Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
103/21.8T8MMV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
CULPA
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MONTEMOR-O-VELHO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 483.º DO CÓDIGO CIVIL E ARTIGOS 5.º, 11.º, 12.º, 13.º A 16.º DO DECRETO-LEI N.º 276/2003, DE 4 DE NOVEMBRO
Sumário: I-Estipula o DL 276/2003 de 4 de Novembro, um conjunto de regras aplicáveis às relações dos proprietários confinantes com os bens do domínio público ferroviário, impondo um dever geral de não realização de obras, exercício de actividades ou prática de quaisquer actos que possam fazer perigar a segurança da circulação ferroviária e ou da infra-estrutura ferroviária (artº 14), como uma zona não eadificandi (artº 15), segundo a qual, não poderá o proprietário de prédio vizinho, fazer “construções, edificações, aterros, depósitos de materiais ou plantação de árvores a distância inferior a 10 m” (a) e ainda “fazer escavações, qualquer que seja a profundidade, a menos de 5 m da linha férrea” (b).

II-A obrigação imposta ao proprietário de terreno confinante com o DPF, pelo artº 12 do D.L. 276/2003 de antes de efectuar quaisquer plantações próximas da linha divisória, requerer ao gestor da infra-estrutura a delimitação, tem de se considerar extensiva àquele a quem o proprietário haja concedido a exploração do terreno.

III-Resultando que o 1º R. invadiu prédio pertencente ao domínio público ferroviário, nele abrindo uma vala e provocando o corte do cabo, está demonstrado o evento ilícito e danoso e a culpa do agente causador do dano, conhecedor da existência deste ramal (artº 483 do C.C.)

Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO


 INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A e IP TELECOM, SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÕES, S.A., intentaram acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra os Réus AA e CRÉDITO AGRÍCOLA SEGUROS – COMPANHIA DE SEGUROS DE RAMOS REAIS, S.A., peticionando a condenação solidária dos RR. ou, na medida da respectiva responsabilidade que se vier a apurar, no pagamento às Autoras do valor total de €9.943,50, acrescido de juros de mora legal vincendos desde a data de citação até efectivo e integral pagamento, na proporção de €289,00 à 1.ª Autora e de €9.654,50€ para a 2.ª Autora.

Como fundamento dos pedidos formulados, alegam que o 1.º Réu, quando se encontrava a proceder à preparação de um terreno confinante com o domínio público ferroviário, mediante a utilização e condução de um veículo tractor de matrícula NI-..-.., da sua propriedade, seguro na 2ª R., ultrapassou os limites do referido terreno, entrando dentro do domínio público ferroviário, e, em consequência, provocou o desaterro de terras e o corte de um cabo de fibra de telecomunicações sob gestão da 2.ª Autora, tendo a 1ª Autora despendido a quantia de €289,00 a título de mão-de-obra e de equipamentos utilizados e a 2ª Autora a quantia de €9.654,50, pela reparação dos cabos.


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Contestou o 1º Réu, alegando a prescrição da dívida e a ausência de culpa por os cabos não estarem devidamente sinalizados e por desconhecer os limites dos terrenos e a 2ª R. por o sinistro se não mostrar coberto pela apólice de seguro. 


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Foi proferido despacho saneador, identificando-se o objeto do litígio, enunciando-se os temas da prova, e admitindo-se a prova apresentada pelas partes, após o que teve lugar a audiência final, sendo proferida sentença na qual se decidiu:

5.1 Condenar o Réu AA a pagar à INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A. a quantia de €109,00 (cento e nove euros), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;

5.2 Condenar o Réu AA a pagar à IP TELECOM, SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÕES, S.A. a quantia de €9.654,50 (nove mil seiscentos e cinquenta e quatro euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;

5.3 Absolver a Ré CRÉDITO AGRÍCOLA SEGUROS – COMPANHIA DE SEGUROS DE RAMOS REAIS, S.A do peticionado;

5.4 Condenar o Réu AA no pagamento das custas processuais (cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).”


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Não conformado com esta decisão, impetrou o 1º R. recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

“EM CONCLUSÃO:

1. Face ao facto dado como provado no ponto 2.1.24 dos factos provados e ao que dispõe o nº 1 do artigo 80º do Decreto Regulamentar 1/92, de18/02/1992, deveria e deverá ser dado como provado que a profundidade dos monotubo e cabos identificados em 2.1.5. não respeitava os respectivos parâmetros de passagem/montagem de distribuição da rede para cabos elétricos.

