obtido a resposta constante do e-mail enviado a 21 de janeiro de 2018 junto aos autos pelas Rés como doc. n.º 7 da Contestação.

63. As Rés não restituíram qualquer quantia à Autora.

 *Factos da contestação

64. As Rés dedicam-se, para além do mais, à promoção, organização e realização de operações de aluguer e venda de bens móveis e imóveis, nomeadamente, através de leilões – cfr. certidões permanentes juntas com a P.I. sob Docs. nºs. 3 e 4.

65. Ambas as sociedades desenvolvem a sua actividade comercial sob a marca «AV...», marca nacional registada no INPI sob o nº ...66 e titulada pela Ré L..., S. A. – cfr. Doc. 1.

66. Após ter sido nomeado Administrador da Insolvência (A.I.) no âmbito do Processo nº 735/14.... que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Comércio ... – Juiz ..., em que foi declarada a insolvência da sociedade F..., Lda., o Sr. Dr. EE recorreu aos

serviços das aqui rés para estas o coadjuvarem nas operações de liquidação/venda dos activos que integravam a respectiva massa insolvente, designadamente, os dois bens imóveis melhor identificados nos artigos 23º e 24º da petição inicial.

67. Na sequência das determinações e instruções que lhes foram dirigidas pelo A.I., as Rés passaram a desenvolver diversas acções e diligências com vista à promoção, organização e realização da venda dos activos da massa insolvente através da apresentação de propostas em carta fechada.

68. Nos termos do estabelecido no ponto 3 do «Regulamento/Condições de Venda» – documento este que foi previamente aprovado pelo A.I., comunicado a todos os potenciais interessados/proponentes e por estes aceites -, os serviços de promoção e realização da venda prestados pelas rés deveriam ser pagos com a adjudicação dos bens pelos respectivos adjudicatários, através de cheque emitido à ordem de AV... e cujo montante seria determinado à luz do consignado na alínea c) do ponto 3.1. do «Regulamento/Condições de Venda» – vide Doc. nº 6 junto com a p.i. e cujo teor aqui se dá inteiramente reproduzido.

69. Foram obtidas as propostas que se encontram enumeradas no respectivo «Auto de Abertura de Propostas» datado de 30 de Setembro de 2014 – Doc. 2.

70. Naquele acto de venda a autora apresentou duas propostas, a saber:

- Uma proposta de aquisição, pelo preço de € 3.750.000,00, do imóvel descrito sob a verba nº 59 e melhor identificado no artigo 23º da p.i.;

- Uma proposta de aquisição, pelo preço de € 2.400.000,00, do imóvel descrito sob a verba nº 60 e melhor identificado no artigo 24º da p.i. – Doc. 2.

71. Em resultado da descrita actividade das demandadas, vieram a ser obtidas as propostas que se encontram enumeradas no «Auto de Venda por Negociação Particular» datado de 21 de Novembro de 2014 – Doc. 3.

72. Nessa ocasião, a autora voltou a apresentar duas propostas:

- Uma proposta de aquisição, pelo preço de € 4.500.000,00, do imóvel descrito sob a verba nº 59 e melhor identificado no artigo 23º da p.i.;

- Uma proposta de aquisição, pelo preço de € 2.500.000,00, do imóvel descrito sob a verba nº 60 e melhor identificado no artigo 24º da p.i. - Doc. 3.

73. Tais propostas foram aceites pelo A.I. e pela comissão de credores, tendo os preditos imóveis sido adjudicados à autora, Adjudicação essa que lhe foi comunicada pelas rés, mediante carta registada com AR datada de 29 de Dezembro de 2014 –Doc. nº 7 junto com a P.I.

74. Por força do previsto no ponto 3.1., alínea c) do «Regulamento/Condições de Venda», condições essas que a autora aceitou integralmente e sem reservas, ficou esta obrigada a pagar às rés a importância global de € 258.300,00, com IVA incluído à taxa em vigor, a título de retribuição pelos serviços de promoção, divulgação e realização da venda acima descritos.

75. Tal pagamento veio a ser realizado pela autora nos termos que se encontram explicitados nos artigos 27º, 28º, 29º e 30º da P.I.

76. A demandante obrigou-se ainda a entregar à Massa Insolvente a quantia de €700.000,00, a título de sinal/caução e princípio de pagamento, devendo o remanescente, no montante de €6.300.000,00, ser liquidado aquando da realização da escritura de compra e venda, como tudo decorre do estabelecido no ponto 3.1., alíneas a) e b) do «Regulamento/Condições de Venda».

