Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
771/13.4GCVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: FURTO QUALIFICADO
FURTO SIMPLES
VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO
CONCURSO EFECTIVO
CRIME PÚBLICO
PROCESSO PENAL JÁ INICIADO
DEGRADAÇÃO DE CRIME PÚBLICO EM CRIME SEMI-PÚBLICO
QUEIXA
Data do Acordão: 05/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA CENTRAL DE VISEU - J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 30.º, N.º 1, 190.º, E 203.º, N.º 1, 204.º, N.ºS 1, AL. F), 2, AL. E), E 4, DO CP; 48.º A 52.º DO CPP
Sumário: I - Degradando-se o crime de furto qualificado, em função do valor dos bens, no crime matricial do artigo 203.º, n.º 1, do CP, a entrada em habitação, visando a subtracção, verificada, de bens e objectos naquela existente, configura concurso efectivo entre aquele ilícito e o crime de violação de domicílio.

II - Iniciado o processo penal para investigação de um crime público (furto qualificado), não se torna necessária a dedução de queixa pelo titular desse direito se, após o julgamento, os factos apurados degradarem o referido ilícito em concurso efectivo de dois crimes semi-públicos (furto simples e violação de domicílio).

Decisão Texto Integral:







Acordam os Juízes, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:

1. Na Secção Criminal da Instância Central de Viseu - J2, foi submetido a julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, o arguido A... , completamente identificado nos autos, sob imputação, na acusação pública de fls. 289/292, da prática, em autoria material e em concurso efectivo, de um crime de furto qualificado, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 203.º e 204.º, n.ºs 1, als. a) e f), e 2, al. e), ambos do Código Penal (doravante apenas designado de CP), de um crime de roubo, p. p. pelo artigo 210.º, n.º 1, do CP, e de um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo artigo 190.º, do mesmo diploma legal.


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2. D... e mulher, E... , deduziram pedido de indemnização civil contra o arguido, impetrando a condenação deste a pagar-lhes a quantia de € 2.039,99.

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3. K... também deduziu pedido de igual natureza, solicitando a condenação do arguido no pagamento do montante de €200.

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4. Em acórdão de 15 de Outubro de 2015, o tribunal decidiu nos seguintes termos:

A) Declarou “extinto o procedimento criminal e, consequentemente, absolveu o arguido do(s) crime(s) imputado(s) como ocorrido(s) na residência de D... e mulher”;

B) Condenou o arguido, pela prática, sob a forma de autoria material, de um crime de furto qualificado (“assalto à residência de K... ”), p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 1, al. f), ambos do CP, na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão;

C) Absolveu “o arguido dos restantes crimes que lhe estão imputados”;

D) Julgou parcialmente procedentes, por provados, os pedidos de indemnização civil e, em consequência, condenou o arguido a pagar:

1. Aos demandantes D... e mulher, E... , a quantia de €20 (vinte euros);

2. Ao demandante K... , a quantia de €183 (cento e oitenta e três) euros.


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5. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, formulando, na respectiva motivação, as seguintes conclusões:

1ª - Vem o presente recurso interposto do douto acórdão proferido em 15/10/2015, restrito à parte em que declarou extinto o procedimento criminal do arguido e consequentemente o absolveu dos crimes que lhe vinham imputados, ocorridos na residência de D... e esposa, abrangendo matéria de facto e de direito.

2.ª - Em termos de matéria de facto o recurso fundamenta-se no disposto no artigo 412 n.ºs 3 e 4 CPP.

3ª - Discordamos da matéria dada como não provada sob o ponto 2.2  alíneas a) e b) do douto acórdão recorrido e supra descrita em 1.2 desta motivação, assim como do facto de não ter sido dado como provado nos artigos I, 1) a 6) da matéria provada, também supra descritos em 1.1 desta motivação, o modo como o arguido se introduziu na residência de D... e esposa.

4.ª - Objectiva e razoavelmente, no ponto-de-vista de uma apreciação avisada e criteriosa, entendemos que, ao invés do decidido pelo tribunal a quo, deveria ter sido dado como provado que:

- «desde data não concretamente apurada, mas pelo menos seguramente durante o ano de 2013 e por diversas vezes, o arguido introduziu-se na residência de D... e E... , sem autorização dos proprietários e com a intenção de se apropriar de bens e quantias monetárias que lograsse encontrar, e dali retirou: um volume de notas do BCE no valor de €1.000,00, que se encontrava no interior de uma gaveta da máquina de costura colocada no hall de entrada do primeiro andar; diversas quantias em dinheiro, em moeda metálica e papel do BCE em valor não apurado; dois fios em ouro amarelo, com medalhas também em ouro, de valor não apurado mas superior, cada um deles, a 102 euros»;

- «no dia 27 de Agosto de 2013, quando se deslocou para a residência de D... e E... , o arguido já sabia da existência de quantias monetárias no interior de um recipiente que se encontrava em cima do frigorifico da cozinha»;

- e ainda «que o arguido pelo menos na primeira ocasião, se terá introduzido na referida residência, através de uma janela que dá directamente para o interior da cozinha, e que nessa ocasião ou posteriormente mas sempre antes de 27/8/2013 se terá apoderado de chave da porta de entrada, a qual terá utilizado para se introduzir na residência pelo menos em 27/8/2013 e 30/8/2013.»

5ª - Provas que impõem a decisão de facto no sentido por que pugnamos, oposto ao da decisão recorrida:

a) depoimento da testemunha F... (filho dos ofendidos) prestado na sessão de julgamento de 9/9/2015, documentada na acta de fls. 479 e ss, gravado  no sistema integrado de gravação digital das 16:08:14 horas às 16:28:46 horas, concretamente nas passagens supra enunciadas em 3.1 da motivação e que aqui nos escusamos de repetir.

Não obstante seja verdade que a testemunha não conseguiu precisar a data em que os furtos começaram a ocorrer, resulta líquido do seu depoimento que foi o sucessivo desaparecimento dos objectos/valores que o levou a questionar a mãe sobre o que se passava e a colocar a câmara de vigilância. E, colocada a câmara, foi detectado o arguido no interior da residência, a furtar! Que mais concluir, a não ser que fora descoberto o autor dos «desaparecimentos sucessivos»?! Seria demasiada coincidência e muito improvável que o arguido tivesse decidido assaltar a casa logo que ali foi colocada a câmara e nada tivesse a ver com os anteriores desaparecimentos!

Ao que acresce que,

b) As filmagens efectuadas aos furtos (confessados) ocorridos nos dias 27 e 30 de Agosto de 2013 constantes dos DVD´s juntos a fls. 12 e 13 cujo auto de visionamento e fotogramas constam de fls. 64-79, não deixam dúvidas de que o arguido, logo na 1ª ocasião em que é filmado, entra na cozinha pela porta (e não pela janela por onde referiu em julgamento ter entrado) e dirige-se de imediato para o local onde está o dinheiro em cima do frigorífico, sendo perceptível que quando entra já sabe ao que vai, pelo que, manifestamente, não era a primeira vez que o arguido ali entrava e não era a primeira vez que praticava aquela acção.

c)  Isso mesmo é confirmado pelo depoimento da testemunha B... , sargento ajudante da GNR prestado na sessão de julgamento de 9/9/2015, documentada na acta de fls. 479 e ss, gravado  no sistema integrado de gravação digital  das 17:08:14 horas às 16:28:46 horas, que procedeu à elaboração do auto de visionamento dos DVD e que a instâncias do MP, aos minutos 2:22 e seguintes do seu depoimento, declara que não tem dúvida nenhuma de que o arguido quando entra no dia 27/8/2013 já sabe ao que vai, entra e «vai logo direito acima do frigorífico e pega no tupperware onde estava o dinheiro…não tenho dúvidas nenhumas de que  vai logo àquele local, fiquei convicto de que ele já sabia».

d) Por outro lado, tais filmagens são também ilustrativas da impossibilidade do arguido ter entrado nessas ocasiões pela janela, como afirmou em julgamento (cf. depoimento do arguido prestado na sessão de julgamento de 9/9/2015, documentada na acta de fls. 479 e ss, gravado no sistema integrado de gravação digital das 14:49:24 horas às 15:17:24 horas que, questionado pelo Srº Juiz presidente sobre a forma como teria entrado na residência diz, aos minutos 6:16 e ss: «através de uma janela que se encontrava ao lado da porta principal…levantei um bocado e arrastei para o lado  até abrir»). A janela por onde refere ter entrado é bem visível nas filmagens, assim como é visível que o arguido não entra por ela, mas, sim, pela porta da cozinha.

e) A testemunha F... a instâncias do MP, aos minutos 9:38 e ss do seu depoimento (já supra localizado), quando questionado sobre a possibilidade do arguido poder ter entrado pela janela ao lado da porta - como referiu em julgamento - diz «na ocasião das filmagens está completamente afastado que ele pudesse ter entrado pela janela, nessas ocasiões teve que entrar pela porta principal e a porta principal estava fechada à chave…e nunca apareceu estroncada…a única explicação é que tivesse entrado com uma chave da porta de que se tivesse apoderado em ocasião anterior…os pais nunca se aperceberam que tivesse faltado uma chave, mas são pessoas na casa dos 90 anos e existiam várias chaves da porta».

f) A mesma testemunha a instâncias do Sr. Juiz Presidente repete aos minutos 11:43 e ss «nas imagens dá para ver que ele não entra pela janela…o arguido só pode ter entrado pela porta da cozinha aquando das filmagens e jamais pela janela porque se o tivesse feito isso seria visível nas filmagens» e aos minutos 12:41 e ss, confrontado pelo Sr. Juiz Presidente com o facto do arguido ter dito que entrou «pela janela ao lado da porta principal, que levantou e arrastou para o lado» reafirmou que «não há nenhuma janela ao lado da porta principal para além da janela que dá para a cozinha e que era abrangida pelas filmagens».

g) Ora, se o próprio arguido admitiu ter-se introduzido na habitação através da janela, e se é claro que aquando das filmagens (a que se reportam os furtos confessos) não poderia ter-se aí introduzido por essa forma, impõe-se concluir que assim procedeu em vezes anteriores.

h) Por outro lado, resultando claro das filmagens que o arguido, por ocasião destas, entrou pela porta da cozinha, sendo que, para aceder a esta, segundo o depoimento da testemunha que foi claro e objectivo (e, nessa parte, não mereceu qualquer reparo por parte do tribunal), só poderia ter entrado pela porta principal, que estava fechada e não apresentava (nem nunca apresentou) indícios de arrombamento, lógica se apresenta a conclusão de que o arguido terá de ter utilizado uma chave para abrir a porta principal, chave essa a que não lhe teria sido difícil aceder na primeira ocasião em que se introduziu na residência.

