Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
82/23.7PBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO MIGUEL VEIGA
Descritores: CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
OFENSA CORPORAL
PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
EXEMPLOS PADRÃO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ACTO PRATICADO CONTRA DOCENTE NO EXERCÍCIO DAS SUAS FUNÇÕES
Data do Acordão: 11/05/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO - JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 47.º, N.º 1, 73.º E 74.º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGOS 132.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEA L), 143.º E 145.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I - É assumido, entre a doutrina e a jurisprudência actuais, o princípio da insignificância ou princípio bagatelar enquanto princípio regulativo com especial incidência em matéria de “punibilidade”.

II - Quando tal ocorra o resultado será a ausência de punição para um determinado facto que, prima facie, aparenta ter a virtualidade de colocar em causa o bem jurídico atingido, mas em termos ou proporções tais que tornam a potencial pena aplicável algo desproporcionado e atentatório da função de ultima ratio da ordem jurídico-penal.

III - A técnica dos chamados “exemplos-padrão” respeita a elementos constitutivos do tipo de culpa, ou seja, elementos que dizem respeito a uma atitude mais desvaliosa do agente, ainda que traduzida ou intermediada por um maior desvalor da acção e da conduta do cometimento do crime, justificativa da correspondente agravação punitiva.

IV - Fundamental à qualificação é que na imagem global do facto surja uma agravação de censurabilidade, podendo esta imagem global agravada surgir, não do preenchimento exacto da previsão abstracta de um ou vários dos “exemplos-padrão”, mas de uma situação concreta que, num um juízo de analogia, seja substancialmente assimilável, sem que daqui derive a violação do princípio da legalidade criminal.

V - Não é um simples incómodo o empurrão desferido contra uma professora, provocando a queda desta no solo, com prévio embate com a parte de trás da cabeça numa mesa da sala, e dores na região occipital, que demandaram 3 dias de cura sem afectação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional.

VI - Tal atitude traduz um total e gratuito desrespeito em relação à autoridade e ao poder-dever de condução de uma aula, que integra o múnus funcional da profissão, tudo isto num clima de “desafio”.

VII - Uma sociedade assente na protecção e no respeito por valores institucionais vitais do ponto de vista comunitário, como os que se ligam à educação e ao ensino escolar, não pode entender como não dotados de uma especial censurabilidade factos, ainda para mais criminalmente puníveis, que têm na sua origem uma atitude de gratuito e sistemático desrespeito e confronto em relação a quem exerce a docência.

Decisão Texto Integral: *

Acordam, em conferência, os Juízes da Relação de Coimbra:


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I. RELATÓRIO

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Nos autos de processo comum singular n.º 82/23.7PBCTB, …, foi proferida, em 9 de Abril de 2025, após a realização da audiência de discussão e julgamento, a seguinte decisão, relativa ao arguido ,

«Pelo exposto, o Tribunal decide condenar o arguido …:

A) Pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º/n.º 1 e 145º/n.º 1-a), com referência aos arts. 132º/n.os 1 e 2-l) e 14º/n.º 1 do Código Penal» (C.P.), «na pena 3 (três) meses de prisão;

B) Substituir a pena de 3 (três) meses de prisão por multa, que fixa em 100 (cem) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros), perfazendo um total de € 500 (quinhentos euros)».


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            Inconformado, o condenado interpôs recurso, pugnando pela revogação da mencionada decisão e, por essa via, no sentido da sua absolvição da prática do referido crime.

O recorrente concluiu a sua motivação do modo ora exposto (conforme a transcrição que segue):

«

2. Entende o arguido, salvo melhor opinião, não existirem quaisquer razões de facto e de direito que possam fundamentar a sua condenação.

3. Analisando, agora, os elementos que determinaram a “convicção” do Tribunal, não descortinamos, com o devido respeito, qual o processo lógico-dedutivo, estribado nos pressupostos supra enunciados e na prova produzida em julgamento, que permitiu a conclusão pelo envolvimento do recorrente no ilícito em questão.

4. Como dissemos supra, entendemos, com o devido respeito, que tal convicção se encontra alicerçada tanto em pilares inexistentes como em interpretações deficientes da matéria fática que, depois de submetida à elevada ponderação de Vossas Excelências, desabará completamente.

5. Quanto aos pontos 5, 6, 7, 8, 9 e 10, dados como provados na sentença.

9. Entende a defesa que mal andou o Tribunal, isto porque formou a sua convicção com base nas declarações de uma testemunha, que no presente caso é também ofendida. Como tal, estava obrigado o Tribunal a corroborar as declarações da ofendida com outros meios de prova.

15. Estamos perante versões contraditórias de arguido e ofendida, sobre os mesmos factos, para piorar no caso em concreto temos três testemunhas presenciais cuja sua versão dos factos não foi devidamente tida em consideração pelo Tribunal a quo, acreditamos que o processo penal não se basta com probabilidades, os factos têm de ser corroborados através de prova concreta, aqui a prova produzida indica no sentido contrário da acusação, reforçando assim a posição do arguido.

17. Para além disto, como se não fosse já o suficiente, chamamos a atenção para o relatório médico-legal que se encontra junto aos autos, sendo que esse mesmo relatório contraria a versão dos factos da ofendida, como tal, contraria a acusação.

18. Assim sendo, perante o supra exposto, jamais o Tribunal poderia ter dado como provado o ponto 8., que faz referência aos alegados dias necessários para cura da ofendida.

19. É o próprio relatório que nos indica que não há traumatismo craniano, nem lesões visíveis ou identificáveis. Mais, na observação relativa ao exame objectivo – estado actual, diz mesmo que a examinada, aqui ofendida, não apresenta lesões ou sequelas relacionáveis com o evento.

27. Deste modo, e de acordo com as mencionadas regras da experiência, os pontos 5, 6, 7, 8, 9 e 10, dados como provados, deviam ser dados como não provados e o recorrente deveria ter sido absolvido.

