Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
377/12.5T2ALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO
DESNECESSIDADE
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 05/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INSTÂNCIA CÍVEL DE ALBERGARIA-A-VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1569º Nº 2 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A mera circunstância de uma servidão de passagem não ser já absolutamente necessária (em virtude de o prédio dominante dispor de outro acesso à via pública) não é bastante para que se declare a sua extinção por desnecessidade, sendo que o que releva para esse efeito é a circunstância de a servidão em causa não proporcionar já qualquer utilidade que, sendo relevante e digna de protecção, seja susceptível de trazer ao prédio dominante uma mais valia significativa, em virtude de as utilidades por ela proporcionadas poderem ser alcançadas por outra via.

II – A servidão extingue-se, por desnecessidade, se ela tiver perdido aptidão para proporcionar ao prédio dominante qualquer utilidade concreta que não possa ser alcançada por outra via ou quando a utilidade que dela ainda possa advir é insignificante ou irrisória quando comparada com o encargo imposto ao prédio serviente; não ocorre, porém, tal desnecessidade e consequente extinção se a servidão puder ainda proporcionar ao prédio dominante uma utilidade que, não podendo ser obtida por outra via, é relevante por facilitar o uso normal e regular do prédio e por proporcionar uma comodidade que, de outro modo, não poderia ser obtida e cuja eliminação seja susceptível de determinar um incómodo significativo ou relevante.

III – À luz desses critérios, não se extingue, por desnecessidade, uma servidão de passagem, a pé, através de uma faixa de terreno que dá acesso ao logradouro do prédio dominante, quando este prédio apenas dispõe de um outro acesso à via pública que implica a utilização de escadas e que não dispensa a passagem pelo interior da habitação para aceder ao logradouro.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... e marido, B... , residentes na Rua (...), Albergaria-a-Velha, intentaram a presente acção, sob a forma de processo sumário, contra C... e mulher, D... , residentes na Rua (...), Albergaria-a-Velha, alegando, em suma, que:

São donos de um prédio urbano que adquiriam por doação dos pais da Autora, titulada por escritura pública de 02/07/2012, sendo que estes os haviam adquirido por sucessão por óbito dos avós da Autora, E... e F... , falecidos em 1994 e 2009; os Réus são donos de um outro prédio urbano que confina pelo lado sul com o prédio dos Autores, sendo que a casa aqui existente foi reconstruída pelos Réus em 1994; o Réu marido é filho dos avós da Autora supra identificados e, enquanto a sua mãe foi viva, visitava-se na sua morada, que agora é o prédio dos Autores, e quando construiu a sua casa, em 1994, deixou um espaço aberto entre o seu logradouro e o cabanal da casa da mãe para permitir o trânsito entre ambas, transitando por aí, com a tolerância da mãe, mas sem que existisse qualquer servidão de passagem; mesmo depois de o prédio que pertencia à mãe do Réu ter sido doado à Autora, os Réus continuam a transitar por ele, com a oposição dos Autores; ainda que existisse alguma servidão, ela é desnecessária, porquanto o prédio dos Réus tem ligação directa à via pública.

Com estes fundamentos, pedem que os Réus sejam condenados:

a) – A reconhecerem que os Autores são os donos únicos e exclusivos do prédio urbano identificado nos arts.1.º e 2.º da petição, descrito na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha sob a ficha n.º 4770 da freguesia da (...);

b) – A reconhecerem que, em benefício do seu prédio urbano, não está instituída qualquer servidão de passagem sobre o prédio referido em a).

Subsidiariamente e para o caso de não proceder o pedido da alínea b), pedem que seja declarada a extinção, por desnecessidade, da servidão de passagem de pé constituída sobre o prédio referido na alínea a) em benefício do descrito prédio dos réus.

E, em qualquer caso, pedem a condenação dos Réus a absterem-se de passar do seu prédio para o adro da capela através do descrito prédio descrito na alínea a).

Os Réus contestaram e deduziram reconvenção, sustentando, em suma, terem adquirido, por usucapião, uma servidão de passagem pelo prédio identificado na petição inicial, através de um caminho aí existente, por via do qual se acede ao prédio dos Réus desde há mais de trinta anos, sem oposição de ninguém, à vista de todos e na convicção de exercício de um direito de passagem. Mais sustentam que essa servidão não se extinguiu por desnecessidade, na medida em que, apesar de o prédio dos Réus confinar com a via pública, esta comunicação não proporciona as mesmas condições de acesso e comodidade que são proporcionadas pela servidão.

Com estes fundamentos, concluem pela improcedência da acção, pedindo, em reconvenção, que os Autores sejam condenados:

a) – A reconhecerem o seu direito de propriedade sobre o prédio identificado nos arts. 9,º, 10.º e 11.º da petição inicial;

b) - A reconhecerem que sobre o prédio dos Autores está constituída uma servidão de passagem a pé, a favor do prédio dos Réus , e que constitui a única forma de acesso ao mesmo; e

c) - A absterem-se da prática de qualquer ato que impeça o exercício de direito de servidão.

  

Os Autores responderam, concluindo pela improcedência da reconvenção.