77. De harmonia com o que foi livremente ajustado entre as partes, “os imóveis são vendidos no estado físico e jurídico em que se encontram, livres de ónus ou encargos (...)” - cfr. ponto 2.1. do «Regulamente/Condições de Venda»;

78. “Presume-se que os interessados inspeccionaram os bens e conhecem as suas características, declinando-se qualquer responsabilidade pelo seu estado de conservação ou funcionamento, assim como qualquer descrição incorrecta da informação constante do folheto e que possa induzir em erro.” - cfr. ponto 2.2. do «Regulamento/Condições de Venda»;

79. “À Massa Insolvente ou à AV... não poderão ser assacadas quaisquer responsabilidades por descrições incorrectas no folheto que possam induzir em erro, assim como alterações que, relativamente à situação jurídica dos prédios ou a licenciamentos, possam ocorrer futuramente e que venham a ser prejudicados por lei ou acto administrativo” - cfr. ponto 2.3. do «Regulamento/Condições de Venda».

80. Apesar de devidamente notificada da marcação da escritura de compra e venda para o dia 27 de Abril de 2017, pelas 15:30 horas, no Cartório Notarial a cargo da Drª. FF, no ..., a autora não compareceu naquele acto, tendo dirigido ao A.I. a comunicação junta com a p.i. sob Doc. nº 12, dando-se aqui por integralmente reproduzido o respectivo conteúdo.

81. Em 4 de Julho de 2017, veio a autora, por apenso ao processo de insolvência a que se aludiu supra, deduzir “Incidente de Anulação de Adjudicação” contra a Massa Insolvente de F..., Lda. - Doc. 4.

82. No requerimento inicial do sobredito incidente a Autora formulou aí os seguintes pedidos contra a Massa Insolvente:

a. Ser a Requerida condenada no pagamento de uma indemnização à Requerente no valor de €302.486,00, acrescida dos juros de mora que se vencerem, desde a data da citação, até efectivo e integral pagamento;

b. Ser a Requerida condenada a restituir à Requerente a quantia que lhe foi entregue a título de caução (€1.000.000,00), acrescida dos juros de mora que se vencerem na pendência da acção até efectivo e integral pagamento.

83. O pedido deduzido em “a.” incluía a quantia de €258.300,00 que a Autora havia pago às Rés na sequência da adjudicação dos imóveis, nos termos do previsto no ponto 3.1., alínea c) do «Regulamento/Condições de Venda» - artigos 29, 30 e 48 do Doc. 4.

84. O A.I. e a Comissão de Credores decidiram realizar uma nova operação de venda dos imóveis em causa.

85. Para o efeito, o A.I. deu instruções às rés para para estas promoverem a venda, mediante a apresentação de propostas em carta fechada.

86. Em resultado do trabalho desenvolvido pelas Rés, foram obtidas as propostas constantes do «Auto de Abertura de Propostas» datado de 8 de Setembro de 2017 – vide Doc. 5 que se junta e cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido.

87. A autora participou em mais este acto de venda, no qual, para além das propostas por ela apresentadas, foram obtidas as seguintes ofertas por parte da sociedade S..., S. A.:

- Uma proposta de aquisição, pelo preço de € 4.650.000,00, do imóvel descrito sob a verba nº 59 e melhor identificado no artigo 23º da p.i.;

- Uma proposta de aquisição, pelo preço de € 2.650.000,00, do imóvel descrito sob a verba nº 60 e melhor identificado no artigo 24º da p.i. - Doc. 5.

88. Os imóveis vieram a ser adjudicados à S..., S. A., em razão dos valores oferecidos por esta entidade terem superado em muito os propostos pela autora,

89. Tendo a competente escritura de compra e venda sido outorgada em 2 de Novembro de 2017 – Doc. nº 16 junto com a p.i..

90. Em cumprimento do estabelecido no ponto 3.1., alínea c), do «Regulamento/Condições de Venda», a compradora V..., LDA., sociedade que integra o grupo «S..., S. A.», pagou à ré L..., S. A. a importância global de € 267.180,00 – Doc. nº 18 junto com a p.i..

91. Em 22 de Dezembro de 2017, a autora e a Massa Insolvente de F... – SM..., LDA. subscreveram e apresentaram nos autos do

Incidente de Anulação de Adjudicação acima mencionados, a transacção junta sob Doc. 6.

92. Transacção essa que veio a ser objecto de homologação por sentença datada de 9 de Janeiro de 2018 – Doc. nº 17 junto com a P.I.

93. Mais declararam as partes intervenientes naquele acto processual que:

«4. Com o cumprimento integral dos presentes termos do presente acordo, Requerente e Requerida declaram nada mais ter a receber uma da outra por referência à presente acção ou aos factos aludidos na mesma ou a qualquer outro título;».