31. Não se encontram preenchidos os elementos constitutivos do tipo legal de crime.

33. Sendo que os factos dados como provados não permitem, na nossa humilde opinião, a integração dos mesmos como ofensa à integridade física qualificada, como de seguida se demonstrará.

34. Certo sector da doutrina e jurisprudência vem defendendo que, quando se tratem de ofensas insignificantes, deverão ser excluídas do tipo de crime do art. 143º C.P., por não terem dignidade para

lesar o bem jurídico protegido pela incriminação em apreço.

35. O preenchimento do tipo legal do crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. no art. 145º C.P., no que ao presente caso importa, pressupõe a verificação de uma lesão da integridade física simples (art. 143º C.P.), sendo necessário, ainda, que a conduta do agente revele uma censurabilidade ou perversidade acrescida, a qual poderá decorrer das circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 132º C.P., entre outras.

36. Existe especial censurabilidade para efeitos do disposto no art. 132º C.P., susceptível de qualificar o crime de ofensa à integridade física, ex vi do estatuído no art. 145º/n.º 2 C.P., se as circunstâncias em que a ofensa foi causada forem de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. E existirá especial perversidade do agente, se a conduta empreendida revelar uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade.

37. Voltando ao caso em concreto, analisando o exposto na acusação, admitindo que o mesmo aconteceu, apenas por mera hipótese académica, jamais o arguido poderia ser condenado por um crime de ofensa à integridade física qualificada.

38. Os factos dados como provados não demonstram a tal especial censurabilidade para efeitos do disposto no art. 132º C.P., susceptível de qualificar o crime de ofensa à integridade física.

39. Isto porque as circunstâncias em que a ofensa foi causada não foram de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores.

40. Mais, não existe especial perversidade do agente, isto porque olhando ao exposto na acusação, o arguido empurrou a porta, nem sequer empurrou ou tocou na ofendida, sendo que a queda muito provavelmente terá ocorrido por circunstâncias fortuitas, às quais o arguido é alheio.

41. Para além disso, estamos nitidamente perante aquilo a que a doutrina e a jurisprudência apelidam de lesão insignificante, conforme se pode ver pela sentença e documentos juntos autos, designadamente o relatório médico-legal.


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            Admitido o recurso, a ele respondeu o Ministério Público junto da primeira instância, …

           


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            Nesta Relação, o Ministério Público apresentou parecer, …


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            Cumprido o disposto no art. 417º/n.º 2 do Código de Processo Penal (C.P.P.), nada mais foi apresentado nos autos.


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            Procedeu-se a exame preliminar, após o que foram colhidos os vistos e teve lugar a conferência.


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            II. FUNDAMENTAÇÃO


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            …

No caso presente, considerando as conclusões do recurso, e apenas estas, parece alocar o recorrente a sua impugnação a três focos fundamentais, a saber:

- erro de julgamento por parte do Tribunal a quo, do qual resultou que os factos dados como provados sob os pontos 5, 6, 7, 8, 9 e 10 da matéria assente da sentença recorrida nunca o devessem ter sido;

- aquilo que, na óptica do recorrente, terá consubstanciado um erro notório do Tribunal a quo na sua actividade cognitivo-decisória, ao analisar a prova, com violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo;

- a circunstância de os factos dados como provados não permitirem, na opinião do recorrente, a respectiva integração na figura típica do crime de ofensa à integridade física qualificada.


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            Com interesse para o objecto de análise do presente recurso, consta da decisão proferida pelo Tribunal a quo o seguinte (conforme a transcrição ora exposta):

            «II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

                2.1. FACTOS PROVADOS

Da audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos com relevância para a boa decisão da causa:

1. No dia 26 de janeiro de 2023, pelas 17 horas e 40 minutos…, professora, encontrava-se a dar uma aula da disciplina de Área de Integração na sala Inf. 3, à turma do 10º ano do curso profissional de Mecatrónica.

2. Nessa altura o arguido e AA … chegaram à referida sala de aulas, já com cerca de 25 minutos de atraso, tendo … informado os dois que teriam falta injustificada atento o sistemático incumprimento da pontualidade, acrescentando ainda que não lhes era permitido entrar na sala de aulas para levantarem os seus pertences, que aí se encontravam, tendo fechado a porta e tendo o arguido e AA … ficado fora da sala.

3. Por essa razão e por continuarem a querer ir buscar os seus pertences, o arguido e AA … começaram a bater na porta com força, levando a que … interrompesse a aula, uma vez mais, e fosse junto da porta para ver o que se passava.

4. Ao abrir a porta da sala, … verificou que era o arguido e o AA … que se encontravam à entrada da sala e pretendiam entrar, pelo que aquela voltou a afirmar que apenas poderiam entrar na sala quando a aula terminasse.

5. Quando … começou a fechar a porta da sala, o arguido empurrou a porta e …, levando a que esta se desequilibre para trás.

6. Na queda assim provocada, … embate com a parte de trás da cabeça em uma mesa da sala, antes de atingir o solo.

7. Após se levantar, … ordenou ao arguido e a AA … que a acompanhassem ao gabinete da Direcção, tendo estes negado aí se deslocar.

8. Em consequência da conduta descrita, … ficou com dores na região occipital, o que demandou 3 dias para a sua cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional, tendo sido fixada a data da cura a 29 de Janeiro de 2023.

9. O arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente, ao desferir o empurrão na porta e na BB, que sabia ser sua professora e se encontrava a dar uma aula que insistiu em interromper, ofendia o seu corpo e a sua saúde e actuou querendo isso mesmo.

10. O arguido sabia que a sua conduta era proibida por lei.

11. O arguido vive com os pais.

12. O arguido frequenta o 11º ano.

13. O arguido não tem condenações averbadas no seu certificado de registo criminal.


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2.2. FACTOS NÃO PROVADOS

Inexistem factos não provados.


