Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
846/17.0T8FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: EFEITOS DO DIVÓRCIO
RETROAÇÃO
FORMULAÇÃO DESSE PEDIDO NO PROCESSO DE DIVÓRCIO
Data do Acordão: 11/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DA FIG. FOZ – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1789º, Nº 2 DO C. CIVIL.
Sumário: 1 - O requerimento da retroacção dos efeitos do divórcio a que alude o nº 2 do art 1789º CC tem de ser formulado no processo de divórcio antes da prolação da respectiva sentença, ficando precludida a possibilidade do exercício desse direito com o encerramento da discussão em 1ª instância.

2- Admitir-se esse requerimento após o trânsito em julgado da sentença de divórcio levaria a que se admitisse que se pudesse pôr em causa o que já constituía caso julgado. É que, em função do disposto no nº 1 do 1789º CC, um dos efeitos do decretamento do divórcio é o de que a cessação dos efeitos patrimoniais do casamento entre os cônjuges se verifica, ipso jure, na data da propositura da acção de divórcio sem consentimento ou na da apresentação do requerimento no divórcio por mútuo consentimento. Não seria razoável que após o trânsito em julgado da sentença do divórcio e sobrevindo o seu registo, pudessem os terceiros vir a sofrer consequências, ainda que colaterais, daquela maior retroacção, por se admitir que, sem qualquer limite temporal, qualquer dos cônjuges pudesse ainda vir a obtê-la.

3 - A situação em causa nada tem a ver com um pedido de reforma (rectificação, ou esclarecimento) do decidido em função do disposto nos arts 614º e 616º/2 CPC, pois o que falta é o pedido, e este não pode ser suprido por requerimentos de rectificação, esclarecimento ou reforma da sentença.

4 – A lei não configurou como possível o incidente autónomo de fixação do início da separação de facto e o intérprete não pode criar incidentes “autónomos” onde a lei não deu sinais da sua necessidade.

5 - A circunstância do conceito de separação de facto poder não ser tão pacífico como à primeira vista poderá parecer, aconselhará que a fixação do momento da separação seja feito na sentença e não por via incidental após esta.

Decisão Texto Integral:









Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – J..., R. na acção de divórcio que contra ele interpôs M..., fazendo-o com fundamento na separação de facto por um ano consecutivo, nos termos da al a) do art 1781º CC, tendo sido citado e não a tendo contestado, veio requerer, após o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio com o referido fundamento, que, visto que a sentença deu como provado que A. e R. deixaram de ter vida em comum, pelo menos desde Abril de 2016, e que pelo menos desde essa data não viveram em comunhão de leito, mesa e habitação, o tribunal declare a retroacção dos efeitos do divórcio à referida data da separação de facto - Abril de 2016.

A A., notificada, veio referir que ao pretender-se fixar a data em que os efeitos do divórcio retroajam, tal data deverá ser concretizada e não meramente genérica, como consta da sentença, resultando de per si que em 1 de Abril de 2016 a coabitação já havia cessado (“pelo menos desde Abril de 2016”) e por tal motivo, tais efeitos, quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges, deverão retroagir a 1 de Abril de 2016, e não, como o R. pretende, genericamente, a Abril de 2016.

Foi proferido despacho em que se indeferiram os requerimentos do R. e da A.  para que se declare, após o trânsito em julgado da sentença dos  autos, a retroacção dos efeitos do divórcio à data da separação de facto do casal, por se terem entendido tais requerimentos como extemporâneos e, de todo o modo, não se ter provado com exactidão a data da separação de facto, condenando-se nas custas do incidente em partes iguais, R. e A. por ambos decaíram nas suas pretensões.

II – É do assim decidido que apela o R., tendo concluído as respectivas alegações nos seguintes termos: 

...

Não foram produzidas contra alegações.