2. Face aos factos dados como provados nos pontos 2.1.13 a 2.1.20, entendemos que o Réu atuou sem culpa, pois em face dessas circunstâncias, o homem médio, o homem normal, mediamente sagaz, prudente, avisado e cuidadoso, o bom pai de família, não atuaria doutra forma.

3. Não se verificando o requisito/pressuposto da culpa – sequer negligência inconsciente - não deveria, nem deverá, o ora recorrente ser condenado no pedido.

4. Mas mesmo que assim se não entenda, na fixação da indemnização há que ter em atenção o estatuído no artigo 494º do C. Civil, considerando o grau de culpabilidade do Réu, a sua situação económica e a situação económica dos AA. e as demais circunstâncias do caso.

5. Ficou provado que o Réu é motorista no Município ...; que aufere o vencimento mensal líquido de € 663,97 e que faz uma agricultura de subsistência no horários pós-laboral (factos 2.1.29., 2.1.30. e 2.1.31).

6. Por seu turno, como é público e notório, as AA. têm uma muita boa situação económica e um grande património.

7. Assim sendo, a entender-se que o Réu agiu com negligência, deverá a indemnização ser fixada por equidade em montante não superior ao vencimento mensal do Réu.

            Nestes termos e nos demais de direito, que Vªs Exªs doutamente suprirão, deve a apelação ser julgada procedente e, em consequência, revogar-se in totum a sentença recorrida.        E, se assim se não entender, deve a indemnização ser fixada equitativamente, ao abrigo do disposto no artigo 494º do Código Civil.

            Assim se fazendo a costumada justiça!”


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As AA. interpuseram contra-alegações, concluindo da seguinte forma:

“1- A douta sentença mostra-se em consonância com a qualificação jurídica dos factos provados e não provados.

2- O sentido da decisão preconizada na douta sentença valora na sua globalidade todos os meios de prova que concorrem para o sentido de decisão de condenação do Apelante.

3- Face aos factos provados e à fundamentação globalmente valorada pela Meritíssima Juiz a quo outro não poderia ser o sentido de decisão.

4- Primis, o caso sub judice está naturalmente excluído do âmbito de aplicação do DR 1/92, de 18 de fevereiro.

5- Isto é, sem censura: Não foi provado que a profundidade dos monotubos e cabos não respeitava os respetivos parâmetros de passagem/montagem de distribuição da rede para cabos eléctricos.

6- Pois, aliás, até ficou provado a não aplicabilidade das normas trazidas pelo Apelante, ao caso em apreço!!

7- Porque o cabo da propriedade das Apelantes estava (e está) enterrado em pleno Domínio Público Ferroviário (DPF), sob gestão destas.

8- Como decorre dos factos provados e bem assim expressamente da prova testemunhal produzida pelas Autoras, através dos seus técnicos especializados na área, que com razão de ciência depuseram a respeito.

9- Improcedendo assim a sua pretensão de alterar o Facto Não Provado 2.2.4 para provado, que não o foi, nem tinha aptidão para ser.

10- No que respeita ao facto do tribunal a quo ter considerado, sem censura, a atividade exercida pelo Réu Apelante, atividade perigosa para efeitos de aplicação do n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil, a verdade é que

11- No caso em concreto, o Apelante utilizou uma charrua com lâmina acopolada a um trator agrícola para abrir uma vala em terreno no qual não tinha autorização para exercer essa atividade; no qual não tinha autorização para, sequer, estar.

12- Os danos produzidos na esfera das Autoras deveram-se, em exclusivo, à atuação do Apelante/Réu, ao perigo resultante de um evento de laboração ou exploração de máquina, no âmbito de actuação das suas funções específicas e do seu funcionamento próprio, ainda que na dependência da circulação devida ao tractor associado e promotor dessas funcionalidades.

13- Pelo que, bem andou o Tribunal a quo em considerar a atividade exercida pelo Apelante enquanto atividade perigosa, nos termos e para os efeitos julgados ao caso em concreto.