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2.3. MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

O Tribunal formou a sua convicção do conjunto da prova produzida, analisada e ponderada criticamente.

Concretizando.

Louvou o Tribunal a sua convicção no relato feito pela ofendida, …, cujo depoimento mostrou-se coerente e espontâneo, revelou firmeza no que dizia e na forma como o dizia, merecendo, por isso, credibilidade.

A ofendida prestou depoimento de forma esclarecida, lógica e com solidez, isento de hiatos de memória ou de constrangimentos reveladores de dúvidas ou cautelas, a ofendida foi especialmente firme e espontânea quando, por sua iniciativa, ao longo do seu relato fez questão de concretizar os acontecimentos, apresentando naturalidade nos seus esclarecimentos.

Acresce que a ofendida, perante a insistência das várias instâncias, manteve a mesma versão dos factos, expressando-se com naturalidade e espontaneidade, com um discurso objectivo e circunstanciado.

A coerência do seu depoimento foi evidente, designadamente quando, de forma espontânea, especificou as advertências que fez ao arguido e ao aluno que o acompanhava para não entrarem na sala de aula e como se desenrolaram as agressões que lhe foram perpetradas, por cada um dos arguidos.

Quanto aos depoimentos das restantes testemunhas, todas elas alunos que, à data, se encontravam na sala de aula, mostraram-se tendenciosos e comprometidos, porquanto manifestaram uma exagerada preocupação em não comprometer o arguido.

Alguns desses depoimentos, além de comprometidos, não apresentaram segurança, lógica, nem coerência.

No geral, as referidas testemunhas aperceberam-se que o arguido e AA … chegaram atrasados, todas elas conseguiram concretizar (aproximadamente) o tempo do atraso e, também, não tiveram qualquer dúvida em relatar que a professora não os permitiu entrar por causa do atraso. No entanto, quando a narrativa se aproximava do momento em que a professora caiu, as hesitações, constrangimentos e atrapalhações foram uma constante.

Ora vejamos.

A testemunha … relatou os acontecimentos, no entanto, afirmou que “depois deixei de olhar e quando voltei a olhar a professora já estava no chão”. A testemunha, em síntese, vê tudo, mas deixa de olhar, precisamente, no instante em que a ofendida cai, mas de forma completamente contraditória e até caricata, (apesar de ter afirmado que não estava a olhar) assegurou ao Tribunal que o arguido não tocou na professora.

Quanto às testemunhas …, todas elas, sem se comprometerem, afirmaram que viram a professora caída e que esta se levantou muito rápido, aparentando estar nervosa e, após dirigiu-se para a direcção.

Algumas das testemunhas chegaram a afirmar que a professora estava a chorar, no entanto, a postura de não comprometimento foi evidente em todas as testemunhas e, apesar do aparato, na medida em que “do nada” uma professora aparece caída no chão, apresenta-se nervosa e chorosa, alegadamente, e apesar de estar ali a escassos metros, ninguém viu como a professora caiu.

As testemunhas … apresentaram, desde logo, uma postura exageradamente comprometida, revelaram desconforto com a insistência das perguntas e acabaram por apresentar um discurso completamente irrealista e até jocoso.

Quanto a … iniciou o depoimento com muitos pormenores, designadamente que chegaram atrasados, por quanto tempo, o que a professora lhes transmitiu. Quando chegou à parte da queda da ofendida, o discurso deixou de ser pormenorizado, limitando-se a relatos genéricos como afirmar que a professora caiu, mas que o arguido não lhe tocou, sem concretizar a queda.

Quando questionado directamente pelo Tribunal para que relatasse a forma como a professora caiu, continuou com hesitações nas suas respostas e acabou por afirmar, com uma postura provocatória e desafiante, que a professora se lançou de costas para trás, sozinha, e que ficou com a impressão que o fez de propósito.

Por sua vez, … chegou ao cúmulo, depois de se insistir para que explicasse como é que a professora caiu ao chão, de afirmar e (mesmo depois de advertido para o que estava a dizer) confirmar que a professora caiu com o vento.

O arguido, depois de produzida toda a prova, prestou declarações.

As suas declarações apresentaram segurança, apenas, na parte inicial e, à semelhança dos seus colegas de turma, também não conseguiu explicar como a professora caiu, relatando que apenas a viu cair assim que abriu a porta.


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III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

3.1. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL

Do crime de ofensas à integridade física qualificada

De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 143º C.P., comete o crime de ofensa à integridade física simples “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa”.

Trata-se de um crime de dano (exige-se a efectiva lesão do bem jurídico), de resultado (verifica-se um efeito sobre o objecto da acção que se distingue espácio-temporalmente da própria acção) e de execução livre (o modo de causar o resultado é indiferente para o preenchimento do tipo).

A ofensa ao corpo não poderá ser insignificante, a apreciação da gravidade da lesão não se deve deixar fundar em motivos e pontos de vista pessoais do ofendido, necessariamente subjectivos e arbitrários, antes deverá partir de critérios objectivos, se bem que não perdendo totalmente de vista factores individuais.

O crime de ofensa à integridade física simples (art. 143º C.P.) surge como o tipo legal fundamental em matéria de crimes contra a integridade física. É a partir da ofensa ao corpo ou saúde de outrem que se constrói uma série de variações qualificadas, como a ofensa à integridade física grave (art. 144º C.P.), qualificada (art. 145º C.P.), privilegiada (art. 146º C.P.), agravada pelo resultado (art. 147º C.P.) e por negligência (art. 148º C.P.).

Vejamos agora o que de específico poderá existir quando as ofensas à integridade física se traduzem na previsão do art. 145º/n.os 1-a) e 2 C.P., que prescreve: “1 – Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido: a) com pena de prisão até quatro anos no caso do art. 143º; 2 – São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 132º”.

