Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1514/18.1T8LMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA MARIA ROBERTO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ALCOOLEMIA
DESCARACTERIZAÇÃO DO ACIDENTE
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 11/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DE LAMEGO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 14.º DA LAT
Sumário:
I – Por força do disposto no artigo 14.º da LAT, não há lugar à reparação quando o acidente: b) provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.

Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.

II – Para descaracterizar o acidente com base na negligência grosseira do sinistrado é preciso provar-se que a sua conduta é altamente reprovável, indesculpável e injustificada, à luz do mais elementar senso comum, que o acidente ocorreu devido à condução sob influência do álcool e só por causa deste, ou seja, o nexo de causalidade entre a taxa de álcool no sangue e a verificação do acidente e que este proveio exclusivamente daquele comportamento do sinistrado, matéria cujo ónus da prova incumbe à entidade responsável.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

Apelação n.º 1514/18.1T8LMG.C1

_________________________________

Acordam[1] na Secção Social (6.ª secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

Fundo de Acidentes de Trabalho, com sede em Lisboa

intentou a presente ação especial de acidente de trabalho contra

Fidelidade, Companhia de Seguros, S.A., com sede em Lisboa

alegando, em síntese que:

O trabalhador quando se encontrava a trabalhar foi interveniente num acidente de viação quando conduzia um veículo pesado de mercadorias que entrou em despiste, tendo tombado; sofreu lesões que vieram a ser causa direta e necessária da sua morte; o sinistrado não deixou familiares com direito a pensão, pelo que, cabe ao FAT uma importância igual ao triplo da retribuição anual daquele, no valor de € 36.847,05 e cujo pagamento impende sobre a Ré seguradora.

Termina, formulando o seguinte pedido:

Nestes termos e nos demais de direito, deve a presente ação ser julgada procedente e provada e por via dela:

1 - Ser declarado o acidente sofrido por AA como de trabalho in itinere;

2 - Ser a Ré condenada a pagar ao Autor Fundo de Acidentes de Trabalho a quantia de 36.847,05€ (trinta e seis mil, oitocentos e quarenta e sete euros e cinco cêntimos).

                                                             *

A Ré seguradora contestou alegando, em sinopse, que:

O acidente resultou de conduta temerária em alto e relevante grau o que consubstancia a descaracterização do acidente por negligência grosseira do sinistrado, não podendo, por isso, assumir a responsabilidade pela respetiva reparação, isto porque o acidente o acidente de viação ocorreu por culpa exclusiva, grave e indesculpável da própria vítima, ao exercer as suas funções e conduzir com TAS de mais de 5g/l; o despiste e acidente que causou a morte foi devido exclusivamente ao facto de o sinistrado estar no estado de embriaguez e conduzir com uma TAS de mais de 5g/l e de, face a este estado em que se encontrava, não ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior do chassis da caixa de carga do veículo.

Termina dizendo que a presente ação deverá ser julgada improcedente e não provada e a Ré absolvida do pedido com todas as consequências legais.             

                                                             *  

Foi proferido o despacho saneador de fls. 120 e segs., foi selecionada a matéria assente, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

                                                             *

Procedeu-se a julgamento, conforme consta da respetiva ata.

                                                             *

Foi, depois, proferida sentença (fls. 160 e segs.) e cujo dispositivo é o seguinte:

“Face ao exposto, decide-se julgar procedente por provada a presenta ação e consequentemente decide-se:

1) Reconhecer que o acidente que vitimou AA, ocorrido em 22.12.2018, é um acidente de trabalho;

2) Condenar a Ré Seguradora, “Fidelidade – Companhia de seguros, S.A.” a pagar:

» ao FAT a quantia de 36.847,05€, nos termos do art. 63º, da LAT;

» a BB a quantia de 1.810,00 a título de subsídio por despesas de funeral.”

                                                                       *

A Ré seguradora, notificada desta sentença, veio interpor recurso da mesma formulando as seguintes conclusões:

1ª- O presente recurso versa sobre a apreciação da matéria de facto, porquanto entende que ocorreu erro de apreciação de prova produzida em sede audiência de julgamento e documentos juntos e consequente interpretação e aplicação da legislação aos factos apurados.

2ª- A reapreciação da matéria de factos incide sobre os factos não provados constantes de fls 6 da douta sentença, pois que não ignorando o princípio da livre apreciação da prova, mas tal não se pode confundir com discricionariedade e arbitrariedade, antes exige uma profunda ponderação e reflexão de toda a prova produzida e a sua análise crítica.

3ª- Salvo sempre o devido respeito, entendemos da análise de todos os elementos constantes dos autos, esclarecimentos dos Srs Peritos prestados em sede de audiência de julgamento, da literatura técnico-cientifica sobre a influência do álcool no sangue na condução e da lógica das cosias , da experiência e do senso comum , e das presunções judiciais tais factos devem ser dados como provados .

4ª-Na verdade, não compreendemos como depois de se dar como provado os factos elencados nas alíneas B),I), J), K), L), M), N e o) , venha depois a mesma Mª Juiz do Tribunal a quo poder concluir que :

“Não obstante, tudo quanto se apurou e resumidamente atrás exposto, não foi possível apurar factos que nos permitissem concluir que o acidente de viação e consequente morte da infeliz vitima, ocorreu por culpa exclusiva, grave e indesculpável da própria vitima, ao exercer as suas funções e conduzir com uma TAS de mais de 5 g/l; que o despiste e acidente que causou a morte foi devido exclusivamente ao facto de estar no estado de embriaguez e conduzir com uma TAS de mais de 5 g/l,…”.

6ª- Não estamos a tratar de uma TAS de o,5 g/l, ou de 1,0 g/l ou 2,0 g/l , mas sim de 5,0 g/l, uma quantidade exorbitante, que como referiram os Srs Peritos do IML, e que    deixou o sinistrado perfeitamente inconsciente, como facilmente se percebe e resulta da lógica das coisas .

7ª- Parece-nos evidente , liquido , da experiência comum, da lógica e resulta de qualquer simples análise de qualquer estudo técnico e cientifico que qualquer individuo , independentemente da sua constituição fisica ou apetência/resistência para o consumo de bebidas alcoólicas, que com um TAS de 5,o g/l não estava na posse das sua mais elementares faculdades mentais , psíquicas e motoras para conduzir.

8ª- Independentemente da prova testemunhal produzida em sede de audiência , como a inquirição dos Srs Peritos do IML, que não deixam dúvidas sobre tal matéria de facto, resulta da experiência comum e de simples presunção judicial que assim é, bem como de todos os estudos técnicos e científicos sobre a influência do álcool na condução .

Assim,

9ª- Que tais factos devem ser considerados provados, resulta desde logo do depoimento dos Srs Peritos em sede de audiência de julgamento , Dr CC e Dr DD .

10ª- O Sr Dr CC, que procedeu a autópsia do sinistrado e que depôs na sessão de julgamento de 12.05.2022, e cujo depoimento se encontra gravado no sistema integrado de gravação digital, com inicio às 10:19:24 e termo às 10:53:20, a cerca desta matéria declarou ao minuto 23:00 :

Advogado- Já agora senhor doutor e pegando aqui também pelo seu relatório havia sinais ou não de que este senhor habitualmente consumia bebidas alcoólicas … permita-me que que refira aqui duas situações que é o fígado aumentado e uma cardiopatia com o coração também aumentado, consta do relatório. Isto significa não que este senhor consumia bebidas alcoólicas ?

Testemunha - não posso dizer isso ….pode ser isso pode ser disso … a probabilidade é grande mas também é uma especulação não temos objetivos para afirmar uma coisa dessas .

Advogado- mas a probabilidade é elevada?

Advogado - outro aspecto senhor doutor e penso que será o aspecto final, com esta taxa de álcool no sangue é evidente que não é normal , mas não é primeiro caso …eu também já tive, já tive situações em que isso ocorreu, portanto não é assim tão anormal agora, agora pergunto : com esta taxa é evidente que o Senhor doutor também já referiu que há muito álcool e que é muito elevado ?

Testemunha- exatamente .

Advogado. - Portanto isto afeta, não afeta de forma muito grave as capacidades psicomotoras desde senhor?

Testemunha – Afecta.

Advogado- Designadamente é provável ou não de que o acidente tenha ocorrido devido a essa taxa de álcool ?

Testemunha- É provável , é verdade.

Advogado. - se não houver outra causa excluir , ia perguntar é que não há aqui a intervenção de terceiros há um despiste, a probabilidade da taxa de álcool no sangue tão elevada de ser a causa do acidente é razoável ou não?

Testemunha - É razoável .

11ª- Por sua vez,

O Sr Dr DD, especialista superior de medicina legal e especialista em química e toxicologia forense do INMLCF – delegação Norte , ..., e que depôs na sessão de julgamento de 12.05.2022, e cujo depoimento se encontra gravado no sistema integrado de gravação digital, com inicio às 10:58:42 e termo às 11:20:37, declarou ao minuto 09:00 do seu depoimento :

Advogada- Isto significa em que situação ele está?

Testemunha-que ele está normalmente significa intoxicação alcoólica aguda ou seja implica muitas vezes essa situação limite o indivíduo está em coma está ou está morto …

Advogada - portanto é uma pessoa que não teria à partida condições para sequer estar a conduzir a ter estado um dia inteiro e é no final do dia quando ter capacidade para conduzir alguns quilómetros ainda no veículo?

Testemunha - … de acordo com as indicações dos referenciais que nós temos em medicina legal ele estaria praticamente incapacitado para agir pelos seus próprios meios, mas isso não significa o que haja em situações particulares circunstâncias especiais que possam levar a manter sua capacidade …

12ª- E mais adeante a instâncias do Mandatário da Ré, ao minuto declarou ao minuto 17:00 :

Advogado - Só lhe queria pedir que nos ajudasse a esclarecer 3 aspetos, e um tem a ver relativamente com aquela questão de ter uma taxa de álcool no sangue tão elevada, que o senhor doutor referiu que ele tinha que ter ingerido grande quantidade de álcool?

Testemunha - exatamente.

Advogado - Portanto o álcool não cai do céu, teve de ser ingerido certo ?

Testemunha - sim …descartando qualquer hipótese que leve ou apareça no sangue.

Advogado- Se não foi injetado .

Testemunha- na prática do tudo aquilo que nós detectamos tem a ver com a ingestão de bebidas alcoólicas .

13ª- E novamente ao minuto 19:50, declarou :

Advogado- O último aspecto tem a ver com a com esta taxa de álcool que grau 5 que o senhor doutor referiu, que é uma intoxicação aguda, foi o que disse, não percebi mal ?

Testemunha – Não, não percebeu mal … confirmo isso .