94. A autora veio posteriormente a solicitar às rés a restituição daquela quantia (€ 258.300,00), tendo as demandadas respondido nos exactos termos vertidos no e-mail datado de 23 de Janeiro de 2018 junto como doc. 7.

95. Todos os pagamentos recebidos pelas rés, a título de remuneração pelos serviços prestados, foram por elas devidamente facturados e quitados – cfr. docs. nºs. 8, 9, 10 e 18 juntos com a P.I.

*

Factos Não Provados

- Que entre a AUTORA, representada pelo Senhor CC, a Massa Insolvente – representada pelo Senhor Administrador da Insolvência, Dr. EE, – e as RÉS, representadas pelo Senhor DD, como Diretor Geral da “AV...” – foi verbalmente acordado o seguinte:

a. Seria lançada nova adjudicação sobre os referidos bens imóveis

b. O novo adjudicatário pagaria o preço devido à “AV...” pela adjudicação; caso os imóveis não fossem adjudicados à AUTORA, a “AV...” restituiria tudo quanto houvesse sido prestado por aquela aquando da primeira adjudicação, devendo o custo do serviço ser prestado pelo efetivo adjudicatário;

c. Uma vez concretizada a nova adjudicação, a Massa Insolvente restituiria também a quantia entregue pela AUTORA a título de sinal [art. 41.º PI e tema de prova].

*

III -  Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Decisão surpresa.

- Sentença nula, por excesso de pronúncia.

- Obrigação de restituição da quantia de 258.300 €, de remuneração das RR, em consequência de a venda ter ficado sem efeito, no âmbito de processo de insolvência, em resultado de obrigação prevista no Regulamento/Condições de Venda.

- Renúncia ao meio processual adequado.

- Renúncia às quantias peticionadas na acção.

- Subsidiariamente verificação dos pressupostos relativos ao enriquecimento sem causa.

2. Alegam as recorrentes que a causa de pedir invocada pela A. era um acordo verbal que teria sido celebrado entre ela e as RR, na sequência da instauração do mencionado incidente de anulação de adjudicação e a latere do acordo escrito (transacção judicial) outorgado pela A. e pela Massa Insolvente. Perante o naufrágio dessa relação material controvertida invocada pela A., e que não se provou, o tribunal a quo condenou as RR, mas com fundamento noutra relação material conexa, por força do Regulamento/Condições Gerais da Venda, mencionado nos factos provados, tendo violado o art. 3º do NCPC, por as recorrentes não terem tido direito ao contraditório, sendo a decisão recorrida uma “decisão surpresa” (cfr. I) a VII) das conclusões de recurso).

A ser verdade que o tribunal violou o art. 3º, nº 3, do NCPC, desrespeitando o contraditório, por as RR não terem sido previamente ouvidas, então o tribunal a quo teria praticado uma nulidade processual, a prevista no art. 195º, nº 1, do mesmo código, com essa omissão de audição (vide Lebre de Freitas, CPC Anotado, Vol. I, 2ª Ed., nota 8. ao anterior artigo 3º do CPC = ao actual art. 3º do NCPC, pág. 9).

Se eventualmente existir a apontada nulidade processual, então a mesma não pode ser arguida em via de recurso. Ora, de acordo com o conhecido aforismo “das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se”, pelo que as recorrentes deviam ter arguido a respectiva nulidade perante o juiz da causa, como resulta dos arts. 197º, nº 1, e 199º, nº 1, do indicado código, o que não fizeram. E não interpor recurso.

Não procede, pois, esta parte do recurso.

De qualquer maneira sempre diremos que inexistiu violação do contraditório ou “decisão surpresa”. Efectivamente, a factualidade que está na base da decisão tomada foi alegada nos articulados pela A. e foi sujeita ao contraditório das RR., pois a A. alegou (e provou) que a “AV...” assumiu a qualidade de entidade encarregada do processo de promoção e venda dos imóveis apreendidos para a massa insolvente, tendo a 1.ª R. elaborado e publicado o respetivo regulamento/condições de venda (junto com a p.i. como doc. nº 6.). Que o adjudicatário teria de remunerar os serviços dessa entidade encarregue da venda, o que a A. satisfez. Que a A.  deduziu, junto do aludido processo de insolvência, incidente de anulação da adjudicação. Que a adjudicação à A. acabou por ficar sem efeito. Que nos termos do dito regulamento/condições de venda consta que: “se, por motivos alheios à vontade da AV..., a venda for considerada sem efeito, por quem de direito, as quantias recebidas serão devolvidas em singelo, não havendo prejuízo da Massa Insolvente em qualquer circunstância”. Esta factualidade foi alegada nos artigos 19.º a 24.º, 26.º, 38.º, 39.º, 42.º, 43.º e 91.º a 98.º da p.i. sobretudo neste último, resultando, ainda, do aludido doc. nº 6. As RR tiveram, pois, oportunidade de se pronunciar na contestação sobre esses factos e sobre esse documento, e vieram mesmo a pronunciar-se. A A., voltou a salientar a factualidade em causa nos pontos 27. a 30. da sua resposta, especialmente no ponto 28. Esta matéria voltou novamente a ser abordada nas alegações escritas, de facto e de direito, prévias à emissão de sentença, apresentadas pela A., em concreto nos pontos 46. a 59., sobretudo nos pontos 56. e 58. Alegações pré-sentença que as RR também produziram. E quanto ao direito enquadrou essa factualidade no capítulo do enriquecimento sem causa, recorrendo a essa previsão específica do regulamento/condições de venda (cláusula 5.2.), além de invocar a aplicação directa do artigo 473º, nº 2, do CCivil.

