Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
497/11.3T4AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: CADUCIDADE DO CONTRATO DE TRABALHO
REFORMA
TRABALHADOR
Data do Acordão: 05/10/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DO TRABALHO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 343º, AL. C) DO CÓDIGO DO TRABALHO
Sumário: I – A reforma do trabalhador por invalidez gera caducidade do contrato de trabalho.

II – Para o Código do Trabalho é indiferente que a invalidez se qualifique, face ao regime da segurança social, de relativa.

Decisão Texto Integral: Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Coimbra:

   A..., SA., sedeada ..., Castelo Branco, interpôs recurso da sentença.

   Pede a respectiva revogação.

   Funda-se nas seguintes conclusões, que dada a sua extensão (mesmo após o convite formulado para sintetização!), se resumem:

[…]

   Não foram proferidas contra-alegações.

   O MINISTÉRIO PÚBLICO junto desta Relação emitiu parecer de acordo com o qual o julgado se deve manter.

   Respondeu a Recrte., manifestando-se contra tal entendimento.


*

   Para melhor compreensão, exaramos, abaixo, um breve resumo dos autos:

   B... instaurou contra “ A..., SA” a presente acção, pedindo seja declarado ilícito o seu despedimento e se condene a ré a pagar-lhe a quantia de € 16.323,39 acrescida da quantia que se liquidar de indemnização nos termos do artº 390º do Código do Trabalho e de juros de mora desde citação.

   Alegou para tanto e em síntese que em 26.12.1996 foi admitida como trabalhadora de empresa que foi depois adquirida pela ré, em 09.07.2009 entrou de baixa médica por doença e a ré, depois de receber comunicação da Segurança Social de que a autora era beneficiária de pensão de invalidez, remeteu-lhe carta a comunicar a cessação do contrato. Acrescenta que tal configura um despedimento ilícito, tendo direito às retribuições que deixou de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da sentença, indemnização em substituição da reintegração, férias vencidas em 01.01.2009 e não gozadas, proporcionais (ao trabalho prestado em 2009) de férias e subsídios de férias e Natal.

   Realizada audiência de partes frustrou-se a tentativa de conciliação das partes.

   Notificada então para o efeito, contestou a ré alegando, em resumo, que o contrato de trabalho caducou pois cessou depois de a segurança Social lhe comunicar que foi atribuída pensão de invalidez à autora, tendo providenciado pelo “fecho das contas” em que deduziu retribuição de Maio de 2010 que pagou indevidamente, não contestando a autora esse fecho.

   Conclui dever ser absolvida do pedido.

   Procedeu-se à realização do julgamento, vindo a ser proferida sentença que (I) reconheceu que a autora foi despedida pela ré de modo ilícito. (II) Condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 3.847,50 a título de indemnização (supra ponto A). (III) Condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 513,00 tantas vezes quantos meses decorreram e decorram entre 27.04.2011 e o trânsito em julgado da presente decisão (incluindo o relativo a subsídios de férias e Natal) a título de compensação conforme artº 390º do Código do Trabalho, com dedução daquilo que a autora tiver recebido seja a título de pensão seja a título de subsídio desemprego ou de remuneração por outra actividade que tenha iniciado (supra ponto B). (IV) Condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 1.282,50 ilíquidos a título de férias e proporcionais de férias e subsídios de férias e Natal. (V) Condenou a ré a pagar à autora de juros de mora à taxa de 4%, sendo desde 06.06.2011 para a quantia referida em IV) e desde a presente data para a quantia referida em II) e para o já vencido do referido em III), sempre até integral pagamento.


***

   Das conclusões acima exaradas extraem-se as seguintes questões a decidir:

   1ª – O contrato de trabalho caducou?

   2ª – Por isso, a Recrte. não é responsável por indemnização de substituição e salários de tramitação?

   3ª – A A. abusa de direito?

   4ª – Não é devida a retribuição de férias e proporcionais e a de Maio?


***

   Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos (reproduzindo-se os que constam da decisão da matéria de facto):

[…]


***

   A 1ª questão que importa dilucidar é a da caducidade do contrato de trabalho.

   Pretende a Recrte. que a sua decisão está ancorada no disposto no Artº 343º do CT, apoiando-se numa decisão proferida por esta Relação em 2/06/2011.