i) Ao concluir de modo diferente do vindo de expor, o Tribunal a quo violou claramente as regras da experiência que, de acordo com o disposto no artigo 127.º do CPP, devem presidir à livre apreciação da prova.

j) De sublinhar que o facto, alegado pelo Tribunal a quo, de não ter sido possível relacionar qualquer dos objectos em ouro alienados pelo arguido conforme listagem de fls. 140-152, com os objectos furtados na residência dos ofendidos não tem relevância nem é adequado a suscitar dúvidas sobre a matéria vinda de referir, como melhor se explana em 3.6 da motivação.

l) De igual modo, não existem razões para a dúvida enunciada pelo Tribunal de que pudesse ter sido o G... (individuo com quem o arguido manteve os contactos telefónicos, cujas conversações foram juntas aos autos de fls. 190-192, 204-206 e 223-241) a cometer os anteriores assaltos, como melhor se explana em 3.7 desta motivação.

m) Não se pretende do julgador a procura do “Absoluto”, mas tão-só que – perante um quadro de alternatividade de “concretos e hipotéticos recortes da vida” –, pautando-se por normas de rigor lógico, razoabilidade e verosimilhança, forme a sua livre convicção, sempre objectivável.

n) Convicção que resultará da valoração crítico-dialéctica das provas directamente produzidas e, ainda, do recurso aos argumentos lógicos, através do pensamento dedutivo e indutivo e das inferições e ilações lógicas. Só quando se esgote este processo lógico-valorativo e persista, razoável e objectivamente, aquela concorrência de alternativas é que será  legítimo apelar ao “in dubio pro reo”.

o) E afigura-se-nos que os meios de prova supra referidos são suficientes para a formação de um juízo de forte plausibilidade e probabilidade de ocorrência dos factos que se pretende sejam dados como provados e implausibilidade e improbabilidade da sua não ocorrência, sendo tal bastante para fundamentar uma convicção justa, ponderada, segura e criteriosa, acima de qualquer “dúvida razoável” e portanto para afastar a possibilidade de funcionamento do princípio «in dubio por reo».

p) Em suma, a douta decisão recorrida padece de erro na apreciação da prova, devendo os «factos provados e não provados» ser alterados nos termos e em conformidade com o que ficou exposto em 4.ª.

6.ª - A ser assim e conjugados tais factos com os demais já dados como provados em 2.1, I n.ºs 1) a 6) do douto acórdão recorrido, deve o arguido, na parte em que são ofendidos D... e esposa, ser condenado pela prática, em autoria material, do crime de “furto qualificado” na forma continuada, que lhe vinha imputado, p. e p. nas disposições dos arts. 203.º e 204.º n.º  2 al. e), 30, n.º 2 e 79.º, n.º 1 todos do Código Penal.

7.ª - Contudo, uma vez que na acusação não se concretiza o modo de entrada na residência, referindo-se que o arguido se introduziu na mesma de «forma não concretamente apurada» importará que, antes da condenação, lhe sejam comunicados os factos relativos ao modo de entrada, no que se reporta à entrada pela porta principal através de chave antes subtraída da residência - pois que, quanto à entrada pela janela, ela resultou do que foi trazido ao processo pelo próprio arguido e por isso não necessita de qualquer comunicação -, tudo conforme o estabelecido  no artigo 358.º, n.º 1 do CPP.

Subsidiariamente, e caso assim se não entenda,

Da discordância de direito:

8.ª - Considerando, e bem, que a matéria de facto dada como provada integrava a prática pelo arguido, em autoria material e concurso efectivo, do crime de furto simples pp pelo artigo 203 n.º 1 do CP (por força do n.º 4 do artigo 204.º) e do crime de violação de domicílio, agravado na circunstância por ter sido cometido durante a noite (art.190.º, 1 e 3, do mesmo diploma), ambos na forma continuada, nos termos do artigo 30.º n.º 2 do CP, entendeu o tribunal declarar extinto o procedimento criminal do arguido por falta de queixa, não obstante a ofendida tenha vindo a fls. 487 ratificar a denúncia/queixa apresentada pelo filho D... a fls. 4 dos autos e que dera origem à instauração do processo.

9.ª - Salvo o devido respeito, não podemos concordar com este entendimento.

10.ª - É certo que o D... apresenta a denúncia, com referência ao art. 242.º, n.º 1, al. a), do C. Proc. Penal, arrogando-se a sua qualidade de Inspector Chefe da Policia Judiciária, mas não menos certo é que, da leitura da denúncia, se pode verificar que o faz também na qualidade de filho dos ofendidos, aí alegando expressamente essa qualidade, bem como  as especiais dificuldades dos pais próprias da idade, incluindo demência, (o pai com 90 anos e a mãe com 86), podendo depreender-se de tal articulado, que é também devido a essas especificidades dos pais  que é ele a apresentar a queixa em vez destes e em nome destes, não o invocando expressamente por totalmente desnecessário já que estava a efectuar a denúncia de um crime público.

11ª - De sublinhar que os factos denunciados integravam a prática de crime público e que foi esse o seu enquadramento até ao final do julgamento, altura em que, considerando ter sido feita prova unicamente do furto de 10 euros em cada uma das ocasiões e absolvendo o arguido de tudo o restante que lhe vinha imputado, passou a estar em causa, só aí, a prática de crimes semi-públicos.

12.ª - Contrariamente ao defendido no douto acórdão em recurso, entende-se não ser irrelevante a natureza do crime à data em que o inquérito foi instaurado e prosseguiu seus termos, levando à dedução de acusação e ao julgamento do arguido. Não colhe o argumento invocado pelo Tribunal recorrido, de que, mesmo tratando-se de denúncia de factualidade integrante de crime público sempre os ofendidos poderiam ter exercido o seu direito de queixa. É evidente que poderiam, mas tal não lhes era exigível, nem era expectável exactamente porque se tratava de pressuposto que não se aplicava ao caso.

13.ª - O princípio da confiança, ínsito no do Estado de Direito Democrático, proclamado pelo artigo 2.º da CRP exige que no circunstancialismo dos autos em que, findo o julgamento, o tribunal entendeu não ter recolhido prova de toda a factualidade imputada ao arguido, mas apenas de uma parte integrante unicamente de crimes de natureza semi-pública, dê aos ofendidos a possibilidade de manifestarem a sua vontade de procederem criminalmente contra o arguido, mediante a concessão de um prazo para o efeito.

14.ª - Invoca o Tribunal, em sentido contrário,  a incerteza que daí resultaria para o arguido. Mas que incerteza?! As expectativas do arguido eram as de ser sujeito a julgamento relativamente aos factos objecto do processo em que eram ofendidos o D... e esposa. O prosseguimento do processo por factos que já constituíam objecto do julgamento em nada belisca tais expectativas, únicas que legitimamente podia acalentar.

15.ª - As expectativas a proteger no caso são, manifestamente, as dos ofendidos que viram os autos prosseguir seus trâmites normais, com fundamento em denúncia que não fora por eles apresentada sem que ninguém os questionasse sobre a sua vontade de tal ocorrer – nem, para tanto, se verificavam, então, os pressupostos, pois que, de crime público se tratava e a lei proíbe a prática de actos inúteis – e foram surpreendidos com a alteração dessa situação a final do julgamento. Não permitir aos ofendidos que, em situações dessas, exerçam validamente o seu direito de queixa independentemente de já ter decorrido o prazo fixado no artigo 115.º do CP, isso, sim, é inconstitucional por violação do já aludido princípio da confiança ínsito no Estado de Direito Democrático, proclamado pelo artigo 2.º da lei fundamental.

16ª - Trata-se de situação similar à que ocorre com a transformação de crimes públicos em semi-públicos, por via legislativa e, nesses caso, é no sentido apontado que vai a doutrina e jurisprudência (neste sentido, v.g. TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de leis penais, 2.ª edição, Coimbra, 1997, p. 245 e  Ac. TC n.º 523/99 de 28/9/1999).

17.ª - Aliás, tratando-se, no caso, de convolação para crimes menos graves já contidos no crime mais grave que ao arguido vinha imputado na acusação, nem se justifica a comunicação da alteração da qualificação jurídica efectuada pelo Tribunal ao arguido (Cfr. neste sentido CPP comentado António Henriques Gaspar, Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Henriques da Graça, Edª Almedina 2014, pág. 1128 penúltimo e antepenúltimo parágrafos e vasta jurisprudência aí anotada), que apenas se compreende no sentido de lhe possibilitar a obtenção de composição juridicamente relevante com os ofendidos, que até aí não fora possível.

18.ª - Em suma, contrariamente ao entendido pelo Tribunal no douto acórdão em recurso, não poderá deixar de dar-se relevância jurídica à declaração apresentada pela ofendida a fls. 487 de ratificação da denúncia/queixa apresentada pelo seu filho, por uma de duas vias:

 - ou por aplicação da jurisprudência fixada pelo Ac. fixação jurisprudência n.º 1/1997 do STJ publicado no DR I série I A do DR, no sentido de que: «apresentada a queixa por crime semipúblico, por mandatário sem poderes especiais, o Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal se a queixa for ratificada pelo titular do direito respectivo - mesmo que após o prazo previsto no artigo 112.º n.º 1, do Código Penal de 1982» (sobre a matéria cfr. ainda Ac. TRL 17/6/2004), sendo certo que tal AFJ  apesar de proferido a propósito de mandatários judiciais não prescreve apenas para actos praticados por esses, como resulta do seu teor, sendo a situação da queixa apresentada por mandatário não judicial sem poderes especiais exactamente a mesma. Com efeito, quer num quer noutro caso, sempre a tal solução se chega por aplicação do artigo 268.º, n.º 2 do CC onde se prescreve que a ratificação tem eficácia retroactiva e tal como vem referido no corpo do citado acórdão «Se a lei penal quisesse estabelecer regime diverso tê-lo-ia dito expressamente. Não o fazendo, é de aceitar que considerou aplicável o regime do Código Civil» ;

- ou, considerando, diversamente do que entendeu o MP, que a participação pelo filho F... não fora também efectuada em representação dos pais e que não se verificavam os pressupostos para a aplicação da jurisprudência fixada pelo Ac. fixação jurisprudência n.º 1/1997 do STJ publicado no DR I série I A do DR e concomitantemente do disposto no artigo 268.º, n.º 2 do CPP; sempre haveria de considerar-se que tal declaração de ratificação encerra uma manifesta vontade de procedimento criminal contra o arguido e, como tal, e pelas razões já supra descritas, tinha que ser atendida e considerada atempadamente apresentada, porquanto, só nesse momento a ofendida fora colocada na situação de se estar perante a prática de crime de natureza semi-pública e de ter de cumprir o ónus de manifestar o seu desejo de procedimento criminal; não havendo, nesse caso, a proteger qualquer expectativa do arguido mas, antes, a legítima expectativa da ofendida em ver o arguido responder pelos factos de que estava, à data, legitimamente acusado.

