Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
214/14.6GAPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CORRUPÇÃO ACTIVA
PUNIBILIDADE DA TENTATIVA
TENTATIVA IDÓNEA
TENTATIVA INIDÓNEA
INIDONEIDADE ABSOLUTA
INIDONEIDADE RELATIVA
Data do Acordão: 01/18/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA LOCAL DE PORTO DE MÓS - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 374.º, N.º 1, E 23.º, N.º 3, DO CP
Sumário: I - Em princípio, a lei equipara a tentativa inidónea à tentativa idónea; só assim não sucede quando a inaptidão do meio ou a carência do objecto são manifestas.

II - A inaptidão do meio significa inidoneidade ou inadequação.

III - Existe tentativa inidónea quando a acção do autor dirigida à realização de um tipo penal, sob certas circunstâncias, não pode alcançar a consumação do facto por razões fácticas ou jurídicas;

IV - A manifesta inaptidão do meio empregado pelo agente e a manifesta inexistência do objecto essencial à consumação do crime – factores de não punibilidade – são objectivamente aferidas, à luz das circunstâncias do caso, de acordo com as regras da experiência comum, segundo um juízo de prognose póstuma de um observador colocado, no momento da execução, na mesma situação do autor.

V - A idoneidade do meio é absoluta, quando, segundo as regras da experiência comum, a atividade do agente, no circunstancialismo concreto em que se desenvolveu, não é, com evidência, adequada a preencher o tipo legal de crime.

VI - Assim não sucedendo, a inidoneidade, sendo relativa, não se inclui na previsão do n.º 3 do artigo 21.º do CP, sendo a tentativa punível.

VII - No caso dos autos, nas circunstâncias descritas e à luz dos padrões comuns de vida, perante um juízo ex ante reportado ao momento da prática dos factos - traduzidos no pagamento, pelo arguido a terceiro, de determinada quantia em dinheiro para que o segundo obtivesse, junto de um chefe de repartição de finanças, certidão comprovativa de o primeiro não deter dívidas fiscais - para a generalidade das pessoas, conhecedoras das ditas circunstâncias, não resulta manifesto/ostensivo/patente que o dito funcionário público não tivesse sido contactado para o referido efeito e, tão pouco, que lhe estivesse vedada a emissão do documento em causa.

IX - Consequentemente, a descrita conduta não configura uma tentativa absolutamente inidónea - da prática de crime tipificado no n.º 1 do artigo 374.º do CP -, cuja punição se encontre, em princípio, excluída pelo artigo 23.º, n.º 3, do CP.

Decisão Texto Integral:



Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito dos autos 214/14.6GAPMS da Comarca de Leiria, Porto de Mós – Inst. Local – Secção Criminal – J1 o Ministério Público deduziu acusação para julgamento em processo comum, com a intervenção do tribunal singular, contra os arguidos A... e B..., melhor identificados nos autos, imputando-lhes: à primeira a prática, em autoria, sob a forma consumada, tentativa impossível de um crime de corrupção ativa, p. e p. pelo artigo 374.º, n.º 1, 22º e 23º, todos do Código Penal; ao segundo, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º, n.º 1 do Código Penal.

2. Remetidos os autos a juízo, por ter sido considerada manifestamente infundada, veio a acusação pública a ser rejeitada.

3. Inconformado com a decisão assim proferida recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:

1.ª A acusação nunca poderá ser havida por manifestamente infundada.

2.ª É pacífico na doutrina e na jurisprudência que, nos termos do art.º 23º, nº 3 do Código Penal, a tentativa impossível é punida desde quando não sejam manifestas a inidoneidade do meio ou a carência do objeto (inidoneidade relativa).

3.ª A arguida queria obter uma certidão fiscal de ausência de dívidas fiscais, sem as regularizar e para isso não hesitou em pagar € 1.500 em numerário, sendo que o dinheiro de destinava a um Chefe de Finanças (Assistente) para que este praticasse o referido ato ilegítimo e persistiu na sua conduta, deslocando-se a Serviço de Finanças de (...) e telefonando para o referido Serviço passado dias a reclamar com o Assistente por este não o ter feito.