Foi proferido despacho saneador e foi dispensada a selecção da matéria de facto assente e base instrutória.

Após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedentes a acção e a reconvenção, decidiu:

1. - Condenar os réus a reconhecerem que os autores são únicos e exclusivos proprietários do prédio urbano descrito no ponto 1. dos factos provados;

2. – Condenar os autores a reconhecerem que sobre o referido prédio foi constituída, por usucapião, uma servidão de passagem a pé, em benefício do prédio dos réus, descrito no ponto 7. dos factos assentes;

3. Declarar extinta, por desnecessidade, tal servidão, condenando, consequentemente, os réus a absterem-se de a utilizar”.

Inconformados com essa decisão, os Réus vieram interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1. Entende o Recorrente que a douta sentença ora recorrida interpretou erradamente o disposto no artigo 1569º, nº 2 do Código Civil, da mesma forma que tendo sido impugnada a matéria de facto nos pontos infra citados deve a mesma ser alterada, com as adequadas sequelas, assim como, os ora recorrentes não concordam com a subsunção que o que a Meritíssima Juiz a quo fez da matéria de facto ao direito, vindo submetê-la à reapreciação deste Tribunal da Relação.

2. - A primeira, delimita o objeto deste recurso à impugnação da decisão proferida sobre a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto dada como provada respeitante à desnecessidade da servidão e a constante dos artigos nºs 25º, 26º, 27º da Contestação que foram dados como não provados.

3. Ora, não se mostra devidamente fundamentada a decisão de facto dada pelo Tribunal “a quo” que se limitou a enunciar as provas que o convenceram a dar como provados certos factos. Uma vez que não analisou criticamente todas a prova produzida em sede de Audiência de Julgamento, mormente o depoimento das testemunhas arroladas pelos ora Recorrentes e supra descritas.

4. A Meritíssima Juiz a quo não valorou a prova produzida pelas testemunhas, onde referem que é o acesso à via pública através quer das escadas, quer da garagem, não oferecem condições de utilização similares às proporcionadas pela passagem pela dita servidão, pelo contrário, oferecem sim, condições agravadas. Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25.09.2007, www.dgsi.pt “ não basta que, para além da passagem objeto da servidão, exista outra via de acesso ao prédio dominante para a via pública, porquanto é necessário que este outro acesso ofereça condições de utilização similares, ou, pelo menos, não, desproporcionalmente, agravadas.”

5. Os factos quer dados como provados, quer os não provados deveriam ter acolhido resposta diversa, porquanto, os elementos probatórios carreados para o processo para provar a realidade factual que nesses artigos era questionada, e que lograram demonstrar com total certeza tais pontos de factos. Os Recorrentes lograram provar que o acesso à via pública através quer das escadas, quer da garagem, é muito difícil, principalmente quando o piso se apresenta molhado, em consequência de chuva e nos meses de Inverno ocorre por vezes, a formação de geada e de gelo no local onde se situam as referidas escadas.

6. Assim, salvo o devido respeito por diferente entendimento, o Tribunal a quo deveria ter dado resposta à questão suscitada pelos Requeridos no que respeita à desnecessidade da servidão de passagem, diferente no sentido de que a dita servidão continua a ter utilidade para o prédio dominante e, isto porque a mesma continua a ser o percurso que propicia condições de acesso ao seu prédio, mais regulares e cómodas. Segundo o Prof. Oliveira Ascensão, in Estudo – Desnecessidade e Extinção dos Direitos Reais (separata da Ver, da Faculdade de Direito de Lisboa, ano 1954):“ A desnecessidade tem de ser objetiva, típica e exclusiva da servidão, não se confundindo com a desnecessidade subjetiva, que assenta na ausência de interesse, vantagem ou conveniência pessoal do titular do direito.” E, “ A desnecessidade que em matéria de servidão se considera, supõe uma mudança na situação, não do prédio onerado ou serviente, mas do prédio dominante. Por virtude de certas alterações neste sobrevindas, aquela utilização, sempre possível, do prédio serviente, perdeu utilidade para o prédio dominante.” E para esse efeito não basta demonstrar que o prédio dominante pode utilizar o caminho de público que entretanto foi aberto, sendo necessário demonstrar que esse caminho proporciona igual ou semelhantes condições de utilidade e comodidade de acesso ao prédio dominante, para se aferir da desnecessidade da servidão. Ac. do STJ de 03/01/2012 www.dgsi.pt 

7. Os elementos probatórios carreados para o processo pelos Recorrentes para prova da realidade factual que era questionada, nomeadamente a prova testemunhal careada para os presentes autos demonstraram ter conhecimento direto e pessoal dos factos, tendo referido que sempre o acesso ao prédio dos Recorrentes, sempre foi feito por aquela servidão de passagem, por si e pelos anteriores possuidores, que o acesso ao prédio dos mesmos pela servidão propicia melhores condições de acesso ao seu prédio, mais regulares e cómodas.

8. Do exposto, decorre que na sentença recorrida, o Tribunal a quo ao decidir como decidiu pela desnecessidade da servidão de passagem, violou, o disposto no artigo 1569º nº 2 do Código Civil.