19.ª - Ao decidir de modo diferente o Tribunal recorrido violou o disposto no artigo 268.º, n.º 2 do CC e a jurisprudência fixada pelo AC 1/1997 do STJ e fez interpretação inconstitucional do disposto no artigo 115.º do CP e 48.º e 49.º do CPP, por contrariar o princípio da confiança inerente ao princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2.º da Lei fundamental.

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado provido e procedente e, em consequência:

- Ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que, alterando a matéria-de-facto em conformidade com o aqui propugnado julgue cometido o crime de “furto qualificado” na forma continuada, que vinha imputado ao arguido, p. e p. nas disposições dos arts. 203.º e 204.º n.º  2 al. e), 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1 todos do Código Penal;

- E, uma vez que na acusação não se concretiza o modo de entrada na residência, referindo-se que o arguido se introduziu na mesma de «forma não concretamente apurada» se determine que, previamente, lhe sejam comunicados os factos relativos ao modo de entrada, no que se reporta à entrada pela porta principal com utilização  de chave antes subtraída da residência - pois que, quanto à entrada pela janela, ela resultou do que foi trazido ao processo pelo próprio arguido e por isso não necessita de qualquer comunicação -, tudo conforme o estabelecido  no artigo 358.º, n.º 1 do CPP.

Ou, subsidiariamente, assim não se entendendo,

- considere assegurada a legitimidade do MP para a promoção do processo penal e, tendo em conta a matéria de facto dada como provada no douto acórdão recorrido,  determine a condenação do arguido, em autoria material e concurso efectivo, pela prática do crime de furto simples pp pelo artigo 203.º n.º 1 do CP (por força do n.º 4 do artigo 204) e do crime de violação de domicílio, agravado na circunstância por ter sido cometido durante a noite (art.190.º, 1 e 3, do mesmo diploma), ambos na forma continuada, nos termos do artigo 30.º n.º 2 do CP.

V. Ex.as, porém, e como sempre, farão Justiça !


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6. Apenas o arguido respondeu ao recurso, conclusivamente, como infra transcrito:
Em suma, a decisão recorrida não enferma de qualquer dos vícios invocados pelo recorrente - ou outros - tendo sido elaborada de forma lógica, coerente, encadeada e bem fundamentada.
Da mesma forma, não ocorreu qualquer erro na aplicação da prova e foi dada adequada expressão ao princípio da livre convicção na apreciação da prova, devendo manter-se, integralmente, a decisão constante do douto acórdão recorrido.
Pelo que, V. Exas. deverão declarar a improcedência do recurso ora interposto, mantendo integralmente o douto acórdão recorrido, por ser de lei, direito e justiça.
A douta decisão proferida pelo tribunal a quo foi escorada no disposto no art. 374.º do CPP de forma escrupulosa, pelo que não merece qualquer censura.
Na verdade, o dever de fundamentação da sentença exige a enumeração e individualização como “provados” e “não provados” de todos os factos relevantes para a imputação penal, a determinação da sanção, a responsabilidade do arguido, assim como dos meios de prova que considerou essenciais e relevantes.
Nestes termos, e nos demais de direito que V. Exas. superiormente suprirão, entende-se que a decisão sob recurso deve manter-se na sua totalidade, porquanto quer a decisão de facto, quer a de direito, se encontram douta e plenamente justificadas.
Pelo que, assim decidindo V. Exas. farão, como habitualmente, justiça!
*
7. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, no seu parecer de fls. 568/575, em concordância com os fundamentos do recurso, pugna pela procedência do mesmo.
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8. Notificados, nos termos e para os efeitos consignados no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido e os demandantes civis não exerceram o direito de contraditório.
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9. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:

1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:

Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).
  O objecto do recurso impõe a apreciação das seguintes questões:

A) Alterabilidade da matéria de facto provada e não provada, em consonância com os desígnios afirmados pelo recorrente;

B) Se modificada a matéria de facto, nos referidos termos, o arguido deve ser condenado pela prática do imputado crime de furto qualificado, na forma continuada, perpetrado na residência de D... e mulher, E... , devendo, para o efeito, ser dado prévio cumprimento ao disposto no artigo 358.º, n.º 1, do CPP, visando a comunicação ao arguido do preciso facto concretizado na 19.ª conclusão da motivação do recurso;

C) Caso assim não seja entendido, se deve ser assegurada a legitimidade do MP para a promoção deste processo e em consequência, se a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido impõe a condenação do arguido como autor material, em concurso efectivo, de um crime de furto simples e de um crime de violação de domicílio agravado, ambos na forma continuada.


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2. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:

                                                             I)

1) No dia 27 de Agosto de 2013, o arguido deslocou-se à residência sita na Rua (...) , em Torredeita, área desta comarca, propriedade de D... e E... , com intenção de se apropriar das quantias monetárias que lograsse encontrar no seu interior.

2) Ali chegado, de forma não concretamente apurada, na concretização dos seus intentos, cerca das 23H59, o arguido introduziu-se no interior da referida residência e retirou do interior do recipiente que se encontrava em cima do frigorífico da cozinha a quantidade de dinheiro que ali se encontrava, no valor de €10,00 pertença daqueles.

3) No dia 30 de Agosto de 2013, cerca das 23H57, o arguido deslocou-se à mesma residência, propriedade de D... e E... . Ali chegado, com o capuz do casaco colocado na cabeça, o arguido acendeu a luz da cozinha e espreitou para o seu interior, tendo, então, desligado a luz e fechado a porta. Poucos minutos após, mais concretamente às 00H04, já do dia 31 de Agosto de 2013, o arguido, coberto com um lençol branco, pegou no recipiente que se encontrava em cima do frigorífico e retirou do seu interior a quantia em dinheiro que ali se encontrava, no valor de €10,00 pertença daqueles.

4) Em qualquer das relatadas ocasiões, o arguido agiu livre voluntária e conscientemente, bem sabendo e querendo, contra a vontade do respetivo dono, entrar na sobredita habitação durante a noite e fazer suas as referidas quantias monetárias, como logrou subtraí-las, ciente que tal conduta era proibida por lei.

5) Na segunda ocasião, dias depois da anterior, o arguido agiu animado pela facilidade e sucesso do assalto ali antes cometido, com prévio conhecimento do local e demais circunstâncias que iria encontrar.

6) Em qualquer das relatadas ocasiões, os ofendidos D... e mulher E... tiveram conhecimento dos factos e seu autor pelo menos até 11.09.2013.


II)

7) No dia 1 de Setembro de 2013, cerca das 14h00, de forma não apurada, mas sem autorização do dono, o arguido introduziu-se no interior da residência sita na Rua (...) , em Torredeita, área desta comarca, propriedade de K... , retirando e levando consigo a quantia ali encontrada de €183,00, pertença ofendido e que o arguido fez sua, abandonando de imediato o local.

8) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo e querendo, contra a vontade do respetivo dono, entrar na sobredita habitação e fazer sua a referida quantia monetária, como logrou subtraí-la, ciente que tal conduta era proibida por lei.

9) O arguido A... nasceu e cresceu em Viseu. É o mais novo de uma fratria de três do casal de progenitores, cujo casamento se dissolveu há cerca de 13 anos, em consequência de uma situação de violência doméstica grave, com impacto significativo no ambiente familiar.

10) Após a separação conjugal, o pai emigrou para o Canadá, demitindo-se das responsabilidades parentais, tanto ao nível económico como afetivo, sendo o contacto com os filhos praticamente inexistente.

11) O agregado constituído, desde então, pela mãe e três filhos, habita casa própria com boas condições de habitabilidade e sem encargos financeiros associados.

12) A... efetuou um percurso escolar regular até ao 2.º ciclo, tendo a partir deste nível de ensino começado a revelar elevado absentismo e consequente insucesso no que respeita a aproveitamento. Também ao nível do comportamento se destacou pela negativa, sendo referenciado como um aluno problemático, sujeito a diversos procedimentos disciplinares. Após várias retenções no ensino regular, onde não conseguiu ir além do 7.º ano de escolaridade, foi integrado em dois cursos de formação profissional, que acabou por abandonar sem concluir o 9.º ano de escolaridade.

13) Com cerca de 14 anos de idade, o arguido iniciou o consumo de haxixe, com o grupo de pares, situação que o levou a envolver-se em diversas situações consideradas ilícitas.

14) Em 2010, com o objetivo de afastar o arguido do grupo de pares, o pai do arguido concordou em recebê-lo no Canadá e providenciar por uma colocação laboral. Porém, decorridos três meses, A... regressa a Portugal, por alegadamente não ter sido bem recebido pela companheira do pai.

15) Após o regresso a Portugal, procurou ocupação laboral, tendo trabalhado cerca de três meses na área da construção civil, porém foi dispensado por não ter ainda completado os dezoito anos de idade e não ter o 9.º ano de escolaridade, pelo que voltou a integrar o mesmo grupo de pares, passando a maior parte do tempo em casa, saindo à noite com os amigos.

16) À data da sua atual prisão, A... vivia com a mãe e os dois irmãos mais velhos, encontrava-se desempregado a mantinha consumos regulares de haxixe.

17) Mantinha com os irmãos mais velhos uma relação algo conflituosa, dado que estes o censuravam pelo seu modo de vida, bem como a mãe que, nessa altura, se encontrava fragilizada emocionalmente pela vivência da violência conjugal e apresentava dificuldades em assegurar sozinha tanto a subsistência como o processo educativo dos três filhos.

18) Atualmente, os irmãos do arguido encontram-se laboralmente ativos, ajudando a mãe, que se encontra desempregada (auferindo o subsídio de desemprego), a nível económico.

19) De acordo com a progenitora, A... teve um desenvolvimento psicomotor considerado normal, assumindo que o contexto de violência doméstica experienciado no seio familiar influenciou de forma negativa o comportamento do arguido.

20) Abordados os factos em causa nos presentes autos, A... reporta-os a um período em que se considerava mais vulnerável à influência dos outros e das circunstâncias pessoais e familiares.

21) Em meio prisional mantém comportamento ajustado às normas institucionais e recebe visitas da mãe e dos irmãos.