Advogado- Portanto em circunstâncias normais essa pessoa não consegue ter movimentos psicomotores, mas em algumas circunstâncias consegue ter ?

Testemunha - Não me posso pronunciar acerca disso, porque não conheço as circunstâncias em que ocorreu , mas em termos globais, em termos gerais, em termos de de tratados de medicina legal, parece que isto é uma taxa que normalmente não não é capaz de não dar capacidade de um indivíduo para se manter alerta, em termos de estado consciente, não à o estará, está em estado inconsciente ou estará em estado letal .

Advogado- Mas admite que pode haver outras circunstâncias especiais que me refere?

Testemunha – Sim .

14ª- Resumindo e concluindo os dois Senhores Peritos, em sede de audiência de discussão e julgamento de forma unânime evidenciaram de forma clara e inequívoca que o sinistrado com aquela taxa de álcool estava totalmente incapacitado de entender, querer e de conduzir .

15ª- De igual modo , basta uma simples pesquisa na internet e deparamos com centenas de estudos técnicos e científicos em, que unanimamente consideram que com uma TAS acima dos 3,5/ 4,00 g/l : O ondutor alcoolizado neste valor não está em condições de conduzir , avalia mal, reage mal e executa mal, e não tem condições para discernir o que quer que seja;

16ª- “- O sinistrado conduzia sob o efeito de uma TAS de 3,04 +- 0,39 g/l, concentração que é causadora de profundas alterações nas capacidades cognitivas e psicomotoras, como sejam, desajustes no controle e coordenação motora, redução da actividade psicomotora, alterações da percepção sensorial e temporal, inibição do movimento e lentidão de reacções, diminuição da coordenação de movimentos, modificação da percepção visual, dificuldades de atenção, sonolência, sedação, etc”

E

As bebidas alcoólica afectam, no cérebro e no cerebelo, as capacidades cognitivas , de antecipação, de previsão e de decisão, e também as capacidades perceptiveis, nomeadamente visuais e o próprio equilíbrio, bem como as capacidades de resposta motora e poder conduzir à morte”

17ª- Acresce que e também pode o tribunal extrair das chamadas presunções judiciais, atendendo às circunstâncias em que ocorreu o acidente, sendo uma descida , com boa visibilidade e estando bom tempo, sendo dentro de uma localidade, é evidente que o sinistrado foi o único e exclusivo culpado na produção do acidente , já que por influência do álcool não adoptou as mais elementares cautelas .

18ª-Por isso será forçoso concluir que só poderia ter sido devido à taxa de álcool no sangue de que era portador, que o snistrado não conseguiu acoplar devidamente o contentor ao veiculo pesado , bem sabendo e tendo formação adequada para o efeito, sendo que o acidente se tratou de um despiste e sem intervenção de terceiros.

19ª- O sinistrado conduzia o veículo com uma TAS altissima, de cerca de 5 g/l , que normalmente ao comum dos mortais conduz ao estado de coma e inconsciência , e portanto muito superior àquela legalmente permitida, constituindo-se mesmo como ilícito criminal (cfr. artº 292º do CP).

20ª- Na verdade, está cientificamente comprovado que a ingestão de álcool diminui, na exata medida do crescendo do seu teor, a capacidade de reação e de concentração, assim como a capacidade motora e sensorial, nomeadamente a visual, provocando, uma demora na reação aos estímulos, donde influir, nessa medida, na atividade da condução de veículos, dado diminuir (adequadamente) a aptidão de quem conduz esses veículos.

21ª- Deste modo, dado o elevado teor da taxa de álcool com que o sinistrado conduzia , se tratou de um despiste e que o sinistrado actuou, no caso, de forma imprevidente/negligente. Imprevidência/negligência essa causada pelo elevado teor de álcool com que circulava, que lhe terá retirado a necessária clarividência para acoplar devidamente o contentor e evitar o acidente, assim, a ele dando causa forma exclusiva .

22ª- Por outro lado, ao conduzir com um nível de 5,0 g/l de álcool no sangue revelou um comportamento muitissimo grave, inconsciente mesmo, incumprindo elementares regras de cuidado e de prudência que qualquer condutor médio deve adotar, violado uma regra de segurança que o proibia de conduzir, o art.81º do Código da Estrada (Condução sob o efeito de álcool ou de substâncias psicotrópicas) e na prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto no artigo 292º nº 1 do C. Penal.

23ª- Obviamente se pode extrair que o sinistrado com aquela TAS conduzia de forma descontrolada, sem noção do tempo e lugar e não conseguiu dominar o veiculo.

24ª- Também obviamente que se estivesse sóbrio , após a acoplagem do contentor e antes de iniciar a marcha, devia ter acionado o hidraulico do bloqueio traseiro, mas que não fez pois que com aquele estado de embriaguês não tinha discernimento para o fazer, bem como colocar o cinto de segurança.

25ª-Assim, manifestamente face aos documentos juntos, aos depoimentos das testemunhas , ao senso comum, ao normal das coisas e da vida e da própria experiência e recorrendo às presunções judiciais, não temos dúvidas que aqueles factos têm de ser dado como provados .

26ª- Assim, deve aditar-se aos factos provados as seguintes alienas :

GG- O acidente de viação e consequente morte da infeliz vitima, ocorreu por culpa exclusiva, grave e indesculpável da própria vitima, ao exercer as suas funções e conduzir com uma TAS de mais de 5 g/l.

HH- Conduzindo o JZ de forma desenfreada, descontrolada e sem noção do tempo e lugar, o Sinistrado não conseguiu dominar/manter o veiculo sequer dentro da faixa de rodagem.

II - Pelo que desgovernado e sem interferência de qualquer outro fator que não a TAS de que era portador, foi embater no muro que ladeia a estrada do lado direito e de seguida tombou sobre o lado direito.

JJ- O não uso do cinto de segurança fê-lo cair para o lado direito do interior da cabine, ficando aí encarcerado, o que não sucederia se usasse o cinto de segurança, e em resultado das lesões veio a falecer.

KK-O despiste e acidente que causou a morte foi devido exclusivamente ao facto de estar no estado de embriaguez e conduzir com uma TAS de mais de 5 g/l, dado que com tal TAS a infeliz vitima não conseguiu acondicionar o contentor devidamente, manobrar o veiculo, conduzir, visualizar a via ou sequer controlar os seus movimentos.

LL- O Sinistrado trabalhava e conduzia sem qualquer atenção e noção da estrada e do trânsito, e sem qualquer domínio sobre o veículo, não conseguindo impedir que o mesmo saísse fora da faixa de rodagem.

MM- Após a acoplagem/carregamento do contentor na caixa do veiculo e antes de iniciar a marcha com o contentor acoplado /carregado, a infeliz vitima devia ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro que estava disponível no interior da cabine e junto ao banco do condutor, o que não fez.

NN- Antes de o veículo tombar e raspar a vítima não usava o cinto de segurança, por isso ficou encarcerada junto ao banco do lado direito e com os ferimentos ficou inconsciente.

OO- O acidente ficou a dever-se ao facto da infeliz vitima face ao estado de alcoolémia em que se encontrava não ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior do chassis da caixa de carga do veiculo e desencadeasse o acidente.

PP- O acidente e suas consequências ficaram-se a dever exclusivamente ao facto de o Sinistrado se encontrar e conduzir em estado de embriaguez, não havendo qualquer outra causa possível.

QQ- Se o Sinistrado estivesse sóbrio, seguramente, o acidente não teria ocorrido e consequentemente a morte .

27ª - O comportamento do sinistrado configura assim, um comportamento culposo porque este podia (e devia) ter evitado aquele acidente e a sua própria morte e concluímos do que fica exposto, que a conduta do sinistrado foi a única e exclusiva causa do acidente e que conduziu à sua morte .

Acresce que ,

28ª- Salvo o devido respeito , entendemos que dos factos provados também só por si e sem necessidade de mais indagações, constituem motivo mais que suficiente para a descaracterização do acidente de trabalho sofrido pelo sinistrado nos termos do disposto nas alíneas a) e b) e nº 3 do art. 14º da LAT .

29ª- Na verdade, como resultou provado o sinistrado era um trabalhador motorista experiente ( P), conhecia todos os mecanismos inerentes à acoplagem e fixação do contentor ( Q), sabia e tinha formação que tinha de acoplar e fixar o contentor, e que tal era da sua responsabilidade ( R) , o veiculo tinha um sistema próprio e adequado para fixar o contentor ( S) e sabia que tinha de manusear os respectivos manípulos existentes para o efeito ( T) , e que antes de iniciar a marcha sabia que tinha de accionar o bloqueio traseiro para fixar o contentor ( U) .

30ª- Nenhum deste procedimentos que eram os mais elementares e que sabia e a que estava obrigado praticou , e daí ocorreu o acidente que o vitimou .

31ª- Daí que depois de iniciar a marcha e porque o bloqueio traseiro não estava accionado, o contentor saiu dos carris ( (V) , estando apenas fixo pela parte da frente com a força centrifuga provocou a saída do contentor para o lado direito, tivesse o camião tombado , deslizasse e ocorresse o acidente ( WW e DD) .

33ª- Isto é, a causa do acidente foi uma negligência grosseira, mesmo muito grave do sinistrado , em que o sinistrado que violou gravemente as condições de segurança por culpa própria e sem causa justificativa , ou melhor a TAS não lhe permitiu ter o discernimento necessário para o efeito .

Por outro lado,

34ª- Como resulta dos factos provados , o sinistrado conduzia na EN...2 ( K) , tempo e piso em bom estado ( (L), descrevia uma curva à esquerda e sem obstáculos ( M) , entrou em despiste , bateu no muro e tombou sobre o lado direito ( N) , em consequência caiu para o lado direito e ficou encarcerado ( O) , após o sinistro verificou-se que não estava com o conto de segurança e estava encarcerado junto ao banco do lado direito ( Y) e que do acidente resultou taumatismo crâneo encefálico que foram a causa direta e necessária da sua morte ( E) .

35ª- Desta forma , a infeliz vitima conduzia o veiculo numa estrada , muito sinuosa, de curvas e contra curvas acentuadas, e com forte inclinação descendente, que veiculo auto pesado encontrava-se equipado pelo denominado cinto de segurança ou de retenção, em perfeitas condições de funcionamento, a infeliz vitima conduzia o citado veiculo sem fazer uso do cinto de segurança, ou de retenção, ao contrário do que legalmente se encontrava obrigado, não só legalmente, mas também impunham as regras de bom senso e de um condutor médio, atenta a sinuosidade da estrada e do perigo que isso representa, de tal forma que ao descrever uma curva , o veiculo pesado entra em despiste , tomando sobre o lado direito, e por a infeliz vitima porque não fazia uso do cinto de segurança caiu para o lado e ficou encarcerado, acabando por sofre TCE que lhe causou a morte .