9. Por tudo quanto se deixa exposto requer-se, a V. Exas. que, perante a análise da prova testemunhal produzida – cujos depoimentos gravados se identificam – considerem procedente por provado a necessidade da servidão de passagem a favor dos Recorrentes pelo prédio dos Recorridos.

Assim, concluem, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a sentença recorrida na parte que declarou extinta, por desnecessidade, a servidão de passagem, condenando, consequentemente, os recorrentes a absterem-se de a utilizar, em conformidade com o supra alegado, mantendo-se tudo o demais.

Os Autores apresentaram contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

1ª- Nas suas alegações, os RR não explicitam quais os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, não esclarecendo, consequentemente, qual a decisão que deveria ser proferida.

2ª- Dos depoimentos seleccionados pelos RR não se extrai que a carga e descarga dos veículos para a garagem prejudica o trânsito na via, ou que esta é muito movimentada, ou que, para evitar o congestionamento, tenham de deixar o veículo estacionado no adro da capela.

3ª- Não obstante, a partir de 1999 o rés-do-chão da casa dos RR passou a dispor de uma garagem para aparcamento de automóvel e guarda de materiais diversos, que comunica directamente para a via pública, uma escada interior da garagem ao interior da casa de habitação e uma escada exterior junto à via pública.

4ª- Sopesadas ambas as situações, ou seja, as condições do caminho de servidão e as novas condições de que passou a dispor com as obras de 1999, é evidente que o acesso do prédio dos RR à via pública pelas escadas e pela garagem é objectivamente mais fácil, mais rápido e mais directo que o acesso pelo prédio dos AA.

5ª- Num juízo de proporcionalidade, é maior o desvalor do prédio dos AA decorrente da sua vinculação a um direito de passagem alheio, do que o desvalor [que até deixou de existir] do prédio dos RR pelo facto de deixar de ter acesso pelo prédio alheio e passar a ter acessos próprios.

6ª- Entendendo que o caminho onde a servidão se situa não é mais cómodo ou benéfico que os acessos directos à via pública de que o prédio dos RR passou a dispor, e assim ao decretar a extinção da servidão, o Tribunal fez uma correcta interpretação dos factos e uma judiciosa aplicação do Direito e da Lei.

Concluem pela improcedência do recurso e pela confirmação da sentença recorrida.

/////

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se deve ou não ser alterada a decisão da matéria de facto no que toca aos pontos impugnados pelos Apelantes;

• Saber, perante a matéria de facto provada, se estão ou não verificados os pressupostos necessários para declarar extinta, por desnecessidade, a servidão de passagem que está constituída a favor do prédio dos Réus/Apelantes.

/////

III.

Na 1ª instância considerou-se provada a seguinte matéria de facto:

1. Pela Ap. 305 de 03.07.2012 mostra-se inscrita a favor dos Autores, na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha, sob o n.º (...)/19990128, a aquisição, por doação, do prédio urbano composto de casa de habitação de dois andares e logradouro, a confrontar do norte com C..., do sul Adro da Capela, do nascente herdeiros de (...) e do poente com estrada, sito em (...) freguesia da (...), inscrito na respectiva matriz predial sob o art. (...).º.

2. Os Autores adquiriram o referido prédio por doação dos pais da Autora, G... e H... , titulada por escritura pública celebrada em 2 de Julho de 2012.

3. Os pais da Autora adquiriram, por seu turno, tal prédio por sucessão na herança de seus pais, E... e F... [avós da Autora], falecidos em 1994 e 2009, no âmbito do inventário que correu termos neste Juízo sob o n.º 343/10.5T2BALB.

4. Toda a sua vida, e até ao seu falecimento, em 2009, a antepossuidora do referido prédio, F..., avó da Autora, morou no prédio descrito em 1., aí dormindo, permanecendo, fazendo as suas refeições.

5. Por sua vez, os Autores, há mais de 25 anos, ininterruptamente, por si e pelos seus antepossuidores, têm vindo a ocupar o referido prédio, fazendo obras nele, habitando a casa, cultivando-o, guardando-o e defendendo-o.

6. Os Autores e os seus antepossuidores têm praticado todos estes actos à vista de toda agente, sem oposição de ninguém, com a convicção de serem os únicos e exclusivos donos do prédio, e como tal considerados pela generalidade das pessoas.

7. Os Réus são donos de um prédio composto por casa de habitação de rés-do-chão, 1.º andar e pátio, sito em (...) freguesia da (...).

8. Este prédio dos Réus confina, pelo seu lado sul, com o prédio dos Autores e pelo seu lado poente com a estrada.

9. O Réu é filho dos falecidos E... e F... e, enquanto esta última foi viva, o primeiro visitava-a naquela que era a sua morada, que agora é o prédio dos Autores, transitando livremente, a pé, entre a sua casa, a casa dela e o adro da capela.

10. Os Réus reconstruíram, em Maio de 1999, a casa que existia no local onde hoje existe a sua casa de habitação.

11. Porém, aquando da referida reconstrução, o Réu manteve uma abertura, que já antes existia, entre o seu logradouro e o cabanal da casa da sua mãe, para permitir o trânsito entre ambas e para manter o acesso que, através da casa da sua mãe, hoje dos Autores, usava para aceder ao adro da capela.