   A sentença recorrida deteve-se sobre a questão nos seguintes termos: “De acordo com o artº 343º do Código do Trabalho o contrato caduca nos termos gerais, nomeadamente, no que ora importa, com a reforma do trabalhador, por velhice ou invalidez.

   Como refere Ricardo Nascimento, integra a eventual invalidez toda a situação mórbida, de causa não profissional, determinante de incapacidade permanente para o trabalho.

   Ou seja, subjacente não está uma invalidez presumida, mas antes uma invalidez certificada medicamente.

   Sendo uma causa de extinção do contrato de trabalho, a invalidez terá que ser definitiva (não meramente temporária) e absoluta (se for relativa, em rigor não haverá uma impossibilidade de prestar trabalho mas apenas uma maior dificuldade em o fazer).

   No caso em apreço, a ré comunicou à autora a cessação do contrato de trabalho na sequência do recebimento de carta da Segurança Social que lhe foi remetida informando que à autora «foi deferida a pensão de invalidez com data de início em 2010.07.13».

   À autora a Segurança Social remeteu carta comunicando que «o requerimento de pensão oportunamente apresentado foi DEFERIDO» e que «a pensão por invalidez relativa tem início em 2010-07-13».

   Ora, do acima exposto extrai-se que a invalidez da autora, sendo relativa, não determinava a caducidade do contrato, ou seja, não se verificou um facto com efeito extintivo do contrato de trabalho.

   No entanto, a Segurança Social não informou a ré, enquanto empregadora, que a invalidez da autora era relativa, apenas referindo que foi deferida pensão de invalidez solicitada pela autora.

   A questão afigura-se-nos colocar-se, então, nestes termos: à ré, face àquela comunicação recebida da Segurança Social, não era exigível manter a autora como sua trabalhadora? ou perguntado de outra forma: à ré, com o teor da carta recebida da Segurança Social – omissa sobre a natureza da invalidez (absoluta ou relativa) –, impunha-se averiguar que tipo de invalidez se tratava?

   A resposta não parece que possa ser outra que não no sentido de que a ré tinha esse ónus (de averiguar que tipo de invalidez estava em causa), não podendo a ré presumir que, pelo facto de antes (Abril – supra ponto 9.) ter havido negociação com vista a revogar o contrato por acordo (cujos contornos em concreto, de resto, se desconhecem) e pelo facto de a baixa da autora se prolongar há já um ano (supra ponto 7.), estava em causa uma invalidez absoluta.

...

E in casu, não se verificando o facto que tem feito extintivo do contrato, a ré (empregadora) não podia fazer cessar o mesmo por comunicação escrita a considerar o contrato caducado (arts. 343º e 344º do Código do Trabalho), e não se alcança fundamento para o fazer cessar por sua iniciativa (cfr. artº 340º do Código do Trabalho para modalidades de cessação do contrato de trabalho).

   Concluímos, então que a ré despediu... a autora de uma forma ilícita – artº 381º do Código do Trabalho.

   Vejamos!

   A reforma do trabalhador, seja por velhice, seja por invalidez, é causa de caducidade do contrato de trabalho (Artº 343º/c) do CT).

   Por sua vez, também opera a caducidade do contrato de trabalho, a impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o trabalhador prestar o seu trabalho (Artº 343º/b) do CT).

   Porque a invalidez, no seu sentido comum, gera esta impossibilidade, autores há[1] que defendem que na previsão da alínea c), no segmento reforma por invalidez, se prevê a que é causa de impossibilidade absoluta de o trabalhador prestar o seu trabalho. Assim, aquela norma não comportaria a situação de invalidez relativa, conceito vigente no âmbito do direito da segurança social, o que a viciaria de redundante.

   Ocorre, porém, que, na sua literalidade, o Artº 343º inculca no sentido de as situações não se confundirem – de um lado a impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, de outro, a reforma por invalidez, independentemente da qualificação desta para efeitos de segurança social.

   Ambas conducentes a caducidade do contrato de trabalho.

   E, sendo certo que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, também o é que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

   Isto para dizer que, sendo o conceito de reforma por invalidez (relativa e absoluta) conhecido do legislador, se há-de presumir que o que ali se consagrou são formas distintas de caducidade do contrato de trabalho, sendo irrelevante, para este efeito, a qualificação da invalidez, conceito que emana do DL 187/2007 de 10/05, anterior, portanto, relativamente ao CT de 2009.