Este tipo legal de crime baseia-se no mesmo pensamento que presidiu à construção do tipo legal de crime do homicídio qualificado, …

Calcorreando a factualidade provada resulta que, nas circunstâncias de tempo e lugar melhor descritas supra, o arguido empurrou a porta a …, levando a que esta se desequilibre para trás.

Na queda assim provocada, … embate com a parte de trás da cabeça em uma mesa da sala, antes de atingir o solo.

A ofendida é professora e, à data dos factos, encontrava-se a leccionar uma aula da disciplina de Área de Integração na sala Inf. 3, à turma do 10º ano do curso profissional de Mecatrónica, da qual o arguido faz parte.

Assim, dúvidas não subsistem que estamos perante um dos exemplos-padrão, previstos na alínea l) do n.º 2 do art. 132º C.P., atendendo a que a ofendida era professora e encontrava-se no exercício das suas funções.

Mais se provou, que a ofendida, após se levantar, ordenou ao arguido e ao AA … que a acompanhassem ao gabinete da Direcção, tendo estes negado aí se deslocar.

Em consequência da conduta descrita, … ficou com dores na região occipital, o que demandou 3 dias para a sua cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional, tendo sido fixada a data da cura a 29 de Janeiro de 2023.

Por outro lado, resulta assente que o arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente, ao desferir o empurrão na porta e na …, que sabia ser sua professora e se encontrava a dar uma aula que insistiu em interromper, ofendia o seu corpo e a sua saúde e actuou querendo isso mesmo.

O arguido sabia que a sua conduta era proibida por lei.

Importa atentar que, de todo o circunstancialismo, resulta uma especial censurabilidade da conduta do arguido, na medida em que se encontrava em plena aula, que interrompeu e insistiu em interromper, mesmo depois de advertido pela ofendida-professora para não o fazer.

O arguido, de forma gratuita e manifestando persistência em pôr em causa a ordem e o normal funcionamento de uma aula, insistiu em entrar.

Não satisfeito com o facto de já ter colocado em causa a autoridade da docente que estava a leccionar e em perturbar a aula que decorria, quando a ofendida começou a fechar a porta da sala, o arguido empurrou a porta e …, levando a que esta se desequilibre para trás.

O comportamento do arguido, analisado na sua globalidade, demostra uma especial censurabilidade. Está em causa uma conduta que não surgiu isoladamente, o arguido já tinha sido advertido pelo seu comportamento e já tinha sido impedido de entrar na sala. No entanto, não satisfeito, insistiu com comportamentos provocatórios dirigidos à docente, em plena aula, culminando com o empurrão da porta da sala para, uma vez mais, contrariar a docente e forçar a sua entrada. Com este empurrão, o arguido acabou por também empurrar a docente e, assim, atingiu a integridade física desta, o que quis e conseguiu.

Nesta medida, mostram-se reunidos todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de ofensa à integridade física qualificada».


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            Primeira questão:

Do eventual erro de julgamento por parte do Tribunal a quo, do qual haja resultado que os factos dados como provados sob os pontos 5, 6, 7, 8, 9 e 10 da matéria assente da sentença recorrida nunca o devessem ter sido.

            Nas respectivas conclusões de recurso, insurge-se o recorrente contra a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo nos pontos 5, 6, 7, 8, 9 e 10 da sentença recorrida, argumentando ter o mesmo ocorrido em erro de julgamento, por inadequada avaliação da prova produzida em audiência e reclamando, face a esse seu entendimento, que sejam tais factos dados como não provados e, a final, absolvido do crime por que foi condenado por aquele ente decisor.

            …

Terá o recorrente razão?

Cremos que não.

Diga-se estar este Tribunal de recurso ciente de que a verdade judicial não é (nem pode ser) uma verdade “absoluta”, no sentido de uma verdade “ontologicamente” indestrutível. A verdade judicial alicerça-se em factos alcançados – e alcançáveis – através da interpretação e depuração dos diversos elementos probatórios produzidos e analisados em audiência de julgamento (quando a mesma ocorra) ou relativamente aos quais as partes (quando o processo as admita) estão de acordo quanto à significação e valoração próprias. A convicção do julgador baseia-se, pois, nesse conjunto de elementos, mediante a produção de um juízo de verosimilhança, a que as normais regras da experiência comum não poderão nunca ser alheias. Podendo assim dizer-se que a verdade intra-processual assume contornos algo “formais” (no sentido de que é “elaborada” a partir de um determinado percurso metódico delineado pelas próprias regras processuais) e “contextuais” (porque dependente da prova adquirida e da quantidade e qualidade de informação e conhecimento que tal prova inclui) (a propósito, Prof. Rossano Adorno, “La fisionomia del thema probandum nel processo penale”, “Il Foro Italiano”, Anno CXXXVIII, n.º 4, 2013, págs. 134 e 135).

Portanto, a percepção que ocorra da prova produzida (como veremos a propósito da questão seguinte) ancora-se em algo que não pode estar aprisionado de um puro subjectivismo do julgador, de uma “intuição” desgarrada do sentido daquela prova.

A nossa afirmação precedente vale, do mesmo modo, para a percepção que da produção probatória os demais sujeitos processuais possam formar, pelo que não poderemos deixar de dizer ser arrojada, no caso dos autos, a conclusão extraída pelo recorrente partir dos depoimentos acabados de mencionar.

Com efeito, pensemos um pouco nisto: uma professora que, precisamente por o ser, ganha ou não muito do respeito dos seus alunos pela postura que em relação a eles adopte, decide, pois, “auto-projectar-se” para o solo, na presença de uma ou duas dezenas de pessoas? Ainda para mais, no contexto de evidente indisciplina de que está a ser alvo?