36ª- Logicamente e resulta da experiência comum, e essa é a função do cinto de segurança, se a infeliz vitima fizesse uso do mesmo, não caía para o lado direito da cabine, e não ficava encarcerado.

37ª - O infeliz sinistrado não desconhecia a obrigação de fazer uso de cinto de segurança, e não é dificil compreender para qualquer pessoa e condutor a necessidade e utilidade do seu uso;

38ª- Assim, foi a actuação inconsciente e imprudente do infeliz sinistrado, que não usou o cinto de segurança,   e sem respeitar as regras de segurança em tal procedimento que lhe causou a morte.

39ª- Pois que de outra forma, se usasse o cinto de segurança, não era projectado para o lado direito e ficava encarcerado e não advinha a morte, pelo que foi a conduta do sinistrado que voluntariamente não respeitou as regras de segurança previstas na lei que causou a morte .

4oª- O infeliz sinistrado teve assim uma conduta voluntária, , inapropriada, injustificada e sem ter em conta as mínimas prescrições de segurança impostas por lei .

41ª- Assim o acidente deveu-se a culpa grave e indesculpável do sinistrado, descaracterizando o acidente como de trabalho nos termos do disposto no art. 14º, nº 1, al .a) do NLAT, sendo que o comportamento da vitima e tal violação das regras de segurança , foi causa directa e necessária da morte .

42ª- Assim salvo o devido respeito, face aos factos provados e aos factos não provados que de acordo com prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e aos documentos juntos aos autos, se devem ter como provados, a douta sentença recorrida fez uma errada interpretação do disposto no art 14º da LAT .

Termos em que ,

e nos mais e melhores de direito que V. Exªs doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao recurso , revogando-se a douta sentença recorrida e substituindo-se por outra que julgue a acção totalmente improcedente e absolva a dos pedidos e assim se fará inteira

J U S T I Ç A .”

                                                              *

O Autor não apresentou resposta.

                                                             *

O Exm.º Procurador Geral Adjunto emitiu o douto parecer de fls. 194 e segs. no sentido de que “a Apelação deve(rá) ser julgada improcedente”.

*

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II – Questões a decidir:

Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (art.º 639.º, n.º 1, do CPC), salvo as que são de conhecimento oficioso.

Assim, cumpre conhecer as seguintes questões suscitadas pela Ré recorrente:

1ª – Reapreciação da matéria de facto.

2ª – Se o acidente dos autos resultou de negligência grosseira do sinistrado.

                                                             *

                                                             *

  III – Fundamentação

a) Factos provados constantes da sentença recorrida:

A) No dia 22.12.2018, AA, beneficiário da Segurança Social n.º ..., encontrava-se a trabalhar sob as ordens, direção e fiscalização da R..., SA, com sede no ..., Apartado ...7, ... ..., quando foi vítima de um acidente de viação.

B) Tal acidente ocorreu cerca das 18h em ..., quando o Sinistrado conduzia um veículo pesado de mercadorias e este entrou em despiste, tendo tombado.

C) Desempenhava as funções inerentes à categoria profissional de motorista de veículos pesados, auferindo a remuneração anual de 12.282,35€ (retribuição base de 739,29,00€ x 14 meses, subsídio de alimentação de 6,41€ x 242 dias e 381,07€/ano de outras remunerações).

D) A responsabilidade infortunística laboral encontrava-se transferida para a Ré, Fidelidade – Companhia de Seguros, SA, através de contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho, titulado pela apólice n.º ...59, pela totalidade da remuneração anual - 12.282,35€ (retribuição base de 739,29,00€ x 14 meses, subsídio de alimentação de 6,41€ x 242 dias e 381,07€/ano de outras remunerações).

E) Tal evento provocou ao sinistrado lesões - traumatismo crânio encefálico – que vieram a ser causa direta e necessária da morte no próprio dia do acidente, conforme relatório de autópsia junto aos autos.

F) A vítima não deixou familiares com direito a pensões por morte nos termos do artigo 63º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.

G) O sinistrado faleceu no estado civil de solteiro.

H) Na tentativa de conciliação, realizada em 11.09.2020, a Ré aceitou a existência do acidente, o nexo causal entre o acidente e a lesão e entre esta e a morte, bem como a transferência de responsabilidade por acidente de trabalho com base na retribuição anual de 12 282,35€; mas não aceitou a responsabilidade emergente do acidente por entender que o mesmo resultou de negligência grosseira por parte do sinistrado, designadamente por conduzir com uma taxa de alcoolemia de >5g/l, conforme resulta do exame químico e toxicológico realizado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP (INMLCF), junto aos autos.

I) Resulta do relatório de autópsia efetuado ao sinistrado AA no dia 24.12.2018, que o exame toxicológico para pesquisa de etanol no sangue, revelou uma taxa superior a 5 g/l, sendo que a amostra de sangue usada foi colhida em sangue da cavidade cardíaca.

J) Na sequência da averiguação da causa do acidente constatou-se a falta de acionamento do hidráulico do bloqueio traseiro.

K) No dia 22 de dezembro de 2018, cerca das 18H00, a infeliz vítima circulava na EN ...22, em ..., no sentido descendente Câmara Municipal – Centro de Saúde, conduzindo o veículo matricula ..-JZ-...

L) O tempo estava bom, e o piso encontrava-se seco e em bom estado de conservação.

M) Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas, o veículo conduzido pela infeliz vítima, descrevia uma curva para a esquerda e sem quaisquer obstáculos na via.

N) Tendo entrado em despiste, sozinho, indo embater no muro que ladeia a estrada do lado direito e de seguida tombou sobre o lado direito.

O) Em consequência, caiu para o lado direito do interior da cabine, ficando aí encarcerado.

P) O Sinistrado era operador de veículos e transportava no veículo um contentor de lixo acoplado no chassis do mesmo.

Q) E trabalhava na empresa há cerca de 15 anos, conhecia perfeitamente o veículo que conduzia e todos os mecanismos inerente à acoplagem e fixação do contentor que transportava.

R) No exercício das suas funções, o sinistrado transportava no veículo que conduzia um contentor carregado com resíduos sólidos para ..., que tinha de acoplar, fixando o contentor ao chassis do veículo que conduzia e que era da sua responsabilidade, tendo formação profissional para o efeito.

S) O veículo dispunha de um Sistema Amplirool adequado ao transporte do contentor que acoplava no momento do acidente.

T) Para acoplar/carregar a caixa/contentor o Sinistrado teria de manusear os manípulos existentes no interior da cabine, junto ao banco do condutor, mas também os existentes no exterior esquerdo do chassis do veículo, sendo que a caixa/contentor é puxada para cima do chassis do veículo por ação do braço articulado que termina com o gancho de fixação.

U) Após a acoplagem/carregamento do contentor na caixa do veículo e antes de iniciar a marcha com o contentor acoplado /carregado, deve ser acionado o hidráulico do bloqueio traseiro.

V) Ao descrever a curva à esquerda e porque o hidráulico do bloqueio traseiro pelo exterior do chassis não estava acionado - não estando o contentor fixo – o contentor saiu dos carris de apoio e fixação e deslizou para a direita do veículo com a força centrifuga.

W) Estando o contentor na parte da frente fixo ao veículo pelo gancho de fixação, originou que a força causada pela saída traseira do contentor para o lado direito, levou a que embatesse no muro e depois fizesse tombar o veículo para a sua lateral direita.

X) Após o que o veículo deslizou pela estrada sobre o lado direito e raspou pela estrada.

Y) Após o sinistro, verificou-se que o Sinistrado não estava com o cinto de segurança e estava encarcerado junto ao banco do lado direito; e com os ferimentos ficou inconsciente.

Z) Os mecanismos do veículo encontravam-se em condições de funcionamento.

AA) O sinistrado sabia e tinha formação para adotar tais procedimentos de segurança.

BB) O sinistrado tinha conhecimento dos procedimentos e trabalho, incluindo a Ficha de Risco que decorre da divulgação da Matriz IPR- Ficha de Risco nº 028: transferência de resíduos.

CC) O sinistrado teve diversas formações, incluindo formação de acolhimento, de riscos no posto de trabalho e emergência, do software de pesagem SPAT, serviços de transporte (carga de condução categoria CE e CAM), livrete individual (tacógrafos) gestão de circuitos (TECMIC).

DD) O procedimento de colheita de sangue ao falecido foi realizado na forma possível naquelas circunstâncias.

EE) BB, mãe do Sinistrado, suportou o valor de 1.810,00€ a título de despesas de funeral.

FF) No âmbito do Inquérito Criminal nº 251/18...., que correu termos no DIAP - Secção ..., foi proferido despacho de arquivamento por se concluir que a “causa principal do sinistro terá resultado do facto de AA não ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro pelo exterior do chassis da caixa de carga (…)”.

Factos não provados

O acidente de viação e consequente morte da infeliz vítima, ocorreu por culpa exclusiva, grave e indesculpável da própria vitima, ao exercer as suas funções e conduzir com uma TAS de mais de 5 g/l.

Conduzindo o JZ de forma desenfreada, descontrolada e sem noção do tempo e lugar, o sinistrado não conseguiu dominar/manter o veículo sequer dentro da faixa de rodagem.

Pelo que desgovernado e sem interferência de qualquer outro fator que não a TAS de que era portador, foi embater no muro que ladeia a estrada do lado direito e de seguida tombou sobre o lado direito.

O não uso do cinto de segurança fê-lo cair para o lado direito do interior da cabine, ficando aí encarcerado, o que não sucederia se usasse o cinto de segurança, e em resultado das lesões veio a falecer.

O despiste e acidente que causou a morte foi devido exclusivamente ao facto de estar no estado de embriaguez e conduzir com uma TAS de mais de 5 g/l, dado que com tal TAS a infeliz vítima não conseguiu acondicionar o contentor devidamente, manobrar o veículo, conduzir, visualizar a via ou sequer controlar os seus movimentos.

O sinistrado trabalhava e conduzia sem qualquer atenção e noção da estrada e do trânsito, e sem qualquer domínio sobre o veículo, não conseguindo impedir que o mesmo saísse fora da faixa de rodagem.

Após a acoplagem/carregamento do contentor na caixa do veículo e antes de iniciar a marcha com o contentor acoplado /carregado, a infeliz vítima devia ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro que estava disponível no interior da cabine e junto ao banco do condutor, o que não fez.

Antes de o veículo tombar e raspar a vítima não usava o cinto de segurança, por isso ficou encarcerada junto ao banco do lado direito e com os ferimentos ficou inconsciente.

O acidente ficou a dever-se ao facto da infeliz vítima face ao estado de alcoolémia em que se encontrava não ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior do chassis da caixa de carga do veículo e desencadeasse o acidente.