III – Cumpre decidir, tendo para o efeito em consideração o circunstancialismo fáctico processual que resulta do acima relatado, pondo-se ainda em evidência que na matéria de facto que foi julgada como provada na acção de divórcio consta, nos respectivos pontos 3 e 4, que «a A. e o R. deixaram de ter vida em comum, pelo menos desde Abril de 2016, e que, pelo menos desde tal data, não mais viveram em comunhão de leito, mesa e habitação».

IV – Como resulta com facilidade do confronto entre a decisão recorrida e as conclusões do recurso, a questão objecto deste é, essencialmente, a de saber se o requerimento a que se refere o nº 2 do art 1789º CC tem de ser apresentado antes de ser proferida a sentença a decretar o divórcio, ou se pode ser apresentado após o próprio trânsito dessa sentença em incidente autónomo. No caso de se entender que tal requerimento pode dar origem a um incidente autónomo mesmo após o trânsito da sentença- situação fáctica essa a dos presentes autos - importará ainda saber se a circunstância de dos factos provados não resultar definida uma data precisa para aquela separação obstará a que a mesma seja fixada em função apenas do mês de Abril de 2016.

Aquela primeira questão já não é nova, como foi acentuado na decisão recorrida e nas alegações de recurso, e coloca-se hoje essencialmente nos mesmos termos em que se colocava antes da alteração da redacção daquela norma decorrente da Lei 61/2008, de 31 /10.

Como é sabido, esta Lei eliminou o regime do divórcio litigioso ao extinguir o divórcio por violação culposa dos deveres conjugais – o chamado divórcio/sanção -  e instituiu o divórcio sem consentimento, fazendo-o  com base numa cláusula de falência do casamento  - afinal, qualquer facto objectivo demonstrativo da ruptura definitiva do casamento  o pode fundamentar nos termos genéricos da al d)  do art 1781º CC. Trata-se do chamado divórcio/constatação da ruptura do casamento [1]. Hoje qualquer dos cônjuges pode requerer o divórcio na falta de concordância do seu cônjuge para o mesmo, fazendo-o com base no falhanço objectivo da sociedade conjugal e, consequentemente, da maior ou menor contribuição de qualquer dos dois para o mesmo, que deixa de relevar no decretamento e efeitos do divórcio.[2]

Assim, onde se dizia na redacção do nº 2 do art 1789º CC, que foi introduzida pela Reforma de 77 (DL 496/77, de 25/11), que «se a falta de coabitação entre os cônjuges estiver provada no processo, qualquer deles pode requerer que os efeitos do divórcio se retrotraiam à data, que a sentença fixará, em que a coabitação tenha cessado por culpa exclusiva ou predominante do outro», hoje diz-se, «se a separação de facto entre os cônjuges estiver provada no processo, qualquer deles pode requerer que os efeitos do divórcio retroajam à data, que a sentença fixará, em que a separação tenha começado».

As questões que a norma em causa tem colocado – numa e noutra das suas versões -  são, tanto quanto se perspectivou da jurisprudência consultada, as de saber se a retroacção dos efeitos patrimoniais do divórcio à data da cessação da coabitação dos cônjuges /data do início da separação de facto tem de ser requerida no próprio processo de divórcio, ou se o pode ser em processo autónomo [3]; se o requerimento para essa superior retroacção relativamente à normal estabelecida no nº 1 da norma em referência – que é a data da propositura da acção de divórcio ou a da apresentação do requerimento no divórcio por mútuo consentimento - tem de ser feito antes de ser proferida a sentença ou se o pode ser depois da sua prolação e mesmo após o seu trânsito em julgado [4]; por último, se esse requerimento se mostra admissível no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento, seja em função da homologação de um específico acordo dos cônjuges referente à data dessa cessação de coabitação/início da separação de facto, seja através de um incidente autónomo despoletado por qualquer dos cônjuges igualmente depois da sentença que decrete o divórcio.

A única questão que interessa a este recurso é, como resulta já claro, a segunda evidenciada.