Cremos que a questão acabada de formular e a resposta que a normalidade das coisas implica nos mostram bem as razões – inteligentemente explicitadas na sentença recorrida – pelas quais ocorreu a completa descredibilização dos apontados depoimentos, assim como das declarações do arguido, por parte do Tribunal a quo.

Os depoimentos em causa foram, pois, absolutamente militantes na tentativa de “salvação da face” do arguido, mostrando-se de uma parcialidade, de um irrealismo e de um comprometimento (que não com a verdade…) bastante patentes.

Portanto, é para esta instância de recurso relativamente evidente que os depoimentos em causa – em contraposição com o conteúdo do depoimento prestado em audiência pela ofendida – não impunham, não aconselhavam ou sequer permitiam uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo quanto aos pontos 5, 6, 7, 8, 9 e 10 da matéria assente da sentença.

Na realidade, crê-se que, ainda para mais munido dos meios cognitivos e de apreensão da prova que só a imediação e a oralidade são idóneas a proporcionar, o Tribunal a quo ajuizou do modo correcto aquilo que perante si foi produzido em sede de audiência de julgamento.

E a conclusão acabada de expor em nada é afectada pela circunstância, invocada pelo recorrente, de o relatório médico-legal do exame pericial efectuado à ofendida nos indicar não ter havido traumatismo craniano nem lesões visíveis ou identificáveis (cfr. fls. 20 e 21 dos autos).

Não confundamos as coisas: para além de o ponto 8 da sentença recorrida em momento algum se referir a um qualquer traumatismo craniano, é evidente que nem todas as quedas ao solo, com prévio embate da cabeça em uma mesa (e sejam tais quedas o resultado de uma “auto-projecção” ou de um empurrão por outrem…) têm de gerar a produção de um traumatismo craniano…

Consequentemente, improcede esta parte do presente recurso.


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            Segunda questão:

Do eventual erro notório do Tribunal a quo na sua actividade cognitivo-decisória, ao analisar a prova, com violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo.

Decorre do já exposto sermos do entendimento de que, após a análise da matéria de facto da sentença recorrida, não decorre da mesma ter o Tribunal a quo deixado de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão, com relação aos apontados factos. Inexiste, por conseguinte, o vício previsto no art. 410º/n.º 2-a) C.P.P..

Depois, não se encontra no aludido texto qualquer erro notório na apreciação da prova, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 410º/n.º 2-c) C.P.P., já que não se vê que o Tribunal a quo tenha violado as regras da experiência ou que tenha efectuado uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios (antes pelo contrário…), e, muito menos, que tenha violado qualquer regra sobre prova vinculada.

Importa ter em mente que, na apreciação dos vícios do art. 410º/n.º 2 C.P.P., o julgamento da matéria de facto é levado a cabo segundo o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127º do mesmo diploma legal, segundo o qual, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Por isso mesmo se compreendendo não estar taxado por lei (e salvas raras excepções – cfr., por exemplo, arts. 169º e 344º/n.º 2 C.P.P.) o valor a atribuir a cada meio probatório no processo de formação daquela convicção. Se é exigível do judicante uma racional motivação fundamentadora da decisão tomada a partir da percepção e valoração do material de prova produzido (pois que livre apreciação da prova não pode, a luz alguma, ser entendida como sinónimo de arbitrariedade e insindicabilidade do processo judicativo-decisório), já não lhe é assacável, todavia (e, repete-se, salvas as excepções legalmente previstas), que a sua convicção assente de modo pré-definido neste ou naquele elemento, desligado de uma sujeição do mesmo ao fórum de discussão constituído pela audiência de julgamento.

Por “regras da experiência” deveremos pensar no complexo dedutivo e indutivo levado a cabo pelo julgador a partir da prudente observação de linhas da recorrência do acontecer, as quais se convertem, assim, em «(…) critérios generalizantes e tipificados de inferência factual (…)» (Prof. António Castanheira Neves, “Sumários de Processo Criminal”, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1968, pág. 48).

A produção da prova, que funda a convicção do julgador, é realizada na audiência (art. 355º C.P.P.), com respeito pelos já atrás mencionados princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção dessa mesma prova, cuja valoração é levada a cabo pelo julgador na fundamentação da sentença ou acórdão (arts. 374º/n.º 2 C.P.P. e 205º/n.º 1 C.R.P.), mostrando-se tal valoração de suma importância porquanto constitui um verdadeiro factor de legitimação do poder jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre a qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto (iuris dicere). E, nessa medida, é garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões (assim, Ac. S.T.J. de 6/10/2022, in www.dgsi.pt).

A livre valoração da prova não pode ser entendida (também já o sugerimos) como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, tratando-se, ao invés, de uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, permitindo objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão.

Não interessa tanto, pois, no presente recurso propriamente o que esta Relação decidiria se tivesse efectuado o julgamento em primeira instância, tal como também não está em causa o modo como decidiria o recorrente se fosse o julgador a quo.

À instância superior cumpre verificar a existência da prova e controlar a legalidade da respectiva produção, nomeadamente no que respeita à observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação, contraditório e publicidade, verificando, outrossim, a adequação lógica da decisão relativamente às provas existentes. E só em caso de inexistência de provas para se decidir em um determinado sentido, ou de violação das normas de direito probatório (nelas se incluindo as regras da experiência e-ou da lógica) cometida na respectiva valoração feita na decisão da primeira instância, poderá esta ser modificada, nos termos do art. 431º C.P.P..

Ora, in casu, e como atrás foi já afirmado, não obstante o recorrente tenha indicado os concretos pontos da matéria de facto que considera terem sido mal julgados (pontos 5, 6, 7, 8, 9 e 10 da factualidade assente da sentença recorrida), a sua discordância centra-se, ao cabo e ao resto, como igualmente já dissemos, no modo como o Tribunal a quo apreciou a globalidade da prova.