O acidente e suas consequências ficaram-se a dever exclusivamente ao facto de o sinistrado se encontrar e conduzir em estado de embriaguez, não havendo qualquer outra causa possível.

Se o Sinistrado estivesse sóbrio, seguramente, o acidente não teria ocorrido e consequentemente a morte.

 “Motivação da decisão de facto

A prova produzida foi analisada critica e livremente no seu conjunto tenha ou não emanado da parte que devia produzi-la (artigo 413.º, do Código de Processo Civil ex vi artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho) tendo como critério fundamental o previsto no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil ex vi artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho, no qual se consagra o princípio da liberdade de julgamento ou o princípio da livre apreciação da prova, de onde emerge que compete ao tribunal “apreciar livremente as provas segundo a sua livre convicção acerca de cada facto”.

O Tribunal valorou os documentos juntos ao processo, quer na fase conciliatória, quer na fase contenciosa.

Valorou-se, ainda, a prova pericial produzida (autópsia médico-legal e exame de química e toxicologia forense juntos aos autos).

Foram inquiridos os peritos médico-legais CC e DD; e inquiridas as seguintes testemunhas: EE, FF e GG.

Vejamos.

Os factos descritos em A), B), C), D), E), F), G), H) e I) resultaram: uns do que emerge de documentos juntos em sede conciliatória (documentos autênticos e documentos não impugnados) e outros foram admitidos por acordo razão pela qual se consideraram assentes; e ainda da prova pericial acima mencionada (relatório da autópsia médico-legal e exame de química e toxicologia forenses).

O facto I) resultou do que emerge do relatório de autópsia efetuado ao Sinistrado AA no dia 24.12.2018, ou melhor do exame toxicológico para pesquisa de etanol no sangue, que revelou uma taxa superior a 5 g/l, sendo que a amostra de sangue usada foi colhida em sangue da cavidade cardíaca.

Quanto aos factos J), K), L), M), N), O), P), Q), R), S), T), U), V), W), X), Y), Z) resultaram da conjugação do relatório final de investigação criminal do NIC de Acidentes de Viação de ... (fls. 130 a 131 verso dos autos), cujo teor se dá aqui por reproduzido, destacando-se “que é opinião do investigador que a causa principal ou eficiente do sinistro se terá devido ao não acionamento do hidráulico do bloqueio traseiro pelo exterior do chassis da caixa de carga (…)”; com os depoimentos das testemunhas EE e FF, ambos militares da GNR que se encontravam de patrulha quando foram chamados ao local para tomar conta da ocorrência, e que descreveram as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que encontraram o pesado conduzido pelo Sinistrado, que, sem dúvida, se despistou, encontrando-se no interior do veículo o Sinistrado em estado, visivelmente, grave. FF explicou ainda, com detalhe, as características do veículo, o sistema de que dispunha e modo de funcionamento (sistema de transporte de caixas amovíveis com gancho que permite utilizar/transportar vários tipos de caixas), sendo que no caso o veículo transportava um contentor de lixo/resíduos, contentor que terá saído do camião (ficando uns metros atrás do pesado), pois que, quando o depoente lá chegou, não estava trancado, apenas estava preso pelo “braço” à frente que faz com que o contentor seja puxado para cima do chassis. A seu ver, por tudo o que viu, o sistema de “trancar” não foi acionado (ou foi, mas depois, por razões não apuradas, terá sido destrancado, podendo ter sido até por terceiro dado que existe um manípulo exterior para trancar/destrancar) e, ao chegar ao local do sinistro, que é uma descida com curva à esquerda, o contentor deslocou-se da traseira (saiu dos carris) e caiu para a direita, em consequência do que, e porque estava preso à frente pelo dito “braço”, puxou o pesado e este acabou por tombar para a direita, tendo o condutor ficado encarcerado e inconsciente; quanto ao cinto de segurança pensa que o condutor não estava preso pelo mesmo, porque estava tombado sob o lado direito (mas, referiu, naquela altura ainda não era obrigatório o uso do cinto). Esta testemunha concluiu, assim, que o acidente se deu por uma falha mecânica, ou seja, por o “sistema de tranca”, que estava em condições de funcionamento, não estar acionado, explicitando que no interior do veículo havia manípulos para puxar a carga/contentor, já não se recordando se para trancar o sistema hidráulico, além do manípulo do exterior acima referido, também havia manípulo no interior.

Ainda quanto a estas matérias, também se atendeu ao depoimento de GG, engenheira que trabalhou na R... durante cerca de 20 anos até 07.04.2022, e que, por isso, conhecia bem o Sinistrado, referindo que o mesmo era motorista da R... há cerca de 15 anos, tendo, ainda, descrito, as tarefas que ao mesmo incumbia, bem como, a tarefa em concreto que o mesmo teve/tinha no dia do acidente (um sábado); mais esclareceu que o Sinistrado executou a tarefa de carregar o contentor sozinho (como era habitual), seguindo depois também sozinho ao volante do pesado, pelo que ninguém presenciou qualquer ato praticado pelo mesmo antes do acidente que se traduziu num despiste com o camião, carregado com resíduos, que conduzia, e cujas características descreveu, como também o sistema de “trancamento” do contentor ao chassis do veículo pesado, sendo que lhe foi comunicado que, após averiguação, concluíram que o sistema estavam em condições de funcionar.

Relativamente aos factos Q), AA), BB) e CC) resultou da conjugação do depoimento da mencionada testemunha GG, engenheiro na R..., com o que emerge dos documentos juntos aos autos a esse propósito: Ficha de Risco que decorre da divulgação da Matriz IPR- Ficha de Risco nº 028, conhecida do Sinistrado, certificado de aptidão para motorista (CAM) e registos de formação (fls. 148 verso a 154).

Quanto ao facto DD) atendeu-se aos depoimentos dos peritos CC, médico que realizou a autópsia médico-legal e DD, especialista em química e toxicologia forense no INMLCF – Delegação do Norte, ..., que procedeu ao exame de química e toxicologia forense. Ambos confirmaram o resultado da autópsia e exame de toxicologia forense e, de forma unânime, afirmaram que o procedimento de colheita de sangue ao falecido foi realizado na forma possível naquelas circunstâncias; esclareceram que tentam sempre fazer a recolha de sangue nas artérias inguinais, mas se estiverem colapsadas, como era o caso, colhem da cavidade cardíaca como aconteceu no presente caso; ou seja, o procedimento normal é colher o sangue na cavidade femural, mas não sendo possível colhem na cavidade cardíaca, sendo este um procedimento regular. O Sr. perito CC acrescentou ainda o afastamento da hipótese de “contaminação”, porquanto não se tratava de cadáver politraumatizado, não estava em estado de putrefação, nem ocorreu qualquer outra circunstância estranha que pudesse contaminar a amostra colhida, tendo o Sr. perito DD afirmado que, com a taxa de alcoolemia acusada, ainda que “tivesse ocorrido qualquer variação” a taxa de alcoolemia nunca seria muito inferior a 5 gr/l, pelo que, na sua opinião, o Sinistrado havia ingerido “grande” quantidade de álcool.

O facto EE) relativo a despesas de funeral suportadas pela mãe do Sinistrado, teve sustento na fatura junta aos autos na fase conciliatória do processo – fls. 64 verso e 65 – cujo teor não foi impugnado.

Quanto ao facto FF) atendeu-se ao que emerge da certidão extraída do Inquérito Criminal nº 251/18...., que correu termos no DIAP - Secção ..., junta aos autos na fase conciliatória do processo (fls. 28 a 42).

No que concerne aos factos dados como não provados resultaram da ausência de prova nesse sentido.

Após a produção de toda a prova, apurou-se, a nosso ver, que o que esteve na origem do despiste do veículo conduzido pelo Sinistrado foi a falha ou a falta de acionamento do hidráulico do bloqueio traseiro (facto I). Também se apurou que era ao Sinistrado que competia acoplar ao veículo o contentor carregado com resíduos sólidos para ... e que, para tal, o Sinistrado tinha formação profissional, além de que já fazia tal trabalho há muitos anos. Também resultou claro que para acoplar/carregar o dito contentor o Sinistrado teria de manusear os manípulos existentes no interior da cabine do camião, mas também o existente no exterior esquerdo do chassis do veículo. Igualmente, não há dúvidas de que o contentor foi puxado para cima do chassis pelo veículo por ação do braço articulado que termina com o gancho de fixação (através de manípulos existentes no interior da cabine do veículo), mas além disto teria o Sinistrado de acionar, também, o hidráulico do bloqueio traseiro, vindo-se a concluir, após o acidente, que este sistema de bloqueio exterior do chassis não estava acionado (não estava travado), razão pela qual, ao descrever uma curva à esquerda, o contentor, que não estava fixo na parte traseira, saiu dos carris de apoio e deslizou para a direita do veículo com a força centrífuga; uma vez que o contentor estava fixo ao veículo, na parte da frente, pelo gancho de fixação, a força causada pela saída traseira do contentor para o lado direito, levou a que o veículo embatesse no muro e tombasse também para a sua lateral direita e, na sequência, o veículo deslizou pela estrada sobre o lado esquerdo e raspou pela estrada. Também se veio a constatar que o mecanismo do hidráulico do bloqueio traseiro estava em condições para funcionar corretamente e que, após o sinistro, o Sinistrado não estava retido pelo cinto de segurança, bem como, que o Sinistrado havia ingerido “grande” quantidade de álcool (mesmo admitindo que fosse menos de 5gr/l).

Não obstante, tudo quanto se apurou e resumidamente atrás exposto, não foi possível apurar factos que nos permitissem concluir que o acidente de viação e consequente morte da infeliz vitima, ocorreu por culpa exclusiva, grave e indesculpável da própria vitima, ao exercer as suas funções e conduzir com uma TAS de mais de 5 g/l; que o despiste e acidente que causou a morte foi devido exclusivamente ao facto de estar no estado de embriaguez e conduzir com uma TAS de mais de 5 g/l, dado que com tal TAS a infeliz vitima não conseguiu acondicionar o contentor devidamente, manobrar o veiculo, conduzir, visualizar a via ou sequer controlar os seus movimentos; que após a acoplagem/carregamento do contentor na caixa do veiculo e antes de iniciar a marcha com o contentor acoplado /carregado, a infeliz vitima devia ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro que estava disponível no interior da cabine e junto ao banco do condutor, o que não fez; que o acidente ficou a dever-se ao facto da infeliz vitima face ao estado de alcoolemia em que se encontrava não ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior do chassis da caixa de carga do veiculo e desencadeasse o acidente; que o acidente e suas consequências ficaram-se a dever exclusivamente ao facto de o Sinistrado se encontrar e conduzir em estado de embriaguez, não havendo qualquer outra causa possível; que se o Sinistrado estivesse sóbrio, seguramente, o acidente não teria ocorrido e consequentemente a morte.