12. Nunca a avó da Autora se opôs a que os réus transitassem pela casa dela, entre a casa dele e o adro da capela.

13. Mesmo depois do inventário e de o prédio, que até então fora da F..., ter sido doado aos Autores, os Réus continuaram a transitar por ele para acederem ao adro da capela.

14. O prédio dos Réus, após a reconstrução referida em 10., depois de um desaterro por aqueles mandado fazer, passou a dispor de ligação directa à via pública, a estrada municipal.

15. Antes dessa reconstrução a casa que nesse local existia apenas tinha acesso à via pública através do prédio hoje dos Autores, então da avó da Autora.

16. No rés-do-chão, o prédio dos Réus tem uma garagem para aparcamento de automóvel e guarda de materiais diversos, a qual comunica directamente para a via pública.

17. No interior dessa garagem existe uma escada que permite o acesso interior à casa de habitação dos Réus.

18. E, no exterior, junto à via pública, a casa dos Réus tem uma escada, com 15 degraus e 1,10 metros de largura, vedada com uma cancela metálica, que permite, igualmente o acesso à casa de habitação.

19. A passagem dos Réus pelo prédio dos Autores faz-se através de uma parcela de terreno que se inicia, junto ao adro da capela, por um portão metálico, com 2,95 metros de largura, que dá acesso ao logradouro/cabanal do prédio dos Autores que é percorrido pelos Réus numa extensão de 12 metros e termina num outro portão metálico, com 85 centímetros de largura [existente no local onde primeiramente existia a abertura referida em 11.], que é precedido de um desnível composto por 2 degraus que se situam no prédio dos Autores.

20. Os Réus sempre transitaram, livremente, a pé, entre o seu prédio, o prédio que outrora pertencia à mãe do Réu marido, e o adro da Capela, usando o mesmo para aí passarem com os materiais de construção, nomeadamente, utensílios da construção, com as bacias de roupa molhada para serem estendidas num seu outro prédio, que se situa nas traseiras do prédio que outrora fora da mãe do Réu.

21. Os Réus fazem-no por si e antepossuidores, há mais de 20 anos, sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente, convictos de que não lesavam direitos alheios e de que existe em benefício do seu prédio um direito de passagem a pé e de carro de mão.

22. Os Réus detêm uma chave do portão quem junto ao adro da capela, dá acesso, através do prédio dos Autores, ao seu prédio.

/////

IV.

Impugnação da matéria de facto

Afirmam os Apelantes – na 2ª conclusão das suas alegações – que pretendem impugnar a “…decisão proferida sobre a matéria de facto dada como provada respeitante à desnecessidade da servidão e a constante dos artigos nºs 25º, 26º, 27º da Contestação que foram dados como não provados”.

De acordo com o disposto no art. 640º do C.P.C., o recorrente, em caso de impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, deve especificar obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

É certo, portanto, que, através dessas especificações, o recorrente terá que identificar os concretos erros de julgamento que imputa à decisão proferida em 1ª instância e que pretende ver analisados em sede de recurso e a identificação desses erros de julgamento supõe, naturalmente, que o recorrente indique, de forma clara, os factos concretos sobre os quais incide a sua impugnação, indicando as concretas razões pelas quais entende que esses factos foram erradamente julgados e indicando a decisão que, na sua perspectiva e à luz dos concretos meios probatórios em que se baseia, seria a correcta.

Ora, conforme se referiu supra, os Recorrentes afirmam impugnar a matéria de facto dada como provada respeitante à desnecessidade da servidão. Não indicam, todavia, quais os factos concretos a que se reportam; não dizem quais são os factos que foram dados como provados e que, na sua perspectiva, não o deveriam ter sido e tão pouco se depreende das suas alegações qual é a sua discordância relativamente à matéria de facto dada como provada. Assim e no que toca a essa matéria, nada de concreto existe para apreciar.

Dizem ainda os Apelantes que impugnam a decisão proferida relativamente aos factos que constam dos arts. 25º, 26º e 27º da contestação e que foram considerados não provados.

Não obstante delimitarem claramente os pontos de facto a que se reportam, a verdade é que não resulta, com clareza, das suas alegações, o que pretendem efectivamente e não dizem sequer qual a decisão que, no seu entender, seria a correcta. E nem sequer é certo que pretendam uma efectiva alteração da decisão da matéria de facto no que toca aos citados pontos, uma vez que também afirmam, nas suas alegações, que são incorrectas as consequências jurídicas retiradas das respostas negativas aos pontos 25º, 26º e 27º da contestação. Ficamos, portanto, na dúvida sobre a real intenção dos Apelantes, pois não sabemos se pretendem que aquela matéria de facto seja considerada provada ou se apenas entendem serem incorrectas as consequências jurídicas que a sentença recorrida retirou da circunstância de aqueles factos não terem ficado provados, dúvida essa que é adensada pela circunstância de os vários excertos de depoimentos que transcrevem nas suas alegações não evidenciarem qualquer referência concreta aos factos que foram alegados nos citados artigos da contestação.