14- E, sem dúvida, atuou com culpa!

15- Porquanto é inegável que

O homem médio e o bom pai de família SABE (sem poder alegar desconhecimento) que não pode transpor sem qualquer autorização os limites da propriedade que cultiva;

O homem médio e o bom pai de família SABE (sem poder alegar desconhecimento) que não pode abrir uma vala em terreno no qual não tinha autorização para lavrar, passar, ou exercer qualquer atividade.

16- Sendo-lhe este comportamento elementarmente exigido, o que não acautelou nem verificou, no caso sub judice!

17- E, na realidade, não há qualquer demonstração fundada de que o Apelante tenha empregue todas as providências, exigidas pelas circunstâncias, com o fito de prevenir a produção dos danos, bem pelo contrário, como resulta da factualidade provada.

18- Desde logo desrespeitou os limites da propriedade que cultivava, extravasando-a!!

19- Quando a cultivava há cerca cinco/seis anos (Facto Provado 2.1.34) ; quando sabia da existência e localização do ramal ferroviário nas proximidades (Facto Provado 2.1.18).

20- Assim, porque

infringiu todas as normas legais vigentes do direito de propriedade privada e com maior relevo do Domínio Público Ferroviário do Estado (DPF),

não lhe foi autorizada a passagem em terreno do DPF,

não lhe foi autorizada a lavragem ou mesmo abrir valas em terreno do DPF,

não pode circular, passar ou exercer qualquer atividade quer no terreno do DPF, e até mesmo no terreno confinante com o DPF, sem que cumpra o disposto no DL 276/2003, de 4 de novembro,

o terreno do DPF encontrava-se facilmente diferenciado do terreno confinante que cultivava, porquanto coberto de vegetação,

até, cultivava o terreno confinante com o DPF há cerca de 5/6 anos,

conhecia da existência e localização do Ramal Ferroviário, isto é, do terreno do DPF.

assumidamente extravasou a propriedade, sem autorização e por sua conta e risco,

21- Evidente é que, não pode vir alegar qualquer incumprimento por parte das Apeladas, quanto à colocação dos seus cabos nos seus terrenos. Incumprimento esse que nem sequer existe!

22- Não pode vir alegar a falta de qualquer prova das AA, porquanto estas lograram toda a prova e contraprova,

23- Ao invés do Réu Apelante que não logrou provar que diligenciou de todas as formas que estariam ao seu alcance, atenta a atuação exigida ao homem médio ou bom pai de família, bem pelo contrário!!

24- Donde, não pode arrogar qualquer beneplácito da sua conduta, ou contrição do resultado e consequências da sua conduta.

25- A esfera de atuação e comportamento do Apelante é composto não só de direitos que tende injustificadamente a exigir, mas igualmente de obrigações que não tende minimamente a cumprir.

26- Mostrando, aliás, desprezo pela propriedade alheia, em particular pelo Domínio Público do Estado!

27- E nesta parcela de obrigações a verdade é que o Apelante não cumpriu a parte que lhe era minimamente exigido.

28- Pelo que, deve manter-se a sentença a quo, confirmando a condenação do Réu Apelante no pagamento dos prejuízos patrimoniais que as Apeladas incorreram unicamente por causa e na decorrência daquela conduta ilícita culposa do Réu Apelante.

Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas doutamente suprirão deve ser considerado improcedente o recurso interposto e confirmada na sua totalidade a douta sentença a quo, quanto à condenação do Réu Apelante, nos termos peticionados.

Assim decidindo farão V. Exas a costumada JUSTIÇA!!!”


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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar:

a) Se se impõe a alteração da matéria de facto adquirida pelo tribunal recorrido, dando-se como assente que a profundidade dos monotubo e cabos identificados em 2.1.5. não respeitava os respectivos parâmetros de passagem/montagem de distribuição da rede para cabos elétricos;

b) Se, nesse sentido deve ser considerada excluída a culpa do 1º R., no corte do cabo;
c) Se, em qualquer caso, deve a indemnização ser fixada de acordo com a equidade, por via da aplicação do disposto no artº 494 do C.C.;


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:

“2.1 Factos provados:

Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

2.1.1 A 1.ª Autora é a gestora dos bens do domínio público ferroviário do Estado.

2.1.2 A 2.ª Autora exerce a actividade de gestão e exploração de infra-estruturas e sistemas de telecomunicações e seu alojamento, designadamente, de domínio público ferroviário, a qual beneficia dos serviços centralizados do grupo Infraestruturas de Portugal.