22) A... esteve integrado na Unidade Livre de Drogas, que promove a abstinência de consumos de estupefacientes, no qual apresentou um comportamento exemplar. Esteve também inserido na oficina de “Trapilhos”, que consiste em desfiar novelos, com a finalidade de construir rolos para fazer tapeçarias. Frequentou o curso de “Operador de manutenção hoteleira”.

23) O arguido tem várias condenações em juízo, a saber:

24) - no processo 146/10.7GCVIS, 1º Jz Criminal de Viseu, por sentença de 11.4.2011, transitada em julgado em 20.5.2011, por factos de 19.2.2010, foi condenado pela prática de um crime de furto qualificado e um crime de detenção de arma proibida, na pena única de 2 anos e 3 meses de prisão suspensa na sua execução sob regime de prova;

25) - no processo 519/11.8GCVIS, 1º Jz Criminal de Viseu, por sentença de 20.6.2011, transitada em julgado em 5.09.2011, por factos de 3.06.2011, foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de €5,00, que pagou;

26) - no processo 145/11.1GCVIS, Instância Local de Tondela, por sentença de 4.10.2012, transitada em julgado em 24.10.2012, por factos de 11.2.2011, foi condenado pela prática de um crime de furto qualificado, na pena de 3 anos de prisão suspensa na sua execução;

27) - no processo 526/13.6GCVIS, Instancia Local de Viseu – J3, por sentença de 3.07.2013, transitada em julgado em 19.09.2013, por factos de 18.06.2013, foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de €5,00, conforme certidão de fls.38-48, que o arguido pagou;

28) - no processo 352/10.4GCVIS, 1º Jz Criminal de Viseu, por sentença de 29.06.2012, transitada em julgado em 9.10.2013, foi condenado pela prática de cinco crimes de furto qualificado, p. e p. nos termos dos arts. 203.º n.º 1, 204.º n.º 2 al. e), com referência ao art.202.º al. e), todos do C.Penal e um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.86.º, al. c), com referência ao art. 3.º, n.º 4, al. a), da Lei 5/2006, de 23/2, na redação dada pela Lei 17/2009, de 6/5, nas seguintes penas:

- 3 anos de prisão, pela prática do crime de furto qualificado, em que foi ofendida H... ;

- 2 anos e 3 meses de prisão pela prática do mesmo tipo de crime em que foi ofendido I... ;

- 1 ano de prisão pela prática do crime em que foi ofendido o J... ;

- 2 anos e 8 meses de prisão, pela prática, em co-autoria, do crime de furto qualificado cometido na “L... ”.

- 1 ano e 8 meses de prisão, pela prática, em co-autoria, do crime de furto qualificado de que foi ofendido o J... (apenso 835/09.9GCVIS).

- 1 ano e 8 meses de prisão pela prática do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, al. c), com referência ao art.3.º, n.º 4, al. a), da Lei 5/2006, de 23/2, na redação dada pela Lei 17/2009, de 6/5. O arguido encontra-se preso à ordem destes autos desde 29 de Outubro de 2013, conforme certidão de fls. 336-430 que aqui se dá por inteiramente reproduzida.

29) - no processo 771/12.1GCVIS, Instância Central Criminal de Viseu – J3, por acórdão de 6.01.2015, transitada em julgado em 6.02.2015, por factos de 23.01.2014, foi condenado pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade de estupefacientes, na pena de 2 anos de prisão efetiva.


*

3. Relativamente aos factos não provados, ficou consignado:

  De resto não se provaram outros factos com relevância para a boa decisão da causa nomeadamente aqueles que estejam em contradição com os provados e que:

a) além daquelas dadas como provadas, durante o ano de 2013, noutras ocasiões o arguido introduziu-se na dita residência de D... e E... , sem autorização dos proprietários e com a intenção de se apropriar de bens e quantias monetárias que lograsse encontrar, e dali retirou: um volume de notas do BCE no valor de €1.000,00, que se encontrava no interior de uma gaveta da máquina de costura colocada no hall de entrada do primeiro andar; diversas quantias em dinheiro, em moeda metálica e papel do BCE no valor de, pelo menos, € 500,00; um fio em malha de corda em ouro amarelo, com medalha oval com imagem da Nossa Senhora do Livramento e aro em ouro amarelo, no valor de €1.500,00 e um fio em malha fina em ouro amarelo, com um coração com buracos em ouro amarelo, no valor de €545,00;

b) no dia 27 de Agosto de 2013, quando se deslocou para a residência de D... e E... , o arguido já sabia da existência de qualquer quantia monetária no interior de um recipiente que se encontrava em cima do frigorifico da cozinha;

c) quando K... abriu a porta de casa, de imediato o arguido o agrediu com um violento empurrão, fazendo com que caísse desamparado de costas no chão e em ato continuo retirou-lhe da carteira do bolso das calças a quantia de pelo menos €200,00.


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4. Motivação da decisão de facto:

Quanto às condições de vida e personalidade do arguido o tribunal baseou-se nas declarações do próprio conjugadas com o respetivo relatório social.

Já quanto aos factos típicos descritos como provados o tribunal formou convicção na confissão integral e sem reservas do arguido sobre os factos dados como provados, confirmando no essencial a entrada nas referidas duas casas de habitação, a primeira por duas vezes, onde retirou as quantias em dinheiro referidas, como tudo explicou circunstanciadamente, depondo além do mais sobre o modo como ali logrou introduzir-se e subtrair aquele dinheiro.

Confissão que, aliás, não surpreende relativamente aos dois assaltos na primeira residência, dada a existência de imagens correspondentes a essa atuação (cfr.fls.66-79), onde o arguido afirmou ter retirado em cada ocasião a quantia de €10,00, não havendo prova nomeadamente testemunhal que infirme este valor nas duas referidas circunstâncias.

Negou, todavia, os factos dados como não provados, sendo que quanto a estes a convicção do tribunal alicerçou-se na falta de consistência da prova sobre os mesmos produzida, em resultado, nomeadamente, de não terem sido carreados para os autos outros elementos probatórios credíveis e com força bastante para os sustentar, aqui incluída a autoria de qualquer assalto na residência de D... em data anterior ao dia 27 de Agosto de 2013.

Na verdade, sobre a prática de qualquer assalto anterior nesta residência pelo arguido, nenhuma testemunha ou outra prova o sugere, não podendo a convicção do tribunal formar-se exclusivamente a partir das comprovadas ocorrências posteriores, tanto mais que a testemunha F... , 47 anos, filho do ofendido D... , não mostrou conhecimento seguro e circunstanciado sobre o modo e tempo em que desapareceram de casa dos pais o dinheiro e demais objetos por si referidos, cuja completa identificação e quantificação tão pouco foi assertiva, o que se compreende por não se tratar da sua residência nem de bens que estivessem na disposição do próprio.

Tanto mais que ao tempo dos factos o arguido mantinha contato estreito com o indivíduo de nome G... sobre os furtos que cometia, sem notícia expressa daqueles anteriores ao dia 27 de Agosto de 2013, ficando inclusivamente a dúvida sobre a participação de ambos ou alguns deles nos assaltos que discutiam (fls.190-2, 204-6 e 223-241).

De salientar que não foi possível relacionar os objetos em ouro alienados pelo arguido, conforme listagem dos autos (fls.140-152), com aqueles referidos na acusação.   

Por fim, à luz da experiência comum, ocorrendo o assalto na residência dos ofendidos D... e mulher, onde pernoitavam, como referido pela testemunha F... , filho de ambos, tendo todos eles colhido concertadamente as imagens das duas ocorrências e do assaltante, é fortemente verosímil que tivessem conhecimento imediato destas e do sucedido pelo menos até ao momento da denúncia em 11.09.2013 (fls. 4-6).

Também quanto ao assalto na residência do ofendido K... , 76 anos, recorda-se que o depoimento do mesmo se apresentou titubeante, incerto e confuso sobre a dinâmica do sucedido, sem a corroboração periférica de outros meios de prova que permitam persuadir o tribunal para além da versão confessada pelo arguido.

Assim, conjugados os vários elementos de prova, temos como não demonstrada a verosimilhança da incriminação no que concerne aos factos não provados ou, pelo menos, não será possível nesta parte firmar convicção conscienciosa sobre a autoria e dinâmica dos mesmos sem que dela resulte, perante esta dúvida séria, fundada e razoável, sacrifício para o princípio do in dubio pro reo.

No tocante aos elementos subjetivos dos crimes o tribunal serviu-se da confissão do arguido conjugado com as regras da experiência comum em face do contexto e condições em que os factos foram praticados e da atuação do assaltante.

Por fim, o tribunal assentou ainda a sua convicção no exame em audiência:

- do auto de notícia de fls.22-3, 29-30 (exclusivamente quanto aos facto ali descritos como resultantes da perceção direta do autuante), auto de busca e apreensão de fls. 96, 133, auto de reconhecimento de fls. 98-100, certidão de fls. 38-48, 336-430,  certificado de registo criminal de fls. 454-464, relatório social de fls. 469-471.


*

5. Mérito do recurso:

5.1. Alterabilidade da matéria de facto:

Introdutoriamente, é mister deixar expressa a manifesta impossibilidade legal de a propugnada alteração factual relativa ao modo de entrada do arguido na habitação de D... e E... - pela porta principal, através de chave antes subtraída da residência, ou, em alternativa residual, por uma janela da casa - poder conduzir à qualificação do furto nos termos da alínea e) do n.º 2 do artigo 204.º do CP, como é desiderato, vertido no recurso, do Ministério Público.

Como é reconhecido pelo recorrente, a acusação pública não descreve factos que conduzam ao preenchimento da circunstância qualificativa prevista nas normas acima indicadas, porquanto, ao nível de acção típica definidora, apenas se limita a esta asserção sem qualquer valor concretizante: «Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos (…) durante o ano de 2013 (…), o arguido introduziu-se na residência de D... e E... , de forma não concretamente apurada mas sem qualquer autorização dos proprietários (…)» – o “negrito” pertence-nos.

Porém, se a acusação tem de conter, inter alia, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. al. b) do n.º 3 do artigo 283.º do CPP), obviamente não bastarão, para o dito efeito, afirmações genéricas, eivadas de imprecisão

De acordo com aquela norma processual adjectiva, é elemento fundamental da acusação a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção, ou seja, os elementos constitutivos do crime. São estes que constituem, daí em diante, o objecto do processo.

A exigência de indicação precisa na acusação dos factos imputados ao arguido, emanação clara do princípio acusatório consagrado no n.º 5 do art. 32.º da Constituição, tem como implicação directa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento.