4.ª Discute-se um crime de Corrupção, Cancro da República e da Democracia, cujo bem jurídico é a autonomia intencional do Estado.

5.ª Para a generalidade das pessoas e para os funcionários que trabalham sob orientação da Assistente, resulta que o meio normalmente eficaz no crime de corrupção (in casu pagar a um funcionário da Administração Tributária para praticar ato administrativo ilícito) apenas deixou de operar pelas circunstâncias em que foi utilizado.

6.ª A errónea representação da realidade fáctica apenas ocorreu por erro induzido pelo arguido na execução do crime de burla.

7.ª No caso em concreto, através das regras da experiência comum ou da causalidade adequada, face ao circunstancialismo em que a arguida atuou e persistiu durante dias e o desvalor da sua ação, sendo ostensivo estamos perante uma tentativa impossível (inidoneidade relativa) punível, não obstante não existir bem jurídico violado.

8.ª Estamos perante um risco sistémico, sendo a situação passível de ser replicada por burlões para Inspetores, Chefes de Finanças, Magistrados de todas as instâncias e demais funcionários.

8.ª Não é fundamentada decisão judicial ao escrever-se no despacho recorrido que a tentativa “é impossível, como tal não é punível” porquanto:

- verifica-se petição de princípio, dando o que pretende argumentar como assente, ao arrepio de toda a doutrina e jurisprudência portuguesa;

- não se enunciar explicitamente as razões ou motivos que conduziram à tomada de decisão judicial e o seu entendimento quanto ao crime impossível face à Lei, jurisprudência e doutrina.

9.ª Existem na peça acusatória todos os elementos do crime de burla:

- o emprego de astúcia pelo agente – o arguido declara a arguida que o Assistente, com funções de Chefe de Finanças, emite certidão de ausência de dívida fiscal da arguida, apesar de esta as ter, a troco de € 1.500 pagos em numerário para este – pontos 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 16º, 20º, 23º a 28º, sendo claro o dolo específico constante e evidenciado nos pontos 29, 30, 31, 32 e 33;

- a verificação de erro ou engano da vítima devido ao emprego da astúcia – a arguida “pensava que seria coautora de crime de corrupção ativa” por nunca ter falado com Assistente, apesar de saber onde trabalhava, estado civil, número de filhos e deslocação a Serviço de Finanças de (...) – pontos 13, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42;

- a comprovação da prática de atos pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida; - em súmula, o encontro e entrega de dinheiro, de que vinha munida em numerário – pontos 14, 15, 16, 17

d. a existência de prejuízo patrimonial da vítima …, resultante da prática dos referidos atos – a entrega dos € 1.500, que arguido fez seu – pontos 15 e 21.

e. nexo causal – os constantes nos pontos 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 19º, 20º, 29º, 30º, 31º, 32º, 33º, 36º, 37º, 38º, 39º, 40º, 41º, 42º,

10.ª O erro da arguida, decorrente de ignorância que Assistente não tinha sido corrompido na sequência de estória de arguido, que agiu com dolo específico encontram-se amplamente desenvolvidos na peça Acusatória, como decorre de ponto 29º a 42º.

11.ª Existe um pré-juízo elaborado judicialmente em sede de despacho de saneamento sobre o mérito da acusação, vinculado a raciocínio de que a corrupção na forma de tentativa impossível não é crime e enganar alguém sobre isso também não é crime.

12.ª Quando o juiz rejeita a acusação por manifestamente infundada considerando que os factos não constituem crime mediante uma interpretação divergente de quem deduziu essa acusação viola o princípio do acusatório.

13.ª Só quando de forma inequívoca os factos que constam da acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente.