Ou seja, resumindo e concluindo, os factos que constituem fundamento da decisão da sentença sub judice foram alegados pela A., e o direito também, e as RR. tiveram oportunidade de exercer o seu direito ao contraditório e de produzir prova, bem como quanto ao direito aplicável e aplicado.

De sorte que as RR tinham perfeitamente consciência do que estava em jogo, a nível factual e jurídico, pelo que é manifesto que “decisão surpresa”, para as RR, inexiste. Falindo, pois, tal argumentação das RR.

3. Alegam as apelantes, também, que a sentença é nula, por excesso de pronúncia, pois a causa de pedir invocada pela A. era um acordo verbal que teria sido celebrado entre ela e as RR, na sequência da instauração do mencionado incidente de anulação de adjudicação e a latere do acordo escrito (transacção judicial) outorgado pela A. e pela Massa Insolvente e perante o naufrágio dessa relação material controvertida invocada pela A., e que não se provou, o tribunal a quo condenou as RR, mas com fundamento noutra relação material conexa, por força do Regulamento/Condições Gerais da Venda, mencionado nos factos provados (cfr. I) a VIII) das conclusões de recurso). Não é assim.

A sentença será nula, por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, d), 2ª parte, do NCPC, conectado com o disposto no art. 608º, nº 2, 2ª parte, do mesmo código, se conhecer de causas de pedir não invocadas (ou excepções não invocadas), salvo se a lei o permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (vide autor cit., em A Ação Declarativa Comum, À Luz do CPC de 2013, 3ª Ed., págs. 334/335).

No nosso caso isso não aconteceu. A causa de pedir e respectivo acervo factual em que o tribunal a quo se baseou para decidir foi na realidade invocada pela A., como no ponto anterior constatámos. O que aconteceu foi o seguinte: com a matéria factual alegada e que veio a lograr provar a A. inseriu-a no capítulo do direito que que dedicou ao enriquecimento sem causa; nesse mesmo capítulo também tinha inserido a aplicação directa do artigo 473º, nº 2, do CCivil para reclamar a quantia que reclamou.

O que fez o tribunal a quo foi convocar a obrigação nascida da previsão estatuída no indicado Regulamento/Condições da Venda e interpretá-la e aplicá-la. Daí que tenha exarado logo de seguida que a questão do enriquecimento sem causa, por aplicação directa do normativo legal previsto no art. 473º, nº 2, do CC, ficava prejudicada quanto ao seu conhecimento, em face da resposta afirmativa à aplicação directa da identificada cláusula 5.2. do dito Regulamento/Condições de Venda.

Ou seja, o tribunal interpretou e aplicou o direito da maneira que teve por adequada aos factos concretos, independente da alegação da A. que seria enriquecimento sem causa, o que podia fazer, nos termos do art. 5º, nº 3, do NCPC. Isto é, o tribunal a quo não conheceu de outra causa de pedir diferente da invocada, apenas aplicou o direito em enquadramento diferente do que visionara a A.

Inexiste, pois, a apontada nulidade.

4. No respeitante à obrigação de restituição da quantia de 258.300 €, de remuneração das RR, em consequência de a venda ter ficado sem efeito, no âmbito de processo de insolvência, em resultado de obrigação prevista no Regulamento/Condições de Venda, exarou-se na sentença recorrida que:

“Em primeiro lugar, para melhor análise da questão colocada, importa referir que nos movemos no âmbito da venda levada a efeito pela Massa Insolvente no âmbito de Processo Judicial de Insolvência pendente em Tribunal do Comércio, por intermédio de entidade externa.