   Como do respectivo preâmbulo consta, tal decreto-lei trouxe uma importante novidade ao nosso ordenamento jurídico. Veio introduzir uma distinção, no regime da protecção social na invalidez, entre a invalidez relativa, até aqui objecto de regulamentação anterior, e a invalidez absoluta, situação a merecer pela primeira vez atenção e tratamento especiais. Na verdade, considera-se que estas situações — que traduzem casos de incapacidade permanente e definitiva para a obtenção de quaisquer meios de subsistência resultantes do exercício de qualquer profissão ou trabalho— devem merecer um cuidado especial, pois, ao contrário do que sucede com a invalidez relativa, não subsistem capacidades remanescentes para o trabalho e são, por isso, situações de gravidade social extrema.

   Assim, e como se diz no Acórdão proferido por esta Relação no âmbito do procº 263/10.3TTGRD (mencionado pela Recrte.), “o que aquele decreto-lei acrescentou (ao ordenamento jurídico) não foi a invalidez relativa, mas a absoluta. Daí que os comentários que versam sobre a caducidade prevista no Código do Trabalho – e prevista em moldes semelhantes na legislação laboral anterior – tenham em mente uma situação de invalidez, apenas, mas que é, suficientemente, a invalidez relativa.”

   O acórdão explicou ainda que “a invalidez que agora – por contraposição – se chama relativa, era a invalidez, quando só um conceito havia, e mantém a presunção de permanente, a referência ao terço da remuneração e ao prazo de garantia que já existia (Ilídio das Neves, Dicionário Técnico e Jurídico de Protecção Social, Coimbra Editora, 2001, págs. 418/419); o que mudou foi a consagração de um regime[2] mais favorável para o que hoje, e como novidade, se chama invalidez absoluta (fixação de um prazo de garantia mais baixo, não aplicação do factor de sustentabilidade, no momento da conversão da pensão por invalidez em velhice e a fixação de uma regra mais favorável nos, assim chamados, mínimos sociais).”

   Esta diferenciação de terminologia não mereceu, contudo, acolhimento para efeitos de tratamento diferenciado no que tange à questão que nos ocupa e, assim, não nos parece defensável a ideia, subjacente á sentença recorrida, de que a invalidez ali reportada é apenas a absoluta.

   Ora, conforme resulta dos autos, à Recrte. foi dado conhecimento, pela Segurança Social, de que a Recrdª passava a beneficiar de uma pensão de invalidez. Esta, por sua vez, também não invocou, nem junto da empregadora, nem por via judicial, a sua capacidade para prestar o trabalho. E os autos revelam que a mesma, à data em que a empregadora tomou conhecimento da situação de invalidez, estava de baixa há quase 1 ano.

   Não surpreende, assim, que a Recrte. não tivesse diligenciado pela confirmação do tipo de invalidez, nem isso lhe é exigível.

   Deste modo, não merece censura a comunicação da Recrte., que traduz uma declaração de caducidade e não, conforme se decidiu na sentença, um despedimento (ilícito).

   Procede, pois, nesta parte, a apelação.


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   Com a solução encontrada para a 1ª questão, a 2ª, dela dependente, merece resposta positiva, ou seja, não é devida pela Recrte. qualquer indemnização de substituição ou salários intercalares, cuja responsabilidade depende da verificação de ilicitude no despedimento e que, como se viu, não se confirma.

  


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   A 3ª questão que enunciámos, prende-se com o abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.

   Defende a Recrte. que tinha a legítima expectativa de que a situação de caducidade do contrato de trabalho, decorrente da comunicação do Instituto de Segurança Social com a atribuição de uma pensão por invalidez, se encontrar firme e definitiva no ordenamento jurídico, expectativa essa reforçada também pelo facto de se terem passado 5 meses desde o envio da carta à trabalhadora até esta formular pedido para emissão da declaração para situação de desemprego.

   Sem razão, porém!

   Conforme decorre do que se dispõe no Artº 334º do CC é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé.