De qualquer forma, ainda que se admita que os Réus pretendem ver alterada a decisão da matéria de facto no sentido de serem considerados provados os factos que constam dos citados artigos da contestação -  intenção que não manifestaram claramente como tinham o ónus de fazer – tal pretensão não poderia ser deferida.

Nos citados artigos da contestação alegava-se o seguinte:

25º - A garagem comunica diretamente para a via pública, esquecendo-se os Autores de mencionar que, a mesma encontra –se face à via pública, não permitindo ao Réu marido carregar e descarregar a viatura automóvel com os materiais de construção, sem que para tal prejudique o trânsito que passa na estrada camarária,

26º

Evitando, assim, qualquer congestionamento da via pública e um acidente, uma vez que, a via pública que passa pela pelo prédio dos Réus e dos Autores, é uma estrada camarária, muito movimentada.

27º

Para evitar o congestionamento da via pública, o Réus marido sempre, deixou o veículo automóvel estacionado no Adro da Capela, retirando os materiais de construção do mesmo, transportando todos os utensílios e demais bens, servindo-se da passagem para, os transportar para o seu prédio e aí guardar os mesmos.

Encontrando-se já provado que a garagem comunica directamente com a via pública e que os Apelantes usam a aludida passagem nos termos referidos no art. 27º, a impugnação deduzida apenas poderia ter o sentido de incluir na matéria de facto provada os demais factos (que foram considerados não provados), ou seja, que a via pública – para a qual deita a garagem – é uma estrada camarária, muito movimentada; que essa garagem, por se encontrar face à via pública, não permite ao Réu marido carregar e descarregar a viatura automóvel com os materiais de construção, sem que para tal prejudique o trânsito que passa na aludida estrada camarária e que os Réus usem a passagem nos termos supra mencionados com a finalidade de evitar o congestionamento dessa via pública.

É certo, porém, que essa factualidade não poderá considerar-se provada.

Em primeiro lugar, porque as testemunhas não se referiram a esses factos, sendo que nenhuma delas aludiu às características da via e à impossibilidade ou dificuldade de a utilizar para aceder à garagem e aí descarregar os aludidos materiais.

Em segundo lugar, porque nem sequer será credível que os Apelantes tenham construído uma garagem à qual não possam aceder em condições de segurança, sendo que nada permite afirmar que não possam proceder à carga e descarga dos aludidos materiais no interior da garagem.

E, em terceiro lugar, porque, como se depreende da fotografia junta a fls. 31, a garagem fica um pouco recuada relativamente à faixa de rodagem, existindo aí um espaço (à frente da garagem) onde, ao que tudo indica, será possível proceder à carga e descarga dos aludidos materiais sem prejudicar o trânsito que circula na estrada.

Mantém-se, portanto, a decisão proferida sobre a matéria de facto.

Direito

A sentença recorrida concluiu pela existência de uma servidão de passagem a pé – constituída por usucapião – sobre o prédio dos Autores e a favor do prédio dos Réus, condenando os Autores a reconhecer a constituição dessa servidão.

Concluiu, todavia, a sentença recorrida que essa servidão se extinguiu por desnecessidade e, em consequência, condenou os Réus a absterem-se de a utilizarem.

No presente recurso não está em causa a constituição da aludida servidão, discutindo-se apenas – é a única questão suscitada no recurso – se ela se extinguiu por desnecessidade, considerando os Réus/Apelantes – em desacordo com a sentença recorrida – que tal extinção não ocorreu, uma vez que tal servidão continua a ser necessária, e que, ao decidir como decidiu, a sentença violou o disposto no art. 1569º, nº 2, do C.C.

Analisemos, então, essa questão.

Dispõe o citado art. 1569º, nº 2, que as servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante.

Não fixando a lei qualquer definição do conceito de desnecessidade para os aludidos efeitos, diz-se, na sentença recorrida que tal desnecessidade há-de ser “…superveniente, objetiva, típica e exclusiva, caracterizando-se por uma mudança na situação, não do prédio serviente, mas do prédio dominante, por uma perda de utilidade para este, em virtude de determinadas alterações nele sobrevindas, não se confundindo com a necessidade subjectiva, que assenta na ausência de interesse, vantagem ou conveniência pessoal do titular do direito”.

Concordamos, em termos gerais, com tal afirmação.

Abstraindo, para já, da questão de saber se essa desnecessidade tem que ser superveniente relativamente ao momento de constituição da servidão – questão que não parece ser consensual – é indiscutível que tal desnecessidade tem que ser avaliada em termos objectivos e reportada ao prédio dominante. Em suma, a servidão será desnecessária quando, em termos objectivos – abstraindo, portanto, dos interesses subjectivos do respectivo proprietário – ela já não é necessária ao prédio dominante.

Refira-se, porém, que essa necessidade/desnecessidade não equivale a indispensabilidade/dispensabilidade, sendo que a mera circunstância de a servidão não ser absolutamente necessária ou indispensável não equivale à sua desnecessidade.