2.1.3 No dia 8 de Novembro de 2017, no terreno confinante com o Ramal ..., aproximadamente ao Pk (ponto quilométrico) 19+206, localizado na freguesia ..., concelho ..., o Réu encontrava-se a abrir um rego, utilizando para o efeito o tractor agrícola de matrícula NI-..-.. com uma charrua acoplada.

2.1.4 Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 2.1.3., o Réu ultrapassou os limites do terreno que cultivava, entrando no domínio público ferroviário (DPF).

2.1.5 Acto contínuo, e quando procedia à abertura do referido rego, o Réu, com a lâmina da charrua que utilizava, provocou o desaterro de terras e cortou um monotubo e um cabo de 60 fibras ópticas de telecomunicações, que se encontravam instalados no domínio público ferroviário.

2.1.6 O facto referido em 2.1.5. fez interromper de imediato as telecomunicações, sob gestão da 2.ª Autora e integradas no domínio público ferroviário da 1.ª Autora.

2.1.7 O corte referido em 2.1.5. ocorreu num único ponto.

2.1.8 As Autoras repararam os referidos cortes, mediante recurso a prestador de serviços e através de meios próprios.

2.1.9 Na reparação dos referidos cortes, a 1.ª Autora despendeu o montante de €180,00 referente a despesas de mão de obra.

 

2.1.10 Para reparação dos referidos cortes, a 1.ª Autora despendeu ainda a quantia de €109,00 referente a equipamentos utilizados, sendo €84,00 relativos a deslocação e mobilização de meios e €25,00 relativos a viatura.

2.1.11 A 2.ª Autora, para reparação dos referidos cortes, recorreu a prestador de serviços.

2.1.12 A 2.ª Autora, com a reparação dos referidos cortes, despendeu o montante total de €9.654,50, referentes a reparação provisória e reparação definitiva, quer por meios próprios da 2.ª Autora, quer mediante recurso a prestador de serviços.

2.1.13 À data do referindo em 1.1.3., o terreno do domínio público ferroviário, confinante com o prédio cultivado pelo Réu, encontrava-se coberto de vegetação, tais como silvas e arbustos, as quais invadiam parcialmente este prédio.

2.1.14 Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 2.1.3., não existiam quaisquer marcos delimitadores dos limites entre o prédio cultivado pelo Réu e o domínio público ferroviário.

2.1.15 No local referido em 2.1.5., não existia qualquer sinalização externa, visível à superfície, da localização dos referidos monotubo e cabo de fibra de telecomunicações, que permitisse a terceiros estranhos às Autoras identificar a existência e localização daqueles.

2.1.16 Existia uma fita sinalizadora, também enterrada, não visível à superfície, acima dos identificados monotubo e cabo.

2.1.17 Aquando do referido em 2.1.3., o Réu desconhecia a existência e localização do monotubo e do cabo mencionado em 2.1.5.

2.1.18 Aquando do referido em 2.1.3., o Réu conhecia a existência e localização do Ramal ....

2.1.19 Aquando do referido em 2.1.3., o Réu desconhecia os limites entre o terreno que cultivava e o domínio público ferroviário.

2.1.20 O Réu não inquiriu, junto das Autoras, sobre a existência e localização do monotubo e do cabo referidos em 2.1.5..

2.1.21 BB não inquiriu, junto das Autoras, sobre a existência e localização do monotubo e do cabo referidos em 2.1.5.

2.1.22 À data do descrito em 2.1.3., o Ramal ... encontrava-se desactivado, sem actividade ferroviária e sem os respectivos carris e travessas da via.

2.1.23 O Réu procedia à abertura do rego, nas circunstâncias de tempo, lugar e modo descritas em 2.1.3., a fim de escoar as águas pluviais provenientes do terreno que cultivava.