A este propósito, a venda da massa insolvente levada a efeito em estabelecimento de leilões no âmbito de uma insolvência, não é uma venda extrajudicial, mas judicial e por isso, «as pessoas encarregadas da mesma» não estão sujeitas, no que respeita à sua remuneração, ao disposto no referido art 17º RCP, mas às condições por elas estabelecidas – e que terão sido aceites – para a venda em causa (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/11/2014, relatado por Teresa Albuquerque, proc. n.º 2503/12.5 TBPDL-O-L1-2, www.dgsi.pt).

Deste modo, tenho o Administrador de Insolvência atribuído a entidade externa, às Rés, a actividade de venda dos bens apreendidos para a Massa Insolvente, compete a esta entidade externa estabelecer as condições da venda, entre as quais consta qual a comissão a que tem direito, sempre de acordo com as Condições Gerais de Venda ou Regulamento que a própria entidade externa estipula e que o potencial ou concreto comprador interessado se vincula às mesmas quando apresenta alguma proposta – note-se que não só o proponente como a própria entidade externa que fixou tais condições naturalmente está sujeita às mesmas.

A maioria da jurisprudência entende ser admissível que o Administrador da Insolvência, a Massa Insolvente e seus Credores podem acordar com uma leiloeira a promoção da venda de imóvel pertencente à massa insolvente e a cobrança por esta última de uma comissão, de montante previamente definido, sobre o preço da venda, diretamente ao interessado licitante.

Assim, o adjudicatário do bem imóvel, ao apresentar proposta, aceita e assume a obrigação de pagar à leiloeira uma comissão, nos termos publicitados aquando do leilão, constituindo o pagamento dessa comissão condição de venda do bem imóvel.

Nesse sentido, por todos, pode ser consultado o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/11/2019 (relatado por Isabel Fonseca, proc. n.º 1870/13.8 TYLSB-Q.L1-1, www.dgsi.pt), onde se sumariou o seguinte:

«1. As despesas ocasionadas pela intervenção da leiloeira na venda de imóveis apreendidos devem ser pagas pela entidade contratante, isto é, pelo administrador de insolvência, em representação da massa, constituindo uma despesa ou encargo associado à liquidação, sendo uma dívida da massa insolvente que, à semelhança de outras – por exemplo, as custas do processo e as despesas de administração, em que se inclui a remuneração do administrador –, é paga à cabeça, antes do pagamento dos credores, nos moldes que resultam do art. 172º, nºs 1 e 2 do CIRE.

2. Sem prejuízo do quadro legal assim fixado no CIRE, o certo é que, inúmeras vezes, se verifica que os vários intervenientes – nomeadamente o administrador de insolvência e a comissão de credores, com o assentimento da leiloeira –, se abstraem desse regime e, colocando-se à margem do mesmo, consolidam prática diferente, a saber, fazem recair diretamente sobre o interessado licitante o encargo de pagamento da comissão da leiloeira, cujo valor é previamente definido, antes da adjudicação, constituindo, aliás, “condição” da adjudicação ao interessado comprador e sendo a venda publicitada nesses termos.

3. O comportamento negocial assim assumido – entre o administrador de insolvência, a leiloeira e o adjudicatário do bem, não se discutindo que tenha havido o assentimento da comissão de credores – não ofende regime imperativo, sendo que manifestamente não é violador dos interesses dos credores da insolvência.».

Nesta sequência, no caso em apreço, o Administrador da Insolvência, a massa insolvente, e a comissão de credores da F... acordaram em designar como leiloeira a “AV...”, que a comissão seria de 4%, 3% ou 2% sobre o valor de venda dos imóveis, consoante a grandeza do preço fixado, e que o valor da comissão deveria recair sobre o adjudicatário dos bens, como resulta expressamente no ponto 3.1., al. c), do Regulamento/Condições de Venda por propostas de carta fechada de setembro de 2014.

Ou seja, com a apresentação das suas propostas de venda a Autora aceitou as referidas condições de venda, em especial a obrigação de pagamento à “AV...” de 3% do valor da venda dos imóveis, como condição da concretização da respetiva venda.

No caso concreto em apreciação, tal como consta dos factos provados, é incontroverso que a Autora e o Administrador de Insolvência, no âmbito do processo de Insolvência, por transação celebrada no âmbito do incidente de anulação da venda, a venda à Autora ficou sem efeito e ficou ainda acordado que seria devolvida à Autora a quantia de €1.000.000,00 que esta tinha adiantado.

É ainda incontroverso que resulta das condições da venda estabelecidas pela própria “AV...” que se, por motivos alheios à vontade da AV..., a venda for considerada sem efeito, por quem de direito, as quantias recebidas serão devolvidas em singelo, não havendo prejuízo da Massa Insolvente em qualquer circunstância (cláusula 5.2).