14.ª O despacho de encerramento de inquérito contém todos os elementos constantes do n.º 3 do art.º 311º: identificação dos arguidos, a narração dos factos; a indicação das disposições legais aplicáveis e as provas que fundamentam, constituindo, ainda, os factos, os crimes imputados aos arguidos.

15.ª Salvo melhor entendimento, foi violado o disposto nos artigos 23º, nº 3 e 217º do Código Penal e artigos 97º, nº 5, 53º, n.º 2, al. b), 262º, n.º 1, 263º, nº 1, 267º, 276º e 277º, 311º, nºs 2, al. a) e n.º 3 alínea d) do Código de Processo Penal e artigo 219º da Constituição da república Portuguesa.

Termos em que,

Deverá ser concedido provimento ao recurso ora interposto, revogando-se o despacho recorrido, devendo ser ordenada a sua substituição por outro que receba a acusação deduzida nos autos, assim se fazendo a boa e costumada Justiça.

4. Por despacho exarado a fls. 327 foi o recurso admitido e fixado o respetivo efeito.

5. Nenhum dos sujeitos processuais interessados respondeu ao recurso.

6. Na Relação o Exmo. Procurador – Geral Adjunto proferiu parecer, no qual, aderindo aos fundamentos apresentados em 1.ª instância, defendeu a procedência do recurso.

7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não houve reação.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Sendo por intermédio das conclusões que se delimita o objeto do recurso, no caso em apreço cabe apreciar se, como defende o recorrente, não ocorria fundamento para que a acusação pública tivesse sido rejeitada, porquanto não se revelaria a mesma manifestamente infundada.

2. A decisão recorrida

É o seguinte o teor do despacho em crise [transcrição parcial]:

De harmonia com o disposto no artigo 311º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, quando o processo é remetido para julgamento sem ter havido instrução, a acusação pode ser rejeitada, se for considerada manifestamente infundada, o que, nos termos do n.º 3 do referido artigo, acontecerá quando:

a. Não contenha a identificação do arguido;

b. Não contenha a narração dos factos;

c. Não indique as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;

d. Os factos não constituam crime;

Nos presentes autos o Ministério Público deduziu acusação contra B... [melhor id. A fls. 14 e 187] e A... [melhor id. A fls. 187], imputando-lhes factos suscetíveis de integrar a prática de:

- a arguida A...: “em autoria, sob a forma consumada, tentativa impossível de corrupção ativa, previsto e punido pelo artigo 374.º, n.º 1, 22.º e 23º, todos do Código Penal”, e

- o arguido B...: “como autor material e na forma consumada, de um crime de burla, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 217.º do Código Penal”.

Ora, no que diz respeito à responsabilidade criminal imputada pela Acusação Pública à arguida A..., decorre do disposto no artigo 23.º, n.º 3, do Código Penal, que “A tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objeto essencial à consumação do crime”.

Independentemente do lapso certamente existente na acusação pública quanto à consumação da tentativa, inequívoco se mostra que a mesma é “impossível”, como tal, não punível.

Face ao expendido, e nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3 al. d) do Código de Processo Penal, urge rejeitar, nesta parte, a acusação, por se considerar que a mesma é manifestamente infundada.

No que diz respeito à responsabilidade criminal imputada pela Acusação Pública ao arguido B..., decorre no n.º 1 do artigo 217.º do Código Penal, que “quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.

Ora, os elementos do crime de burla são os seguintes:

a. A “astúcia” empregue pelo agente;

b. O “erro ou engano” da vítima devido ao emprego da astúcia;

c. A “prática de atos” pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida;

d. O “prejuízo patrimonial” – da vítima ou de terceiro – resultante da prática dos referidos atos;

e. Nexo causal: é necessário que entre os elementos acima descritos existam sucessivas relações de causa e efeito, nomeadamente que: da astúcia resulte erro ou engano; do erro ou engano resulte a prática de atos pela vítima; da prática desses atos resulte o prejuízo patrimonial;

f. Intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo: é necessário que se verifique a existência de dolo.