Como realça Jorge Figueiredo Dias - Direito Processual Penal, Coimbra, 1974, p. 45 -a concepção típica de um “processo acusatório” implica a “estrita ligação do juiz pela acusação e pela defesa”, em sede de determinação do objecto do processo como em sede de ponderação de cognição e dos limites da decisão.

E mais adiante (pág. 145), acerca da vinculação temática do tribunal, como efeito consubstanciador dos princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal, é dito pelo mesmo autor:

«Deve pois afirmar-se que objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (...) e a extensão do caso julgado».

«As garantias de defesa a que se refere o art. 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental, inculcam, assim, a necessidade de o arguido conhecer, na sua real dimensão, os factos de que é acusado, para que deles possa convenientemente defender-se.

 E isto implica, nomeadamente, que não possa ser surpreendido em julgamento com factos que a acusação lhe não tivesse posto “diante dos olhos”».

Em suma, a acusação deve conter os factos relevantes para a imputação do crime e a determinação da espécie e da medida da sanção.

Volvendo de novo ao caso em apreciação, em consonância com as considerações já tecidas, definidoras do princípio do acusatório, sem a individualização clara dos actos integrantes da conduta do arguido no plano já destacado, aquela indefinição é destituída de toda e qualquer relevância jurídico-penal para imputação ao arguido do crime de furto qualificado da al. e) do n.º 2 do artigo 204.º do CPP.

Mas terá remédio a assinalada patologia congénita da acusação, nomeadamente, como pretende o recorrente, por recurso ao instituto do artigo 358.º, n.º 1, do CPP?

A resposta só pode ser negativa.

Eis as razões.
Pretendendo conciliar a celeridade processual e o aproveitamento do processo com os imperativos legais do princípio do contraditório e de uma defesa eficaz e em tempo útil por parte do arguido, o processo penal admite, não obstante, a condenação por factos novos, ou seja, que traduzam alteração dos descritos na acusação ou na pronúncia, nos precisos termos definidos nos artigos 358.º e 359.º do CPP.
Em contraposição à “alteração substancial dos factos”, ou seja, cfr. alínea f) do artigo 1.º do CPP; «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis», existe alteração simples ou não substancial sempre que se não verifique uma alteração do objecto do processo. Para além dos factos constantes da acusação (os quais constituem o objecto do processo em sentido técnico), podem existir outros factos que não foram formalmente vertidos na acusação, mas que têm “com aqueles uma relação de unidade sob o ponto de vista subjectivo, histórico, normativo, finalista, sociológico, médico, temporal, psicológico, etc.”. Estes factos novos fazem parte do chamado “objecto do processo em sentido amplo”. Não têm como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (isto é, não contendem com a identidade do objecto do processo), mas, por serem relevantes para a decisão, o seu conhecimento pressupõe o recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º, n.º 1, do CPP - Cfr. Marques Ferreira, Da Alteração dos Factos Objecto do Processo Penal, RPCC, ano I, tomo 2, pág. 226, citado no Ac. da Relação de Guimarães de 11-11-2009, proc. n.º 226/07.6GAVVD.G1, disponível em www.dgsi.pt..
Aqui, a lei exige apenas, como condição de admissibilidade, que ao arguido seja comunicada, oficiosamente ou a requerimento, a alteração e que se lhe conceda, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
Diversamente, e com a ressalva prevista no n.º 3 do art. 359.º do CPP, a alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância (n.º 1 do mesmo artigo), sendo que, tratando-se de factos autonomizáveis em relação ao objecto do processo, a comunicação da alteração substancial ao Ministério Público vale como denúncia para que este proceda pelos novos factos (n.º 2).
Todavia, sempre nos precisos limites assim traçados, aquelas duas figuras jurídicas pressupõem uma acusação substancialmente apta, ou seja, cujo objecto, se comprovado em julgamento, permita a condenação do agente pela prática de determinado crime.
A partir dela, se, em julgamento, surgirem com novos factos decorrentes da globalidade da prova produzida, deverá o tribunal recorrer, conforme a natureza da nova factualidade, aos mecanismos de intervenção contemplados nos artigos 358.º e 359.º do CPP.
Como esclarecedoramente se escreveu recentemente no Ac. da Relação de Coimbra de 02-12-2015, proc. n.º 24/14.0T9FND.C1: «o regime da alteração substancial dos factos pressupõe que a matéria descrita na acusação do Ministério Público, do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução contenha factos suficientes à afirmação do crime, redundando aquela, para o que ora importa, na imputação de um crime diverso; ou seja, simplisticamente, da imputação, sustentada pelos factos descritos, de um determinado crime, passa-se à imputação de um crime diverso, realidade insuscetível de ser confundida com aquela outra em que se converte «um não crime» em «crime».
Volvendo ao caso dos autos, em síntese conclusiva, circunscrevendo-nos, realça-se uma vez mais, tão só à situação concreta acima definida, qualquer alteração factual consubstanciaria a convolação de uma conduta atípica em conduta típica, em patente violação do princípio constitucional do acusatório.

Contudo, os referidos factos da acusação configuram o crime de furto qualificado, p. e p. no artigo 203.º e 204.º, n.º 1 , al. f), do CP, e daí que, mantenha relevância a impugnação da matéria de facto.

De modo manifestamente compreensível, o recorrente põe em causa os pontos a) e b) do acervo factológico dado como não provado, pretendo sejam erigidos à condição de provados os factos que se passam a reproduzir:

- «Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos seguramente durante o ano de 2013 e por diversas vezes, o arguido introduziu-se na residência de D... e E... , sem autorização dos proprietários e com a intenção de se apropriar de bens e quantias monetárias que lograsse encontrar, e dali retirou: um volume de notas do BCE no valor de €1.000,00, que se encontrava no interior de uma gaveta da máquina de costura colocada no hall de entrada do primeiro andar; diversas quantias em dinheiro, em moeda metálica e papel do BCE em valor não apurado; dois fios em ouro amarelo, com medalhas também em ouro, de valor não apurado, mas superior, cada um deles, a 102 euros»;

- «No dia 27 de Agosto de 2013, quando se deslocou para a residência de D... e E... , o arguido sabia da existência de quantias monetárias no interior de um recipiente que se encontrava em cima do frigorífico da cozinha»;

- «O arguido, pelo menos na primeira ocasião, se terá introduzido na referida residência, através de uma janela que dá directamente para o interior da cozinha e, nessa ocasião ou posteriormente, mas sempre antes de 27-08-2013, se terá apoderado de chave da porta de entrada, a qual terá utilizado para se introduzir na residência pelo menos em 27-08-2013 e 30-08-2013».

A nível probatório, suporta a sua pretensão nas declarações do arguido, nos depoimentos das testemunhas B... e F... e nas filmagens efectuadas, nos dias 27 e 30 de Agosto de 2013, na residência dos ofendidos D... e E... .

Para fundamentar o elenco dos factos não provados, que o recorrente pretende sejam elevados à condição de provados, os julgadores do tribunal de 1.ª instância recorreram ao princípio constitucional da presunção de inocência, na vertente processual do princípio in dubio pro reo, por a globalidade da prova produzida não afastar fundadas dúvidas sobre a prática, pelo arguido, dos actos apropriativos em questão.

Há que ver, então, se as objecções contrapostas pelo recorrente ao juízo de convicção íntima sobre a prova firmada no tribunal a quo têm (ou não) razão de ser.
Auscultada a prova produzida oralmente na audiência de discussão e julgamento, o arguido negou peremptoriamente o cometimento dos factos que o recorrente impetra sejam dados como provados, admitindo tão só a autoria daqueles que ditaram a sua condenação.
E, cingindo-nos à demais prova, os depoimentos das testemunhas B... (efectivo da GNR) e C... (filho dos ofendidos D... e E... ) evidenciaram, não factos, mas convicções pessoais e alargadas conjecturas na atribuição das subtracções ao arguido.
Conjecturas que o Ministério Público acolheu, dando por reproduzidas, grosso modo, no recurso, a versão apresentada pela testemunha C... .
No entanto, a própria testemunha C... acentuou dúvidas sobre os juízos de inferência revelados, tendo por suporte a gravação vídeo colocada na residência, cujas imagens evidenciaram ser o arguido o autor material das apropriações ilegítimas dos dias 27 de Agosto de 2013 e 30 de Agosto do mesmo ano.
A partir do visionamento do registo vídeo, acentuou, é certo, a impossibilidade de o arguido ter entrado, naqueles dias, na residência, através de janela do rés-do-chão - versão do arguido -, e, em função disso, formulou juízo dedutivo no sentido de o arguido haver entrado na habitação com uso de uma chave retirada, em momento anterior, da porta de entrada.
Juízo temerário, descurando as demais hipóteses plausíveis.
Por um lado, a própria testemunha deu a saber a possibilidade de acesso à casa de habitação também por escalamento a um terraço da cozinha, o qual dispõe de uma janela para o interior da residência.
Por outro, merecem fundadas reservas as palavras da testemunha, quando consagram  a certeza de seus pais fecharem sempre à chave a porta de entrada da habitação.
Essas reservas decorrem do demais dito pela testemunha, situando a idade de seus pais na ordem dos noventa anos de idade, padecendo o progenitor de doença de  Alzaimer, e aludindo também que, em função dessa realidade, nada controlavam, inclusive, não dando conta, quer dos sucessivos bens desaparecidos (inter alia, fios de ouro e certa quantia em notas do Banco Central Europeu), quer ainda de qualquer chave da residência que eventualmente tivesse sido retirada por terceiro.
Concretizando o depoimento de B... , a partir das premissas consistentes nas subtracções ocorridas nos dias 27 e 30 de Agosto de 2013 e na atitude assumida pelo arguido - dirigiu-se directamente ao frigorífico, de cujo cimo, retirou, de cada vez, 10€ em dinheiro - revelou convicção de ter sido o arguido o autor dos furtos praticados anteriormente.
Tão só isso, um mero “auto de fé”.
Efectivamente, existe um amplexo de situações verificáveis, onde pontifica também a entrada na habitação, em pretéritos momentos, em circunstâncias diversas das descritas na acusação, inclusivamente por meios lícitos.