Efectivamente, no caso concreto a venda ficou sem efeito por quem de direito, devendo interpretar-se que “quem de direito” não poderá deixar de ser quem tem poderes para praticar tal facto, ou seja, o Administrador de Insolvência e a Massa Insolvente, aliás, através de transação apresentada em processo e homologada no Tribunal do Comércio no âmbito do processo de insolvência.

Além disso, os motivos são alheios à “AV...” na medida em que não foi esta a causadora dos motivos que conduziram a ser dada sem efeito a venda em causa.

Deste modo, é irrelevante não ter ficado provada a existência de acordo verbal expresso no sentido das Rés se comprometerem a restituir a quantia relativa à comissão, uma vez que tal obrigação é consequência das obrigações resultantes das Condições de Venda estipuladas pelas próprias Rés, ou seja, uma vez dada sem efeito a venda em causa por quem de direito, as Rés estão obrigadas a restituir à Autora a quantia de €258.300,00 que receberam desta …”.

A posição das RR/recorrentes sobre este discurso jurídico, tirando a invocação da sentença ser uma “decisão surpresa” e ser nula, por excesso de pronúncia, já analisadas nos anteriores pontos 2. e 3., é …nenhuma. Nada vem questionado a nível do direito aplicado (veja-se as I) a VIII) conclusões de recurso).

Ora, a fundamentação jurídica do tribunal a quo está correcta, nenhuma censura havendo a fazer, pelo que urge chancelá-la.

Assim, não procede esta parte do recurso.  

5. Relativamente à renúncia ao meio processual adequado, deixou-se dito na sentença recorrida que:  

“As Rés entendem que ao ter deduzido o aludido incidente processual nos termos em que o fez, entendeu a Autora responsabilizar apenas a Massa Insolvente pela eventual restituição/indemnização de todas as quantias por si despendidas na sequência da adjudicação que lhe foi feita em Novembro de 2014 e que a Autora abdicou, de forma intencional ou pelo menos negligente, de recorrer ao meio processual próprio e adequado para tornar efectiva a eventual responsabilidade civil das Rés.

Como melhor analisado supra no ponto 1, considerando que o Administrador de Insolvência e a Massa Insolvente decidiram cometer à “AV...” a realização das operações de venda, bem como, permitindo a esta cobrar directamente ao proponente a comissão devida pela venda, não poderia a Autora exigir das Rés a restituição da comissão sem que primeiro ver anulada a venda por quem de direto, como aliás, consta da cláusula 5.2 das Condições de Venda fixadas pelas próprias Rés.

Além disso, as ora Rés não teriam legitimidade processual para figurar como partes no aludido incidente de anulação da venda.

Deste modo, não ocorreu qualquer “renúncia ao meio processual adequado”.

As RR dissentem, dado que a A. ao deduzir junto do processo de insolvência, incidente de anulação de adjudicação (nos termos e para os efeitos do disposto no art. 838º do NCPC, ex vi artigo 17º do C.I.R.E.) apenas contra a Massa Insolvente, o que deveria ter feito também contra as RR, e, também, em ordem a vincular as RR à obrigação de restituição da quantia por elas percebida a título de comissão, deveria a A. ter promovido a intervenção das mesmas na transacção que veio a celebrar com a Massa Insolvente, face ao disposto no art. 1248º do CCivil, o que, igualmente, não fez. Assim, ao contrário do entendimento sufragado pelo tribunal recorrido, importa concluir que a A. prescindiu de impulsionar os meios processuais próprios e adequados a tornar efectiva a eventual responsabilidade civil das RR (IX) a XIII) das conclusões de recurso). Não se acolhe esta peregrina argumentação.

Primeiro argumento: não se sufraga o entendimento que a A. ao deduzir junto do processo de insolvência, incidente de anulação de adjudicação (nos termos e para os efeitos do disposto no art. 838º do NCPC, ex vi artigo 17º do C.I.R.E.) apenas contra a Massa Insolvente, o deveria ter feito também contra as RR, cuja legitimidade lhes advém da sua qualidade de auxiliares do AI na realização das operações de liquidação dos bens da Massa Insolvente, o que não aconteceu. Isto, segundo as recorrentes, à luz do entendimento do Ac. Rel. Lisboa de 23.5.2019, proferido no Proc.1094/11.9TYLSB-R., em www.dgsi.pt. Vejamos por partes.