De facto, e como se refere no Ac. do STJ de 16/01/2014[1], “…uma interpretação mais restritiva do requisito, fazendo-o equivaler a indispensabilidade, não se harmoniza com a possibilidade de extinção por desnecessidade de servidões que não sejam servidões legais (no sentido de poderem ser impostas coactivamente)”. Com efeito, continua o mesmo Acórdão, “…pensando na servidão de passagem, por ser a que está em causa, pode constituir-se por usucapião uma servidão em situações que não preenchem os requisitos para a imposição de um direito legal de passagem. Dito por outra forma: a circunstância de não ser indispensável a servidão de passagem (por não ocorrer o encrave, absoluto ou relativo, exigido pelo artigo 1550º do Código Civil) não obsta à constituição do direito correspondente por usucapião. Seria contraditório que fosse permitido ao titular do prédio serviente provocar a extinção da servidão que onera o seu prédio, invocando uma desnecessidade que não impediu a respectiva constituição”.

Não seria difícil admitir que as servidões legais – designadamente quando constituídas por sentença judicial ou acto administrativo – se extinguissem a partir do momento em que cessasse o encrave absoluto ou relativo que havia determinado a sua constituição. De facto, desaparecendo os pressupostos de facto em que assentou a sua constituição, não custaria admitir que o acto constitutivo deixaria de produzir efeitos e que, como tal, a servidão assim constituída se deveria considerar extinta por desnecessidade, adoptando um conceito de desnecessidade reportado à concreta necessidade que havia determinado a sua constituição: o encrave absoluto ou relativo.

Mas já não será fácil admitir o mesmo conceito de desnecessidade relativamente às servidões de passagem constituídas por usucapião, porquanto, não dependendo essa constituição de qualquer encrave – absoluto ou relativo – do prédio dominante, a necessidade que preside à sua constituição não equivale à sua indispensabilidade para a normal e regular fruição do prédio, correspondendo – ou podendo corresponder – a uma mera utilidade ou comodidade que facilita a normal fruição do prédio dominante e que, por essa razão, lhe acrescenta um benefício ou mais-valia relativamente a outros acessos de que disponha para a via pública. E, portanto, se é – ou pode ser – essa a utilidade ou comodidade que está na origem da constituição da servidão, o normal será que seja a cessação dessa utilidade a ditar a sua extinção.

Assim, tal como se conclui no Acórdão supra citado, será necessário adoptar um conceito de desnecessidade paralelo ao interesse que justifica a sua constituição e que é o da utilidade para o prédio dominante e, portanto, só se justificará a extinção da servidão por desnecessidade quando ela deixa de ter qualquer utilidade para o prédio dominante, em virtude de este ter a possibilidade de alcançar por outra via as mesmas utilidades que aquela servidão lhe proporcionava.

No caso sub judice, o prédio dos Réus era um prédio encravado que apenas tinha acesso à via pública através da servidão de passagem constituída sobre o prédio que hoje pertence aos Autores.

Tal situação alterou-se em consequência das obras de reconstrução da casa existente no seu prédio e do desaterro então efectuado – obras que foram realizadas em Maio de 1999 – sendo que, a partir desse momento, o prédio dos Réus passou a ter acesso directo à via pública, seja por via da garagem – que comunica directamente com a via pública e da qual é possível aceder à habitação através de uma escada interior – seja por via de uma escada que se situa junto da via pública e dá acesso directo à referida habitação.

E foi com base nesta alteração que a sentença recorrida concluiu que aquela servidão deveria ser extinta por desnecessidade, argumentando que, e passamos a citar, “…se os réus dispõem, sem excessivo incómodo, comunicação direta com a via pública, não se justifica a manutenção da servidão” e que “…confrontando a situação do prédio serviente e dos prejuízos que para este e para os autores advêm da manutenção da servidão, com o facto de, da análise da factualidade provada, não resultar que o caminho onde a referida servidão se situa seja mais cómodo ou benéfico que os referidos acessos diretos à via pública de que o prédio dos passou a dispor, importa considerar extinta a servidão, por desnecessidade, por não apresentar quaisquer vantagens significativas para os réus”.

Discordando dessa decisão, argumentam os Apelantes que o acesso à via pública através quer das escadas, quer da garagem, não oferece condições de utilização similares às proporcionadas pela passagem pela dita servidão e que esta continua a ter utilidade para o prédio dominante, na medida em que continua a ser o percurso que propicia condições de acesso ao seu prédio, mais regulares e cómodas.

Admitimos que a servidão em causa tenha deixado de ser indispensável/imprescindível ao prédio dos Réus, como era até à realização das referidas obras. De facto, é incontroverso que, neste momento, os Réus/Apelantes podem aceder directamente da via pública ao seu prédio sem que tenham a necessidade (absoluta) de utilizar o prédio vizinho, embora não seja seguro que, através desse acesso, possam colher todas as utilidades do logradouro que colhiam até então, já que desconhecemos, em rigor, qual era a utilização dada ao logradouro e se essa utilização pode ou não ser efectuada através das aludidas escadas.