Aliás, relativamente à TAS de mais de 5 g/l, ambos os Srs. Peritos ouvidos em sede de julgamento afirmaram não poder pronunciar-se acerca da capacidade do Sinistrado para conduzir com a referida taxa de alcoolemia, explicando que os efeitos variam de pessoa para pessoa; não obstante ser uma taxa de alcoolemia muito elevada, consubstanciando até um valor raro, pouco frequente, não é possível afirmar se o Sinistrado estava ou não em condições de conduzir e/ou praticar os demais atos inerentes às suas tarefas (tendo mesmo acrescentado que o mesmo poderia ter bebido vários litros de álcool ou apenas uma única bebida, mas esta muito forte, como por exemplo absinto); para os Srs. Peritos certo é que o Sinistrado ingeriu álcool, nada mais podendo afirmar para além deste dado objetivo.

Note-se que ninguém presenciou os atos praticados (ao que se presume sozinho) pelo Sinistrado no que concerne ao carregamento do contentor de resíduos no chassis do veículo, mormente se o mesmo omitiu o acionamento do mecanismo do hidráulico do bloqueio traseiro (lembre-se que se apurou que no exterior do veículo também existia um manípulo para trancar o dito sistema, portanto acessível a terceiros), se alguma circunstância exterior ocorreu ou não para que aquele mecanismo não estivesse acionado aquando do sinistro e que tudo indica esteve na origem do mesmo. Ademais, também ninguém presenciou o sinistro, sendo que tudo quanto se apurou foi concluído em razão dos vestígios encontrados e analisados.

Com efeito, nada mais se apurou – prova que incumbia à Seguradora - com base suficientemente sólida e que nos permitisse até recorrer às regras da experiência comum, para concluir que o acidente de viação e consequente morte da infeliz vitima, ocorreu por culpa exclusiva, grave e indesculpável da própria vitima, ao exercer as suas funções e conduzir com uma TAS de mais de 5 g/l.

Acresce, e também quanto aos demais factos dados como não provados, que nada se apurou ao modo como o Sinistrado trabalhou e conduziu o veículo até se despistar – prova que competia à Seguradora -, daí não se dar como provado que o Sinistrado trabalhava e conduzia sem qualquer atenção e noção da estrada e do trânsito, e sem qualquer domínio sobre o veículo, não conseguindo impedir que o mesmo saísse fora da faixa de rodagem; conduzindo o JZ de forma desenfreada, descontrolada e sem noção do tempo e lugar, o Sinistrado não conseguiu dominar/manter o veiculo sequer dentro da faixa de rodagem; pelo que desgovernado e sem interferência de qualquer outro fator que não a TAS de que era portador, foi embater no muro que ladeia a estrada do lado direito e de seguida tombou sobre o lado direito.

Nem nada se apurou que nos permitisse concluir que, caso o Sinistrado estivesse retido pelo cinto de segurança, não sofreria as consequências que sofreu. Na verdade, apenas se apurou que, após o sinistro, o Sinistrado não estava retido pelo cinto de segurança, encontrando-se tombado do lado direito da cabine e inconsciente e gravemente ferido.”

                                                                       *

*

b) - Discussão

1ª questão:

Reapreciação da matéria de facto

Conforme resulta do disposto no artigo 640.º, do C.P.C.:

<<1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; (…)>>.

Acresce que, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação nos casos previstos no artigo 662.º, do CPC.

A Ré recorrente veio interpor o presente recurso com impugnação da matéria de facto que alega ter sido incorretamente julgada.

Lidas as alegações e respetivas conclusões, constatamos que a Ré recorrente indica os pontos concretos da matéria de facto não provada que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios, tais como, os depoimentos das testemunhas que identifica e que impõem decisão diversa, com indicação das passagens da gravação (respetivos minutos) e, ainda, a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Assim sendo, a recorrente cumpriu na totalidade o ónus que sobre si impendia, pelo que, este tribunal pode proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada.

Este Tribunal procedeu à audição dos depoimentos prestados em audiência de julgamento e analisou todos os documentos juntos aos autos.

A Exm.ª juiz do tribunal recorrido fundamentou a decisão nos termos supra transcritos.

Alega a recorrente que os factos considerados não provados devem julgar-se provados.

Consta do elenco dos factos não provados o seguinte:

1 - O acidente de viação e consequente morte da infeliz vítima, ocorreu por culpa exclusiva, grave e indesculpável da própria vitima, ao exercer as suas funções e conduzir com uma TAS de mais de 5 g/l.

2 - Conduzindo o JZ de forma desenfreada, descontrolada e sem noção do tempo e lugar, o Sinistrado não conseguiu dominar/manter o veículo sequer dentro da faixa de rodagem.

3 - Pelo que desgovernado e sem interferência de qualquer outro fator que não a TAS de que era portador, foi embater no muro que ladeia a estrada do lado direito e de seguida tombou sobre o lado direito.

4 - O não uso do cinto de segurança fê-lo cair para o lado direito do interior da cabine, ficando aí encarcerado, o que não sucederia se usasse o cinto de segurança, e em resultado das lesões veio a falecer.

5 - O despiste e acidente que causou a morte foi devido exclusivamente ao facto de estar no estado de embriaguez e conduzir com uma TAS de mais de 5 g/l, dado que com tal TAS a infeliz vítima não conseguiu acondicionar o contentor devidamente, manobrar o veículo, conduzir, visualizar a via ou sequer controlar os seus movimentos.

6 - O Sinistrado trabalhava e conduzia sem qualquer atenção e noção da estrada e do trânsito, e sem qualquer domínio sobre o veículo, não conseguindo impedir que o mesmo saísse fora da faixa de rodagem.

7 - Após a acoplagem/carregamento do contentor na caixa do veículo e antes de iniciar a marcha com o contentor acoplado /carregado, a infeliz vítima devia ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro que estava disponível no interior da cabine e junto ao banco do condutor, o que não fez.

8 - Antes de o veículo tombar e raspar a vítima não usava o cinto de segurança, por isso ficou encarcerada junto ao banco do lado direito e com os ferimentos ficou inconsciente.

9 - O acidente ficou a dever-se ao facto da infeliz vítima face ao estado de alcoolémia em que se encontrava não ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior do chassis da caixa de carga do veículo e desencadeasse o acidente.

10 - O acidente e suas consequências ficaram-se a dever exclusivamente ao facto de o Sinistrado se encontrar e conduzir em estado de embriaguez, não havendo qualquer outra causa possível.

11- Se o Sinistrado estivesse sóbrio, seguramente, o acidente não teria ocorrido e consequentemente a morte.

Vejamos, então, se assiste razão à Ré recorrente.

Antes de mais, cumpre dizer que a matéria descrita no ponto 1 é conclusiva e, como tal, independentemente de quaisquer outras considerações nunca poderia figurar no elenco dos factos provados do qual apenas podem constar factos (n.º 4 do artigo 607.º do CPC) e não conclusões. Saber se o acidente ocorreu por culpa exclusiva, grave e indesculpável da própria vitima, ao exercer as suas funções e conduzir com uma TAS de mais de 5 g/l, é conclusão que há de retirar-se dos respetivos factos apurados. Dando-se como provado tal facto ficaria decidida, desde logo, a questão de mérito em causa nos presentes autos. 

Quanto ao mais, alega a recorrente que:

- Da análise de todos os elementos constantes dos autos, esclarecimentos dos Srs. Peritos prestados em sede de audiência de julgamento, da literatura técnico científica sobre a influência do álcool no sangue na condução e da lógica das cosias, da experiência e do senso comum e das presunções judiciais, tais factos devem ser dados como provados.

- Não estamos a tratar de uma TAS de 0,5 g/l, ou de 1,0 g/l ou 2,0 g/l, mas sim de 5,0 g/l, uma quantidade exorbitante, que como referiram os Srs. Peritos do IML deixou o sinistrado perfeitamente inconsciente, como facilmente se percebe e resulta da lógica das coisas.

- Parece-nos evidente, líquido, da experiência comum, da lógica e resulta de qualquer simples análise de qualquer estudo técnico e científico que qualquer indivíduo, independentemente da sua constituição física ou apetência/resistência para o consumo de bebidas alcoólicas, que com um TAS de 5,o g/l não estava na posse das sua mais elementares faculdades mentais, psíquicas e motoras para conduzir.

- Independentemente da prova testemunhal produzida em sede de audiência, como a inquirição dos Srs. Peritos do IML, que não deixam dúvidas sobre tal matéria de facto, resulta da experiência comum e de simples presunção judicial que assim é, bem como de todos os estudos técnicos e científicos sobre a influência do álcool na condução.

- Resumindo e concluindo os dois Senhores Peritos, em sede de audiência de discussão e julgamento de forma unânime evidenciaram de forma clara e inequívoca que o sinistrado com aquela taxa de álcool estava totalmente incapacitado de entender, querer e de conduzir.

- Basta uma simples pesquisa na internet e deparamos com centenas de estudos técnicos e científicos em que unanimemente consideram que com uma TAS acima dos 3,5/ 4,00 g/l: O condutor alcoolizado neste valor não está em condições de conduzir, avalia mal, reage mal e executa mal, e não tem condições para discernir o que quer que seja;

- Pode o tribunal extrair das chamadas presunções judiciais, atendendo às circunstâncias em que ocorreu o acidente, sendo uma descida, com boa visibilidade e estando bom tempo, sendo dentro de uma localidade, é evidente que o sinistrado foi o único e exclusivo culpado na produção do acidente, já que por influência do álcool não adotou as mais elementares cautelas.

- Por isso será forçoso concluir que só poderia ter sido devido à taxa de álcool no sangue de que era portador, que o sinistrado não conseguiu acoplar devidamente o contentor ao veículo pesado, bem sabendo e tendo formação adequada para o efeito, sendo que o acidente se tratou de um despiste e sem intervenção de terceiros.

- O sinistrado conduzia o veículo com uma TAS altíssima, de cerca de 5 g/l, que normalmente ao comum dos mortais conduz ao estado de coma e inconsciência, e portanto muito superior àquela legalmente permitida, constituindo-se mesmo como ilícito criminal (cfr. art.º 292º do CP).

- Está cientificamente comprovado que a ingestão de álcool diminui, na exata medida do crescendo do seu teor, a capacidade de reação e de concentração, assim como a capacidade motora e sensorial, nomeadamente a visual, provocando, uma demora na reação aos estímulos, donde influir, nessa medida, na atividade da condução de veículos, dado diminuir (adequadamente) a aptidão de quem conduz esses veículos.