No que diz respeito à astúcia “É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou são referidos pelo burlão factos falsos ou este altere ou dissimule factos verdadeiros, e atuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa-fé do burlado, de forma a convencê-lo a praticar atos em prejuízo do seu património ou de terceiro[Ac. do STJ de 20/03/2003, processo n.º 03P241 disponível em www.dgsi.pt]”.

Revertendo agora ao caso dos autos, da leitura da acusação pública que foi deduzida contra o arguido não se retiram todos os elementos necessários à imputação de um crime de burla, nem é possível dela retirar a prática, pelo arguido, de qualquer outro tipo legal de crime.

Na verdade, não se retira dos factos descritos na acusação o erro ou engano provocado astuciosamente pelo arguido, o qual vem reportado como sendo o do arguido, fazendo crer à coarguida que entregaria os € 1.500,00 ao aqui Assistente em troca de uma certidão fiscal atestando a ausência de dívidas, nunca chegar a falar com este, apropriando-se de tal quantia [cf. pontos de facto 29 a 33].

Ora, não se vislumbra que os factos descritos sejam suficientes para se possa concluir que o arguido praticou um crime de burla, sendo necessário que dele também resultasse a astúcia que levou ao erro ou engano, até porque o dolo do crime de burla é um dolo específico, residindo essa especificidade precisamente na astúcia que preside à conduta do agente e que leva à produção do erro ou engano. Da acusação pública nada se retira quanto a esse elemento [o arguido, basicamente, convenceu a coarguida de que seria coautor de um crime de corrupção ativa, e não o foi], o que leva a que a mesma deva – também nesta parte – ser rejeitada pois os factos como vêm descritos não constituem crime [já para não falar da questão – também ela pertinente – da natureza da esfera de proteção do Direito Penal, à luz dos princípios constitucionais].

Face a todo o exposto, e nos termos do disposto no artigo 311º, n.º 2, al. a) e n.º 3 al. d) do Código de Processo Penal, rejeita-se a presente acusação pública, por manifestamente infundada, julgando, consequentemente extinto, o procedimento criminal contra os arguidos B... e A....

Sem custas criminais.

Mais rejeito liminarmente o pedido de indemnização civil deduzido a fls. 214 e ss., desde logo, por impossibilidade superveniente da lide [embora o Assistente não tenha, face à configuração da acusação pública, igualmente legitimidade para deduzir o pedido, conquanto não seja ofendido em nenhum dos ilícitos imputados].

Sem custas cíveis.

Registe e notifique

Após trânsito, arquive.

3. Apreciação

Insurge-se o recorrente contra o despacho que, proferido ao abrigo do artigo 311.º do CPP, por manifestamente infundada, rejeitou a acusação.

Vejamos o teor da acusação pública, onde se lê:

1. No ano de 2014 B.... era Chefe do Serviço de Finanças de (...) (…).

2. Em data indeterminada, anterior a 2014, na sua qualidade de funcionário, conheceu o arguido B... no decurso de um processo de execução fiscal.

3. Em maio de 2014 A... tinha dívidas fiscais, correndo processos de execução fiscal contra a mesma no Serviço de Finanças de (...), no valor global de € 4.229,24.

4. No dia 25 de maio de 2014, foi publicitado anúncio no jornal Correio da Manhã com os seguintes dizeres:

“ Y, SA, Unipessoal ou K... , Lda. – Com dificuldades financeiras. Sem recurso a crédito. Mais informações contactar: H... – Tlf: 9 (...) ;

5. A arguida A... pretendia um financiamento e telefonou.

6. Foi atendida pelo arguido B..., que se identificou como I... .

7. O arguido perguntou a esta se tinha dívidas fiscais, sendo condição para a concessão de empréstimo uma certidão fiscal de situação tributária regularizada.