2.1.24 A charrua referida em 2.1.3. aprofunda o terreno a uma profundidade máxima de 40,64 centímetros.

2.1.25 À data dos factos referidos em 2.1.3, o Réu era titular de carta de condução emitida para a categoria C, com validade até 31/12/2020.

2.1.26 O tractor agrícola de matrícula NI-..-.., à data do referido em 2.1.3., era propriedade de BB.

2.1.27 Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...70, com início em 09/03/2016, BB transferiu para a Ré a responsabilidade civil em laboração decorrente da utilização do tractor agrícola de matrícula NI-..-.., até ao limite de €250.000,00, sendo aplicada uma franquia de 10% dos prejuízos indemnizáveis, com um mínimo de €250,00 e um máximo de €1.250,00.

2.1.28 Da cláusula 2.ª, alínea e), das condições especiais aplicáveis contrato referido no ponto anterior – sob a epígrafe “Exclusões” –, consta que “[p]ara além das exclusões previstas nas Condições Gerais, ficam também excluídas, relativamente a esta Condição Especial, as responsabilidades resultantes de […] e) Danos causados em cabos ou condutas enterrados, salvo quando o Segurado, antes do início dos trabalhos, tenha inquirido junto das entidades competentes sobre a existência de tais cabos ou condutas e feito a respectiva localização. Em qualquer caso, as indemnizações devidas serão limitadas ao custo com a reparação dos cabos ou condutas, excluindo-se quaisquer perdas indirectas”.

2.1.29 O Réu é motorista no Município ....

2.1.30 O Réu aufere o vencimento mensal líquido de €663,97.

2.1.31 O Réu faz uma agricultura de subsistência no horário pós-laboral.

2.1.32 Os Réus foram interpelados para proceder ao pagamento dos valores mencionados em 2.1.9., 2.1.10. e 2.1.12..

2.1.33 Os Réus recusaram-se a assumir e, consequentemente, a pagar os valores peticionados nos termos referidos em 2.1.9., 2.1.10. e 2.1.12..

2.1.34 À data do referido em 2.1.3. e há cerca de 5/6 anos, o Réu explorava agricolamente o terreno confinante com o domínio público ferroviário.


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2.2. Factos não provados:

Com relevo para a decisão da causa, resultaram não provados, nomeadamente, os seguintes factos:

2.2.1 O tractor de matrícula NI-..-.. é propriedade do Réu.

2.2.2 O proprietário do terreno cultivado pelo Réu desconhecia a existência no local dos referidos monotubo e do cabo de fibra de telecomunicações.

2.2.3 O Réu procedeu à abertura de um rego ao longo da “estrema” entre o terreno de cultivo e o terreno do domínio público ferroviário.

2.2.4 A profundidade dos monotubo e cabos identificados em 2.1.5. não respeitava os respectivos parâmetros de passagem/montagem de distribuição da rede para cabos eléctricos.”


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IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO


Vem o R. recorrente requerer a alteração do facto considerado como não provado sob o nº 2.2.4, por considerar que “tratando-se de um facto negativo alegado pela Ré, incumbia às Autoras a prova do seu contrário, ou seja, que a profundidade dos monotubo e cabos identificados em 2.1.5. respeitava os respectivos parâmetros de passagem/montagem de distribuição da rede para cabos elétricos, o que não sucedeu. Face ao facto dado como provado no ponto 2.1.24 e ao que dispõe o nº 1 do artigo 80º do Decreto Regulamentar 1/92, de 18/02/1992, deveria e deverá ser dado como provado que a profundidade dos monotubo e cabos identificados em 2.1.5. não respeitava os respectivos parâmetros de passagem/montagem de distribuição da rede para cabos elétricos.”

Relativamente aos requisitos de reapreciação da matéria de facto, dispõe o artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, que:

«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

No que toca à especificação dos meios probatórios, «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).

Mo que toca à possibilidade e limites da reapreciação da matéria de facto, garantindo-se um duplo grau de jurisdição[1], tem este de ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artº 607 nº 5 do C. P. Civil. De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.

Esta prudente convicção do tribunal, tem de ser suportada numa lógica racional, segundo juízos de probabilidade séria, baseada no resultado da prova apreciado à luz das regras da experiência comum e atentas as particularidades de cada caso, tendo em conta que a exigência relativamente à prova deve variar em função dos bens ou direitos que se encontram em jogo.