E, lida a motivação da sentença recorrida, acima transcrita, vemos que o Tribunal a quo analisou criticamente os meios de prova produzidos, encontrando-se a decisão de facto em apreço fundamentada, inteligentemente explicada no percurso lógico-cognitivo que conduziu a convicção daquele Tribunal, tudo efectivamente suportado pela prova produzida em julgamento.

Não se mostra, pois, violado o art. 410º/n.º 2-c) nem o art. 374º/n.º 2 C.P.P..

Mais aduz ainda o recorrente que, face à prova produzida, e no limite, o Tribunal a quo deveria ter permanecido na dúvida quanto aos factos integradores da queda da ofendida ao solo, o que imporia a respectiva absolvição, em obediência ao princípio in dubio pro reo.

Como sabemos, o que resulta basicamente do princípio acabado de aludir é que, quando o Tribunal fica na dúvida – inultrapassável – quanto à ocorrência de determinado facto, deve retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido.

A selecção da perspectiva probatória que favorece o acusado só se impõe quando, esgotadas todas as operações de análise e confronto de toda a prova produzida perante o julgador, apreciada conjugadamente entre si e em conformidade com as máximas de experiência, a lógica geralmente aceite e o normal acontecer das coisas, subsista mais do que uma possibilidade de igual verosimilhança e razoabilidade. Assim, só haverá violação do mencionado princípio quando, perante uma dúvida inultrapassável sobre factos essenciais para a decisão da causa, venha o julgador a decidir em desfavor do arguido.

Portanto, no nosso caso, segundo a tese do recorrente – e, como dissemos, no limite das coisas –, deveríamos ter como que (perdoe-se-nos a expressão) um “empate” de possibilidades fácticas credíveis: a tese decorrente do depoimento da ofendida, de uma banda; a tese derivada das declarações do arguido e dos depoimentos já acima por nós vistos, de outra banda.

Só que nada do que acabamos de expor aconteceu no caso dos presentes autos, pelas razões que, à luz das regras das normais regras da experiência da vida, o Tribunal a quo explanou na sentença recorrida, mostrando-se, por isso, a factualidade julgada assente estribada em provas legais e em consonância com essa prova e tendo aquele Tribunal a quo exposto, repete-se, de forma cuidada, coerente e lógica os meios de prova de que se serviu e a credibilidade que atribuiu a uns e o descrédito que outros lhe mereceram.

Consequentemente, inexiste violação alguma, quer do princípio in dubio pro reo, quer do princípio da presunção de inocência, consagrados no art. 32º C.R.P..

Em suma: não se verificam quaisquer razões objectivas que justifiquem a modificação da matéria de facto provada que foi impugnada e determinem o afastamento do raciocínio lógico desenvolvido pelo Tribunal a quo, mas antes se confirmam os fundamentos em que se alicerçou a sua convicção sobre aquela matéria assente.

Concluindo, improcede, também neste ponto, o recurso.


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Terceira questão:

A circunstância de os factos dados como provados não permitirem, na opinião do recorrente, a respectiva integração na figura típica do crime de ofensa à integridade física qualificada.

Para o recorrente, não estão preenchidos in casu os elementos constitutivos do tipo legal de crime por que foi condenado.

Sabemos que a ofensa corporal é a perturbação ilícita da integridade física stricto sensu (ou seja, afectando apenas o corpo), do aspecto psíquico (atingindo a mente), ou da saúde no seu todo (bem-estar físico, mental e social), e ainda que não existam ferimentos ou contusões externas (visíveis) ou internas (cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. de 18/12/91, publicado in D.R.- I série, de 8/2/92).

Estamos perante um crime material e de dano, pois que abrange, para o seu preenchimento, a produção de um determinado resultado, a saber, a lesão do corpo ou da saúde de outrem (sobre a figura dos crimes materiais e de dano, vide Prof. Eduardo Correia, “Direito Criminal”, volume I, reimpressão, Coimbra, 1971, págs. 286 a 289).

Por outro lado, o tipo do art. 143º C.P. é doloso, o que significa que se basta, para a sua verificação subjectiva, com qualquer uma das modalidades do dolo (dolo directo, dolo necessário ou dolo eventual – cfr. art. 14º do diploma legal citado).

Pois bem, na óptica do recorrente está em causa a inflicção de uma lesão “insignificante”, que não assumiu dignidade para lesar o bem jurídico protegido pela incriminação em apreço.

Em tese geral, é indubitável a assunção, entre a doutrina e a jurisprudência actuais, do princípio da insignificância ou princípio bagatelar enquanto princípio regulativo com especial incidência em matéria de “punibilidade”, por forma a que, «(…) em geral, não é merecedora de pena a lesão insignificante de um bem jurídico-penal em si mesmo carente de protecção» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal. Parte Geral”, Tomo I, “Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime”, 3ª edição, Coimbra, 2019, págs. 790 e 791).

Sendo discutido o fundamento do efeito de exclusão da punição, e havendo quem o veja na atipicidade do facto ou apenas no domínio da consequência jurídica (aqui, com um cunho mais processual, portanto – Prof. José Damião da Cunha, “Não punibilidade e dispensa de pena. Breve contributo para a integração dogmática da não punibilidade, à luz de uma perspectiva processual-penal”, “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 15 (2005), N.º 2, págs. 239 e ss.), parece-nos ter mais sentido, ainda assim, que, «(…) na generalidade dos casos de actuação do princípio da insignificância ou bagatelar o tipo de ilícito e o tipo de culpa devem ser afirmados, mas deve ser negada a dignidade penal do facto como um todo, (…) e, consequentemente, a sua punibilidade» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal. Parte Geral”, Tomo I, “Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime” citado, págs. 791 e 792).