8. A arguida disse que tinha cerca de € 4.229,24 de dívidas fiscais e € 16.000 de dívidas à Segurança Social.

9. O arguido voltou a dizer que para o empréstimo tinha de ser primeiro tirada uma certidão a atestar a ausência de dívidas fiscais e que conhecia as pessoas certas para tratar do assunto.

10. Mais disse que só havia três ou quatro pessoas no país que poderiam emitir a referida certidão naquelas circunstâncias, sendo C..., chefe de finanças a exercer funções no Serviço de Finanças de (...) uma delas.

11. Aditando que o mesmo era divorciado e tinha dois filhos.

12. Mais solicitou à mesma mil e quinhentos euros em notas do BCE, para entregar ao referido C... para que este emitisse a referida certidão.

13. A arguida concordou e combinaram encontrar-se no dia 28 de maio de 2014 em frente ao Serviço de Finanças de (...).

14. No referido dia 28, em frente ao referido Serviço de Finanças de (...), os arguidos encontraram-se.

15. A arguida entregou a arguido um envelope com mil e quinhentos euros em notas do BCE.

16. E ambos entraram no referido Serviço.

17. A arguida ficou junto a banco de entrada e pensou que arguido se dirigiu a C....

18. O arguido falou com D..., chefe adjunto de serviço de Finanças de (...).

19. Após alguns instantes, voltou para a arguida e disse-lhe para ela esperar no exterior, que a pessoa estava nervosa.

20. Passado cerca de vinte minutos voltou para junto da arguida e disse-lhe que, quando a certidão estivesse pronta e disse-lhe que, quando a certidão estivesse pronta, tratavam do resto do processo de concessão de crédito.

21. O arguido fez seu o referido montante monetário.

22. E cortou todos os contactos telefónicos com arguida.

23. D... havia previamente recebido indicação de C... que o arguido naquele dia iria ao referido Serviço para falar consigo.

24. C... solicitou-lhe que transmitisse que estava em formação e que tratasse da questão que fosse apresentada.

25. O arguido colocou a D... uma dúvida de processo de execução fiscal e este disse que, por não ser área da sua especialidade, seria melhor falar com o assistente.

26. No dia 27 de maio de 2014, na parte da manhã, o arguido B..., de acordo com plano predelineado, no sentido de dar credibilidade à sua estória junto de arguida e dar a aparência que iria ser recebido por Chefe de Repartição de Finanças para tratar de emissão de certidão de ausência de dívidas fiscais, telefonou para o Serviço de Finanças de Leiria e solicitou falar com C....

27. Quando este atendeu, solicitou-lhe se podia falar com o mesmo no seu local de trabalho para tirar uma dúvida de natureza fiscal.

28. C... respondeu que sim, tendo ambos acordado que seria no dia seguinte, na parte da manhã.

29. O arguido B... agiu de forma livre, deliberada e consciente.

30. Bem sabia que nunca havia falado com assistente para que este emitisse certidão de ausência de dívidas fiscais de Y.... .

31. Dando a aparência a esta de que o mesmo tinha autoridade para emitir a mesma ainda que tivesse dívidas fiscais.

32. Visou acrescer a sua esfera patrimonial à custa da arguida, cuja confiança ludibriou.

33. E obter, como efetivamente obteve, um enriquecimento, correspondente ao valor recebido, que fez seu.

34. A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente.

35. Previu e quis entregar a referida quantia de mil e quinhentos a arguido B... com a intenção de que este o entregasse ao assistente.

36. Bem sabendo que o assistente era funcionário da Autoridade Tributária e Aduaneira, em funções no Serviço de Finanças da (...).

37. Para que o mesmo emitisse, naquela qualidade, a favor da arguida, certidão fiscal onde constasse que tinha a sua situação tributária regularizada.