- Deste modo, dado o elevado teor da taxa de álcool com que o sinistrado conduzia, se tratou de um despiste e que o sinistrado atuou, no caso, de forma imprevidente/negligente. Imprevidência/negligência essa causada pelo elevado teor de álcool com que circulava, que lhe terá retirado a necessária clarividência para acoplar devidamente o contentor e evitar o acidente, assim, a ele dando causa forma exclusiva.

- Ao conduzir com um nível de 5,0 g/l de álcool no sangue revelou um comportamento muitíssimo grave, inconsciente mesmo, incumprindo elementares regras de cuidado e de prudência que qualquer condutor médio deve adotar, violando uma regra de segurança que o proibia de conduzir, o art. 81º do Código da Estrada (Condução sob o efeito de álcool ou de substâncias psicotrópicas) e na prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto no artigo 292º nº 1 do C. Penal.

- Obviamente se pode extrair que o sinistrado com aquela TAS conduzia de forma descontrolada, sem noção do tempo e lugar e não conseguiu dominar o veiculo.

- Também obviamente que se estivesse sóbrio, após a acoplagem do contentor e antes de iniciar a marcha, devia ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro, mas que não fez pois que com aquele estado de embriaguez não tinha discernimento para o fazer, bem como colocar o cinto de segurança.

- Assim, manifestamente face aos documentos juntos, aos depoimentos das testemunhas, ao senso comum, ao normal das coisas e da vida e da própria experiência e recorrendo às presunções judiciais, não temos dúvidas que aqueles factos têm de ser dado como provados.

Pois bem, do depoimento dos peritos médicos ouvidos em audiência de julgamento resulta que o sinistrado conduzia com uma taxa de álcool superior a 5g/l e, ainda, que em termos objetivos a mesma corresponde a uma elevada ingestão de álcool, a uma intoxicação alcoólica grave com o consequente estado de coma ou morte. Mais referiu o perito DD que, de acordo com os referenciais, com os tratados médico legais, o sinistrado estaria incapacitado de agir pelos próprios meios mas que tal não invalida a existência de condições especiais que levem a outra atuação.

Por outro lado, as testemunhas EE, FF e Engenheira GG, prestaram depoimento nos termos constantes da fundamentação de facto supra transcrita, sendo certo que ninguém presenciou o acidente nem a atuação do sinistrado aquando da acoplagem do contentor ao chassis do veículo (factos provados constantes das alíneas P) a U).

A testemunha FF, GNR que elaborou o relatório junto a fls. 130 a 131 referiu, ainda, que fez uns testes no veículo conduzido pelo sinistrado e o sistema hidráulico de trancar funcionava e que lhe foi dito pelo engenheiro presente que se estivesse trancado, mesmo que houvesse uma avaria, não destrancava.

Por outro lado, constitui facto notório[2], resultante dos vários estudos científicos sobre a influência do álcool, nomeadamente, na condução, que o álcool modifica a capacidade de discernimento, torna os reflexos mais lentos, diminui a vigilância e reduz a acuidade visual, em particular a redução da concentração e da capacidade de efetuar manobras simples e de mudanças de direção, potencia uma conduta mais arriscada e de maior velocidade, problemas da visão lateral, dificuldade em distinguir sinalização e erros na apreciação da distância e redução da assimilação das perceções; o álcool afeta as capacidades cognitivas e percetivas, em especial a visão e a audição, reduz o campo visual, a capacidade de reação, aumenta a descoordenação motora e a capacidade de avaliação das distâncias e promove a tendência para a sobrevalorização das capacidades.

Também parece ser pacífico que os efeitos do álcool dependem de características próprias dos indivíduos não afetando estes da mesma forma em idênticas situações.

Por outro lado, conforme resulta do artigo 349.º do CC, o tribunal pode fazer uso de presunções que <<são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.>>

<<IV – O uso de presunções não se reconduz a um meio de prova próprio, consistindo antes, como se alcança do art.º 349º do Cód. Civil, em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos base) para dar como provado factos desconhecidos (factos presumidos).

V – A presunção traduz-se e concretiza-se num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência, sendo admitida nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art.º 351º do Cód. Civil).>>[3]

<<Legal ou judicial, a presunção baseia-se sempre numa regra de experiência, que estabelece a ligação entre o facto conhecido que está na base da ilação e o facto desconhecido que dele é derivado: atendendo ao elevado grau de probabilidade ou verosimilhança da ligação concreta entre o facto que constitui base da presunção e o facto presumido, este é dado como assente quando o primeiro é provado. O apelo às regras da experiência é nítido na presunção judicial: a convicção do juiz ao longo do iter probatório vai-se formando com aplicação dessas regras (quer na valoração dos outros meios de prova, quer nas deduções próprias da presunção stricto sensu) (…)>>.[4]

Na verdade, como se extrai do n.º 4 do artigo 607.º do CPC, na fundamentação da sentença o juiz declara quais os factos que julga provados e não provados, indicando as ilações tiradas de factos instrumentais e compatibiliza toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas por lei ou por regras de experiência.

Aqui chegados, apuraram-se os seguintes factos:

I) Resulta do relatório de autópsia efetuado ao Sinistrado AA no dia 24.12.2018, que o exame toxicológico para pesquisa de etanol no sangue, revelou uma taxa superior a 5 g/l, sendo que a amostra de sangue usada foi colhida em sangue da cavidade cardíaca.

J) Na sequência da averiguação da causa do acidente constatou-se a falta de acionamento do hidráulico do bloqueio traseiro.

K) No dia 22 de dezembro de 2018, cerca das 18H00, a vítima circulava na EN ...22, em ..., no sentido descendente Câmara Municipal – Centro de Saúde, conduzindo o veículo matricula ..-JZ-...

L) O tempo estava bom, e o piso encontrava-se seco e em bom estado de conservação.

M) Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas, o veículo conduzido pela vítima, descrevia uma curva para a esquerda e sem quaisquer obstáculos na via.

N) Tendo entrado em despiste, sozinho, indo embater no muro que ladeia a estrada do lado direito e de seguida tombou sobre o lado direito.

O) Em consequência, caiu para o lado direito do interior da cabine, ficando aí encarcerado.

P) O sinistrado era operador de veículos e transportava no veículo um contentor de lixo acoplado no chassis do mesmo.

Q) E trabalhava na empresa há cerca de 15 anos, conhecia perfeitamente o veículo que conduzia e todos os mecanismos inerente à acoplagem e fixação do contentor que transportava.

R) No exercício das suas funções, o sinistrado transportava no veículo que conduzia um contentor carregado com resíduos sólidos para ..., que tinha de acoplar, fixando o contentor ao chassis do veículo que conduzia e que era da sua responsabilidade, tendo formação profissional para o efeito.

S) O veículo dispunha de um Sistema Amplirool adequado ao transporte do contentor que acoplava no momento do acidente.

T) Para acoplar/carregar a caixa/contentor o sinistrado teria de manusear os manípulos existentes no interior da cabine, junto ao banco do condutor, mas também os existentes no exterior esquerdo do chassis do veículo, sendo que a caixa/contentor é puxada para cima do chassis do veículo por ação do braço articulado que termina com o gancho de fixação.

U) Após a acoplagem/carregamento do contentor na caixa do veículo e antes de iniciar a marcha com o contentor acoplado /carregado, deve ser acionado o hidráulico do bloqueio traseiro.

V) Ao descrever a curva à esquerda e porque o hidráulico do bloqueio traseiro pelo exterior do chassis não estava acionado - não estando o contentor fixo – o contentor saiu dos carris de apoio e fixação e deslizou para a direita do veículo com a força centrifuga.

W) Estando o contentor na parte da frente fixo ao veículo pelo gancho de fixação, originou que a força causada pela saída traseira do contentor para o lado direito, levou a que embatesse no muro e depois fizesse tombar o veículo para a sua lateral direita.

X) Após o que o veículo deslizou pela estrada sobre o lado direito e raspou pela estrada.

Y) Após o sinistro, verificou-se que o sinistrado não estava com o cinto de segurança e estava encarcerado junto ao banco do lado direito; e com os ferimentos ficou inconsciente.

Z) Os mecanismos do veículo encontravam-se em condições de funcionamento.

AA) O sinistrado sabia e tinha formação para adotar tais procedimentos de segurança.

BB) O sinistrado tinha conhecimento dos procedimentos e trabalho, incluindo a Ficha de Risco que decorre da divulgação da Matriz IPR- Ficha de Risco nº 028: transferência de resíduos.

CC) O sinistrado teve diversas formações, incluindo formação de acolhimento, de riscos no posto de trabalho e emergência, do software de pesagem SPAT, serviços de transporte (carga de condução categoria CE e CAM), livrete individual (tacógrafos) gestão de circuitos (TECMIC).

Ora, tendo em conta tudo o que ficou dito, estes factos apurados e recorrendo às regras de experiência e da lógica, impõe-se concluir que o após a acoplagem/carregamento do contentor na caixa do veículo e antes de iniciar a marcha com o contentor acoplado /carregado, o sinistrado devia ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior, o que não fez;  o sinistrado trabalhava e conduzia sem qualquer atenção e noção da estrada e do trânsito e sem qualquer domínio sobre o veículo; o acidente ficou a dever-se ao facto de o sinistrado, face ao estado de alcoolémia em que se encontrava, não ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior do chassis da caixa de carga do veículo; o acidente e suas consequências ficaram a dever-se unicamente ao facto de o sinistrado se encontrar e conduzir em estado de embriaguez e não ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior do chassis.

Na verdade, tendo em conta que: o sinistrado conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 5g/l que, sem qualquer dúvida, lhe afetava o discernimento e os reflexos, tal era a sua quantidade, pois, em regra, encontrar-se-ia, pelo menos, em estado de coma; trabalhava na empresa há cerca de 15 anos, conhecia todos os mecanismos do veículo e que tinha de acoplar o contentor fixando-o ao chassis do veículo que conduzia, o que era da sua responsabilidade, tendo conhecimento e formação profissional para o efeito e, para tanto, de manusear os manípulos existentes no interior da cabine e no exterior do chassis e que, após, antes de iniciar a marcha, deve ser acionado o hidráulico do bloqueio traseiro, tendo-se constatado que o mesmo não foi acionado, extrai-se destes factos que o sinistrado trabalhava e conduzia sem qualquer atenção e noção da estrada e do trânsito e sem qualquer domínio sobre o veículo e que o sinistrado devia ter acionado aquele hidráulico mas não o fez devido ao estado de alcoolémia em que se encontrava, desencadeando-se o acidente.