É sabido que a presunção permite que perante um facto conhecido se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerum que accidit) certos factos são a consequência de outros.
A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção.
A ilação derivada de uma presunção natural não pode formular-se, pois, sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável - Cfr. acórdão do STJ de 07-01-2004, proc. n.º 03P3213, in www.dgsi.pt..
Isto para dizer que, no vertente caso, o circunstancialismo supra exposto não permite uma congruência de raciocínio lógico no sentido da participação do arguido nos factos impugnados, já que traduz, nesta vertente, uma mera possibilidade mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.
Ou seja, os factos conhecidos (os pressupostos e a base da presunção) seriam, ao fim e ao resto, os actos apropriativos temporalmente situados em 27 e 30 de Agosto de 2013. Ora, a partir daqui, e de acordo com as regras da lógica e da experiência comum de vida, não é possível, sem violação das ditas regras, inferir, para além da dúvida razoável, que o arguido foi o autor dos factos agora em causa.
Na verdade, diversas hipóteses se podem configurar para além daquelas que o libelo acusatório encerra.
Existindo uma dúvida insanável, nos termos que supra se deixaram exarados, por imperativo constitucional, em função do princípio in dubio pro reo, há que confirmar o juízo valorativo do julgador do tribunal da 1.ª instância, nenhuma modificação havendo, pois, que fazer ao acervo factológico provado e não provado.


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5.2. A decidida inalterabilidade da matéria de facto dada como provada e não provada pelo tribunal da 1.ª instância prejudica o conhecimento da problemática enunciada no ponto B) do elenco das questões a dirimir, porquanto é expressamente aceite pelo recorrente que o acervo factológico provado apenas permite a condenação do arguido pelo crime matricial de furto do artigo 203.º, n.º 1, do CP, e não pelo crime de furto qualificado, p. e p. pelo referido normativo, conjugado com as disposições vertidas no artigo 204.º, n.ºs  1, al. f), e 2, al. e), do mesmo compêndio legislativo.

*

5.3. Sendo o crime - contra o património - cometido pelo arguido o de furto simples - por aplicação do n.º 4 do artigo 204.º do CP, a imputada qualificação ficou sem efeito -, antes de nos pronunciarmos sobre a última questão, é imprescindível verificar se, no contexto factual descrito no acórdão recorrido, entre o dito crime de furto e o crime de violação de domicílio existe concurso efectivo.

Antes, porém, importa realçar a verificação, no preciso quadro fáctico provado na decisão recorrida, dos elementos típicos objectivo e subjectivo do aludido crime de violação de domicílio.

Como está expressamente descrito, o arguido «deslocou-se à residência sita na Rua (…), propriedade de D... e E... , com intenção de se apropriar das quantias monetárias que lograsse encontrar no seu interior» - ponto 1).

«Ali chegado, de forma não concretamente apurada, na concretização dos seus intentos, cerca das 23h59, o arguido introduziu-se no interior da referida residência e retirou do interior do recipiente que se encontrava em cima do frigorífico da cozinha a quantidade de dinheiro que ali se encontrava, no valor de €10,00, pertença daqueles» - ponto 2).

«No dia 30 de Agosto de 2013, cerca das 23h57, o arguido deslocou-se à mesma residência, (…). Ali chegado, (…), o arguido acendeu a luz da cozinha e espreitou para o seu interior, tendo, então, desligado a luz e fechado a porta. Poucos minutos após, mais concretamente às 00h04, já no dia 31 de Agosto de 2013, o arguido, coberto com um lençol branco, pegou no recipiente que se encontrava em cima do frigorífico e retirou do seu interior a quantia em dinheiro que ali se encontrava, no valor de €10,00, pertença daqueles» - ponto 3).

«Em qualquer das relatadas ocasiões, o arguido agiu livre voluntária e conscientemente, bem sabendo e querendo, contra a vontade do respectivo dono, entrar na sobredita habitação durante a noite e fazer suas as referidas quantias monetárias, como logrou subtraí-las, ciente que tal conduta era proibida por lei» - ponto 4).

Estes factos evidenciam a primeira das duas modalidades típicas previstas no n.º 1 do artigo 190.º do CP - “introduzir-se na habitação de outra pessoa», sendo certo que as duas introduções verificadas, em domicílio alheio, ocorreram sem o consentimento de quem de direito, situação que o arguido sabia e quis.

Sobre a temática acima exposta, situando-se, na larga maioria dos casos, embora, no domínio da desqualificação do furto - nos termos da acusação/pronúncia, tal crime, qualificado à luz, pelo menos, da circunstância qualificativa da alínea f) do n.º 1 do artigo 204.º do CP ou pela alínea e) do n.º 2 do mesmo artigo, foi, após julgamento, desqualificado, em função do valor, ao abrigo do n.º 4 ainda do mesmo artigo -, a jurisprudência do STJ tem tomado posição, senão unânime, quase consensual, no sentido da existência de uma situação de concurso efectivo [cfr., v.g., Acs. de 07-12-1993 (proc. n.º 45909), e de 13-10-1999 (proc. n.º 9940896), in www.dgsi.pt], e Acs. de 27-11-2003 e 15-02-2102, publicados, os sumários, no site do STJ] - verificado, ab initio, um crime de furto simples, seguindo também o caminho do concurso efectivo, veja-se ainda o Ac. de 12-12-1996 (proc. n.º 567-3.ª Secção)].

O cerne do problema assenta na eventual consunção do crime de violação pelo crime de furto, por nos situarmos perante o designado “facto anterior não punível”, assente na tese, defendida em alguns sectores residuais da jurisprudência, da impunidade do crime de violação de domicílio, por, no específico contexto versado nos autos, ser “crime meio” ou “crime instrumento” do crime de furto [a título meramente exemplicativo, Ac. da Relação do Porto de 13-05-2015, publicado na página do ITIJ].

Não é por aqui que seguimos.

A solução recai necessariamente no enquadramento jurídico do artigo 30.º, n.º 1, do CP, cuja orientação legal determina se afira o número de crimes pelo número de crimes efectivamente cometidos pelo agente.

Ora, são bem diversos os bens jurídicos protegidos pelos crimes tipificados nos artigos 203.º e 190.º do CP: a propriedade, no primeiro; privacidade/intimidade, no segundo.

Em síntese conclusiva, sendo, como no caso, o crime de furto o matricial do artigo 203.º, n.º 1, do CP, a entrada em habitação, visando a subtracção, verificada, de bens e objectos naquela existente, configura concurso efectivo entre aquele ilícito e o crime de violação de domicílio.


*

Enfrentando, agora, a questão posta no recurso, ficou, a propósito, exarado no acórdão recorrido:

«(…).

Residência de D...

Resulta claro do elenco factual provado que, nas circunstâncias descritas, durante a noite, o arguido se dirigiu, por duas vezes, a casa de habitação do ofendido D... , onde logrou entrar, tendo retirado e levado consigo a quantia de €10.

No mais, representando o tipo de ilícito de furto em todos os seus contornos objetivos, o arguido atuou com intenção de conseguir o resultado típico.

Com efeito, provado ficou que em qualquer dessas ocasiões o arguido agiu com consciência e vontade da factualidade descritiva do tipo legal em apreço, bem assim da sua qualificativa referente à introdução na habitação (art.204º, nº1, al. f), do C. Proc. Penal).

Contudo, independentemente da qualificativa aqui verificada, em qualquer das ocasiões o valor diminuto/insignificante subtraído não consente a qualificação do crime, considerando a dúvida razoavelmente instalada a respeito - cfr. art. 202º, al. c) e art.204.º, n.º 4, ambos do C. Penal.

A par destes crimes de furto simples (art.203º, n.º 1 do C. Penal), a conduta do arguido configura dois crimes de violação de domicílio dos ofendidos D... e mulher, agravados na circunstância por terem sido cometidos durante a noite (art.190.º, 1 e 3, do mesmo diploma).

Com efeito, não havendo lugar à qualificação do furto em virtude do insignificante valor da coisa furtada, a supressão das agravantes qualificativas do furto, no caso as constantes da al. e) do n.º 2 e da al. f) do n.º 1, ambos do art. 204.º do C. Penal, conduz à autonomização do crime de violação de domicilio, já que não se verifica qualquer relação de consumpção entre os normativos incriminadores em que se enquadram as condutas do arguido art.203.º e art.190.º do C. Penal.

Da unidade à pluralidade de crimes: o crime continuado

Atuando o arguido em condicionalismos específicos marcados pelas vicissitudes e tempos distintos de cada assalto não é de aceitar que todo o seu relatado comportamento se fundasse numa decisão assumida, deliberada e pensada uma única vez, antes obedeceu nas condutas parcelares a uma renovação sucessiva do desígnio criminoso.

Teve, pois, que renovar de cada uma dessas vezes o processo de motivação e em consequência teve que tomar resoluções distintas, presididas por inten­ções diferenciadas quanto à decisão de praticar os atos descritos na matéria de facto.

Em cada uma das situações descritas, o arguido resolveu atuar conscientemente contra legem, subtraindo aquele dinheiro, reiterando a concretizada opção criminosa de beneficiar e/ou prejudicar alguém.

Perante tal pluralidade de resoluções criminosas resta indagar da verificação de um crime continuado ou concurso real de crimes.

São pressupostos cumulativos do crime continuado:

(…).

Ora, vista a matéria de facto assente, verifica-se objetivamente esse caracterizado estado-de-coisas. As sucessivas e homogéneas condutas do arguido, quando situadas num mesmo e curto período de tempo e sendo determinadas por resoluções que, apesar de distintas, se conservam dentro de uma “linha psicológica continuada” marcada pelos sucessivos êxitos da sua repetida atuação, integram uma dada continuação criminosa que se mostra facilitada pelo exercício das funções inerentes ao cargo que desempenhava e, salvo melhor opinião, diminui consideravelmente a sua culpa.

A reiteração comportamental delitiva do arguido, embora casuisticamente planeada e desenvolvida numa pluralidade de resoluções criminosas, radicou num crescente à-vontade e ousadia decorrente do sucesso obtido com a boa execução do seu comportamento anterior, bastante para amolecer no contexto próprio a contenção psicológica resultante das proibições legais, por conseguinte, num juízo de menor censurabilidade.

No caso a execução dos dois crimes de furto e violação de domicílio na residência de D... mostra-se relativamente semelhante, facilitada pelo contexto funcional da atuação do arguido, de modo a diminuir sensivelmente a culpa do arguido (art. 30.º, n.º 2, do C. Penal).

Além da identidade de bens jurídicos violados, verifica-se a persistência de uma mesma situação exterior que impulsionou o arguido para a prática dos crimes com incidência na culpa, fazendo-a diminuir acentuadamente.

Sucede que os titulares do direito de queixa, D... e mulher nunca apresentaram queixa nos autos nos seis meses posteriores ao conhecimento dos factos e seu autor, tendo entretanto caducado aquele direito (art. 115.º, n.º 1, do C. Penal).