38. Bem sabendo que tinha a correr contra si processo de execução fiscal no valor acima referido.

39. E que a referida certidão fiscal nunca poderia ser emitida.

40. Com o fim de posteriormente obter concessão de empréstimo.

41. Ignorava porém que o arguido B... nunca havia falado com o assistente quanto a emissão da referida certidão.

42. E que o mesmo não tinha competências legais para emitir a referida certidão, atento domicílio fiscal de arguida ser em (...).

43. Os arguidos bem sabiam que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Foram os factos acima vertidos que fundamentaram a imputação ao arguido B..., como autor material, na forma consumada, de um crime de burla e à arguida A..., enquanto autora, a tentativa impossível de um crime de corrupção ativa, p. e p., respetivamente, pelos artigos 217.º, n.º 1 e 374.º, n.º 1, 22º e 23.º, todos do C. Penal. 

Já a causa que determinou a rejeição da acusação, relativamente a ambos os crimes, se mostra ancorada nas alíneas a) do n.º 2 e d) do n.º 3 do artigo 311.º do CPP, concretizando por [segundo o entendimento do tribunal a quo] não constituírem os factos crime foi aquela considerada manifestamente infundada.

Manifestamente infundada diz-se da acusação que, de forma clara e evidente, é desprovida de fundamento, designadamente por ausência de factos que a suportem ou por estes serem insuscetíveis de ser subsumidos a qualquer norma jurídico-penal. A justificação para a sua rejeição surge bem sintetizada no acórdão do TRE de 10.10.2006 (proc. n.º 996/06-1) quando, reportando-se à norma que versa sobre o saneamento do processo (artigo 311.º), depois de reconhecer traduzir mera assunção constitucional do princípio do acusatório, aduz: «O papel da al. a) do n.º 2 e das quatro alíneas do n.º 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal é o de evitar que casos extremos de iniquidade da acusação conduzam a julgamento um cidadão que se sabe, será decididamente absolvido, pretendendo evitar sujeitá-lo, inutilmente, a um processo incómodo e vexatório».

Assente que, para o efeito, manifesta é sinónimo de evidente, reconduzindo-se, assim, a falhas processuais evidentes que manifestamente inviabilizam a procedência da acusação, impondo como tal a sua rejeição logo na fase de saneamento, circunstância só passível de ocorrer quando os factos, de todo, não permitem outra ou outras leituras, vejamos da adequação do despacho recorrido.

Principiando pelo caso da arguida A..., à qual a acusação pública imputou, em autoria, a tentativa impossível de um crime de corrupção ativa, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 374.º, nº 1, 22º e 23º, todos do C. Penal, não partilhamos da apreciação do tribunal a quo.

Com efeito, o n.º 3 do artigo 23.º do C. Penal condiciona a não punibilidade da tentativa impossível à manifesta inidoneidade do meio empregado ou à inexistência do objeto, significando, pois, que se, pelo menos, na aparência se verifica um perigo objetivo, pela intranquilidade que o ato cria, a tentativa é punível. Daí a distinção entre a tentativa absolutamente inidónea - na qual o meio utilizado em caso algum poderia produzir o resultado criminoso ou o objeto seria inexistente – e a tentativa relativamente inidónea – na qual o meio utilizado resultou inidóneo no caso concreto, mas poderia não ser assim caso as circunstâncias fossem diferentes e/ou caso ocorresse a mera ausência ocasional do objeto -, a primeira impune, a segunda, porque objetivamente perigosa, já merecedora de pena.

Segundo Figueiredo Dias, a punibilidade da tentativa impossível não pode deixar de arrancar da ideia objetiva da perigosidade da tentativa, aferida segundo um juízo ex ante ou de prognose póstuma, levado a cabo por um observador colocado no momento da execução e sabedor de todas as circunstâncias conhecidas ou cognoscíveis do agente, pelo que a vontade delituosa do agente não conduziria à punibilidade quando a inaptidão do meio ou carência do objeto fossem visíveis ou manifestas para a generalidade das pessoas de são entendimento. O mesmo é dizer que a tentativa impossível será punível se, razoavelmente, segundo as circunstâncias do caso e de acordo com um juízo ex ante, ela era ainda aparentemente possível ou não era já manifestamente impossível – [cf. Direito Penal, Sumários das Lições à 2.ª turma do 2º ano da Faculdade de Direito, 1975, pág. 27].