   O abuso de direito traduz-se num exercício anormal de um direito próprio, verificando-se, como se salienta no Ac. do STJ de 15/09/2010, “quando um determinado comportamento, aparentando configurar o exercício de um direito, se traduz, afinal, na não satisfação dos interesses pessoais de que esse direito é instrumental e na correspondente negação de interesses sensíveis de terceiros” (disponível www.dgsi.pt, procº 254/07.1TTVLG.P1.S1).

   O venire contra factum proprium pressupõe, como vem sendo jurisprudência do STJ, também afirmada no aresto acima mencionado, a verificação cumulativa de três requisitos: “1- uma situação objectiva de confiança (uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante relativamente a uma dada situação futura); 2- investimento de confiança (o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base numa situação de confiança criada, toma disposição ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos, se a confiança legítima vier a ser frustrada);
3- boa fé da contraparte que confiou (a confiança de terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando estiver de boa fé e tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico”.

   A proibição de “venire contra factum proprium” está, como ali se diz, inserida no citado artigo 334.º, precisamente no segmento que alude ao excesso manifesto, pelo titular do direito, dos limites impostos pela boa-fé.

   Tutela-se, deste modo, a confiança, mas também “outras composições de comportamentos contraditórios que, pela quebra do continum sócio cultural que representem, se devam considerar globalmente contrários à substancialidade do sistema (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, T. IV, Almedina, 297).

   Ora, não se vê que a A. tenha, de algum modo, actuado criando na R. a convicção de que se vinculava a uma posição futura. Aliás, a A. é alheia à missiva da Segurança Social e da circunstância de ter desencadeado o mecanismo com vista à protecção no desemprego após 5 meses sobre aquela comunicação nada decorre que possa fazer prever uma conformação com a situação. O decurso de tal lapso de tempo bem pode também significar ignorância acerca de eventuais direitos. E que a carta emanada daquela instituição não é causa segura para formação de alguma convicção, resulta evidenciado dos termos desta acção, porquanto a situação é susceptível de comportar diferentes interpretações.

   Não merece, pois, deste ponto de vista, qualquer censura a sentença recorrida.


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   Por fim, os créditos laborais, que a Recrte. defende estarem pagos, o que resultará dos documentos ínsitos a fls. 17 e 58 e, quanto à retribuição de Maio, da circunstância de a A. não ter alegado nunca a ter recebido.

   Como é sabido, as decisões judiciais suportam-se em factos.

   Compulsados os autos, em parte alguma da matéria de facto constam os invocados pagamentos que, tendo sido alegados na contestação, não foram levados á decisão que se debruçou sobre aquela matéria.

   Por outro lado, a Recrte. não impugna a decisão respectiva.

   Logo, sem dependência de impugnação, e sem qualquer suporte fáctico, não pode este Tribunal apreciar a questão assim colocada que, por isso, improcede.

   Quanto à retribuição de Maio, pode ler-se na sentença que a mesma se debruçou sobre a questão, não para condenar no respectivo pagamento, mas sim para afirmar que não haveria que operar qualquer dedução.

   Consignou-se ali: “Importa agora ver se há lugar ao abatimento de 584,45€ pagos como retribuição de Maio de 2010 (quando a autora estava de baixa médica). Se na verdade estivesse demonstrado que esse pagamento (indevido) ocorrera havia que deduzir o valor. Sucede que não ficou assente que o pagamento tivesse ocorrido. Deste modo, não há que deduzir esse valor.

   Subscrevemos inteiramente quanto assim se expendeu, pelo que improcede, também nesta parte, a apelação.


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   Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:

a) revogar a sentença no decidido nos pontos I, II e III e respectivos juros de mora, assim se absolvendo a Recrte.;

b) confirmar a sentença quanto ao mais.

   Custas por ambas as partes, na proporção de 1/5 para a Recrte. e 4/5 para a Recrdª.

   Notifique.


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MANUELA BENTO FIALHO (Relatora)

LUÍS AZEVEDO MENDES

JOAQUIM JOSÉ FELIZARDO PAIVA



[1] Pedro Romano Martinez, Código do Trabalho Anotado, Almedina, 2004 e Da Cessação do Contrato, Almedina, 422; Também Jorge Leite, Direito do Trabalho, Vol. II, Serviços de Acção Social da UC, 2004, 204.
[2] De segurança social, dizemos nós.