Mas não poderá deixar de se referir, porque não totalmente irrelevante no que se reporta àquela segunda questão, que, quanto à terceira, há total consenso doutrinário e jurisprudencial no sentido de que o requerimento referente à maior retroacção dos efeitos patrimoniais do divórcio prevista no nº 2 da norma em referência apenas se admite no divórcio litigioso/divórcio sem consentimento [5]. Nesse sentido argumenta-se - para lá da circunstância de estarem em causa direitos indisponíveis, pelo que não é legalmente admissível a confissão nem o acordo das partes [6] - com o princípio da imutabilidade do regime de bens – cfr art 1714º/1- imutabilidade na qual se abririam brechas se se admitisse que os cônjuges, comungantes na vontade de se divorciarem, pudessem consensuar o momento da separação de facto ou se lhes possibilitasse uma controvérsia, que afinal poderia ser falsa, a esse respeito. Aquele princípio da imutabilidade do regime de bens qui-lo a lei tão rígido e crucial em matéria matrimonial que não pode admitir-se que pelas referidas vias viesse a ser, ainda que limitada e pontualmente, postergado pelos cônjuges.

A retroacção dos efeitos patrimoniais do divórcio ao momento da propositura da acção de divórcio - neste aspecto, quer aquele seja sem consentimento ou por mútuo consentimento - «visa acautelar qualquer dos cônjuges contra delapidações e abusos que o outro possa cometer na pendência da acção»[7], dizendo a este respeito [8] Rodrigues Bastos [9], «trata-se de uma regra que tem especialmente em vista evitar que qualquer dos cônjuges, na pendência do processo, tome medidas pecuniárias susceptíveis de prejudicar o outro  cônjuge, qualquer que seja o seu regime de bens do casamento», ou evitar, nas palavras de Antunes Varela /Pires de Lima[10],  que «um dos cônjuges seja prejudicado pelos actos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança, que o outro venha a praticar, desde a proposição da acção sobre valores do património comum».

Ora, essa mesma ideia de protecção dos interesses de um cônjuge relativamente ao outro (antes da Lei 61/2008, de 31/10, apenas relativamente a actos do cônjuge que viesse a ser tido como exclusiva ou predominantemente culpado) no que concerne a actos de delapidação e abuso praticados sobre o património comum, é igualmente válida a partir da data do final da coabitação/início da separação de facto, por ser da experiência comum que a separação de facto entre os cônjuges os leva, por razões diversas, e sobretudo se se mantém por um período de tempo significativo antes do divórcio, a interferirem com actos seus no património comum (sendo muito vulgar, a este nível, a venda por um dos cônjuges de móveis comuns de que tenha a administração, máxime nos termos da al e) do nº 2  do art 1678º, cfr art 1682º/2 CC).

Sucede que enquanto a lei assumiu ficcionar a cessação dos efeitos patrimoniais decorrentes do divórcio, no que respeita às relações internas entre os cônjuges, na data da apresentação do requerimento para divórcio por mútuo consentimento ou na data da propositura de divórcio sem consentimento, datas estas cujo conhecimento e certeza são obviamente objectivas – e por isso, constitui um dos efeitos do decretamento do divórcio, o de que a cessação dos efeitos patrimoniais do casamento entre os cônjuges se verifica ipso jure na data da propositura da acção de divórcio sem consentimento ou na da apresentação do requerimento para divórcio por mútuo consentimento - já a maior retroacção desses efeitos a momento anterior - que terá de corresponder à da cessação da coabitação entre os cônjuges na versão anterior à Lei 61/2008, de 31/10, ou ao início da separação de facto na versão subsequente a essa Lei - quis o legislador que ficasse dependente de requerimento do cônjuge que nisso tivesse interesse, e que fosse fixada na sentença, constituindo condição para aquele requerimento e esta fixação, a circunstância de a cessação da coabitação/início da separação de facto entre os cônjuges se mostrar  provada no processo.

Vejamos melhor a que efeitos nos estamos a referir.