A propósito da tentativa impossível, divergindo da posição de Cavaleiro de Ferreira, escreve Germano Marques da Silva «Trata-se (…) de um ilícito sui generis, um ilícito básico, um crime de perigo abstrato-concreto, pois apenas se exige que os atos de execução sejam em si mesmo capazes de ofender o bem jurídico e só não o ofendendo por circunstâncias anómalas. Só se forem manifestas, patentes, estas circunstâncias anómalas já no momento da execução, não para o autor mas para o homem comum colocado na mesma situação do autor, ou seja, se for manifesto que os atos de execução perpetrados não podem, atentas as circunstâncias do caso, ofender o bem jurídico tutelado pelo crime consumado e por isso consumá-lo é que a tentativa não é punível», concluindo: «A tentativa, definida pelo art.º 22.º, só não é punível quando embora os atos do agente sejam atos de execução (capazes de ofender o bem jurídico), seja patente (objetivamente) que naquela circunstância concreta não podem ofender o bem jurídico» - [cf. Direito Penal Português, Teoria do Crime, Universidade Católica Editora, pág. 327 e ss.]

A mesma ideia decorre do acórdão STJ de 12.03.2009 (proc. n.º 07P1769) quando refere: XVI. Na denominada tentativa impossível, através de atos de execução praticados o agente cria um perigo objetivo, embora aparente, que desencadeia ou pode desencadear alarme ou intranquilidade na comunidade, e é isso que lhe confere dignidade punitiva. (…) XVIII. A punição da tentativa impossível depende de a inexistência do objeto essencial à consumação do crime ou a inaptidão do meio utilizado pelo agente serem manifestas, à data da prática do facto ilícito – art. 23.º, n.º 3, do CP. XIX. Este conceito de “manifesto” é, então, sinónimo de claro, ostensivo, público ou evidente, não para o agente, mas para a generalidade das pessoas, posto que o primeiro tem que estar convencido da idoneidade do meio, sem o que não é possível imputar-lhe a intenção de cometer o crime; sendo assim, este juízo sobre a aptidão ou inaptidão do meio é um juízo objetivo. XX. A inidoneidade do meio (falta de potencialidade causal para produzir o resultado típico) pode ser absoluta (aquele que por essência ou natureza nunca é capaz de produzir o resultado) ou relativa (se o meio normalmente eficaz deixou de operar pelas circunstâncias em que foi empregado), sendo certo que só o meio absolutamente inidóneo exclui a tentativa (…)».

Revertendo ao caso concreto, nas circunstâncias descritas e à luz das regras da experiência, da normalidade – segundo as aparências – baseado num juízo ex ante de prognose póstuma, reportando-nos ao momento da prática do facto, para a generalidade das pessoas, conhecedoras das ditas circunstâncias, não resulta (nada) manifesto/ostensivo/patente que o identificado Chefe de Finanças não tivesse sido contactado, para o efeito da emissão da certidão de regularização das dívidas ficais, pelo arguido, portanto que desconhecesse o propósito subjacente, tão pouco que lhe estivesse vedado emitir o documento que a arguida almejava com vista a obter o financiamento não sendo, por isso, evidente (bem pelo contrário) a falta de idoneidade do meio, pelo que a conduta não configura uma tentativa absolutamente inidónea, cuja punição se encontre, em princípio, excluída pelo artigo 23.º, n.º 3 do C. Penal.