Aplicando o art. 838º, nº 1 e 2, do NCPC, com as devidas adaptações, à venda em processo de insolvência, temos que a legitimidade passiva, que na execução pertence ao exequente, executado e credores interessados, no incidente da insolvência, fazendo a devida transposição, pertence correspondentemente à Massa Insolvente, representada pelo AI, e a credores da insolvência interessados. Do rol de um e outro não constam o encarregado da venda, simplesmente por, na insolvência, tal entidade ser um auxiliar do AI.      

Mas referem as recorrentes que segundo aquele acórdão, que invocam para sustentar a sua posição, deviam ter sido demandadas. Nele sintetizou-se que:

- Atento o princípio da tutela jurisdicional efectiva, constitucionalmente densificado nos nºs. 1 e 5, do artº. 20º, da Constituição da República Portuguesa, deve ser reconhecido à parte alegadamente lesada poder arguir, no incidente de liquidação da massa insolvente, na decorrência de acto ou omissão do Administrador da Insolvência, vícios procedimentais, perante o Juiz do Processo;

- Tal reconhecimento de tutela jurisdicional deve ser igualmente extensível a terceiros intervenientes em tal liquidação, que se considerem afectados ou prejudicados por acto praticado pelo Administrador da Insolvência;

- Deste modo, quer a massa insolvente, quer os credores, quer terceiros intervenientes nos autos de liquidação, alegadamente prejudicados, podem reagir relativamente aos actos, activos ou omissivos, do Administrador da Insolvência, provocando a sindicância do Tribunal, nomeadamente invocando as regras gerais sobre a nulidade dos actos, nos termos dos artºs. 195º e 197º, do Cód. de Processo Civil, ex vi do artº. 17º, do CIRE;

- E, tal invocação, e consequente apreciação e decisão, deve ter lugar nos próprios autos de liquidação, pois trata-se de efectiva apreciação do aí ocorrido, com intervenção da totalidade dos interessados intervenientes, garantindo-se o devido contraditório nos termos delineados pelo juiz da insolvência, assim se tutelando os variados interesses presentes e o proferir de uma decisão que seja vinculativa para o universo dos obrigados;

Ora, esta doutrina é inaplicável ao nosso caso, pois a lesada, carecida de tutela jurisdicional, era a A. e não as RR, meras auxiliares do AI como encarregadas da venda, RR essas que lesadas não eram, designadamente por acto procedimental viciado do AI, nem como parte, nem como credoras, nem como intervenientes acidentais.

Ademais, como justamente assinala a recorrida, no caso estão em causa três relações diferentes: a relação externa estabelecida entre a A. e a Massa Insolvente – e o AI, em sua representação - na qualidade de, respetivamente, compradora e vendedora; a relação interna estabelecida entre a Massa Insolvente/AI e as RR, na qualidade de auxiliares deste último, relação terceira para a A.; a relação estabelecida entre a A. e as RR, encarregadas da venda e autorizadas pela Massa Insolvente a cobrar diretamente a remuneração dos seus serviços à A. Sucede que o incidente de anulação da venda foi proposto no

âmbito da primeira relação jurídica identificada, e, a actual acção diz respeito à terceira relação jurídica identificada. Não estando, por conseguinte, relacionadas entre si senão no sentido em que a procedência da primeira era necessária para se avançar com a segunda, pois que, tão só após a anulação da venda – como ocorreu –, faria sentido a A. reclamar das RR o valor que estas tinham recebido a título de remuneração por essa venda, o que fez através da presente ação.

Não carecia, portanto, a A. de ter obrigatoriamente de demandar as RR, encarregadas da venda no mencionado incidente de anulação da venda proposto no processo de insolvência, para efeitos de obter a devolução dos montantes que estas tinham recebido com essa venda.

Não tendo, por isso fundamento, a afirmação das apelantes que a A. renunciou a qualquer meio processual renunciou a qualquer meio processual adequado, assim precludindo a possibilidade de demandar as RR na presente acção.

Segundo argumento: sem contestar a possibilidade de terceiros intervirem em transacção judicial, nos termos do art. 1248º do CC, mesmo sem formalização processual incidental, desde que tenham interesse directo na resolução global do litígio, mesmo com constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do controvertido, o que é certo é que essa é uma mera faculdade. Entra livremente na transação quem tiver interesse directo no litígio. Mas não é um dever ou obrigação para qualquer uma das partes. Ou seja, nenhuma parte pode obrigar terceiro a intervir numa transacção judicial, ou tem o ónus de promover processualmente tal intervenção, pois desde logo se verifica que nem meios extraprocessuais ou processuais existem para tanto.

Queda, por isso, sem fundamento legal a afirmação das apelantes de que a A.  deveria ter promovido a intervenção das RR na transacção que veio a celebrar com a Massa Insolvente – como ? -, o que não fez. E por causa do não cumprimento dessa sua putativa obrigação processual e substantiva, prescindiu de impulsionar os meios processuais próprios e adequados a tornar efectiva a eventual responsabilidade civil das RR.