De qualquer forma, tal como referimos supra, não é essa indispensabilidade que releva para efeitos de apurar a necessidade/desnecessidade da servidão para efeitos de declarar a sua extinção, sendo que a mera circunstância de a servidão não ser já absolutamente necessária não é bastante para que se declare a sua extinção por desnecessidade.

   O que releva para esse efeito é a circunstância de a servidão em causa não proporcionar já qualquer utilidade que, sendo relevante e digna de protecção, seja susceptível de trazer ao prédio dominante uma mais valia significativa, em virtude de as utilidades por ela proporcionadas poderem ser alcançadas por outra via.

Conforme se referiu no Acórdão do STJ de 01/03/2012[2], citando o Acórdão da Relação de Coimbra de 25/09/2007[3], “não basta que, para além da passagem objecto da servidão, exista outra via de acesso ao prédio dominante para a via pública, porquanto é necessário que este outro acesso ofereça condições de utilização similares, ou, pelo menos, não proporcionalmente agravadas. O que a lei pretende é uma ponderação actualizada da necessidade de manter o encargo sobre o prédio, deixando ao julgador a avaliação, segundo uma prognose de proporcionalidade subjacente aos interesses em jogo, da existência de alternativa que, sem ou com um mínimo de prejuízo para o prédio encravado, permita vir a ser eliminado o encargo incidente sobre o prédio serviente, garantindo uma acessibilidade, em termos de comodidade e regularidade, ao prédio dominante, sem onerar desnecessariamente, o prédio serviente”.

Assim, não obstante o facto de o prédio passar a dispor de acesso directo à via pública, pode acontecer que esse acesso não proporcione as mesmas utilidades e comodidades que são proporcionadas pela servidão e, neste caso, é indiscutível que tal servidão continuará a ser útil – apesar de dispensável – constituindo uma mais-valia para o prédio dominante. E o que interessará ponderar nesta situação, para efeitos de eventual extinção por desnecessidade, será a relevância da utilidade que ainda é proporcionada pela servidão em termos de saber se ela é digna de protecção e se justifica ou não, em termos de razoabilidade, a manutenção do encargo sobre o prédio serviente. Com efeito, não será de manter a servidão se ela não tiver aptidão para proporcionar ao prédio dominante qualquer utilidade concreta que não possa ser alcançada por outra via, tal como não será de manter se a utilidade que dela ainda possa advir é insignificante ou irrisória quando comparada com o encargo imposto ao prédio serviente; mas já será de manter a servidão se ela puder ainda proporcionar ao prédio dominante uma utilidade que, não podendo ser obtida por outra via, é relevante por facilitar o uso normal e regular do prédio e por proporcionar uma comodidade que, de outro modo, não poderia ser obtida e cuja eliminação seja susceptível de determinar um incómodo significativo ou relevante.   

Ora, transpondo essas considerações para o caso sub judice, não nos parece que existam elementos bastantes para concluir pela desnecessidade da servidão aqui em causa.

De facto, se é certo que o prédio dos Réus passou a ter acesso directo à via pública, também é certo – pelo menos na nossa perspectiva – que tal acesso não assegura as mesmas utilidades e comodidades que são proporcionadas pela servidão. Em primeiro lugar, porque o acesso ao prédio dos Réus a partir da ligação directa que tem para a via pública é feito através de escadas e, em segundo lugar, porque esse acesso não permite ir para o logradouro sem passar pelo interior da casa de habitação.

Ora, as aludidas escadas – que, necessariamente, teriam que ser utilizadas, caso não existisse a servidão – constituem sempre um obstáculo que, em determinadas situações, é muito significativo e relevante e que sempre dificultarão (e poderão até impossibilitar) o transporte de objectos ou utensílios que sejam mais pesados e tenham maior dimensão.

É evidente que é muito mais fácil e cómodo transportar tais objectos através da servidão que corresponde a uma parcela de terreno – que, ao que indica, é plana e apenas exige a transposição de dois degraus – com apenas 12 metros de extensão e que permite aceder directamente ao logradouro do prédio dos Réus, ao invés do que acontece com o outro acesso que nunca dispensaria a passagem pelo interior da habitação.

É indiscutível – como dizem os Apelados – que os Réus não efectuaram as aludidas obras por mera recreação ou por motivos estéticos e, portanto, é um facto incontroverso que a garagem e escadas construídas pelos Réus reúnem as condições necessárias para aceder à via pública (foi para esse efeito que as construíram). Mas, ao contrário do que pretendem os Apelados, daí não decorre – automática e necessariamente – a desnecessidade da servidão. Com efeito, se é certo que aquela servidão se tornou desnecessária para satisfazer algumas das utilidades que, até aí, proporcionava (porque tais utilidades poderão ser exercidas do mesmo modo pelas aludidas escadas), a verdade é que continua a proporcionar utilidades que só muito dificilmente e em condições bem mais incómodas e gravosas poderiam ser satisfeitas pelo acesso através das escadas, como sejam, o transporte de objectos pesados e volumosos que se pretenda efectuar directamente para o logradouro.