O decretamento do divórcio implica que cessem para o futuro os efeitos da relação matrimonial mantendo-se, naturalmente, os efeitos já produzidos - «constitutiva como é, a sentença que decreta o divórcio só opera nunc e não ex tunc» [11].

Como o acentuam Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira em função das disposições então vigentes do CPC, mas a que correspondem no actual Código disposições com igual conteúdo, «os efeitos do divórcio produzem-se, em regra, a partir do trânsito em julgado da sentença (art 1789º/1 1ª parte do CC) conforme o princípio geral do art 677º CPC, pois não contém o nosso direito norma idêntica à do art 677º/3 2ª parte do CPC de 1961 que logo foi revogado na revisão de 1967 (Decreto nº 47690 de 11/5/1967) segundo a qual os efeitos do caso julgado retroagiam ao momento em que a decisão fosse proferida».

Mas, nos efeitos do divórcio é necessário distinguir, por um lado, os efeitos pessoais, por outro, os patrimoniais [12], e no que se reporta  a estes,  os efeitos  entre os cônjuges e os efeitos em relação a terceiros.

Quanto aos efeitos patrimoniais em relação a terceiros, a cessação de tais efeitos só lhes pode ser oposta a partir da data do registo (e não apenas do trânsito) da sentença  - art 1789º/3 CC.

È pois quanto ao círculo das relações patrimoniais entre os cônjuges que vale a retroacção dos efeitos do divórcio à data da instauração da acção nos termos do já referido nº 1 do art 1789º CC, e é igualmente quanto a essas relações patrimoniais que a faculdade da maior retroacção desses efeitos vem prevista no também já referido nº 2 dessa mesma norma.

Qualquer uma dessas retroacções pode ter efeitos directos na partilha, mais visíveis quando o regime de bens no casamento seja de comunhão geral, mesmo independentemente da prática de actos lesivos da consistência do património comum a que acima se fez referência.

Com efeito, sendo o regime do casamento o da comunhão geral de bens, se um dos cônjuges na pendência da acção de divórcio recebe uma herança, os bens deixados não se comunicam ao outro cônjuge, «pois o cônjuge herdeiro, graças ao principio da retroactividade do art 1789º/1 2ª parte, e se o divórcio vier a ser decretado, é havido como divorciado, para este efeito, a partir da data da propositura da acção». Igualmente se na pendência do divórcio um dos cônjuges casado em comunhão geral de bens recebe uma doação (sem cláusula de incomunicabilidade), os bens doados não se comunicam ao outro cônjuge, pois o cônjuge favorecido pela doação, graças ao principio da retroactividade do art 1789º/1 2ª parte, e se o divórcio vier a ser decretado, é havido como divorciado, para este efeito, a partir data da propositura da acção. Igualmente, como o exemplifica Pereira Coelho [13] - «o caso de um cônjuge que aliena  um imóvel próprio sem legitimidade  (cfr art 1682º-A), a venda seria inválida, mas a retroactividade vem afastar as regras do matrimónio, sem retirar ao outro cônjuge o direito de arguir a invalidade». Ou mais prosaicamente, por ser em absoluto frequente, e como o refere também o mesmo autor [14] , no regime  de comunhão de adquiridos os bens que um dos cônjuges tenha adquirido a título oneroso depois da data da separação ficam a ser bens próprios, por se considerar divorciado, para efeitos patrimoniais, desde essa data.

Ora, o mesmo se pode passar se a herança ou a doação ocorrerem depois da cessação da coabitação/início da separação de facto e o cônjuge herdeiro ou que haja recebido a doação, fizer uso, com êxito, do mecanismo a que se reporta o nº 2 do art 1789º CC. Ou se o cônjuge separado de facto e casado no regime de comunhão de adquiridos, adquirir a título oneroso bens depois da data da cessação da coabitação/ início da separação de facto que ficam a ser bens próprios, por se considerar divorciado, para efeitos patrimoniais, desde essa data. 