É certo que na sequência da comunicação efectuada (cfr. acta de sessão de julgamento de 8.10.2015) relativamente aos assaltos na residência dos ofendidos D... e mulher E... , requereu o Ministério Público a notificação destes para, em prazo a fixar, virem aos autos ratificar a denúncia apresentada em 13.09.2013 pelo seu filho F... (fls. 4-6), tudo de modo a assegurar a legitimidade do Ministério Público para a prossecução do procedimento criminal.

Fundamentou a oportunidade do requerido na circunstância de o crime até então imputado ao arguido ter natureza pública (furto qualificado), ao invés daqueles objecto da comunicação entretanto efectuada (crimes de furto simples e violação de domicílio, tendo estes natureza semi-pública - arts. 198.º e 203.º, n.º 3, do C. Penal), donde a desnecessidade e, portanto, inutilidade, de qualquer ratificação anterior.

Já o arguido veio pugnar pela extinção do procedimento criminal nesta parte, por considerar que a denúncia obrigatória apresentada por F... (fls. 4-6) não dispensava a apresentação da correspondente queixa (art. 242.º n.º 3, do C. Proc. Penal).

Entretanto, a ofendida E... veio espontaneamente aos autos declarar que ratificava a denúncia apresentada pelo filho e assim desejava procedimento criminal contra o arguido, ficando prejudicado relativamente a si o requerido pelo Ministério Público.

Conhecendo da oportunidade da queixa e/ou da sua ratificação, cumpre decidir.

Os titulares do direito de queixa, D... e mulher, nunca apresentaram queixa nos autos nos seis meses posteriores ao conhecimento dos factos e seu autor (arts. 113.º, n.º 1, e 115.º, n.º 1, do C. Penal), podendo tê-lo feito independentemente da qualificação jurídica que os factos possam ter merecido, o que ao caso é absolutamente indiferente.

A oportunidade e validade da ratificação da denúncia apresentada pelo filho dos ofendidos pressupõe que, a qualquer título, o mesmo tivesse atuado em representação dos pais, o que em parte alguma se colhe da leitura daquela denúncia.

Pelo contrário, o denunciante atuou em nome próprio, F... , na qualidade de Inspector Chefe da Polícia Judiciária, única expressamente invocada com referência ao art. 242.º, n.º 1, al. a), do C. Proc. Penal, sem que tal denúncia dispensasse a apresentação de queixa pelo(s) ofendido(s) no prazo legalmente previsto (art. 242.º, n.º 3, do c. Proc. Penal).

De resto, nem a deslocada doutrina do AFJ n.º 1/1997, publicado na I Série A do DR colhe aqui analogia, porquanto no caso ali tratado a queixa é apresentada por mandatário e, portanto, em nome de outrem, o que não sucede nos autos.

A oportunidade e validade da ratificação daquela denúncia pelos ofendidos serviria agora para encapotar uma intolerável prorrogação do prazo de apresentação de queixa, contra a incerteza do arguido, sendo inconstitucional a interpretação analógica do art. 49.º, n.º 3, do C. Proc. Penal, e art. 115.º, n.º 1, do C. Penal, na medida em que evitaria a preclusão do prazo taxativamente fixado neste último normativo legal.

Por conseguinte, não sendo válida a ratificação da denúncia e, portanto, indeferindo-se o requerido quanto ao ofendido D... , tendo aqueles crimes natureza semi-pública (arts. 198.º e 203.º, n.º 3, do C. Penal), sem legitimidade do Ministério Público para fazer prosseguir o procedimento criminal nesta parte (art. 49.º, n.º 1, do C. Proc. Penal), cumpre declarar o mesmo extinto por falta daquela pressuposto (queixa)».

A jurisprudência dos nossos tribunais superiores, na abordagem de temática que com aquela apresenta evidente similitude, consistente em saber se, em crime inicialmente público, relativamente ao qual já foi deduzida acusação pelo Ministério Público, a transmutação, decorrente da nova lei, desse ilícito em crime de natureza semi-pública ou particular, impõe a existência de queixa-crime, tem preconizado soluções díspares.

Em breve nota:

- Para uma corrente - a título de mero exemplo, Ac. do STJ de 01-07-1998 (proc. n.º 234/98 - 3.ª Secção), in Sumários do STJ, Acs. do mesmo Tribunal de 04-10-1995 e 19-03-97, in Colectânea, tomos III e I, págs. 203 e 292, e Ac. do mesmo Tribunal de 04-10-1995, Colectânea, tomo III, pág. 203 - tendo o instituto da queixa natureza mista, processual e substantiva, a lei que passa a fazer depender de queixa o procedimento criminal, no confronto com aquela que conferia ao ilícito natureza pública, é a aplicável, por favorecer inequivocamente o arguido;

- Seguindo outra, no circunstancialismo considerado, o ofendido dispõe do prazo de seis meses, contados da data da entrada da LN para declarar se deseja procedimento criminal - inter alia, vejam-se os Acs. do STJ de 19-03-1997, Colectânea, tomo I, pág. 252, e de 29-01-1997, BMJ 463, pág. 319;  

- Em posição diversa, sustenta-se no Ac. do STJ de 12-11-1997, publicado, em sumário, no respectivo Boletim Interno: «em tais circunstâncias, deve o tribunal, em aplicação, por analogia, do disposto no artigo 52.º do CPP, proceder à notificação do ofendido para, em três dias, declarar se quer ou não exercer o seu direito de queixa, com as consequências seguintes: a) declarando que não pretende apresentar queixa, ou nada declarando, o MP não tem legitimidade para prosseguir a acção penal e o arguido será então absolvido da instância, por ilegitimidade daquele; b) declarando que apresenta queixa, o MP tem legitimidade para prosseguir a acção penal»;

- Ainda com diferente registo, os Acs. da Relação do Porto de 13-03-1996, Colectânea, tomo II, pág. 229, e da Relação de Évora de 19-03-1996, mesma obra e mesmo tomo, pág. 286, sufragam tese no sentido de a queixa ser um mero pressuposto processual, detendo as normas atinentes ao exercício do respectivo direito natureza exclusivamente adjectiva penal, sendo, por conseguinte, de aplicação imediata, com projecção apenas no futuro;

- Por fim, outro sector da jurisprudência, acompanhado por parte da doutrina - sem a preocupação de sermos exaustivos, destacamos Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, vol. I, Editorial Verbo, 1997, pág. 275, e Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis no Tempo, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 385/410, e Acs. do STJ de 05-04-2001, Colectânea de Jurisprudência, tomo II, pág. 176/8; da Relação de Guimarães de 09-05-2005, Colectânea, III, pág. 295/6; da Relação de Lisboa de 26-11-2004, da Relação de Coimbra de 15-05-2013 (proc. n.º 2107/12.2PCCBR.C1) e de 12-03-2014 (proc. n.º 308/12.2T3AND.C1) - aceitando a dupla natureza, material e substancial, das normas relativas ao direito de queixa e, consequentemente, a aplicação retroactiva do regime penal mais favorável ao arguido, autonomizam, na vertente em causa, a incidência desta realidade na legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal, no manifestado entendimento de a condição de procedibilidade que a queixa constitui esgotar os seus efeitos na criação do pressuposto da promoção da acção penal pelo MP.

No caso que nos cumpre analisar, está em causa saber se, uma vez iniciado o processo para investigação de um crime público (furto qualificado), verificado, na fase de julgamento, que os factos se subsumem a tipos de crime semi-públicos (furto simples e violação de domicilio - este, o crime dominado, reassumindo autonomia em face da  comprovada inexistência do crime dominante, ou seja, o de furto qualificado), que repercussões assume esse fenómeno no procedimento criminal em curso.

Tem a nossa inteira concordância a última das soluções enunciadas, cujos pressupostos, quer de facto, quer de direito, repete-se, nada diferem, na sua génese e configuração jurídica, daqueles que corporizam a questão que nos cumpre conhecer.

Eis as razões.
Sem divergências que hoje se conheçam, a queixa - traduzida na declaração de vontade, manifestada pelo titular do direito respectivo, de que seja instaurado um processo por facto susceptível de integrar um crime - constitui um pressuposto processual positivo, querendo isto significar que, sem a sua apresentação, o Ministério Público carece de legitimidade para a promoção do procedimento criminal.
Porém, daqui não se retira sem mais que a referida figura jurídica assuma uma natureza meramente processual.
Contra a posição tradicional que considera as normas correntemente integradas no direito processual penal de natureza processual estrita, vêm ganhando nos últimos anos cada vez maior peso as correntes de doutrina e de jurisprudência que partilham uma perspectiva de índole material ou substantiva do direito de queixa, porquanto as normas que lhe são aplicáveis condicionam a punição, a aplicação da pena, contendendo, por isso, directamente com os direitos dos arguidos.
Dispõe o art. 48.º do CPP:
«O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º».
E, por sua vez, o artigo 49.º:

«Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo».

Assim, o princípio da oficialidade do processo penal está limitado pelas restrições constantes do artigo supra citado e bem assim do normativo do art. 50.º do CPP, que se refere à legitimidade em procedimento dependente de acusação particular.

A punição efectiva de um facto que consubstancie crime semi-público ou particular depende não apenas da verificação dos pressupostos de natureza substantiva, mas também da verificação das condições de natureza processual vertidas nos referidos arts. 49.º e 50.º do CPP, para que o processo penal possa iniciar-se e prosseguir. 

No caso dos autos, nenhuma patologia se verifica no surgimento e promoção do processo penal até à fase de julgamento: naquela altura, os elementos disponíveis sugeriam, claramente, a prática de um crime de furto qualificado, cuja natureza pública dispensava o Ministério Público de aguardar qualquer actividade de terceiros para a promoção do processo.

Sucedeu, tão só, que, na fase do julgamento, perante a prova produzida em audiência, o tribunal a quo veio a entender não se verificar a circunstância qualificativa do crime de furto.

Sendo a queixa uma condição de procedibilidade, mas não de prosseguibilidade, uma vez iniciado o processo por iniciativa do Ministério Público, num momento em que o crime indiciado e imputado ao arguido era público, é desnecessária a apresentação de uma queixa cujos (possíveis) efeitos jurídicos já se produziram, quando o crime público se degradou em crime(s) semi-público(s). O curso normal do processo só poderá ser impedido pelo surgimento de um obstáculo - desistência de queixa -, legalmente reconhecido. «Ou seja, por outras palavras: não é a declaração do ofendido no sentido de que o processo prossiga que vai conferir ao Ministério Público a legitimidade para prosseguir o processo que validamente iniciou; é, sim, a eventual vontade do ofendido de que o processo seja extinto o que retira ao Ministério Público a legitimidade para prosseguir com a acção penal» - Taipa de Carvalho, obra cit., pág. 390.