Concluindo:

(i) A lei equipara em princípio a tentativa inidónea à tentativa idónea, o que só não sucederá quando a inaptidão dos meios ou a carência do objeto sejam manifestas;

(ii) A inaptidão do meio significa inidoneidade ou inadequação;

(iii) Existe uma tentativa inidónea quando a ação do autor dirigida à realização de um tipo penal, sob certas circunstâncias, não pode alcançar a consumação do facto por razões fácticas ou jurídicas;

(iv) A manifesta inaptidão e a manifesta inexistência – fatores de não punibilidade – estão referidos ao critério da generalidade das pessoas, a ser aferidos objetivamente à luz das circunstâncias, de acordo com as regras da experiência comum,

(v) Tal idoneidade é absoluta, quando, segundo as regras da experiência comum, a atividade do agente, no circunstancialismo concreto em que se desenvolveu, não é, com evidência, adequada a preencher o tipo legal de crime; caso contrário, trata-se de inidoneidade relativa, cuja punição não se mostra excluída pelo n.º 3 do artigo 23.º do C. Penal;

(vi) Na situação concreta, tendo por referência a data da prática dos factos, as circunstâncias que os rodearam, apelando às regras da experiência comum, para a generalidade das pessoas não era (nada) evidente/ostensiva a inidoneidade do meio; pelo contrário, no contexto descrito, revelou-se bem impressiva a aparência do ilícito.

Não pode, assim, sobreviver, nesta parte, o despacho recorrido.

Por outro lado, no que respeita ao crime de burla, cuja autoria vem imputada ao arguido, também se nos afigura carecer de sustentação a decisão recorrida.

Na verdade, no plano pelo mesmo engendrado não deixa de estar presente a astúcia, no caso traduzida em diferentes atos de sinal convergente, como sejam, desde logo, a sua apresentação, com diferente identidade, à arguida (ponto 6.º da acusação); a transmissão a esta de dados da vida pessoal (divorciado e com dois filhos) do dito Chefe de Finanças; a informação 8nos termos descritos no ponto 10.º da acusação) de apenas existirem três ou quatro pessoas no país capazes de emitirem a dita certidão de regularização de dívidas, entre as quais aquele; o telefonema ocorrido no dia 27.01.2014 (induzindo a ideia de que iria ser recebido pelo Chefe de Finanças para tratarem do assunto); a deslocação, na companhia, da arguida à Repartição de Finanças (ponto 13.º da acusação); a comunicação à arguida do estado de nervosismo do interlocutor (ponto 19 da acusação), tudo aspetos que, sem dúvida, surgem idóneos a criar na (aqui) vítima a ideia de que o arguido se movia com grande à vontade no Serviço de Finanças, aptos a gerar a convicção da existência de uma relação com o Chefe da Repartição de Finanças que ia muito para além do estrito âmbito profissional.

E embora o objetivo último prosseguido pela arguida fosse ilegal, o certo é que foi por via da astúcia usada, exteriorizada em condutas de sentido idêntico, que o arguido logrou provocar-lhe o engano – acerca da pretendida obtenção da certidão atestando a regularização das dividas tributárias e à Segurança Social -, determinante da entrega pela arguida dos € 1.500,00, assim enriquecendo à custa dela, provocando-lhe o correspondente empobrecimento, revelando-se, pois, indiferente à completude do tipo a sobredita ilegalidade.

Não se vê, igualmente, com base no núcleo de factos descritos sob os n.ºs 29 a 33 da acusação, que resulte comprometido o elemento subjetivo do tipo, mormente o dolo específico.

Em suma, impõe-se também, neste segmento, revogar a decisão em crise.

III. Decisão

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal, na procedência do recurso, em revogar o despacho recorrido na parte em que rejeitou, por manifestamente infundada, ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d) do CPP, a acusação, o qual deverá ser substituído por outro, que na ausência de diferentes causas impeditivas, receba a acusação pública deduzida contra ambos os arguidos.

Sem tributação

Coimbra, 18 de Janeiro de 2017

[Processado e revisto pela relatora]

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)