Entende-se, como a jurisprudência maioritária a este respeito o vem entendendo [15], que o requerimento da retroacção  dos efeitos do divórcio a que alude o nº 2 do art 1789º CC tem de ser formulado no processo de divórcio  antes da prolação da respectiva sentença, ficando precludida a possibilidade do exercício desse direito com o encerramento da discussão em 1ª instancia [16].

È o que resulta sem esforço interpretativo do preceito em referência, não se vendo motivos que exijam uma interpretação diferente.

Diz-se em desabono da leitura que se faz da norma em causa que «a lei não estabelece prazo para o efeito, pois a única coisa que manda fixar na sentença, caso esteja provada, é a data da cessação da coabitação entre os cônjuges, em conformidade com o art 1829/2 al b) 2ª parte do CC ao considerar finda a coabitação dos cônjuges na data em que a sentença fixar como a da cessação da coabitação. Por conseguinte, uma coisa é esta data, que deve constar da sentença, outra o momento até ao qual pode ser requerido o efeito retroactivo» [17] 

Ora se é verdade que a norma em causa – na anterior e na actual redacção – não estabelece prazo para o requerimento em referência, já não é verdade que dela não resulte esse prazo – o mesmo corresponderá a toda a duração do processo até ao encerramento da discussão em 1ª instância, pois apenas se tiver lugar até este momento poderá –ainda -  ser fixado na sentença.

Não constitui também argumento no sentido contrário ao que defendemos, o de que nas acções de divórcio não contestadas – como a presente – o cônjuge R. não teria oportunidade de proceder ao requerimento em apreço.

Há que não esquecer que na acção de divórcio o patrocínio judiciário é obrigatório, pelo que o réu que opte por não contestar a acção, deverá, não obstante, ser alertado para a necessidade de, querendo (ainda em sua defesa), beneficiar da já referida maior retroacção, ter de fazer o referido requerimento até ao encerramento da discussão.

Por outro lado, e como é sabido, a circunstância de a acção não ser contestada em nada interfere com o facto de apenas com o julgamento ficar adquirida a data da cessação da coabitação ou do início da separação de facto que possa decorrer dos factos alegados pelo(a) autor(a), dada a inadmissibilidade de confissão neste tipo de acção, em que a vontade das partes é ineficaz para produzir o efeito jurídico que com ela se pretende obter.

A possibilidade do requerimento em causa constitui, do ponto de vista substantivo,  como que uma “defesa em separado” que a lei expressamente admite fora do lugar e do tempo  da contestação.

Já do ponto de vista processual o requerimento em referência implica um verdadeiro pedido, que oferece a especialidade da respectiva formulação ser possível até ao encerramento da discussão em 1ª instância, permitindo assim o legislador, ao cônjuge que possa ter interesse nele, que melhor meça a sua conveniência em função da forma como tenha decorrido a audiência de julgamento. Tratar-se-á de uma faculdade semelhante – salvas as devidas distâncias, desde logo a de poder ser feita tanto por autor como pelo réu - às das ampliações do pedido a que se reportam os nº 2, 4 e 5 do art 265º CPC.

               Não sendo exercida, pois, na acção de divórcio até ao referido momento, aquela faculdade preclude-se – já não o poderá ser em acção autónoma, tão pouco por via incidental na própria acção de divórcio.

               Muito menos se poderia admitir que o respectivo exercício fosse facultado após o trânsito em julgado da sentença de divórcio, na medida em que conflituaria com o caso julgado formado – é que, em função do disposto no nº 1 do 1789º CC, aquele inclui, por força do aí disposto, a retroacção dos efeitos patrimoniais do divórcio à data da propositura da acção. Veja-se o desrazoável que é admitir-se que após o trânsito em julgado da sentença do divórcio e sobrevindo, naturalmente o seu registo, [18] pudessem os terceiros vir a sofrer consequências, ainda que colaterais, daquela maior retroacção, por se admitir que - sem qualquer limite temporal - qualquer dos cônjuges pudesse  interferir no caso julgado com um requerimento como o que está sob análise.[19] 