Na feliz expressão do já referido Ac. do STJ de 05-04-2001, «o que já se iniciou legitimamente, iniciado está e permanece».

Em breve síntese: iniciado o processo para investigação de um crime público (furto qualificado), não se torna necessária a dedução de queixa pelo titular desse direito se, após o julgamento, os factos apurados degradarem o referido ilícito em (concurso efectivo de) dois crimes semi-públicos (furto simples e violação de domicílio).

Perante o que fica exposto, embora com diversos fundamentos, procede, nesta vertente, o recurso.


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5.3. Natureza e medida da pena, relativa aos crimes de furto simples e de violação de domicílio:

Não se discute a continuação criminosa tida como verificada pelos julgadores do tribunal da 1.ª instância.

Ambos os referidos crimes são puníveis com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa (o sancionamento do segundo decorre do n.º 3 do artigo 190.º., por ter sido cometido de noite).

Impõe-se, assim, no seguimento da orientação inserta no art. 70.º do CP, que se analise previamente se será caso de dar preferência à pena pecuniária.

Resulta manifesto do nosso sistema penal vigente - de forma ainda mais acentuada a partir das alterações introduzidas no CP de 1982 pelo DL n.º 48/95, de 15/03, conforme bem se salienta no respectivo preâmbulo - que a pena de multa apresenta-se como uma verdadeira pena principal, prevista normalmente como alternativa à de prisão e regulada em termos de se possibilitar a sua adequação às necessidades concretas de prevenção geral e especial da punição e de permitir a sua efectividade, assim se proporcionando condições para a prossecução do objectivo, subjacente ao CP de 1982, de constituir a pena de multa em «instrumento privilegiado da política criminal relativa à pequena e à média criminalidade» (Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do Crime, p. 114 e ss.), integrado no conjunto dos instrumentos consagrados nesse Código visando a realização da concepção básica de política criminal, que o informa, de evitar, tanto quanto possível, as curtas penas de prisão.

Há que verificar, pois, se a pena de multa realiza de forma adequada e suficiente as referidas finalidades (de prevenção especial e de prevenção geral da punição, que não de compensação da culpa).

Não obstante aquela filosofia, no caso vertente, a pena de multa revela-se inadequada e ineficaz face às necessidades de prevenção, gerais e concretas, mostrando-se incapaz de realizar de forma suficiente as finalidades da punição.

Não obstante a, relativamente curta, idade do arguido na data dos factos (20 anos), os factos provados evidenciam, ao mesmo, um percurso de vida pautado pelo cometimento de diversos crimes, sobressaindo as três seguintes condenações: em 11-04-2011, por factos de 19-02-2010, pela prática de um crime de furto qualificado e de um crime de detenção de arma proibida, na pena única de 2 anos e 3 meses de prisão, declarada suspensa na sua execução sob regime de prova (sentença transitada em julgado no dia 20-05-2011); em 4-10-2012, relativa a factos ocorridos em 11-02-2011, pelo cometimento de um crime de furto qualificado, na pena de 3 anos de prisão, cuja executoriedade também foi declarada suspensa (trânsito da sentença: 24-10-2012); em 29-06-2012, pela prática de um crime de detenção de arma proibida e de cinco crimes de furto qualificado, em pena de prisão efectiva. 

Ou seja, condenado sucessivamente em duas penas de prisão declaradas suspensas, pela perpetração de crimes de furto qualificado, as advertências contidas nessas condenações não foram suficientes para dissuadir o arguido da prática dos crimes reportados nos presentes autos.

Crê-se, por isso, que só a imposição de uma pena privativa de liberdade se mostra capaz de lhe fazer sentir o desvalor da sua conduta e a censura pelo desrespeito da lei que, bem sabia, estava obrigado a respeitar e acatar.

 

O arguido, na data dos factos, tinha apenas 20 anos de idade.

O art. 9.º do Código Penal dispõe que “aos maiores de 16 anos e menores de 21 são aplicáveis normas fixadas em legislação especial”.

Contêm-se estas normas no DL n.º 401/82, de 23 de Setembro, que instituiu um regime para os jovens que tenham cometido um facto qualificado como crime e que, à data da sua prática, tenham completado 16 anos sem ter atingido ainda os 21 anos.

Estabelece este diploma no seu artigo 2.º: “a lei geral se aplica em tudo que não for contrariado pelo presente diploma”, significando o seu teor a prevalência do regime penal especial para jovens, só se fazendo apelo ao regime geral quando não for viável ou possível a aplicação daquele regime especial.

Daí decorre para o Tribunal, mesmo oficiosamente, o poder-dever de considerar a aplicação deste regime especial para jovens, quando apreciar a conduta de um agente que tenha mais de 16 anos e menos de 21 anos, à data da prática da infracção criminal.

O art. 4.º do citado diploma prescreve: “Se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos temos dos artigos 73.º e 74.º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado”.

Uma visão teleológica deste comando legal permite desde logo duas conclusões:

- A aplicação do regime especial para jovens e, consequentemente, da atenuação especial, não constitui efeito automático de se ter mais de 16 e menos de 21 anos, à data da prática da factualidade típica;

- A referida aplicação do regime especial tem de decorrer de um juízo de prognose favorável sobre a conduta futura do jovem delinquente por forma a que a atenuação possa representar para este não um amolecimento do sistema mas um incentivo sério para uma conduta posterior conforme com os valores sociais e uma vida harmoniosa em sociedade sem voltar à prática de novas infracções criminais.

Deixou o legislador uma margem larga de critério para o julgador ao não estabelecer expressamente índices ou factores especificamente definidores da reinserção social do jovem condenado, estabelecendo apenas o limite da existência de razões objectivas sérias que possam fundar o referido juízo de prognose favorável e a convicção da reinserção social decorrente da pena especialmente atenuada.

Afinal, o pensamento de que se atingirá melhor com a pena atenuada o fim da pena, consagrado no artigo 40.º do Código Penal, da reintegração do agente criminoso, porque jovem, na sociedade.

De qualquer forma, define-se a aplicação deste regime especial pela verificação múltipla de factores endógenos (personalidade) e exógenos (condições de vida, circunstâncias dos crimes), em relação ao jovem agente do ilícito criminal.
Concretizando estes princípios fundamentadores, verifica-se que a culpa do arguido é intensa e que o mesmo, logo depois de lhe terem sido impostas penas de prisão, declaradas suspensas na sua execução, voltou a delinquir.
Por outro lado, avulta uma patente falta de inserção familiar e social.
Face a estes condicionalismos, não pode o mesmo beneficiar da atenuação especial da pena prevista no citado art. 4.º do DL 401/82, de 23-09.

Preceitua o art. 40.º, do Código Penal, que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2).

O art. 71.º do mesmo diploma, estipula, por outro lado, que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção» (n.º1), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (n.º 2, do mesmo dispositivo).   

Dito de uma outra forma, a função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.
O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.

Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Passemos então à concretização destes enunciados, sendo certo que, para o efeito, o tribunal deverá atender “a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele” (art.º 71, n.º 2, do CP).

No caso em apreço, considerando que:

- O modo de execução dos factos não supera a normalidade;

- O pequeno grau de ilicitude, em função do pequeno valor dos bens subtraídos;

- É acentuado o conhecimento e a intensidade da vontade no dolo (directo) revelado;

- O arguido tem o passado criminal que se deixou registado;

- São elevadas as exigências de prevenção geral, de prevenção, e especial, de socialização;

- O crime de violação de domicílio foi instrumental em relação ao crime de furto;

- O arguido colaborou na descoberta da verdade material, embora com relevância relativa, atendendo à evidência da restante prova;

- A juventude do arguido,

julgamos adequadas: para o crime de furto, a pena de 9 (nove) meses de prisão; para o crime de violação de domicílio, a pena de 6 (seis) meses de prisão.


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A moldura abstracta da pena do concurso tem como limite máximo a soma das penas de prisão concretamente aplicadas aos vários crimes não, podendo ultrapassar 25 anos de prisão, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (art. 77.º, n.º 2 do CP).
Dentro da moldura encontrada, é determinada a pena do concurso, para a qual a lei estabelece que se considere, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (art. 77.º, n.º 1, do CP), sem embargo, obviamente, de ter-se também em conta as exigências gerais da culpa e da prevenção a que manda atender o art. 71.º, n.º 1 do CP, bem como os factores elencados no n.º 2 deste artigo, referidos agora à globalidade dos crimes.

Reproduzindo a palavra autorizada do Prof. Figueiredo Dias - Direito Penal Português - Parte Geral II - As Consequências Jurídicas do Crime, ed. Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 421, págs. 291 e 292 - tudo deve passar-se, por conseguinte, «como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade; só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)».

Conforme aos parâmetros legais, respondendo adequadamente à imagem global dos factos, firmada na pouca gravidade dos mesmos e no dolo intenso, e considerado também o (pequeno) valor dos furtos e a personalidade desviante do arguido, justifica-se a fixação da pena única (integrando também o crime de furto qualificado pelo qual o arguido foi condenado no acórdão recorrido) a pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão, pena esta que ainda responde adequadamente aos fins das penas, é tolerável socialmente e não hipoteca, desproporcionadamente, o futuro do condenado.


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A pena substitutiva do art. 50.º do CP é claramente de excluir, por não proporcionar razões sérias para crer que em liberdade o recorrente não sucumbiria ao crime, não justificando, pois, que a Relação, prudencialmente, corra esse risco, além de que, hostilizaria as finalidades de punição, vocacionadas, prevalentemente, à defesa do ordenamento jurídico, limite incontornável da suspensão da execução da pena.

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3. Dispositivo:

Posto o que precede, os Juízes que compõem a 5.ª secção (criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra, concedendo parcial provimento ao recurso, revogam, em parte, o acórdão do tribunal a quo e, em consequência:

A) Condenam o arguido A... , pela prática de um crime, continuado, de furto, p. e p. pelos artigos 204.º, n.ºs 1, al. f), e 3, do Código Penal, e de um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo artigo 190.º, n.ºs 1 e 4, do mesmo diploma, nas penas de 9 (meses) e 6 (seis) meses de prisão, respectivamente;

B) Em cúmulo jurídico [englobando as penas descritas em A) e a pena, de 1 (um) no e 9 (nove) meses de prisão, relativa ao crime, de furto qualificado, em que foi ofendido K... ], na pena única de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão;

C) Manter, no mais, o decidido no acórdão do tribunal da 1.ª instância.

Sem tributação. 

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Coimbra, 11 de Maio de 2016
(Processado e revisto pelo relator, o primeiro signatário)



 (Alberto Mira)

(Elisa Sales)