Nestes termos, o standard de prova deve ser mais exigente quanto maior for a improbabilidade do evento alegado e que, quando na presença de factos constitutivos do direito alegado cuja prova é por regra difícil ( Probatio diabólica ) de obter, não deve o julgador - no âmbito da sua valoração/apreciação - utilizar um grau de exigência ao nível da generalidade dos demais casos, antes deve ajustar o standard de prova para um nível de exigência mais leve/baixo. [2]

O standard a observar para valoração da prova efectuada não se confunde com o ónus probandi. A prova dos factos constitutivos do direito, cabe àquele que invoca esse direito em juízo. Assim, cabia aos AA. alegar e provar os factos constitutivos do seu direito e ao R. ora apelante os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito, ou seja, que os danos se deveram total ou parcialmente a actos praticados pelos AA., ou à omissão de cumprimento de normativos legais por parte destes (artº 342 nº2 do C.C.).

Nesta medida, cabia ao 1º R. alegar e provar o facto relativo à profundidade dos cabos e monotubo por si cortados, por integrar eventual excepção ao direito das AA.

Ora o R. não alegou este facto, sendo que o que ora pretende aditar não constitui um facto, mas antes uma conclusão a retirar face aos demais factos apurados e ao regime legal aplicável.

Assim sendo, a impugnação do 1º R. não é de acolher.


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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Funda o recorrente, nas suas conclusões, a sua discordância relativamente à decisão objecto de recurso, essencialmente nos seguintes argumentos:

- o Réu actuou sem culpa, pois em face dos factos apurados, o homem médio, o homem normal, mediamente sagaz, prudente, avisado e cuidadoso, o bom pai de família, não actuaria doutra forma;

-ainda que assim se não entenda, na fixação da indemnização há que ter em atenção o estatuído no artigo 494º do C. Civil, considerando o grau de culpabilidade do Réu, a sua situação económica e a situação económica dos AA. e as demais circunstâncias do caso.

Decidindo

Em relação ao primeiro argumento recursório, é manifesta a falta de razão do recorrente.

A obrigação de indemnizar resultante da responsabilidade civil por factos ilícitos repousa, em regra, na obrigação de indemnizar os danos resultantes de conduta culposa do agente, conforme decorre do disposto no artº 483 do C.C., sendo excepcionais os casos de responsabilidade objectiva do agente (v.g. a regra especial respeitante a escavações prevista no artº 1348 do C.C.) e os casos em que, não se prescindindo do elemento de culpa do agente, esta se presume, invertendo-se assim o ónus probandi (v.g. a decorrente do exercício de actividades perigosas previstas no nº2 do artº 493 do C.C.).

No caso em apreço, embora a decisão sob recurso tenha enquadrado os factos no disposto no artº 493 nº2 do C.C. e, consequentemente, tenha concluído que o R. não provou que empregou todos os meios ao seu alcance para evitar os danos, a situação fáctica enquadra-se no disposto no artº 483 do C.C., conforme decorre dos factos provados sob os nºs 2.1.7 a 2.1.4., 2.1.18, 2.1.20, 2.1.23 e 2.1.34.

Dos factos provados resulta a prática de um acto ilícito danoso por parte do 1º R., consistente na realização de uma escavação para escoamento de águas pluviais em terreno do domínio público ferroviário (DPF), o que lhe estava vedado, quer por via do disposto nos normativos gerais constantes dos artºs 1305 e 1348 do C.C., quer por via das disposições especiais constantes dos artºs 5, 11, 12, 13 a 15 do DL 276/2003 de 4 de Novembro.

Estabelece este diploma um conjunto de regras aplicáveis às relações dos proprietários confinantes com os bens do domínio público ferroviário, impondo uma série de restrições ao direito de propriedade dos proprietários de prédios confinantes. Não só se estabelece um dever geral de não realização de obras, exercício de actividades ou prática de quaisquer actos que possam fazer perigar a segurança da circulação ferroviária e ou da infra-estrutura ferroviária (artº 14), como se estabelece uma zona não eadificandi (artº 15).