Por outro lado, e salvo o devido respeito, a situação em causa nada tem a ver com um pedido de reforma (rectificação, ou esclarecimento) do decidido em função do disposto nos arts 614º e 616º/2 CPC. Diz-se no Ac desta Relação de 30/11/2004 [20], na defesa do requerimento em apreço poder ser formulado após o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio,  que «não está em causa decidir para além ou contra o já decidido, mas tão só explicitar algo que resulta inequívoco do que já foi decidido, uma vez que a data a que se reportarão os efeitos do divórcio e a da cessação de coabitação dos cônjuges e aquela só será fixada se esta estiver provada no processo, diz a lei. E em tais circunstâncias o sistema admite a alteração do conteúdo da sentença e até o sentido da própria decisão, sem que haja desrespeito pelos poderes de cognição do tribunal, como acontece com os pedidos de rectificação, aclaramento e reforma da sentença». É que não está em causa rectificação ou esclarecimento da sentença, e a reforma desta pressupõe o que na situação em causa nos autos, por definição, não sucedeu – um «lapso manifesto do juiz relativamente a elementos já constantes do processo que não tenham sido tidos na devida consideração». Ora na situação em apreciação o que falta é o pedido e este não pode ser suprido por requerimentos de rectificação, esclarecimento ou reforma.

 Acresce que a lei não configurou como possível o incidente autónomo a que se reportam os defensores da tese contrária à que se vem defendendo. E, apesar da existência de múltiplos incidentes inominados e atípicos, para além dos incidentes da instância a que se reportam os arts 292º e ss do CPC – cuja disciplina geral, a contida no art 292º a 295º, apenas é configurada para (os) «incidentes inseridos na tramitação de uma causa» - tais incidentes, os não inseridos na tramitação de uma causa- como o seria o que está em referência - têm sempre que ter sido configurados/previstos pela lei  [21]. Isto é, a respectiva necessidade há-de advir de algum modo do constante da lei na matéria a que se reporta, convindo lembrar que a gestão processual, com toda a bem vinda flexibilização do processado a utilizar para se atingir a mais rápida, justa e eficaz resolução do litigio, parte sempre da forma legal processual a seguir, que nas palavras de Paulo Ramos Faria[22]  «constitui o primeiro limite ao exercício do poder-dever de gestão processual». Quer dizer, não será possível para o intérprete criar incidentes “autónomos” onde a lei não deu sinais da sua necessidade.

Por fim, sempre se dirá que a nova terminologia utilizada pelo nº 2 do art 1789º em contraposição com a utilizada na redacção anterior, também pode concorrer para o entendimento que se vem defendendo. Veja-se que onde se falava de «cessação de coabitação», hoje se fala de «separação de facto». A simples circunstância de poder ser discutível que o conceito de «separação de facto» aqui utilizado tenha de coincidir com a definição de separação de facto constante do art 1782º CC e, por isso, possa exigir, para lá da falta de comunhão de vida entre os cônjuges, o propósito pelo menos de um deles de não a restabelecer, isto é, somar-se àquele elemento objectivo, este subjectivo, e as dificuldades que possam existir para a configuração de uma separação de facto nesses termos em múltiplas situações da vida de um casal, sobretudo quando os cônjuges continuam a morar na mesma casa -  quer dizer, a circunstância do conceito separação de facto poder não ser tão pacifico como à primeira vista poderá parecer - aconselhará seguramente que a fixação do momento da separação seja feito na sentença e não por via incidental após esta. Afinal, há mesmo quem entenda que o requerimento a que se vem fazendo referência só pode ser feito no processo de divórcio sem consentimento em que a separação de facto tenha sido a causa de pedir da acção ou da reconvenção [23].

Em função do entendimento que se deixou consignado, resulta prejudicada a segunda questão acima evidenciada referente a ser ou não possível a fixação do início da separação em função do momento genérico de Abril de 2016.