Não se vislumbrando fundamento legal para tanto, nem normativamente, nem jurisprudencialmente, nem doutrinariamente, nem tão-pouco as apelantes o indicando, está condenada ao insucesso a conclusão argumentativa das mesmas.

Improcede o recurso nesta parte.

6. Quanto à renúncia das quantias peticionadas na acção, escreveu-se na sentença recorrida que:

“As Rés alegaram que ao realizar a transação com a Massa Insolvente no âmbito do incidente de anulação da adjudicação a AUTORA abdicou das demais quantias por si reclamadas.

A lei conferia à Autora, na qualidade de credora, a possibilidade de requerer a anulação da adjudicação e peticionar uma indemnização à Massa Insolvente pelas despesas que tivera e pelos prejuízos que sofrera.

Entre os prejuízos sofridos incluíam-se, necessariamente, os montantes entregues às Rés a título de comissão por uma venda que não se chegou a realizar.

O incidente foi apenas proposto contra a Massa Insolvente porquanto tinha por objetivo principal a anulação da venda no âmbito do processo de insolvência.

E da transação efetuada resultou, em primeiro lugar, que a adjudicação foi dada sem efeito, motivo pelo qual a Massa Insolvente restituiu as quantias que tinham sido prestadas pela Autora.

O facto de a Autora ter transigido com a Massa Insolvente em relação aos montantes pagos às Rés não tem, nem pode ter, o sentido de renunciar à sua restituição perante as Rés.

Resulta ainda do ponto 4 do texto da transação o seguinte:

«[c]om o cumprimento integral dos presentes termos do presente acordo, Requerente [ora Autora] e Requerida [Massa Insolvente] declaram nada mais ter a receber uma da outra por referência à presente ação ou aos factos aludidas na mesma ou a qualquer outro título».

Isto é, a transação não produz qualquer efeito exoneratório, ou equivalente, perante as Rés, porque estas não foram partes na causa, Deste modo, o facto de a Autora ter transigido com a Massa Insolvente no âmbito de um incidente ao processo de insolvência não pode ter qualquer significado de “renúncia abdicativa” ao direito de pedir a restituição das quantias entregues às Rés.”.

As RR discordam, pois perante o teor da transacção entre a A. e a Massa Insolvente, em sede de incidente de anulação de adjudicação, conjugando o explanado nas conclusões X) e XI) com a circunstância de nessa transacção a A. ter reduzido o pedido para a quantia de 1.000.000 €, configura uma renúncia tácita ao direito de exigir das RR a quantia reclamada (cfr. XIV a XVI das conclusões de recurso). Declaradamente não !

Desde logo, por os termos da transacção (ponto 4.) serem claríssimos. A requerente, ora A., declarou nada mais ter a receber da requerida (Massa Insolvente) por referência à respectiva acção ou aos factos aludidas na mesma ou a qualquer outro título. Não diz que nada tem a receber das ora RR !

De seguida, por que a alegada renúncia tácita não se verifica. Nos termos do art. 217º, nº 1, do CC, só pode haver tal renúncia quando ela se puder deduzir de factos que com toda a probabilidade a revelam. Acontece que não existe qualquer facto apurado que revele tal renúncia com esse grau alto de probabilidade. Nem as RR o indicam ! Bem pelo contrário existe é facto de sinal contrário, como decorre do facto 94. 

E por fim, diga-se, as RR construíram essa hipotética renúncia, como decorre das mencionadas conclusões de recurso, da conjugação que estabeleceram com o explanado nas suas outras conclusões X) e XI) conexionadas às situações jurídicas de renúncia aos meios processuais adequados, o que contudo, não se verificou, como vimos no antecedente ponto 5. deste acórdão. Isto é falha o pressuposto em que as RR fazem assentar a alvitrada mas infundada renúncia tácita às quantias pedidas pela A., na presente acção.  

Improcede esta parte do recurso.

7. Face ao explanado e decidido no ponto 4. supra, queda inútil conhecer a questão do enriquecimento sem causa, derivado do art. 473º, nº 2, do CC, como invocado pela A. subsidiariamente.

8. GG (art. 663º, nº, 7, do NCPC):

(…)

IV - Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, assim se confirmando a decisão recorrida.

*

Custas pelas RR/recorrentes.

*

                                                                              Coimbra, 15.2.2022

                                                                              

                                                                              Moreira do Carmo

                                                                             

                                                                              Fonte Ramos

                                                                             

                                                                              Alberto Ruço