Assim, não poderá o proprietário de prédio vizinho, fazer “construções, edificações, aterros, depósitos de materiais ou plantação de árvores a distância inferior a 10 m” (a) e ainda está-lhe vedado “fazer escavações, qualquer que seja a profundidade, a menos de 5 m da linha férrea” (b).

Para o caso é perfeitamente irrelevante que a linha férrea esteja naquela ocasião em funcionamento ou não, estando o 1º R. impedido de realizar qualquer escavação, ainda que em terreno por si cultivado, fosse qual fosse a profundidade, a menos de 5 mts da linha férrea e absolutamente proibido de realizar escavações em prédio integrado no DPF. Como lhe estava vedado escoar águias pluviais para o DPF (artº 16 nº1 c))

Resultando que o 1º R. invadiu prédio pertencente ao domínio público ferroviário, nele abrindo uma vala e provocando o corte do cabo, está demonstrado o evento ilícito e danoso e a culpa do agente causador do dano, conhecedor da existência deste ramal, sendo irrelevante face ao disposto no artº 12 nº2 do referido D.L. 276/2003 a alegação de que desconhecia as reais confrontações do terreno.

A obrigação imposta ao proprietário de, antes de efectuar quaisquer plantações próximas da linha divisória, de requerer ao gestor da infra-estrutura a delimitação, tem de se considerar extensiva àquele a quem o proprietário haja concedido a exploração do terreno.

Assim sendo, uma actuação minimamente diligente imporia que o 1º R. conhecesse as confrontações do terreno que lavrava e impunha-lhe que conhecedor da existência deste ramal, observasse especiais cuidados de forma a observar a distância exigida pelo artº 15 nº1 b) do D.L. 276/2003.

Por último, o 1º R. não poderia desconhecer a proibição constante dos artºs 15 e 16 do D.L. 276/2003 que sempre lhe vedavam a abertura de qualquer vala e o escoamento de águas pluviais para terreno integrado no DPF.

Estão assim verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil delitual e apurada a culpa exclusiva do agente causador do dano, bem comno o nexo de causalidade entre o acto ilícito e o evento danoso, sendo irrelevante a profundidade do cabo em apreço, pois que colocado em terreno integrado no DPF a que se não aplica o disposto no D.R. 1/92 citado pelo 1º R.

No que se reporta ao segundo argumento recursório invocado pelo 1º R., a aplicação do disposto no artº 494 do C.C., justifica-se apenas em circunstâncias excepcionais quando haja de funcionar a equidade. Trata-se de uma faculdade conferida aos tribunais de julgarem de acordo com a equidade, nos casos de mera culpa, apurados os elementos aí referidos e quando as circunstâncias do caso o justifiquem.

O conceito indeterminado de equidade aponta para uma ponderação de interesses, em que relevam, quer a estimativa do dano, face à materialidade adquirida pelo tribunal, quer, ainda, a ponderação de outros interesses merecedores de tutela, entre outros, os princípios da justiça, da igualdade e da proporcionalidade.

No caso em apreço, não só a culpa do 1º R. assume especial gravidade, como a indemnização se deve fixar no valor dos danos apurados, cfr. aliás o exige o disposto nos artsº 562 e 566 do C.C.

Soçobra, assim, o recurso do R. apelante.


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DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo 1º R., mantendo a decisão recorrida.
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As custas da acção fixam-se pelo apelante (artº 527 nº1 do C.P.C.).


Coimbra 13/09/22
Cristina Neves
Teresa Albuquerque
Falcão de Magalhães



[1] Cfr. o Acórdão da Relação de Guimarães de 04.02.2016, no Proc. 283/08.8TBCHV-A.G1, disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: «Para que a decisão da 1.ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada na resposta que se deu à factualidade controvertida, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.»
De igual modo, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016, no Proc.1572/12.2TBABT.E1.S1, disponível na mesma base de dados, decidindo que «O Tribunal da Relação deve exercer um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma como a 1.ª instância respondeu à matéria factual, limitando-se a intervir nos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, pois que só assim se assegurará o duplo grau de jurisdição, em matéria de facto, que a reforma processual de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12-12) visou assegurar e que o actual Código confirmou e reforçou.»

[2] Luís Filipe Pires de Sousa, in Prova Por Presunção no Direito Civil, 2012, Almedina, pág. 148 e 149.