Em conclusão:

1 - O requerimento da retroacção dos efeitos do divórcio a que alude o nº 2 do art 1789º CC tem de ser formulado no processo de divórcio antes da prolação da respectiva sentença, ficando precludida a possibilidade do exercício desse direito com o encerramento da discussão em 1ª instância.

2- Admitir-se esse requerimento após o trânsito em julgado da sentença de divórcio levaria a que se admitisse que se pudesse pôr em causa o que já constituía caso julgado. É que, em função do disposto no nº 1 do 1789º CC, um dos efeitos do decretamento do divórcio é o de que a cessação dos efeitos patrimoniais do casamento entre os cônjuges se verifica, ipso jure, na data da propositura da acção de divórcio sem consentimento ou na da apresentação do requerimento no divórcio por mútuo consentimento. Não seria razoável que após o trânsito em julgado da sentença do divórcio e sobrevindo o seu registo, pudessem os terceiros vir a sofrer consequências, ainda que colaterais, daquela maior retroacção, por se admitir que, sem qualquer limite temporal, qualquer dos cônjuges pudesse ainda vir a obtê-la. 

3 - A situação em causa nada tem a ver com um pedido de reforma (rectificação, ou esclarecimento) do decidido em função do disposto nos arts 614º e 616º/2 CPC, pois o que falta é o pedido, e este não pode ser suprido por requerimentos de rectificação, esclarecimento ou reforma da sentença.

4 – A lei não configurou como possível o incidente autónomo de fixação do início da separação de facto e o intérprete não pode criar incidentes “autónomos” onde a lei não deu sinais da sua necessidade.

5 - A circunstância do conceito de separação de facto poder não ser tão pacífico como à primeira vista poderá parecer, aconselhará que a fixação do momento da separação seja feito na sentença e não por via incidental após esta.

V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar o despacho recorrido.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 28/11/2018

Maria Teresa Albuquerque)