Seja qual for a perspectiva, no entanto, e como vimos, o resultado tenderá a verificar-se, em termos práticos, na ausência de uma punição para um determinado facto que, prima facie, aparenta ter a virtualidade de colocar em causa o bem jurídico atingido, embora em termos ou proporções tais que tornam a potencial pena aplicável, e em concreto, algo de desproporcionado e atentatório da função de ultima ratio da ordem jurídico-penal.

Será esta a situação dos nossos autos?

Cabe notar que «(…) a apreciação da gravidade da lesão não se deve deixar fundar em motivos e pontos de vista pessoais do ofendido, necessariamente subjectivos e arbitrários, antes deverá partir de critérios objectivos [duração e intensidade do ataque ao bem jurídico e necessidade de tutela penal (…)], se bem que não perdendo totalmente de vista factores individuais (não confundir com hipersensibilidade ou embotamento do lesado)» (Prof. Paula Ribeiro de Faria, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra, 1999, pág. 207).

Pois bem, crê-se, sem grandes hesitações, que os contornos específicos do caso protagonizado pelo recorrente sobre a ofendida são relativamente claros no sentido de nos inculcar a ideia de não estar em causa qualquer “insignificância” ofensiva da integridade física de tal ofendida.

E o que acabamos de afirmar, atingi-lo-emos qualquer que seja o prisma de análise que adoptemos.

Se pensarmos naquilo que o empurrão desferido pelo recorrente provocou, a saber, a queda (não desejada, note-se e reafirme-se…) da ofendida ao solo, com um prévio embate com a parte de trás da sua cabeça em uma mesa da sala, perceberemos estarmos longe de um simples “incómodo” sofrido pelo contacto físico de outrem.

Se pensarmos também nos efeitos advenientes da aludida queda para a visada – dores na região occipital, que demandaram 3 dias para a sua cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional –, poderemos igualmente perceber que não só um traumatismo craniano criaria uma perturbação da integridade física enquanto complexo de saúde indispensável ao bem-estar daquela mesma ofendida… Ainda para mais, se tivermos em conta a exigência das funções profissionais pela mesma desempenhadas e o que essas funções demandam em termos de estabilidade psicossomática.

Finalmente, pensar-se que a actuação do recorrente, com a veemência denotada e efeitos alcançados sobre a pessoa da ofendida, não comporta uma forte negação do sentido social contido no tipo de ilícito próprio da ofensa corporal, bom, será confundir falta de dignidade penal com carência efectiva de pena.

Aliás, em sentido coincidente ao por nós defendido, decidiu-se, no Ac. Rel. Coimbra de 9/4/2025, que «a acção física para empurrar outrem para trás, com força, como manifestação de desagrado e com intenção de molestar fisicamente o ofendido, provocando-lhe dor e desconforto, integra a prática de um crime de ofensa à integridade física» (podendo ver-se, em contraponto, a propósito de uma discussão em cujo âmbito se dão apenas alguns toques no ombro de outrem, sem que daí advenham quaisquer consequências de jaez algum, o Ac. Rel. Coimbra de 20/3/2024, ambos os arestos disponíveis em www.dgsi.pt).

Pelo que nenhuma cláusula (seja de adequação social ou outra) levará a retirar relevo jurídico-penal, enquanto ofensa à integridade física, à conduta perpetrada pelo arguido sobre a ofendida.

Mais prossegue o recorrente, no entanto, no sentido de que, mesmo que se considere haver ocorrido um crime de ofensa à integridade física, o mesmo nunca poderá ser qualificado, dado não existir in casu uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores socialmente vigentes.

Vejamos.

Como se sabe, a técnica dos chamados “exemplos-padrão”, consagrada no n.º 2 do art. 132º C.P., chama à colação a ideia de que lidamos com elementos constitutivos do tipo de culpa, ou seja, com elementos que dizem respeito a uma atitude mais desvaliosa do agente (ainda que traduzida ou intermediada por um maior desvalor da acção e da conduta do cometimento do crime), justificativa de uma correspondente agravação punitiva.

Nas palavras autorizadas do Prof. Jorge de Figueiredo Dias, «(…) a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrita com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º 1, verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos aos descritos e que integram o tipo de culpa qualificador. Deste modo, devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador – que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º/n.º 2» (“Comentário Conimbricense do Código Penal” e Tomo I citados, pág. 26).

Ainda a propósito da razão de ser da enunciação exemplificativa adoptada pelo legislador, importará salientar que «muitos dos elementos constantes das diversas alíneas do art. 132º/n.º 2, em si mesmos tomados, não contendem directamente com uma atitude mais desvaliosa do agente, mas sim com um mais acentuado desvalor da acção e da conduta, com a forma de cometimento do crime. Ainda nestes casos, porém, não é esse maior desvalor da conduta o determinante da agravação, antes ele é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente, é dizer, o especial tipo de culpa do homicídio agravado. Só assim se podendo compreender e aceitar que haja hipóteses em que aqueles elementos estão presentes e, todavia, a qualificação vem em definitivo a ser negada» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal” e Tomo I citados, pág. 27).

A ideia da lei é, pois, a «(…) de pretender imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal” e Tomo I citados, pág. 29).

Importará ainda a formulação das três notas seguintes.

            Em primeiro lugar, e como se referiu no Ac. S.T.J. de 17/12/2009 (in www.dgsi.pt), o preenchimento dos “exemplos-padrão” poderá nem ser necessário para efeitos de qualificação da conduta do agente, derivando antes tal qualificação de um circunstancialismo equivalente, também merecedor de especial censurabilidade ou perversidade; ao invés, pode a integração formal nos ditos “exemplos-padrão” não ser o bastante, porque para além do preenchimento de qualquer das alíneas do n.º 2 do art. 132º C.P. sempre importará verificar, no caso, a tal especial censurabilidade ou perversidade do agente. Tudo valendo para dizer que a interacção entre os n.os 1 e 2 do art. 132º C.P. poderá conduzir, portanto, à exclusão do efeito prima facie indiciado pelos “exemplos-padrão”.