Sendo um procedimento da responsabilidade do sinistrado que dele tinha conhecimento e formação, não se vê como lógica qualquer outra explicação para a falta de acionamento do hidráulico do bloqueio traseiro exterior que não seja a falta de atuação do sinistrado devido ao estado de embriaguez em que se encontrava, sendo certo que, como referiu a testemunha FF, o sistema de trancar do veículo estava a funcionar e se estivesse bloqueado, mesmo que houvesse uma avaria, não destrancava.

E, por outro lado, também não se nos afigura lógico nem consonante com as regras de experiência que o sinistrado tivesse acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior e, posteriormente, antes de iniciar a marcha, um terceiro o destrancasse.

Mais se extrai daqueles factos provados que o acidente e suas consequências ficaram a dever-se unicamente ao facto de o sinistrado se encontrar e conduzir em estado de embriaguez e não ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior do chassis.

Na verdade, mais nenhuma circunstância contribuiu para o desencadear do acidente, sendo certo que se tratou de um despiste solitário, pois, ao descrever a curva à esquerda e porque o hidráulico do bloqueio traseiro pelo exterior do chassis não estava acionado, não estando o contentor fixo, este saiu dos carris de apoio e fixação e deslizou para a direita do veículo com a força centrífuga, o que levou a que aquele embatesse no muro e depois fizesse tombar o veículo para a sua lateral direita, deslizando pela estrada.

Assim sendo, porque se encontra conforme com a prova produzida, resultando das presunções supra enunciadas, devem passar a constar do elenco dos factos provados os seguintes factos:

GG) – O sinistrado trabalhava e conduzia sem qualquer atenção e noção da estrada e do trânsito e sem qualquer domínio sobre o veículo.

HH) - Após a acoplagem/carregamento do contentor na caixa do veículo e antes de iniciar a marcha com o contentor acoplado /carregado, o sinistrado devia ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior, o que não fez.

II) – O acidente ficou a dever-se ao facto de o sinistrado, face ao estado de alcoolémia em que se encontrava, não ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior do chassis da caixa de carga do veículo.

JJ) – O acidente e suas consequências ficaram a dever-se unicamente ao facto de o sinistrado se encontrar e conduzir em estado de embriaguez e não ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior do chassis.

Procede, assim, em parte a pretendida alteração da matéria de facto.

2ª questão:

Se o acidente dos autos resultou de negligência grosseira do sinistrado.

Antes de mais, cumpre dizer que a ora recorrente, quer na contestação quer na fase conciliatória dos presentes autos, apenas invocou a negligência grosseira do sinistrado como fundamento da descaracterização do acidente dos autos.

Assim sendo, uma vez que em sede de recurso não podem ser invocadas questões novas (que não tenham sido colocadas ao tribunal de 1ª instância), não apreciaremos as conclusões da recorrente no sentido da existência de violação de regras de segurança por parte do sinistrado (alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º da LAT).

Alega a recorrente que:

- O comportamento do sinistrado configura assim, um comportamento culposo porque este podia (e devia) ter evitado aquele acidente e a sua própria morte e concluímos do que fica exposto, que a conduta do sinistrado foi a única e exclusiva causa do acidente e que conduziu à sua morte.

- Dos factos provados também só por si e sem necessidade de mais indagações, constituem motivo mais que suficiente para a descaracterização do acidente de trabalho sofrido pelo sinistrado nos termos do disposto nas alíneas a) e b) e nº 3 do art. 14º da LAT .

- Como resultou provado o sinistrado era um trabalhador motorista experiente (P), conhecia todos os mecanismos inerentes à acoplagem e fixação do contentor (Q), sabia e tinha formação que tinha de acoplar e fixar o contentor, e que tal era da sua responsabilidade (R), o veículo tinha um sistema próprio e adequado para fixar o contentor (S) e sabia que tinha de manusear os respetivos manípulos existentes para o efeito (T) e que antes de iniciar a marcha sabia que tinha de acionar o bloqueio traseiro para fixar o contentor (U) .

- Nenhum destes procedimentos que eram os mais elementares e que sabia e a que estava obrigado praticou, e daí ocorreu o acidente que o vitimou.  

- Daí que depois de iniciar a marcha e porque o bloqueio traseiro não estava acionado, o contentor saiu dos carris (V), estando apenas fixo pela parte da frente com a força centrifuga provocou a saída do contentor para o lado direito, tivesse o camião tombado, deslizasse e ocorresse o acidente (WW e DD).

- A causa do acidente foi uma negligência grosseira, mesmo muito grave do sinistrado, em que o sinistrado que violou gravemente as condições de segurança por culpa própria e sem causa justificativa, ou melhor a TAS não lhe permitiu ter o discernimento necessário para o efeito.

A este propósito consta da sentença recorrida o seguinte:

“Aqui chegados importa saber se o despiste e acidente que causou a morte do Sinistrado foi devido exclusivamente ao facto de estar em estado de embriaguez e conduzir com uma TAS de mais de 5 g/l;

Ora, no caso em apreço, e atenta a matéria factual dada como provada, não resulta que o Sinistrado tenha adotado comportamento donde se possa inferir a causalidade do acidente ocorrido ou a causa exclusiva do acidente ocorrido, prova que, de resto, competia à Ré e que não logrou.

É verdade que se apurou que o que esteve na origem do despiste do veículo conduzido pelo Sinistrado foi a falha ou a falta de acionamento do hidráulico do bloqueio traseiro (facto I). Também se apurou que era ao Sinistrado que competia acoplar ao veículo o contentor carregado com resíduos sólidos para ... e que, para tal, o Sinistrado tinha formação profissional, além de que já fazia tal trabalho há muitos anos.

Também resultou claro que para acoplar/carregar o dito contentor o Sinistrado teria de manusear os manípulos existentes no interior da cabine do camião, mas também o existente no exterior esquerdo do chassis do veículo. Igualmente, não há dúvidas de que o contentor foi puxado para cima do chassis pelo veículo por ação do braço articulado que termina com o gancho de fixação (através de manípulos existentes no interior da cabine do veículo), mas além disto teria o Sinistrado de acionar, também, o hidráulico do bloqueio traseiro, vindo-se a concluir, após o acidente, que este sistema de bloqueio exterior do chassis não estava acionado (não estava travado), razão pela qual, ao descrever uma curva à esquerda, o contentor, que não estava fixo na parte traseira, saiu dos carris de apoio e deslizou para a direita do veículo com a força centrífuga; uma vez que o contentor estava fixo ao veículo, na parte da frente, pelo gancho de fixação, a força causada pela saída traseira do contentor para o lado direito, levou a que o veículo embatesse no muro e tombasse também para a sua lateral direita e, na sequência, o veículo deslizou pela estrada sobre o lado esquerdo e raspou pela estrada. Também se veio a constatar que o mecanismo do hidráulico do bloqueio traseiro estava em condições para funcionar corretamente e que, após o sinistro, o Sinistrado não estava retido pelo cinto de segurança, bem como, que o Sinistrado havia ingerido álcool, resultando do exame de toxicologia uma taxa >5gr/l.

(…)

No caso sub judice, é manifesto que o Sinistrado sofreu um acidente de trabalho, quando se encontrava no seu local e tempo de trabalho, como já vimos.

Mas a responsabilidade por tal acidente é imputável ao Sinistrado por, a título de dolo ou de negligência (grosseira), por estar sob o efeito de álcool o que o levou a conduzir de forma “desenfreada, descontrolada e sem noção do tempo e lugar” e não ter acionado o sistema de travagem do contentor e de não usar cinto de segurança, violando, assim, regras de segurança sem causa justificativa?

Importa ver antes de mais a própria dinâmica do acidente e as circunstâncias particulares em que ocorreu. E como já referimos no caso em apreço, e atenta a matéria factual dada como provada, nada se apurou quanto ao facto de o mecanismo de bloqueio do contentor não estar acionado; é um facto que, após o acidente, se constatou que o dito mecanismo não estava acionado e que competia ao Sinistrado fazê-lo, mas não se apuraram quaisquer circunstâncias que nos permitissem saber o que se passou para tal e muito menos que foi por causa de o Sinistrado estar sob o efeito de bebidas alcoólicas que não acionou o dito mecanismo ou se o acionou devidamente e, entretanto, o mecanismo desbloqueou, entre outras hipóteses que poderiam ser equacionadas (como aliás fez a testemunha FF que referiu que o dito mecanismo até poderia ser destrancado por terceiro já que pelo menos esse manípulo está no exterior da cabine do veículo, mais concretamente junto ao chassis).

(…)

Não obstante se ter apurado que o Sinistrado havia ingerido álcool e como tal conduzisse o veículo sob o efeito de bebidas alcoólicas, nada se apurou que nos permitisse dizer que se o mesmo conduzisse o veículo em estado de sobriedade o acidente não teria ocorrido. Na verdade, tal tese não obteve qualquer suporte probatório, uma vez que, desconhecendo-se as circunstâncias que estiveram na origem da falha ou falta do sistema de travagem exterior do contentor, não poderá dizer-se que o mesmo se ficou a dever ao fato de o Sinistrado conduzir com álcool no sangue ou de o sistema não estar acionado por o Sinistrado estar sob o efeito de álcool.

Assim sendo, e considerando que a capacidade de resistência ao álcool varia de indivíduo para indivíduo, de acordo com uma multiplicidade de fatores (como a idade, a massa corporal, hábitos de consumo alcoólico, etc.), e apenas tendo sido feita prova de que o sinistrado apresentava uma taxa de alcoolemia de 5 ou mais g/litro, e nada mais se sabendo de concreto, não se pode concluir com um mínimo de segurança que o acidente tivesse sido provocado por negligência do Sinistrado, devido a diminuição das suas capacidades de reação e controle sobre o veiculo que conduzia, causada pela prévia ingestão de álcool.

É assim meramente circunstancial e insuficiente a prova de que no momento da morte o Sinistrado apresentava uma taxa de alcoolemia, sendo que não resulta provado qualquer nexo de causalidade entre tal facto e a ocorrência do acidente em causa.” – fim de citação.

Apreciando a pretensão da recorrente:

Nos termos previstos no art.º 2.º, da citada Lei n.º 98/2009 de 04/09, os trabalhadores e os seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho (...).

Por seu turno, o art.º 8.º dá-nos a definição e conceito de acidente de trabalho, como sendo aquele que se verifique no local e tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho.

Em contraposição, o artigo 14.º da mesma LAT, vem descaracterizar alguns acidentes, dizendo não haver lugar à reparação quando o acidente: b) provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.

Como é sabido, a negligência consiste na omissão da diligência a que o agente estava obrigado ou, por outras palavras, na inobservância do dever objectivo de cuidado que lhe era exigível que, segundo a terminologia clássica, pode revestir várias formas: culpa levíssima, culpa leve e culpa grave.