Manuel Capelo

Falcão de Magalhães


***


[1] - Jorge Duarte Pinheiro, «O Direito da Família Contemporâneo, 2ª ed, 2009, ed AAFDL, p 654, entende que «o sistema actual de divórcio litigioso constitui um sistema misto, que combina os modelos de divórcio-constatação da ruptura e de divórcio remédio», referindo no que a este respeita, que «no modelo de divórcio-remédio, o divórcio pressupõe também, um estado de vida conjugal intolerável, mas essa situação é causada, com ou sem culpa, por um dos cônjuges, e o divórcio visa permitir ao outro  cônjuge que se liberte do casamento»
[2] - Tem, no entanto, efeitos na amplitude do dever de assistência, nos termos do nº 3 do art 1675º CC .
[3] - Questão que é objecto do Ac R P 9/1/2017, Proc 569/09.4AVR-A.P1, Relator, Carlos Gil, cfr www.dgsi.pt; relativamente ao inventário, cfr Ac STJ 22/171997, Relator, Silva Paixão
[4] - No sentido que o pedido de retroacção tem de ser formulado até à data da prolação da sentença, entre tantos outros, cfr Ac RL 4/12/2003, in CJ T5-108; Ac STJ 19-10-2004 in CJ STJ T3- 65;  Ac STJ 19/12/2006 in CJ T3- 176; Ac R L 30/9/2010 (Ilídio Sacarrão Mendes); Ac STJ 22/1/1997 in CJ TI -63, Ac STJ 19/19/2004; Ac R L 2/2/2007; Ac STJ 7/11/2006 (Alves Velho); Ac R P 27/472017 (Fernando Samões) Ac STJ 16/3/2011 (Granja da Fonseca) 
Em sentido contrário, entre muitos outros, Ac RP 17/1/1989, in CJ T1 – 180; Ac R L 16/1/96, in CJ I -85; Ac R C 20/1/2004; Ac R C 30/11/2004 (Coelho de Matos)  
[5] -  AC STJ 16/3/2011, Granja da Fonseca ; Ac STJ 22/1/1997, Silva Paixão; Ac RL 30/9/2010,  Teresa Prazeres Pais; Ac RL 15/10/2015; Ac RP 9/1/2017 (Carlos Gil); cfr no mesmo sentido, Tomé d”Almeida Ramião, “O Divórcio e Questões Conexas - Regime Jurídico actual»,  p 19; Pereira Coelho,   vol I, 4ª ed,  p 670 
[6] Assim, Tomé d”Almeida Ramião, obra ciam referida, p 19
[7] - Pereira Coelho, «Reforma do Código Civil», 1981, p  48
[8]  - Como se refere no Ac desta Relação de 30/11/2004, Proc 2668/04, Coelho de Matos
[9] - «Notas ao Código de Processo Civil», VI, 1998, p 227 -
[10] -«Código Civil Anotado» , IV, 2ª ed , p 561
[11] -Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, «Curso de Direito da Família» Vol I , 3ª ed , 711
[12] -Jorge Duarte Pinheiro, obra citada, 8ª ed, p 656, refere-se e estes efeitos,  menos radicalmente, como «efeitos essencialmente patrimoniais» e «efeitos essencialmente pessoais»
[13] -Obra citada, p 659
[14] - Obra citada, pag 670  nota 128 
[15] Destacando-se a este nível a do STJ como resulta da nota acima
[16] - Cfr Ac STJ 7/11/2006, Alves Velho
[17] Ac RC 20/1/2004, Proc 3589/03, Jorge Arcanjo
[18]  - A efectuar por averbamento ao casamento e assentos do nascimento, sendo desde logo promovido pelo tribunal, que deve comunicar a qualquer conservatória do registo civil, sempre que possível por via electrónica, as decisões proferidas em acções respeitantes a factos sujeitos a registo que devam ser averbados , sendo que essa comunicação deve ser enviada no prazo de 5 dias após o trânsito em julgado da decisão e dela tem de constar a indicação do tribunal, juízo e secção em que correu o processo, a identificação das partes, o objecto da acção, a transcrição da parte dispositiva da sentença, a data desta e do trânsito em julgado e bem assim os demais elementos necessários ao averbamento – art 78º do CRC – cfr Tome d”Almeira Ramião «O Divórcio e Questões Conexas», 2ª ed , p 87/88
[19] Nas palavras do Ac STJ 7/11/2006 (Proc 06/2918, Alves Velho) , «se é verdade que por efeito da estabelecida inoponibilidade desses efeitos a terceiros anteriormente à data do registo da sentença  (nº 3 do mesmo preceito) estes não serão, pelo menos directamente, prejudicados com a alteração/antecipação, já se nos afigura que a admissibilidade de um tal pedido  após a sentença, pelos efeito que produz, se reconduz, na falta de disposição que expressamente a preveja, a uma inadmissível alteração do pedido a determinar uma também inaceitável modificação da sentença, do sentido e efeito da decisão quanto à liquidação das relações patrimoniais entre os cônjuges litigantes, mantendo por tempo indeterminado, a insegurança e incerteza sobre a eficácia da sentença, em violação das regras do caso julgado e da extinção da instância operada pelo julgamento ( art 273º, 287º/al a), 671º e 673º CPC)  Utilizando o mesmo argumento, cfr  Ac STJ 16/3/2011 (Proc nº 261-C/2001.L1.S1  Granja da Fonseca)
[20] - Relator, Coelho de Matos
[21] Assim é, por exemplo, com a remoção do cabeça-de-casal, escusa ou exoneração dos cargos da tutela, curatela ou curadoria provisória dos bens do ausente, escusa do cargo de cabeça-de-casal e remoção dos cargos de tutela, curatela ou curadoria provisória dos bens do ausente
[22]-  «Regime Processual Civil Experimental Comentado»,  p 28

[23]- Cfr citado A RP 9/1/2017 (Carlos Gil)