É certo, portanto, que essa servidão continua a proporcionar utilidades e comodidades que não são satisfeitas, do mesmo modo, pelo acesso efectuado através de escadas e através do interior da habitação; tais utilidades são relevantes, são dignas de protecção e constituem uma mais-valia para o prédio, que, por via dessa servidão, dispõe de acesso directo ao logradouro sem necessidade de transpor qualquer obstáculo físico que não sejam os dois degraus ali existentes, e sem necessidade de passar pelo interior da habitação, o que não acontece com o outro acesso.

Refira-se, aliás, que nem sequer sabemos, com rigor, qual é a utilização dada ao logradouro e, portanto, sempre seria difícil afirmar que o acesso através das escadas e pelo interior da habitação é compatível com a normal e regular fruição desse logradouro, ainda que com maior incómodo. Sabemos que os Réus passavam na servidão com materiais de construção, nomeadamente e utensílios da construção, mas não sabemos qual o tipo e a dimensão desses materiais e, portanto, não poderemos sequer afirmar que fosse possível transportá-los através das escadas e pelo interior da habitação, importando notar que eram os Autores quem tinham o ónus de provar a desnecessidade da servidão e, como tal, tinham que alegar e provar que a normal e regular fruição do prédio dos Réus (incluindo o logradouro) poderia ser efectuada, sem excessivo incómodo, pelas aludidas escadas que dão acesso ao interior da habitação.

Em suma: o prédio dos Réus/Apelantes não é, neste momento, um prédio encravado; dispõe de acesso directo à via pública e, portanto, a aludida servidão poderá não ser indispensável ou absolutamente necessária. Mas, ainda que não seja indispensável, tal servidão continua a proporcionar uma utilidade relevante, garantindo ao prédio dos Réus uma acessibilidade cómoda e regular que, não sendo assegurada, nos mesmos termos, pelo outro acesso de que o prédio dispõe, continua a justificar a manutenção do encargo imposto ao prédio dos Autores. E, tal como referimos, é a subsistência (ou não) desta utilidade que releva para efeitos de apurar a necessidade (ou não) da servidão para efeitos da sua extinção por desnecessidade.

E não será despiciendo notar que o prédio dos Réus passou a ter acesso directo à via pública a partir de 1999, sendo que, não obstante esse facto, a servidão continuou a ser exercida até à data da propositura da presente acção (em 2012), sem que, aparentemente, os proprietários do prédio serviente tenham manifestado qualquer oposição relevante. E o exercício da servidão nessas circunstâncias e durante todo esse lapso temporal não deixará de indiciar que, não obstante a existência de outro acesso, os proprietários do prédio serviente reconheciam a utilidade e necessidade daquela servidão.

Consequentemente, não estão reunidos os pressupostos para que possa ser declarada a extinção da aludida servidão por desnecessidade, sendo que era aos Autores que cabia o ónus de alegar e provar tal desnecessidade.

Procede, portanto, o recurso, revogando-se a sentença recorrida, no segmento abrangido pelo presente recurso.

******

SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – A mera circunstância de uma servidão de passagem não ser já absolutamente necessária (em virtude de o prédio dominante dispor de outro acesso à via pública) não é bastante para que se declare a sua extinção por desnecessidade, sendo que o que releva para esse efeito é a circunstância de a servidão em causa não proporcionar já qualquer utilidade que, sendo relevante e digna de protecção, seja susceptível de trazer ao prédio dominante uma mais valia significativa, em virtude de as utilidades por ela proporcionadas poderem ser alcançadas por outra via.

II – A servidão extingue-se, por desnecessidade, se ela tiver perdido aptidão para proporcionar ao prédio dominante qualquer utilidade concreta que não possa ser alcançada por outra via ou quando a utilidade que dela ainda possa advir é insignificante ou irrisória quando comparada com o encargo imposto ao prédio serviente; não ocorre, porém, tal desnecessidade e consequente extinção se a servidão puder ainda proporcionar ao prédio dominante uma utilidade que, não podendo ser obtida por outra via, é relevante por facilitar o uso normal e regular do prédio e por proporcionar uma comodidade que, de outro modo, não poderia ser obtida e cuja eliminação seja susceptível de determinar um incómodo significativo ou relevante.  

III – À luz desses critérios, não se extingue, por desnecessidade, uma servidão de passagem, a pé, através de uma faixa de terreno que dá acesso ao logradouro do prédio dominante, quando este prédio apenas dispõe de um outro acesso à via pública que implica a utilização de escadas e que não dispensa a passagem pelo interior da habitação para aceder ao logradouro.

/////

V.
Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, na parte em que julgou extinta, por desnecessidade, a servidão de passagem ali mencionada e em que condenou os Réus a absterem-se de a utilizar, julgando-se improcedente esse pedido, dele absolvendo os Réus e confirmando-se, em tudo o mais, a sentença recorrida.
Custas a cargo dos Apelados.
Notifique.

Maria Catarina Ramalho Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Proc. nº 695/09.0TBBRG.G2.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.  
[2] Proferido no proc. nº 263/1999.P1.S2, disponível em http://www.dgsi.pt.
[3] Proferido no proc. nº 146/06, igualmente disponível em http://www.dgsi.pt.