A primeira (culpa levíssima) ocorre quando o agente tiver omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excepcionalmente diligente teria observado.

A segunda (culpa leve) acontece quando o agente tiver deixado de observar os deveres de cuidado que uma pessoa normalmente diligente teria observado.

Finalmente, a terceira (culpa grave) existirá quando o agente deixar de usar a diligência que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta não teria observado.

A negligência grosseira corresponde à culpa grave ou lata, que os romanos apelidavam de nimia ou magna negligentia e que, segundo eles, consistia em non intelligere quod omnes intelligunt.

No entanto, o legislador deixou-nos o conceito de negligência grosseira, pois, conforme resulta do n.º 3 do artigo 14.º da LAT:

<<Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão >>.

Assim, será descaracterizado o acidente se resultar provado que o mesmo proveio exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.

E, neste contexto, dúvidas não há de que para descaracterizar o acidente, com base na negligência grosseira do sinistrado, é preciso provar-se que a sua conduta (por ação ou omissão) atentou contra o mais elementar sentido de prudência e que a sua falta de cuidado não resultou da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão. É preciso, em suma, que a sua conduta se apresente como altamente reprovável, indesculpável e injustificada, à luz do mais elementar senso comum.

Como se refere no acórdão do STJ de 29.11.2005, proferido no processo n.º 1924/05, da 4.ª Secção, “a figura da negligência grosseira corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo".

Acresce que, sendo a descaracterização do acidente um facto impeditivo do direito à reparação que a lei confere aos sinistrados ou seus beneficiários, caberá à entidade patronal e/ou à respetiva seguradora o ónus de alegação e prova da factualidade conducente a essa descaracterização, por força do disposto no n.º 2 do art. 342.º do C.C..

Antes de mais, cumpre dizer que foi julgada parcialmente procedente a pretendida alteração da matéria de facto.

Assim, regressando ao caso em análise, resulta da matéria de facto provada que:

- No dia 22.12.2018, AA encontrava-se a trabalhar sob as ordens, direção e fiscalização da R..., SA, quando foi vítima de um acidente de viação.

- Tal acidente ocorreu cerca das 18h em ..., quando o Sinistrado conduzia um veículo pesado de mercadorias e este entrou em despiste, tendo tombado.

- Tal evento provocou ao sinistrado lesões - traumatismo crânio encefálico – que vieram a ser causa direta e necessária da morte no próprio dia do acidente, conforme relatório de autópsia junto aos autos.

- Resulta do relatório de autópsia efetuado ao Sinistrado AA no dia 24.12.2018, que o exame toxicológico para pesquisa de etanol no sangue, revelou uma taxa superior a 5 g/l, sendo que a amostra de sangue usada foi colhida em sangue da cavidade cardíaca.

- Na sequência da averiguação da causa do acidente constatou-se a falta de acionamento do hidráulico do bloqueio traseiro.

- No dia 22 de dezembro de 2018, cerca das 18H00, o sinistrado circulava na EN ...22, em ..., no sentido descendente Câmara Municipal – Centro de Saúde, conduzindo o veículo matricula ..-JZ-...

- O tempo estava bom, e o piso encontrava-se seco e em bom estado de conservação.

- Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas, o veículo conduzido pela vítima descrevia uma curva para a esquerda e sem quaisquer obstáculos na via.

- Tendo entrado em despiste, sozinho, indo embater no muro que ladeia a estrada do lado direito e de seguida tombou sobre o lado direito.

- Em consequência, caiu para o lado direito do interior da cabine, ficando aí encarcerado.

- O sinistrado era operador de veículos e transportava no veículo um contentor de lixo acoplado no chassis do mesmo.

- E trabalhava na empresa há cerca de 15 anos, conhecia perfeitamente o veículo que conduzia e todos os mecanismos inerente à acoplagem e fixação do contentor que transportava.

- No exercício das suas funções, o Sinistrado transportava no veículo que conduzia um contentor carregado com resíduos sólidos para ..., que tinha de acoplar, fixando o contentor ao chassis do veículo que conduzia e que era da sua responsabilidade, tendo formação profissional para o efeito.

- O veículo dispunha de um Sistema Amplirool adequado ao transporte do contentor que acoplava no momento do acidente.

- Para acoplar/carregar a caixa/contentor o Sinistrado teria de manusear os manípulos existentes no interior da cabine, junto ao banco do condutor, mas também os existentes no exterior esquerdo do chassis do veículo, sendo que a caixa/contentor é puxada para cima do chassis do veículo por ação do braço articulado que termina com o gancho de fixação.

- Após a acoplagem/carregamento do contentor na caixa do veículo e antes de iniciar a marcha com o contentor acoplado /carregado, deve ser acionado o hidráulico do bloqueio traseiro.

- Ao descrever a curva à esquerda e porque o hidráulico do bloqueio traseiro pelo exterior do chassis não estava acionado - não estando o contentor fixo – o contentor saiu dos carris de apoio e fixação e deslizou para a direita do veículo com a força centrifuga.

- Estando o contentor na parte da frente fixo ao veículo pelo gancho de fixação, originou que a força causada pela saída traseira do contentor para o lado direito, levou a que embatesse no muro e depois fizesse tombar o veículo para a sua lateral direita.

- Após o que o veículo deslizou pela estrada sobre o lado direito e raspou pela estrada.

- Os mecanismos do veículo encontravam-se em condições de funcionamento.

- O sinistrado sabia e tinha formação para adotar tais procedimentos de segurança.

- O sinistrado tinha conhecimento dos procedimentos e trabalho, incluindo a Ficha de Risco que decorre da divulgação da Matriz IPR- Ficha de Risco nº 028: transferência de resíduos.

- O sinistrado teve diversas formações, incluindo formação de acolhimento, de riscos no posto de trabalho e emergência, do software de pesagem SPAT, serviços de transporte (carga de condução categoria CE e CAM), livrete individual (tacógrafos) gestão de circuitos (TECMIC).

Mais se provou que:

- O sinistrado trabalhava e conduzia sem qualquer atenção e noção da estrada e do trânsito e sem qualquer domínio sobre o veículo.

- Após a acoplagem/carregamento do contentor na caixa do veículo e antes de iniciar a marcha com o contentor acoplado /carregado, o sinistrado devia ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior, o que não fez.

- O acidente ficou a dever-se ao facto de o sinistrado, face ao estado de alcoolémia em que se encontrava, não ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior do chassis da caixa de carga do veículo.

- O acidente e suas consequências ficaram a dever-se unicamente ao facto de o sinistrado se encontrar e conduzir em estado de embriaguez e não ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior do chassis.

Pois bem, face a esta matéria de facto apurada, é nosso entendimento que o acidente dos autos proveio exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, nos termos previstos no citado artigo 14.º da LAT.

Na verdade, <<I – A negligência grosseira corresponde a uma negligência particularmente grave, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares. II – Para que se verifique a apontada exclusão da responsabilidade emergente de acidente de trabalho é necessária a prova de que ocorreu um acto ou omissão temerários em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificados pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos e costumes da profissão, e, além disso, que o acidente tenha resultado exclusivamente desse comportamento. (…)>>[5].

<<III – Para descaracterizar um acidente de trabalho quando o sinistrado apresenta álcool no sangue - ainda que em grau susceptível de influenciar o comportamento humano e de afectar as respectivas faculdades intelectuais psico-motoras - é necessário demonstrar a existência de nexo de causalidade entre aquela situação e a verificação do acidente, ou seja, que o acidente se deveu, em exclusivo, à elevada taxa de alcoolemia que o sinistrado tinha; (…)>>[6].

Como já referimos, resulta da matéria de facto provada que o sinistrado conduzia o veículo com uma taxa de álcool no sangue superior a 5 g/l, trabalhava e conduzia sem qualquer atenção e noção da estrada e do trânsito e sem qualquer domínio sobre o veículo; após a acoplagem/carregamento do contentor na caixa do veículo e antes de iniciar a marcha com o contentor acoplado /carregado, o sinistrado devia ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior, o que não fez; o acidente ficou a dever-se ao facto de o sinistrado, face ao estado de alcoolémia em que se encontrava, não ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior do chassis da caixa de carga do veículo, desencadeando-se o acidente; o acidente e suas consequências ficaram a dever-se unicamente ao facto de o sinistrado se encontrar e conduzir em estado de embriaguez e não ter acionado o hidráulico do bloqueio traseiro exterior do chassis, pelo que, facilmente se conclui que o mesmo agiu com negligência grosseira (comportamento temerário em alto e relevante grau)[7] e que o acidente ocorreu devido à condução sob influência do álcool e só por causa desta, ou seja, provou-se o nexo de causalidade entre a taxa de álcool no sangue e a verificação do acidente e que este proveio exclusivamente daquele comportamento do sinistrado.

Em suma, o acidente dos autos encontra-se descaracterizado e, consequentemente, a Ré seguradora recorrente não é responsável pela reparação dos danos decorrentes do mesmo, incluindo o pedido de reembolso das despesas de funeral formulado pela mãe do sinistrado.  

Procedem, assim, estas conclusões da recorrente.

*

Desta forma, impõe-se a revogação da sentença recorrida em conformidade.

*

*

IV – Sumário[8]

(…).

*

*

V – DECISÃO

Nestes termos, sem outras considerações, na procedência do recurso, acorda-se em revogar a sentença recorrida, absolvendo-se a Ré dos pedidos contra ela formulados pelo FAT e por BB.                                                       

*                                                       

                                                             *

Custas a cargo do Autor recorrido.

                                                             *

                                                             *

Coimbra, 2022/11/09


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(Paula Maria Roberto)

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(Azevedo Mendes)

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(Felizardo Paiva)


                                                                                                                 





[1] Relatora – Paula Maria Roberto
  Adjuntos – Azevedo Mendes
Felizardo Paiva
[2] Os factos notórios não carecem de prova nem de alegação, considerando-se como tais os factos que são do conhecimento geral – n.º 1 do artigo 412.º do CPC.
[3] Acórdão do STJ, de 19/01/2017, disponível em www.dgsi.pt e, no mesmo sentido, cfr. o acórdão do STJ, de 11/04/2019, disponível em www.dgsi.pt.
[4] CC Anotado, volume I, 2017, Ana Prata e outros, Almedina, pág. 434.
[5] Acórdão do STJ, de 19/10/2005, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Ac. da RE, de 26/04/2018 e, no mesmo sentido cfr., entre outros, os Acórdão da RC de 16/06/2016, da RP, de 24/01/2018, da RE, de 14/01/2016 e de 31/10/2018 e da RL, de 07/11/2018, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[7] A conduta do sinistrado é suscetível, até, de integrar a prática de um crime de condução sob a influência do álcool.
[8] O sumário é da exclusiva responsabilidade da relatora.