Depois – e é a segunda nota, intimamente ligada à primeira –, fundamental se mostra que, em uma perspectiva global do facto, surja uma agravação de censurabilidade a assestar ao agente por esse mesmo facto, por via do especial conteúdo de culpa prima facie indiciado pelos “exemplos-padrão” do n.º 2 do art. 132º C.P..

Por último, bem se perceberá que a imagem global do facto agravada possa, pois, surgir, não de um preenchimento exacto da previsão abstracta de um ou vários dos “exemplos-padrão” mas de uma situação concreta que, em um juízo de analogia, lhe(s) seja substancialmente assimilável, sem que daqui derive a violação do princípio da legalidade criminal (neste expresso sentido, vide Acs. S.T.J. de 14/10/2010 e de 31/1/2012, in www.dgsi.pt).

O que ocorre, então, no nosso caso?

Ocorre que a ofendida era, aquando da prática dos factos, professora do recorrente.

Ora, nos termos do n.º 2-l) do art. 132º, ex vi arts. 143º e 145º/n.os 1-a) e 2, todos C.P., é suscpetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o n.º 1 do citado art. 132º a circunstância de o agente praticar o facto, e além do mais, contra «(…) docente, examinador ou membro de comunidade escolar, (…) no exercício das suas funções ou por causa delas» (redacção vigente aquando da ocorrência dos factos), ou «(…) profissional na área da educação, (…) no exercício das suas funções ou por causa delas» (redacção actual, introduzida pela Lei n.º 26/2025, de 19/3).

Sabendo nós, então, da não automaticidade da mobilização dos “exemplos-padrão”, pensemos se a hipótese em questão exige ou não que se dirija uma especial carga de censura ao comportamento do recorrente.

Note-se que o ocorrido não foi o produto de uma discussão no normal decurso de uma aula, com uma troca “acalorada” de argumentos entre professora e aluno, e em cujo âmbito haja ocorrido, depois, a ofensa perpetrada pelo segundo.

O que se passou, diversamente, traduziu uma atitude de total e gratuito desrespeito pelo recorrente em relação à autoridade e ao poder-dever de condução de uma aula que (evidentemente) integra o múnus funcional da sua professora. E isto em um clima de “desafio” que decorria já, pelos vistos, de um modo sistemático, de algum tempo a essa parte, atento o incumprimento da pontualidade que vinha sendo apanágio da postura do recorrente. Ou seja, a subsequente prática da ofensa à integridade física sobre a professora por parte do aluno foi apenas o culminar de um desrespeito mais lato e abrangente deste último.

Como bem refere a sentença recorrida, «(…) de todo o circunstancialismo resulta uma especial censurabilidade da conduta do arguido, na medida em que se encontrava em plena aula, que interrompeu e insistiu em interromper, mesmo depois de advertido pela ofendida-professora para não o fazer. O arguido, de forma gratuita e manifestando persistência em pôr em causa a ordem e o normal funcionamento de uma aula, insistiu em entrar. Não satisfeito com o facto de já ter colocado em causa a autoridade da docente que estava a leccionar e em perturbar a aula que decorria, quando a ofendida começou a fechar a porta da sala, o arguido empurrou a porta e …, levando a que esta se desequilibre para trás. (…) O comportamento do arguido, analisado na sua globalidade, demostra uma especial censurabilidade. Está em causa uma conduta que não surgiu isoladamente, o arguido já tinha sido advertido pelo seu comportamento e já tinha sido impedido de entrar na sala. No entanto, não satisfeito, insistiu com comportamentos provocatórios dirigidos à docente, em plena aula, culminando com o empurrão da porta da sala para, uma vez mais, contrariar a docente e forçar a sua entrada. Com este empurrão, o arguido acabou por também empurrar a docente e, assim, atingiu a integridade física desta, o que quis e conseguiu».

Dizer-se, como o faz o recorrente, que o seu comportamento não traduz uma atitude profundamente distanciada em relação a uma determinação normal de acordo com os valores sociais é, salvo o devido respeito, errado.

Em primeiro lugar, porquanto uma sociedade assente na protecção e no respeito por valores institucionais vitais do ponto de vista comunitário, como os que se ligam à educação e ao ensino escolar, valores protegidos, aliás, constitucionalmente (arts. 43º/n.º 1, 73º e 74º da nossa Lei Fundamental), não pode entender como não dotados de uma especial censurabilidade factos – ainda para mais criminalmente puníveis – que têm na sua origem a mencionada atitude de gratuito e sistemático desrespeito e confronto em relação a quem exerce a docência.

Depois, porque a concreta configuração dos factos trazidos a análise mostra que os mesmos tiveram também inerente um efeito (se não mesmo um intuito…) de natural amesquinhamento público da visada perante o universo da respectiva turma.

Finalmente, porque os dois aspectos anteriores evidenciam a necessidade de reafirmação comunitária da especial gravidade de comportamentos similares ao agora escrutinado, até como forma de estancar possíveis “ânsias” de réplica na comunidade estudantil.

Pelo que, estando reunidos todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de ofensa à integridade física qualificada, não poderia deixar de acontecer a condenação do arguido, como justamente ocorreu por via da sentença impugnada.

Assim improcedendo, também nesta dimensão, o presente recurso.


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            III. DECISÃO


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Pelo exposto:

- Acordam os Juízes desta Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido …, mantendo-se os termos da decisão condenatória recorrida.


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Fixa-se a taxa de justiça devida pelo recorrente em 4 U.C..

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            Notifique.


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(Revi, e está conforme)

D.S.

António Miguel Veiga (Juiz Desembargador Relator)

Paula Carvalho e Sá (Juíza Desembargadora Adjunta)

Paulo Registo (Juiz Desembargador Adjunto)